Uma forma rápida de aleijar uma economia: deixe monopólios controlá-la

O pequeno pode não ser necessariamente belo, mas razões científicas comprovam que o grande é frequentemente ruim

 

Publicado em 14 de Dezembro de 2008 por Jonathan Tepper e Denise Hearn em Evonomics

 

Ainda que Hollywood ame filmes como King Kong e Godzilla, há uma boa razão pela qual estas criaturas fantásticas não existam na vida real. Como J.B.S. Haldane diz em seu ensaio clássico, “Sobre ser do tamanho certo” (On Being the Right Size), “Você pode deixar cair um camundongo num poço de mina de mil metros que, chegando ao fundo, ele sofre um ligeiro choque e sai caminhando [,,,] um rato morre, um homem se quebra, um cavalo se espatifa.” Esta é a chave do problema de escala.

O tamanho de um objeto determina sua estrutura. Nos referimos ao princípio biológico como a “lei do quadrado-cubo”. Conforme uma forma cresce em tamanho, seu volume cresce mais rápido do que a área de sua superfície. À medida que um animal cresce através da evolução, sua estrutura precisa se fortalecer mais do que proporcionalmente. Isto expica por que é tão difícil erguer arranhacéus cada vez mais altos e por que King Kong quebraria sua perna se tentasse andar. Grandes animais como hipopótamos precisam de pernas muito mais grossas do que cães.

Mesmo que não exista uma lei quadrado-cubo formal em economia, a ideia geral se sustenta. Empresas crescem, em grande parte, como organismos. Negócios pequenos e de crescimento rápido são os mais produtivos, enquanto negócios gigantes são menos ágeis do que startups. Não surpreende que Louis V. Gerstner, quando escreveu sobre a reversão de rumo que promoveu na IBM, chamou seu livro de “Quem diz que elefantes não podem dançar ?” (Who Says Elepants Can’t Dance ?) . O livro se tornou um best seller precisamente por que homens de negócio sabem que grandes empresas são gigantes pesados.

Hoje, esses gigantes dominam a paisagem econômica. Mesmo assim, o crescimento do PIB tem sido anêmico, na melhor das hipóteses. Grandes empresas acumulam quase 2 trilhões de dólares, principalmente no estrangeiro. Ainda assim, níveis de investimento corporativo são tristes pelos padrões históricos. Empresas preferem comprar ações de volta a aumentar salários ou investir. Economistas não conseguem descobrir do que sofre o paciente.

Achar a fonte de nossas doenças é crítico. Os riscos para a economia dos EUA não poderiam ser maiores. Por que a taxa de criação de startups declinou ? Por que os salários não sobem ? Por que a produtividade é baixa e não sobe ? Por que a desigualdade vem aumentando ?

Muitos políticos e economistas acham que o problema é o tumor da desigualdade de renda, mas a resposta é que a economia norte-americana tem grandes parasitas que drenam nutrientes e roubam a energia do país. Indústrias vem se tornando cada vez mais concentradas ao longo das últimas décadas, com umas poucas firmas dominantes controlando setores inteiros. Estamos numa nova Idade Dourada (mais sobre isto aqui). Conquanto monopólios e oligopólios não matarão a economia, podem muito bem aleijá-la.

As únicas pessoas que devem estar felizes com a situação que temos hoje são as que possuem ações de monopólios. Igualitários se chocam com a desigualdade crescente. Conservadores do livre mercado se horrorizam com menos competição, estagnação econômica, menor produtividade e menos investimento. Todos deveriam se preocupar com a concentração de poder econômico e político nas mãos de uns poucos.

Abaixo, revisaremos as consequências da concentração: preços mais altos, menos startups, menor produtividade, menores salários, maior desigualdade de renda, menos investimento e o encolhimento das cidades menores.

Menores salários e maior desigualdade de renda
Quase todo o foco da concentração industrial tem sido no lucro, na produtividade e no investimento, mas o maior impacto é nos salários. Trabalhadores tem sistematicamente perdido poder em relação a grandes empresas que hoje dominam a indústria.

Dúzias de estudos documentam como a concentração industrial está induzindo a desigualdade de renda. A arma fumegante, no entanto, não é mostrada. Pesquisadores intuem mas não conseguem provar que monopólios, particularmente no nível local, afetam os salários de consumidores.

Num monopólio, uma empresa é a única vendedora e pode cobrar os preços que quiser. Num monopsônio, é a única compradora e pode pagar os preços e salários que quiser. Amazon, por exemplo, se tornou a monopsonista na indústria de livros, como a principal compradora das editoras, estabelecendo os preços pelos quais os livros são vendidos. Para algumas profissões, uma empresa pode estabelecer salários.

Recentemente, economistas começaram a observar o problema do monopsônio no mercado de trabalho tão somente para descobrir quão ruim a situação é.

A evidência é deprimente. Os economistas Marshall Steinbaum, Ioana Marinescu e José Azar examinaram mercados de trabalho nos EUA para verificar quão concentrados são os empregados. Descobriram que a maior parte das zonas de troca onde trabalhadores procuram por emprego são altamente concentradas, e isto arrasta os salários para baixo. Os resultados da redução de salários são altamente problemáticos. Eles demonstraram que ir de um mercado de trabalho muito competitivo para um altamente concentrado é associado a uma redução salarial entre 15 e 25%.

O mercado de bens é nacional, enquanto a busca por emprego ocorre localmente. Isto ajuda a explicar por que mercados ideais, perfeitamente competitivos, são, de fato, um mito. O estudo de Steinbaum mostra que este insight é correto. Ele e seus colegas apontam que “os mercados de trabalho mais concentrados, e aqueles nos quais o efeito da concentração nos salários é maior, são os rurais.”

Empresas podem pressionar trabalhadores de muitas formas para achatar salários. Os economistas Jason Furman e Alan Krueger mostraram que muitas firmas podem suprimir salários através de comportamentos monopsonísticos, tais como conluio, acordos de não competição e impedindo empregados de participar processos legais de classe. Em 2015, Jonathan Baker e Steven Salop identificaram o poder de mercado como possível fator de crescimento da desigualdade da riqueza nos EUA. Lina Khan e Sandeep Vaheesen observaram como a precificação monopolizada é uma forma de taxação regressiva em que o lucro descartável de muitos se transforma em ganho de capital, dividendos e compensação executiva para uns poucos. “Evidências de um número de indústrias chave nos Estados Unidos indicam que poder de mercado excessivo é um problema sério.”

Alguns monopólios pagam muito bem uns poucos sortudos. O pagamento tende a aumentar com o tamanho da firma. O professor Holger M. Mueller, da New York University, e seus colegas descobriram que diferenças salariais entre trabalhos mais e menos especializados aumentam com o porte da firma. Eles também demonstraram que há uma relação forte entre a variação no tamanho da firma e a crescente desigualdade salarial na maioria dos países desenvolvidos. Eles afirmam que aquilo que muitos interpretam como um movimento amplo em direção à maior desigualdade salarial pode ser causado por um aumento no emprego pelas maiores firmas da economia.

