De espectadores a participantes (ii): mais sobre o fim da genialidade

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No último post de 2015, tergiversei sobre o fim da genialidade. Ali, sustentei que, historicamente, todo gênio é imediatamente reconhecido por seus contemporâneos. Minha generalização foi tão apressada quanto desastrosa, como muito bem apontou Andrei (por favor se apresente melhor !) no seguinte comentário, a propósito dos gênios postumamente reconhecidos:

“É inerente à noção de genialidade o fato de que ela é prontamente reconhecida em todo gênio por seus contemporâneos.”

Na realidade diversos gênios foram reconhecidos apenas postumamente, vide Bach, Poe, Kafka e tanto outros.

Face ao mesmo, me vi forçado a reformular o argumento para

dada a pluralidade exacerbada de enunciações (artísticas ou científicas) facultada pelos meios de divulgação atuais, é hoje praticamente impossível distinguir o gênio dentre seus contemporâneos – cabendo, portanto, tal tarefa exclusivamente à posteridade.

Premissa que leva, de imediato, à indagação sobre quem será reconhecido, no futuro, como gênio de nossa época.

Uma ótima metáfora para nosso tempo é o ruído branco, a saber, aquele som, semelhante a um chiado, resultante da soma de todos os sons possíveis, no qual se tornam indistinguíveis quaisquer sons “puros” componentes do ruído resultante. Se, sob o domínio dos broadcasting media (aí incluído o “mercado” editorial), a reprodução maciça de enunciados era um privilégio de poucos, é hoje impossível a qualquer inteligência, humana ou artificial, mapear a totalidade de falas que habitam concomitantemente o espaço virtual. Ao menos antes da realização da web semântica perseguida por Lévy.

Por isto, não creio que a identificação dos gênios de hoje seja meramente um problema de julgamento histórico. Sustento, ao contrário, que a genialidade, como elevação do espírito de poucos indivíduos em relação à grande maioria dos de seu tempo, pode, sim, se encontrar em processo de extinção. Para melhor entender como isto ocorreria, é útil nos debruçarmos sobre o mito do homem universal.

Olhando de perto a biografia de tantos gênios, notamos que, frequentemente, sua área de curiosidade transcende os limites de uma única disciplina, transitando, por vezes, até entre os domínios da ciência e da arte. Como o artista e inventor Leonardo da Vinci, o escritor e fotógrafo Lewis Carroll ou o físico e músico Albert Einstein. Até na literatura a amplitude de excelência comparece, mais emblematicamente na figura de um Sherlock Holmes. De pouco importa se Einstein tocasse bem ou mal o violino; se as fotos de Carroll fossem motivadas por uma paixão clandestina que hoje seria vista como franca pedofilia; ou, ainda, se a inquietude de espírito de Holmes pudesse ser atribuída ao vício, hoje proibido, em cocaína. O que tais biografias, reais ou ficcionais, sugerem é que, para as mentes mais agudas, é por vezes difícil se restringir àquilo que convencionamos chamar de ofício. Algo de que a maioria costuma se ocupar por toda a vida e de que deriva o próprio sustento, sem ter tempo para se dedicar mais seriamente (ao menos perante os outros) a qualquer outra atividade. Pois reza o senso comum que, além da profissão (que, até poucos séculos atrás, já foi hereditária), todo foco de interesse restante seja reconhecido, quando muito, como um hobby (mas deixemos de lado, por hora, o fim das profissões – tema complexo a merecer um texto totalmente a ele dedicado).

Por muito tempo, o mito do homem universal enquanto excelente em várias ocupações, idealmente realizado em da Vinci, foi tido como uma exceção numa civilização na qual todo indivíduo não tinha outra possibilidade a não ser optar, por força da competição, por algo no que se especializar. Acreditamos que tal estado de coisas esteja profundamente enraizado em determinantes econômicos. Mas isto não nos interessa tanto.

Interessa, sim, deter o olhar sobre fatores tecnológicos que fizeram com que o mito do homem universal, antes apenas pouquíssimos entre muitos, se tornasse, hoje, muito mais a regra do que a exceção. Interessa, também, notar que

como os limiares para que algo fosse reconhecido como arte se alteraram em contextos mais recentes; e que

como o conhecimento e o imaginário deixaram de ser propriedade de umas poucas mentes para se tornarem objetos compartilhados por inteligências coletivas, ou líquidas.

A arte sempre foi definida e categorizada por técnicas específicas – sendo, portanto, sua tipologia determinada não pelo conteúdo mas, invariavelmente, pela técnica utilizada pelo artista. Deste modo, temos, como grandes categorias, o desenho, a pintura, a escultura, a literatura, o teatro, a fotografia ou a música, entre outras, ficando dicotomias como figurativo/abstrato ou tonal/atonal (associadas ao conteúdo), por exemplo, como classificações secundárias.

Ora, até pouco tempo atrás (mais precisamente até os grandes avanços tecnológicos da segunda metade do século 20) toda técnica devia ser longamente praticada até a obtenção de um domínio razoável a ponto de ser exercido para a criação de obras mais perenes. Por isso, é razoável dizer que as tecnologias computacionais vieram no sentido de facilitar toda e qualquer atividade, facultando, com isto, pela primeira vez, a figura do artista de pronta entrega. Ou alguém seria capaz de dizer que a fotografia com filmes é tão fácil como a digital ? Ou que o projeto arquitetônico era de domínio tão simples antes do CAD ? Ou que fazer um filme antes era tão fácil como fazer um video agora ? Ou, ainda, que era tão fácil escrever antes da recursividade dos editores de texto ?

Mencionei, no post anterior, o fato de vivermos numa era de autoria quase universal. Para que tal condição, facultada por novos meios, existisse, foi necessária uma redução dos patamares antes associados à estatura artística. Da sinfonia ao rap, do grande romance ao tweet ou do óleo ao rabisco, o que vemos em todas as áreas é o encurtamento das formas, a simplificação da complexidade e a legitimização da colagem. Isto não é bom nem ruim mas, simplesmente, uma etapa evolutiva. Fruto, provavelmente, da fragmentação de todo discurso entre múltiplos autores. O que nos permite especular sobre o retorno, talvez, num futuro não muito distante, das grandes formas.

O que quero dizer com isto é que, se antes, por força do tempo necessário ao ao domínio técnico de qualquer arte ou ofício, o mito do homem universal era um privilégio de poucos, hoje, dada a universalização de acesso aos meios, a condição de homem criativo plural se encontra ao alcance de todos. Então, num mundo em que qualquer um pode escrever e publicar, todo portador de um smarphone é um fotógrafo em potencial e um sampler faz de qualquer um um músico, penso, sim, que é bem menos provável do que antes a emergência de sujeitos que venham a ser reconhecidos, por contemporâneos ou pela posteridade, como intelectos privilegiados de nossa época.

* * *

Sempre me agradou bastante a formulação do Parêntesis de Gutenberg, à qual já aludi por diversas vezes, que preconiza o fim da escrita. Mesmo que a previsão esteja errada (oxalá !), a ideia (de um intervalo histórico) não deixa de ser interessante. A ponto de poder ser facilmente transposta para outras coisas. De tal modo que gosto de pensar que, num futuro melhor, poderemos não ter mais a publicidade, os broadcasting media, as profissões, a representação política e toda centralização (verticalização) administrativa, pública e privada, dentre tantas outras coisas que já se encontram naturalizadas como necessárias e inerentes ao funcionamento da sociedade. Daí a magnitude da tarefa de como imaginar um mundo sem elas. Mais horizontal. Por essas e outras, teimo em manter este blog.

 

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