A tendência em direção a empresas cada vez maiores está alargando, em empresas dominantes, o abismo entre os poucos que são pagos espetacularmente bem e a maioria dos norte-americanos cujos salários estão estagnados. O economista David Autor e seus colegas concluíram num recente artigo que a ascensão de firmas “superstar“, com altos lucros e relativamente pequenas forças de trabalho, contribuiu para o encolhimento da participação dos trabalhadores na renda nacional e, ao mesmo tempo, um aumento correspondente da participação dos lucros.

Preços mais altos

A principal razão pela qual reguladores permitem uma orgia de fusões e aquisições é que as empresas combinadas, as “NewCos” em jargão financeiro, são supostamente mais eficientes e podem proporcionar preços menores para consumidores através de economias de escala. Se alega que o bem-estar dos consumidores aumenta quando duas ou três empresas dominam completamente a indústria. Conforme folhas de pagamento são cortadas e empresas conquistam o cálice sagrado das “sinergias”, reduzindo a contabilidade dupla e funções legais e de recursos humanos pela diluição dos mesmos entre várias empresas, tal economia é magicamente estendida aos compradores.

Transferir economia de custos a consumidores é uma história maravilhosa sem base na realidade. Dúzias de estudos econômicos mostram que negócios não se tornam mais eficientes após uma fusão. A verdade é que eles simplesmente se tornam mais rentáveis por que ganham poder de mercado e podem evitar custos mais altos. O professor Rodolfo Grullon descobriu, em seu principal estudo sobre concentração industrial, que não há correlação clara entre o uso eficiente de ativos e concentração. A principal razão pela qual empresas enriquecem é por terem maior poder de mercado.

Um recente artigo dos economistas Justin Pierce, do Federal Reserve Board of Governors, e Bruce Blonigen, da University of Oregon, mostra que fusões resultam em preços maiores, com pouca evidência de maior produtividade e eficiência. Eles também investigaram detalhadamente se fusões aumentam a eficiência por meio da redução de custos administrativos e da maior produtividade de ativos – mas, outra vez, encontraram pouca evidência em favor destes grandes pleitos. Isto corrobora o trabalho dos economistas Jan de Loecker e Jan Eeckhout, que mapearam um aumento do crescimento empresarial de 18% em 1960 para 67% hoje. Em bom português, a margem de lucro das empresas cresceu por que elas puderam aumentar preços, e não por que se tornaram mais eficientes.

A prova é tão esmagadora que torna imperiosa a questão de por que autoridades antitruste permitem que empresas se fundam. Empresas sempre exercem lobby para pleitear em própria causa junto a reguladores e legisladores, alegando que exercerão sua responsabilidade de poder de mercado. Firmas usam economistas contratados para criar modelos “provando” que fusões reduzirão preços. Mas, uma vez que as fusões acontecem, os preços misteriosamente sobem. Isto nos lembra as resoluções de Ano Novo para perder peso, que na hora parecem ótimas, mas que rapidamente se esvaziam tão logo donuts e pizzas apareçam.

Hoje, empresas King Kong e Godzilla dominam o mercado, asfixiando o crescimento econômico, estrangulando trabalhadores, aumentando preços para consumidores e exacerbando a desigualdade. Às vezes a realidade é mais estranha do que a ficção.

 

Adaptado de O Mito do Capitalismo: Monopólios e a Morte da Competição (The Myth of Capitalism: Monopolies and the Death of Competition). Wiley, Novembro de 2008.

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Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Textos sombrios (ii): o futuro do trabalho

Advertência: devo aqui ruminar mais um pouco na linha pessimista de meu texto anterior, desta vez sobre o que esperar, num futuro não muito distante, de uma civilização cujos indivíduos, principalmente nos últimos 500 anos, passaram cada vez mais a definir sua existência pelo trabalho.

Um ser humano típico, exercendo uma ocupação formal (i.e., com garantias e vínculos reconhecidos), passa, via de regra, durante sua vida, por três idades distintas, a saber, a formativa, na qual se prepara para ingressar no mundo do trabalho; a da produção, quando exerce a ocupação para a qual foi treinado; e a terceira, eufemisticamente chamada de “melhor idade” e geralmente associada à aposentadoria, na qual já não tem a oferecer à sociedade a mesma energia vital de outrora, sendo, portanto, dispensado dos esforços (mas não dos tributos !) exigidos dos mais jovens.

Se o ócio é mais aceitável em idosos do que em gente mais jovem, tal se deve principalmente a razões econômicas como menor produtividade e custos mais elevados advindos de adoecimento. Tais imperativos são via de regra esquecidos ou ignorados com o uso de expressões como “terceira” ou “melhor” idade, que possuem uma carga semântica, respectivamente, neutra ou francamente mais positiva do que, simplesmente, velhice. Uma espécie de recompensa por uma vida dedicada a não se sabe muito bem o quê. Alguma dúvida, até aqui, sobre o fato de que a linguagem é, sim, ideológica ?

(da mesma forma que me incomodam anúncios de bancos com pessoas sempre sorrindo (quem já viu coisa parecida, i.e., rostos sorridentes num atendimento bancário típico, no mundo real ?), também tenho uma aversão cética em relação à propaganda de planos e serviços de saúde e previdência para idosos no qual os mesmos são retratados invariavelmente felizes. Tal situação não corresponde de  modo algum ao que se vê em instituições, beneficientes ou de luxo, na qual velhos recebem cuidados enquanto lá são deixados para envelhecer e morrer)

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A distinção geralmente aceita entre trabalho (o que se faz para (sobre)viver) e lazer (o que se faz por prazer ou enriquecimento espiritual pessoal) é uma relativamente recente na história da humanidade quando observada numa escala de tempo mais ampla.  Com efeito, desde nossos ancestrais caçadores-coletores, passando pela idade agrícola e até a idade média (deixando, é claro, de lado o trabalho escravo), jornadas de trabalho eram mais curtas, o trabalho facultativo, e não havia uma distinção clara entre o que o ser humano fazia pela própria subsistência ou apenas por prazer. Entre caçadores-coletores, por exemplo, canto, dança e histórias ao redor da fogueira eram uma necessidade tão vital quanto alimentação ou abrigo e, se alguém eventualmente não quisesse participar da caçada, não havia problema algum, pois seria de bom grado alimentado pelo bando (vide Economistas estão obcecados pela “criação de empregos”. E se trabalhássemos menos ?, no final do oitavo parágrafo).

É razoável, portanto, supor que a noção de trabalho como a temos hoje tenha se originado com a divisão de classes nas revoluções comercial e industrial – já que, antes, não fazia qualquer sentido a ideia de exploração do trabalho humano por terceiros. Foi só com a maximização do lucro obtido, primeiro com a comercialização e depois com a fabricação, de bens que passou a ser importante o aproveitamento de toda a força de trabalho, só limitado pelas conquistas trabalhistas. A partir daí a história é conhecida, com reivindicações sindicais e, mais recentemente, proteção da infância e reconhecimento de direitos iguais para mulheres.

Quanto ao lazer, é tolerado indiscriminadamente em idosos (já que “socialmente inúteis”); um pouco menos em crianças (só depois da realização dos deveres escolares) e muito pouco entre adultos. Pelo menos entre adultos trabalhadores, não ricos (rentistas). Notem que tanto adultos como crianças devotam suas melhores horas (aquelas em que estão mais dispostos) ao estudo e ao trabalho, lhes sendo concedidas para o próprio lazer apenas aquelas em que estão, na maioria das vezes, exaustos, só esperando o sono, por sua vez restaurador para uma nova jornada de esforços nos quais, muitas vezes, não percebem qualquer sentido. Mas não vou me deter nos bullshit jobs, tão bem descritos e estudados por David Graeber na obra que resenhei aqui. Graeber dedica seu livro “aos desempregados, que são quem efetivamente cuida dos outros”.

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Estudiosos de Oxford estimaram, já em 2013, a probabilidade de extinção, nos 20 anos seguintes, das principais profissões que conhecemos hoje. A lista (compilada por Harari em Homo Deus e citada aqui), encabeçada por operadores de telemarketing e corretores de seguros, é impressionante.

Face a esta realidade onipresente, não surpreende que agremiações de classes ocupacionais, reeditando o movimento ludista (trabalhadores que, no início da revolução industrial, quebraram máquinas num gesto desesperado para tentar manter seus empregos), tentem garantir a manutenção de suas profissões, as quais vão se tornando obsoletas face a avanços tecnológicos irreversíveis. Como, por exemplo, carteiros numa era de comunicações digitais; taxistas em meio a aplicativos de transporte; vendedores de lojas concorrendo com o comércio eletrônico; caminhoneiros (que já tiveram sindicatos poderosos, como mostrou recentemente Martin Scorcese em O Irlandês) em estradas cada vez mais povoadas por veículos autônomos; caixas em bancos e postos de cobrança de estacionamento em shopping centers e operadores em qualquer atividade outrora existente que, em tempos recentes, foi contemplada com o auto atendimento.

Quando o declínio progressivo da quantidade de postos de trabalho em razão da automação crescente e da proliferação do do it yourself e do self service, não tardará o dia em que, em razão da necessidade minguante de trabalhadores, a divisão de classes, ainda hegemônica, entre patrões (proprietários) e trabalhadores (empregados), será rendida totalmente obsoleta. Harari estima que, numa futura sociedade voltada para o lazer, uma das únicas profissões ainda em demanda será a de programador de jogos. Tal contexto já foi bastante explorado em obras de ficção – como no filme de animação Wall-e (2008), rara distopia para o público infantil, onde uma humanidade ociosa e obesa migra para outro planeta, deixando para trás uma Terra suja e esgotada, povoada por robôs faxineiros.

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Alguém já observou, com muita propriedade, que atividades como a caça ou a pesca, que nos primórdios da história humana eram consideradas uma espécie de trabalho (ainda que, como dissemos acima, não havia uma distinção clara entre trabalho e lazer como a que temos hoje) são atualmente exercidas por muitos francamente como lazer. Ao mesmo tempo, sem entrarmos no mérito da questão sobre se cada uma das atividades abaixo arroladas se constitui ou não, no entender de Graeber, num bullshit job, é difícil imaginar algum prazer (exceto, é claro, o da gratificação econômica) experimentado pelo operador de uma máquina numa linha de produção industrial; por vendedores no comércio varejista ou e por burocratas dedicados ao tráfego de informações, seja em papel ou por meios digitais, em bancos, tribunais, cartórios ou repartições de toda sorte. Notem que uma parte considerável da população economicamente ativa exerce, em nome da própria subsistência, alguma destas atividades.

Reconhecer tal estado de coisas implica, necessariamente, num impasse em se tratando de educar indivíduos para o assim chamado mundo da produção. Como educar filhos para viver num mundo em que a sobrevivência (mais: a própria identidade individual) ainda depende fundamentalmente do trabalho quando não temos razões para acreditar que, num futuro não muito distante, o trabalho ainda existirá como fator hegemônico de definição da existência humana ?

Neste cenário, ainda tido pela maioria como pessimista mas cada vez mais aceito como realista, há quem se atreva a propor utopias capazes de lidar com o problema do desemprego generalizado. Uma destas vertentes é a da renda mínima universal (UBI, para universal basic income), que prevê o aporte pelo estado de uma quantia substancial a cada cidadão, suficiente para lhe garantir uma existência digna, independentemente do mesmo pertencer ou não à força de trabalho. O holandês Rutger Bregman é um dos principais representantes desta corrente, esmiuçada em detalhe em sua obra Utopia para Realistas, de 2016.

Também digna de nota é a candidatura à presidência dos EUA, ainda neste ano, de Andrew Yang, que defende a concessão pelo governo de mil dólares mensais a cada cidadão. Antes, no entanto, de saudarmos a renda mínima como um projeto de esquerda e nos entusiasmarmos com a plataforma de Yang, é preciso que se diga que ele a vê, antes de tudo, como um modo ideal de estimular – pasmem ! – o empreendedorismo. Vem, meteoro.

Contra o empreendedorismo

Empreendedorismo está na moda. Em economias liberais, é superestimado. Empreendedores assumem riscos movidos pela perspectiva da obtenção de lucro. Num cenário isonômico, tal perspectiva deveria ser, por si só, suficiente para lançar tais indivíduos em busca de seus objetivos. Só que não. Pois qualquer aspirante a empresário pode recorrer a agências de fomento, incubadoras empresariais e linhas de crédito dedicadas. Todo este aparato governamental, acadêmico e financeiro à disposição do dito espírito empreendedor equivaleriam a um incentivo a apostadores em um cassino.

Por razões além do interesse deste texto, cassinos são, em nosso país, ilegais. E mesmo que fossem legais, seria difícil imaginar governo, universidades e bancos proporcionando as condições necessárias a todo apostador em potencial (bem, há, é claro, as loterias oficiais, mas as deixemos, por hora, de fora desta argumentação). Num cassino, a regra é simples: aposta quem tem, não aposta quem não tem. Sem choradeira. Cada um compra as fichas antes de jogar.

Com o empreendedorismo, não é diferente. Espírito empreendedor ? Bullshit. Ainda que a ideologia liberal insista em exaltar o empreendedor como o visionário que aceita empreender riscos, a grande verdade oculta é que só empreende quem tem cacife para apostar, i.e., dispõe de vastos recursos, geralmente herdados ou oriundos do lucro de empreendimentos anteriores bem sucedidos, dos quais pode perfeitamente prescindir se tudo der errado. Também se sabe que grande parte dos empreendedores só obtiveram sucesso depois de várias tentativas; até lá, tão somente perderam recursos investidos.

Por outro lado, alguém já viu um assalariado que luta para pagar suas contas no fim do mês se lançar com êxito em algum empreendimento ? Ok, isto às vezes acontece – e, nestes casos, faz a alegria dos produtores de televisão. Mas, via de regra, trabalhadores são cautelosos com seus gastos – o que exclui, na maioria das vezes, qualquer possibilidade de empreender. Como, por exemplo, na abertura de franquias, que costuma exigir um pesado investimento inicial.

Outra verdade oculta é a alta taxa de mortalidade empresarial, i.e., de empresas que encerram atividades poucos anos depois de abertas, seja por expectativas demasiado otimistas de seus fundadores, seja pela concorrência predatória tão exaltada como a “mão invisível do mercado”. Assim, está longe de ser uma resposta satisfatória para o problema da desigualdade um sistema no qual ao sucesso de um corresponde necessariamente o fracasso de muitos.

Sucesso e fracasso. Costuma-se dizer de todo empreendedor bem sucedido que ele venceu por reunir mais méritos do que os que fracassaram. Estamos aqui claramente diante de uma meia verdade. Pois, ainda que não possamos negar a competência de qualquer empreendedor bem sucedido, certamente nem todos os concorrentes que não lograram o mesmo êxito são desprovidos de tais méritos. Muito já se falou da desigualdade das condições iniciais como principal vulnerabilidade da meritocracia. É, pois, aqui, suficiente dizer que muitos empreendimentos que não emplacam devem seu fracasso à escassez de capital de risco, falhas de mercado ou, simplesmente, sorte.

Falhas de mercado. Na utopia capitalista, todos os competidores iniciam o jogo nas mesmas condições. Como exércitos isonomicamente distribuídos no início de uma partida de War (jogo de tabuleiro mais chato que conheço, metáfora perfeita do sistema capitalista, em que sempre ganha a [longa] partida quem vence as primeiras rodadas). Só que, na prática, jamais encontramos esse cenário perfeitamente controlado. A começar pela sorte que, em qualquer competição, sorri para alguns em detrimento de outros. E para complicar as coisas, surgem as chamadas falhas de mercado, das quais as mais conhecidas são o protecionismo e as informações privilegiadas.  Alíquotas tributárias e taxas de juros diferenciadas, bem como isenções fiscais, aplicadas a diferentes categorias, constituem os exemplos mais conhecidos de protecionismo. Já as informações privilegiadas se referem ao conhecimento prévio e exclusivo, por parte de um ou mais competidores, de dados sensíveis tais como, por exemplo, oscilações futuras no valor de ativos e comodities.

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Já falamos de mortalidade empresarial. Falemos, agora, do que esperar de qualquer empreendimento bem sucedido.  Num sistema que valoriza, acima de tudo, o crescimento (já foi dito que a salvação do planeta, para as próximas gerações, depende principalmente das nações abrirem mão da expectativa de crescimento que move a economia), todo novo empreendimento só pode almejar, realisticamente a 1) se tornar suficientemente interessante a ponto de ser adquirido por uma empresa maior; ou 2) crescer o suficiente para comprar os concorrentes mais sérios.

Notem que apenas pequenos estabelecimentos, como mercadinhos, padarias, oficinas mecânicas, borracharias, bares, restaurantes e afins parecem imunes a esta regra.  De resto, farmácias, supermercados, franquias e grandes lojas tendem a constituir redes cada vez maiores. Sem ser economista, avento uma possível especulação para tal estado de coisas. É que, enquanto os negócios do primeiro grupo limitam seu porte à capacidade produtiva de quem neles trabalha, já os do segundo almejam à constante expansão do capital.

E aqui estamos, outra vez, diante de uma dicotomia entre capital e trabalho que muitos já consideram, como aquela entre esquerda e direita, ultrapassada. Não conheço, todavia, maneiras melhores de ver a economia. Consoante a isto, gosto de pensar no capitalismo, enquanto sistema competitivo ao invés de colaborativo, como uma espuma – na qual, na ausência de uma força externa de agitação (análoga aos célebres think tanks, como a Atlas Foundation ou a Mont Pèlerin Society, através dos quais o capital internacional busca explicar e justificar sua existência), tende a se dispersar num conjunto cada vez menor de bolhas cada vez maiores. Não conheço melhor metáfora para a tendência às fusões e aquisições dos negócios mais rentáveis. Ou seja: o capitalismo pode ser, como uma espuma, tudo menos auto sustentável.

Utopia para Realistas (2016), de Rutger Bregman

Quando meu amigo Ivo Eduardo me recomendou, num comentário sob uma postagem que fiz no facebook sobre renda mínima, Utopia para realistas (2016), do historiador holandês Rutger Bregman, logo desconfiei que se tratava de um grande livro, por já ter traduzido dois artigos do autor, respectivamente, sobre trabalhos inúteis (“bullshit jobs“) e redução da jornada de trabalho. Consoante a isto, tratei logo de obter o volume e passá-lo à frente de minha fila de leitura (a grande vantagem dos livros sucintos: o de Bregman tem só 225 páginas, fora as notas).

As notas. Ocupando 28 páginas (mais de 10% do livro, portanto), denotam inequivocamente um dos principais traços do estilo do autor, a saber, o de comprovar toda e qualquer alegação sua – muitas das quais contundentes, na contramão do senso comum – por meio de farta bibliografia de estudos e pesquisas já conduzidos e disponíveis online para quem quiser conferir. Há mesmo uma seção inteira dedicada a explicar o que é um estudo controlado randomizado, ou ECR (aqueles com grupos de controle) – como, por exemplo, um realizado no Quênia em 1998 para investigar o efeito da ajuda humanitária sob a forma de doação de livros escolares. Curiosidade: o primeiro ECR de que se tem notícia foi realizado no século VII a.C. e relatado na bíblia.

Outra faceta convidativa do estilo de Bregman é a fragmentação de cada capítulo em seções com subtítulos que não passam de duas páginas. Com isto, fica mais fácil interromper e retomar a leitura, bem como localizar passagens específicas em referências futuras.

De resto, seu estilo é francamente aforístico (como, suponho, num manual de autoajuda), incessantemente conclamando o leitor a alguma linha de conduta em prol do progresso social.

Dito isto, deixemos de lado o estilo do texto para nos concentrarmos em seu conteúdo. Como o título indica, se trata de uma utopia, alicerçada sobre três princípios centrais: a implementação de (1) uma renda mínima universal; de (2) jornadas de trabalho radicalmente mais curtas (idealmente, 15 horas semanais, como previra Keynes em 1930) e (3) a abolição de todas as fronteiras nacionais.

Discutindo a renda mínima, Bregman cita exemplos históricos, a começar por sua quase implementação nos EUA por Nixon,  citando inúmeros estudos realizados sobre populações que já a experimentaram. Tais estudos tem por principais objetivos a derrubada de mitos tais como os de que uma renda mínima universal seria demasiado onerosa ou de que, ainda, induziria à indolência e/ou ao oportunismo. Ao fim, estudos conduzidos sobre populações que já foram submetidas a programas de renda mínima demonstraram que

o custo de tais programas é significativamente menor do que aqueles outros, assistenciais e paliativos, destinados a mitigar os efeitos da pobreza; e que

sujeitos contemplados com uma renda mínima, ao contrário de se resignarem a não trabalhar e a consumir os recursos que lhes foram destinados com alcoolismo e drogadição (como muitos detratores acreditam), usam os mesmos para custear despesas de subsistência, utilizando o tempo livre, não mais comprometido com empregos subremunerados ou mesmo inúteis, para buscar ocupações socialmente significativas.

Ao longo do livro, Bregman sustenta várias teses interessantes. Dignas de nota são

a história do PIB (produto interno bruto); suas limitações; o mito da sustentabilidade de modelos econômicos baseados em crescimento constante e a necessidade de novos índices para aferição do progresso social;

o mito de que o setor privado (indústria e serviços) é mais barato e o público (saúde e educação), muito caro; para refutá-lo Bregman se vale dois itens excluídos do PIB, a saber, os custos ocultos do setor privado e os benefícios ocultos do público.

o fenômeno dos empregos inúteis (bullshit jobs), citando amplamente David Graeber, autor do ensaio de 2013 no qual cunhou o termo e do livro de 2018 totalmente dedicado ao tema;

a relação inversa normalmente verificada entre a utilidade e a remuneração de cada trabalho (quanto maior a importância social, menor a remuneração, e vice-e-versa); por esta regra, garis, enfermeiros e professores (profissões que produzem riqueza) ganham muito menos do que, por exemplo, advogados, lobistas e operadores financeiros (profissões que transferem riqueza). No sugestivo capítulo intitulado Por que não vale a pena trabalhar em banco, Bregman compara o efeito imediato (negociação após 6 dias) da greve dos lixeiros de Nova Iorque em 1968 com a dos bancários da Irlanda em 1970, suspensa depois de 6 meses por não ter produzido qualquer resultado esperado pelos grevistas;

a permanência de modelos falidos por meio da ideologização da credulidade,  sintetizada pela máxima “pessoas inteligentes não utilizam seu intelecto para obter a resposta correta; usam-no para obter o que elas querem que seja a resposta” (citando Ezra Klein em How politics makes us stupid).

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Conquanto brilhantemente defendida e fartamente documentada, a utopia de Bregman não é, como qualquer utopia, de fácil implementação. Seu estabelecimento depende da adoção progressiva, por parte de lideranças internacionais importantes, de um ou mais dos três princípios arrolados no quinto parágrafo deste post. Sua aceitação, no entanto, por parte de eleitores, não é nada simples, implicando, antes, uma revolução cultural para desinstalar falsos pressupostos “naturalizados”, tais como, por exemplo, o mito do crescimento contínuo e o valor incondicional do trabalho.

Felizmente, a pauta de Bregman, contra todas as expectativas mais conservadoras, já faz parte do discurso político, começando pela candidatura à presidência dos EUA em 2020 de Andrew Yang, que pretende, entre outras coisas, dar a cada cidadão norte-americano a quantia de 1000 dólares por mês, independentemente de estarem desempregados ou inscritos em qualquer programa de assistência ao desemprego. Oxalá iniciativas assim proliferem !

O Futuro do Trabalho, Robotização e a Capacidade do Capitalismo para gerar Empregos Inúteis

O valor de seu trabalho não deveria ser medido pelo seu salário

Publicado em Evonomics por Rutger Bregman, em 17 de maio de 2017

Originalmente publicado em World Economic Forum

 

Muito já foi escrito em anos recentes sobre os perigos da automação. Com previsões de desemprego em massa, redução de salários e desigualdade crescente, obviamente devemos todos nos preocupar.

Hoje, não são mais apenas os observadores de tendências e tecnoprofetas do Vale do Silício que estão apreensivos. Em um estudo que já acumula mais de uma centena de citações, pesquisadores da Universidade de Oxford estimaram que não menos do que 47% de todos os empregos norte-americanos e 54% dos europeus correm alto risco de serem substituídos por máquinas – não em torno de cem anos, mas nos próximos vinte. “A única diferença real entre céticos e entusiastas é uma questão de tempo”, diz um professor da New York University. “Mas daqui a um século, ninguém vai mais se preocupar sobre quanto tempo levou, mas com o que aconteceu depois”.

Admito que já ouvimos isto antes. Empregados já vem se preocupando com a maré ascendente de automação por 200 anos, e por 200 anos empregadores vem dizendo que novos empregos se materializarão para substituí-los. Afinal, por volta de 1800, cerca de 74% dos norte-americanos eram fazendeiros, enquanto que em 1900 este número caiu para 31% e, em 2000, para meros 3%. Ainda assim, isto não resultou em desemprego em massa. Em 1930, o famoso economista John Maynard Keynes previa que estaríamos todos trabalhando apenas 15 horas por semana em 2030. Todavia, desde os anos 80 o trabalho vem consumindo cada vez mais nosso tempo, trazendo consigo ondas de stress e esgotamento.

Enquanto isto, o cerne da questão sequer vem sendo discutido. A grande pergunta que deveríamos fazer é: o que constitui realmente “trabalho” nos dias de hoje ?

O que é, afinal, “trabalho” ?

Em um levantamento de 2013 com 12.000 profissionais pela Harvard Business Review, a metade dos entrevistados declarou que seu trabalho não tinha “sentido e significado” e um número equivalente não se via inserido nas missões de suas empresas; enquanto outra pesquisa com 230.000 empregados em 142 países mostrou que apenas 13% dos trabalhadores realmente gostavam de seu trabalho. Uma pesquisa recente entre britânicos revelou que 37% deles tinham trabalhos que consideravam inúteis.

Eles possuem aquilo a que o antropólogo David Graeber se refere como “bullshit jobs”. No papel, tais trabalhos parecem fantásticos. Há mesmo hordas de profissionais de sucesso, com perfis de Linkedin vistosos e salários impressionantes, que no entanto voltam para casa todos os dias resmungando que seu trabalho não serve a propósito algum.

Deixemos outra coisa clara: não estou falando aqui de lixeiros, professores ou enfermeiros espalhados pelo mundo. Se estas pessoas entrassem em greve, teríamos em mãos um estado de emergência instantâneo. Não. Falo nos crescentes exércitos de consultores, banqueiros, conselheiros de impostos, gerentes e outros que ganham seu dinheiro em encontros estratégicos inter-setoriais entre pares para especular sobre valor agregado e co-criação na sociedade conectada. Ou algo no gênero.

Então, ainda haverá empregos suficientes para todos daqui a algumas décadas ? Qualquer um que tema desemprego em massa subestima a extraordinária capacidade do capitalismo de gerar bullshit jobs. Se realmente quisermos colher as recompensas pelos tremendos avanços tecnológicos das últimas décadas (incluindo a ascensão da robótica), precisamos redefinir radicalmente nossa definição de “trabalho”.

O paradoxo do progresso

Partimos de uma questão antiga: qual o sentido da vida ? Muitos dirão que o sentido da vida é tornar o mundo um pouco mais belo, mais aprazível ou mais interessante. Mas como ? Hoje, nossa principal resposta a isto é: através do trabalho.

Nossa definição de trabalho é, entretanto, incrivelmente estreita. Somente trabalho que gere dinheiro pode ser computado no PIB. Não é prá menos, então, que organizamos a educação em torno de fornecer o maior número possível de pessoas, em parcelas flexíveis, ao mercado de trabalho. Ainda assim, o que acontece quando uma proporção crescente de pessoas consideradas bem sucedidas segundo a régua de nossa economia do conhecimento diz que seu trabalho é inútil ?

Este é um dos grandes tabus de nossos tempos. Todo nosso sistema de atribuir sentido poderia de dissolver como fumaça.

A ironia é que o progresso tecnológico exacerba esta crise. Historicamente, a sociedade foi capaz de absorver mais bullshit jobs precisamente por que robôs vem se tornando melhores. À medida em que fazendas e fábricas se tornaram mais eficientes, contribuíram para o encolhimento da economia. Quanto mais produtivas a agricultura e a manufatura de tornaram, menos pessoas empregaram. Chamem a isto o paradoxo do progresso: quanto mais ricos nos tornamos, mais tempo temos para desperdiçar. Como diz Brad Pitt no Clube da Luta: “Frequentemente, trabalhamos em empregos que detestamos só para comprar aquilo de que não precisamos”.

Chegou a hora de pararmos de dar as costas ao debate e focar no problema real: como seria nossa economia se radicalmente redefiníssemos o sentido de “trabalho” ? Acredito firmemente que uma renda mínima universal seja a resposta mais eficiente ao dilema da robotização crescente. Não por que robôs assumirão todo o trabalho útil, mas por que uma renda mínima daria a cada um a oportunidade de realizar algum trabalho que tenha sentido.

Acredito num futuro em que o valor de seu trabalho não seja determidado pelo tamanho de seu salário, mas pela quantidade de felicidade que você espalhe e de sentido que você dê. Acredito num futuro em que o objetivo da educação não seja prepará-lo para mais um trabalho inútil, mas para uma vida bem vivida. Acredito num futuro em que “trabalho seja  para robôs e vida para pessoas”.

E se a renda mínima lhe soa utópica, então eu gostaria de lhe lembrar que todo marco civilizatório – do fim da escravidão à democracia e aos direitos iguais para homens e mulheres – foi um dia uma fantasia utópica. Ou, como escreveu Oscar Wilde há muito tempo: “O Progresso é a realização de Utopias”.

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Rutger Bregman é historiador e escritor, publicando na plataforma holandesa de jornalismo online The Correspondent. É autor de Utopia for Realists: How We Can Build the Ideal World, publicado por Bloomsbury na Reino Unido e por Little, Brown nos EUA. Twitter: @rcbregman

 

Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber (2018)

Raros livros me impactaram tanto, nos últimos anos, como Bullshit Jobs: a Theory (2018), do antropólogo anarquista David Graeber, atualmente lotado na London School of Economics. O tema que dá nome ao volume – a saber, aqueles trabalhos percebidos como inúteis ou até mesmo nocivos à sociedade por quem os exerce – já é, por si só, fascinante. Como se não bastasse, o livro mais recente de Graeber (autor, entre outros, de Dívida: os primeiros 5000 anos (já traduzido) e The Utopia of Rules (também inédito em português)) ostenta uma densidade lógica (conceito que formulo aqui e ao qual também me refiro aqui) excepcional. Nele, não há sequer um único parágrafo que possa ser tomado por acessório ou colateral à argumentação – o que rende, de saída, qualquer resenha, enquanto recorte, como supérflua. Bem melhor, neste caso, é ler a coisa inteira. Ainda assim, teimoso que sou e impactado que estou, prossigo.

Outra boa razão para se evitar (escrever e ler) esta resenha é que o livro ainda não foi traduzido para o português. Com isto, estas linhas servirão, no máximo, para que alguns entusiasmados se submetam à trabalhosa e demorada importação de um exemplar. Trabalho, portanto, inútil ? Não acho. Quem decidir me acompanhar além deste preâmbulo haverá de concordar.

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Bullshit Jobs: a Theory se originou a partir do ensaio On The Phenomenon of Bullshit Jobs (traduzido por mim aqui) publicado por Graeber em 2013 e reproduzido no prefácio de seu livro de 2018.  Entre uma coisa e outra, o autor realizou uma pesquisa a partir de uma ampla base de dados formada por depoimentos (anônimos por razões óbvias) em resposta a seu ensaio original e ensejados por provocações por ele lançadas através do Twitter (!) – o que, por si só, o situa como, no mínimo, um pesquisador original. Tais depoimentos, citados textualmente e costurados pela voz do autor, constituem a  base da estrutura narrativa da obra de tal forma que, nela, qualquer monotonia potencial da voz onipresente do último é temperada pela variedade e, em certos casos, até humor (pois não há nada mais divertido e verdadeiro do que a auto-ironia) das vozes emprestadas por seus muitos informantes.

É a partir desta rica casuística que Graeber deixa claro, ao longo do primeiro capítulo e por meio de sucessivas definições provisórias aproximativas, o que vem a ser um bullshit job – a saber, todo trabalho percebido com socialmente inútil ou mesmo pernicioso por quem o executa.

A expressão bullshit job traz em si um problema para o tradutor. Num primeiro impulso, somos tentados a traduzi-la simplesmente como “trabalho de merda”. Só que, já no início do livro, a coisa se complica quando o autor faz uma distinção entre um bullshit job e um shit job, demonstrando por que nem todo trabalho que pertence a uma das categorias pertence, necessariamente, também à outra. Com isto, “trabalho de merda” e “merda de trabalho” estão longe de se constituir em traduções satisfatórias por não explicitarem suficientemente a distinção entre as duas categorias.

Nos capítulos subsequentes, estabelece uma tipologia de tais trabalhos (capítulo 2); trata da violência psicológica sofrida por quem neles se vê encurralado (capítulos 3 e 4); explica por que tais trabalhos proliferam (capítulo 5) e por que não objetamos, como sociedade, à proliferação dos mesmos (capítulo 6) e, finalmente, no último capítulo, analisa os efeitos políticos dos bullshit jobs e propõe uma possível solução (no spoilers yet) para tal estado de coisas.

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Mesmo reconhecendo a natureza redutora de toda resenha, é impossível resistir a mencionar em detalhe certas passagens de Bullshit Jobs: a Theory. Como, por exemplo, quando nos é explicado, já nas definições aproximativas iniciais, por que não se pode dizer que um assassino da máfia tenha um bullshit job – uma vez que o mesmo, ainda que admitindo o óbvio prejuízo social inerente a seu trabalho, acredita fazer parte de uma honrada e antiga tradição com finalidades claras.

Outra parte memorável, capaz de dirimir qualquer dúvida sobre o que venha a ser um bullshit job, é a supracitada tipologia do segundo capítulo. Nele, Graeber divide tais trabalhos em cinco categorias:

Lacaios (flunkies). São aqueles postos de trabalho que existem exclusivamente para que alguém (o chefe) se sinta importante. Como exemplo mais emblemático, temos as comitivas que precedem a entrada de autoridades em qualquer recinto. Também não é nenhuma novidade que o poder de quem quer que exerça alguma atividade gerencial é medido pelo número de subordinados ao seu comando. Qualquer semelhança entre a alta incidência de lacaios em ambientes de trabalho contemporâneos e no mundo medieval não é mera coincidência, sendo tratada em profundidade nas partes dedicadas ao “feudalismo gerencial” (managerial feudalism).

Valentões (goons). Usada metaforicamente (i.e., não se referindo apenas a gangsters), a expressão serve para designar pessoas cujo trabalho envolve algum tipo de violência e existe apenas por que alguém as emprega. Exemplos clássicos incluem forças armadas (países só tem exércitos por que outros países os tem), lobistas, especialistas em relações públicas, operadores de telemarketing e advogados corporativos.

Duct tapers. De difícil tradução. Tapa-buracos, talvez. Pertencem a esta categoria todos aqueles que executam remendos ou gambiarras para resolver problemas que simplesmente não deveriam existir mas que, em existindo, emperram o bom funcionamento de um todo maior. Tais trabalhos são particularmente abundantes na indústria da informática.

Box tickers. Igualmente de difícil tradução. O nome se refere àqueles formulários que incluem quadradinhos que devem ser marcados por “tiques” (sinais em forma de “V”). Para Graeber, são todos aqueles empregados que existem exclusiva ou primordialmente para que organizações possam alegar estarem fazendo o que, na verdade, não fazem.

Taskmasters (another category likely to be lost in translation). Se dividem em dois tipos.

Pertencem ao primeiro aqueles que, encarregados de atribuir tarefas a terceiros, acreditam que as mesmas seriam desempenhadas de qualquer maneira, mesmo que não fossem por eles atribuídas. Deste modo, taskmasters do primeiro tipo (supervisores desnecessários) podem ser considerados como o exato oposto de flunkies (subordinados desnecessários).

Taskmasters do segundo tipo são aqueles que inventam tarefas desnecessárias para outros realizarem.

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A distribuição da incidência de bullshit jobs não é homogênea em relação a todos os setores da economia. Tais trabalhos parecem se concentrar mais no setor administrativo intermediário (middle management) e em empresas do setor FIRE (finance, information and real estate (financeiro, informático e imobiliário)).

Tamanha proliferação de cargos inúteis jamais poderia existir sem uma igual abundância de títulos para os mesmos. Numa das passagens mais divertidas, Graeber oferece, em seu site dedicado ao assunto, um Job Title Generator engraçado por si só que dispensa quaisquer comentários.

Um mito bem popular derrubado por Graeber é o de que bullshit jobs seriam peculiares ao setor público. Ao contrário, existem igualmente no privado. Se há uma regra para sua proliferação, parece ter a ver com a maior presença de práticas e conceitos gerenciais em qualquer indústria. São particularmente ilustrativas as análises de sua influência recente na academia e na indústria criativa, particularmente a cinematográfica.

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Forçado, em nome da concisão, a eleger para menção uma única parte dos dois riquíssimos capítulos sobre o sofrimento amargado por detentores de bullshit jobs, minha escolha recai facilmente sobre a exploração de elementos sadomasoquistas inerentes a tais trabalhos. É quando o autor faz uma distinção importantíssima entre as práticas sadomasoquistas recreativas e a ocorrência da mesma sorte de relação em ambientes de trabalho.

Não deve ser nenhuma novidade, mesmo para não adeptos destas práticas, que todo sofrimento físico consentido infligido por dominadores a dominados pode ser interrompido por uma palavra de segurança (como “laranja”). De tal modo que alguém que subitamente não suporte mais a dor de, por exemplo, ter cera quente derramada sobre o corpo pode interromper a “brincadeira” pela simples pronúncia da palavra “laranja”. Só que, em ambientes de trabalho marcados por relações sadomasoquistas, um empregado não pode interromper sem maiores consequências (como o desemprego) qualquer abuso cometido por seu chefe simplesmente dizendo “laranja” (cujo equivalente numa relação de trabalho seria “eu me demito”).

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Quando o ensaio de 2013 no qual Graeber cunhou a expressão bullshit jobs viralizou, uma das reações previsíveis foi um esforço acadêmico-científico para quantificar o fenômeno. Daí emergiram dados alarmantes, ainda que nem um pouco surpreendentes. Na ocasião, se constatou que no Reino Unido nada menos do que 37% dos entrevistados declararam estar aprisionados em bullshit jobs. Replicada na Holanda, a enquete revelou uma realidade ainda mais impressionante: 40% se consideraram na mesma situação. Isto quer dizer quase metade da população – ou, se quiserem, em número suficiente para eleger um presidente ou primeiro ministro numa democracia. Ainda assim, ainda há quem se recuse a ver a coisa como um problema social. A prevalência deste estado de coisas é esmiuçada nos capítulos sobre por que  bullshit jobs proliferam e por que não reagimos, como sociedade, à proliferação dos mesmos.

Aqui, uma dose moderada de spoilers não deverá afugentar potenciais leitores. Suficiente dizer que a manutenção do problema é um pré-requisito para o capitalismo. Como ? Impossível resumir. Até por que os dois capítulos supracitados são uma aula de história, traçando a origem do mito puritano de que “o sofrimento laboral forma o caráter” desde tempos medievais até os dias de hoje, passando por vários filósofos, discutindo a diferença entre “valor” e “valores” e a transição gradual da vigência da teoria do valor-trabalho (labor theory of value) para a aceitação praticamente hegemônica da lei da oferta e da procura, que serve de pilar ao capitalismo.

Tamanha densidade de informações (bibliográficas inclusive) aportadas tornam estes capítulos algo para ser lido e relido – até como mapa para outras leituras.

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Graeber tempera o tom professoral naquilo que mais poderia parecer um tratado (pelo título da obra, de seus capítulos e sub-capítulos) com tiradas engraçadas aqui e ali. Para destacar apenas duas:

Depois de anunciar, nalgum lugar no início do livro, que vê com reservas o fato de ser frequentemente tachado de anarquista (numa compreensível aversão ao aspecto reducionista dos rótulos); se auto-declara, ao fim da obra, um anarquista.

No mesmo último capítulo, depois de deixar claras suas restrições (bem razoáveis) a finalizar uma obra por meio de uma receita ou recomendação para solucionar os problemas nela apontados, preconiza com todas as letras que quaisquer bullshit jobs seriam sumariamente riscados do mapa mediante a implementação de uma renda mínima universal. Ambas as discussões (tanto o disclaimer contra as fórmulas prontas como aquela sobre os possíveis prós e contras de uma renda mínima universal) coroam o volume de uma forma deliciosa, transmitindo ao leitor a plena convicção de que nada do que nele foi lido é supérfluo ou, de algum modo, acessório.

A observação acima, sobre a obrigatoriedade de cada linha, sublinha também o fato das notas sobre o texto serem tão volumosas quanto interessantes. São 40 páginas de notas (fora a bibliografia) para 285 de texto (fora o prefácio), ensejando fatalmente a especulação sobre se o autor

escreveu as notas à guisa de complementação depois de ter o livro pronto (o que é menos provável); ou, antes,

preferiu relegá-las a um apêndice, como num hipertexto, a fim de não comprometer, com elas, seu apurado fluxo argumentativo.

De qualquer modo, quaisquer que sejam as razões que o levaram a destacar, no final da obra, observações tão interessantes – praticamente um outro livro sobre o livro, é altamente recomendável que as mesmas sejam lidas na íntegra concomitantemente ao texto principal.

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Como já deixei claro, é bem difícil eleger uma ou outra passagem do livro para destaque (dignas, digamos, de terminar uma resenha sobre o mesmo). Ainda assim, sou, como disse acima, teimoso e, como tal, arrisco afirmar que, de tudo o que li em Bullshit Jobs: a Theory, talvez o que mais tenha reverberado, no sentido de permitir uma compreensão superior do universo capitalista, é que

o mesmo é alimentado por uma complexa, sutil e insolúvel rede de ressentimentos mútuos entre classes de trabalhadores – não apenas entre aquelas mais óbvias tais como patrões X empregados ou capitalistas X trabalhadores, mas entre as próprias categorias ocupacionais; e que

o que conhecemos usualmente por economia é, antes do que uma ciência, uma doutrina, com raízes históricas claras e, por vezes, profundo cunho teológico.

Bullshit Jobs e o jugo do feudalismo gerencial; entrevista concedida por David Graeber a The Economist

Populismo, trabalho sem sentido e juventude em pânico: uma entrevista com David Graeber, da London School of Economics, publicada pela revista The Economist

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Jamais depois de Dilbert a verdade foi dita sobre o poder em postos de trabalho desumanos. Mas o sucessor do personagem do cartoon pode ser David Graeber. Em 2013, adquiriu fama viral entre zumbis de cubículos de toda parte depois de publicar um ensaio curto sobre a persistência de trabalhos que não tem qualquer razão social ou econômica de existir, aos quais chamou bullshit jobs. A ampla atenção parece confirmar sua tese.

David Graeber, um antropólogo da London School of Economics, desenvolveu recentemente a ideia num livro. Ele respondeu a cinco perguntas da iniciativa Open Future da revista The Economist, atacando “comitivas feudais de lacaios basicamente inúteis”. Graeber diz que “as pessoas querem sentir que transformam o mundo ao seu redor de modo a fazer alguma diferença positiva”.

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The Economist: O que é um bullshit job ? Poderia dar alguns exemplos ?

David Graeber: Um bullshit job é um trabalho que mesmo a pessoa que o executa secretamente acredita o mesmo é desnecessário e não deveria existir. Que se aquele trabalho, ou mesmo toda a indústria do qual faz parte, desaparecesse, não faria a menor diferença para ninguém ou até mesmo o mundo talvez fosse um lugar ligeiramente melhor.

Algo em torno de 37 a 40% dos trabalhadores, de acordo com pesquisas, dizem que seus trabalhos não fazem diferença alguma. O que há de radical no livro não é a constatação de que muitas pessoas pensem assim, mas o fato de que, na maior parte das vezes, elas estejam largamente certas. Seus trabalhos são realmente tão sem sentido quanto elas realmente pensam.

Apenas acreditando nas palavras das pessoas podemos subestimar o problema, já que, ainda que você ache que o que está fazendo não faz qualquer sentido, deve obviamente haver um quadro mais amplo no qual você realmente está contribuindo para o bem maior ou, ao menos, para o bem maior da organização. Só que ninguém lhe explicou como.

Por outro lado, se você acha que está fazendo alguma coisa para a qual parece haver uma boa razão para ser feita mas, no grande quadro, não há (como, por exemplo, se toda a operação da qual você participa é algum tipo de fraude ou, ainda, se ninguém lê os relatórios que você produz, etc), bem, esta é precisamente a situação na qual menos provavelmente lhe dirão o que está acontecendo.

Se minha pesquisa de algum modo procede, bullshit jobs não se concentram tanto nos serviços mas nas tarefas de escritório, administrativas, gerenciais e de supervisão. Muitos trabalhadores em administração intermediária, relações públicas e recursos humanos, tais como muitos gerentes de marcas, vice presidentes de criação, consultores financeiros e empregados em direito corporativo e marketing, sentem que seu trabalho não faz qualquer sentido.

 

The Economist: O que o fato desses trabalhos sem propósito existirem diz do lugar de trabalho moderno ?

David Graeber: Uma coisa que isto mostra é que todo o ideal “enxuto e eficiente” é aplicado muito mais a trabalhadores produtivos do que a cubículos de escritório. Não é nada raro executivos que se orgulham de enxugar e acelerar no chão da fábrica, na distribuição e por aí afora usarem o dinheiro economizado ao menos em parte para ocupar seus escritórios com comitivas feudais de lacaios basicamente inúteis.

Eles tem equipes completas de pessoas que estão lá apenas para, por exemplo, desenhar gráficos para seus relatórios, escrever elogios para revistas internas que ninguém lê ou, em muitos casos, não fazer absolutamente nada além de memes de gatos e jogar no computador o dia inteiro. Mas eles são mantidos lá por que o prestígio e às vezes até o salário de todo gerente é proporcional ao número de pessoas a ele subordinadas.

Quanto mais o lucro de uma empresa é derivado de finanças ao invés de da fabricação ou venda de alguma coisa, mais isto tende a ser verdade. Chamo a isto “feudalismo gerencial”. Mas não é só o setor de finanças, de seguros e imobiliário: há uma infestação similar nos níveis intermediários das indústrias criativas em geral. Eles continuam adicionando posições gerenciais entre as pessoas produzindo coisas e os caras que pagam por isto cuja única função é frequentemente sentar o dia todo tentando vender coisas uns aos outros.

Saúde e educação são igualmente complicadas: gestores agora acham que cada um deve ter seu esquadrão de assistentes que, frequentemente sem ter nada o que fazer, acabam inventando novas formas exóticas de trabalho burocrático para professores, médicos, enfermeiros e afins – os quais tem, então, ainda menos tempo para realmente ensinar ou cuidar de alguém.

 

The Economist: Você nota que muitos trabalhos interessantes que implicam em criatividade e status estão concentrados em cidades afluentes. Você acredita que bullshit jobs contribuíram para o populismo e a polarização ?

David Graeber: Sim. Penso que muito do frequentemente legítimo rancor dirigido à “elite liberal” se baseia no ressentimento que as classes trabalhadoras sentem em relação ao fato de que a primeira efetivamente se apropriou de todos os trabalhos nos quais se pode realmente ser bem pago para fazer o que é tanto divertido como criativo mas que, obviamente, beneficia a sociedade. Se você não pode mandar seu filho para uma boa escola e depois sustentá-lo 2 ou 3 anos durante residências em lugares como Nova Iorque ou São Francisco, esqueça: você está fora.

Para todos os demais, ao menos que você tenha muita sorte, suas chances são largamente limitadas a duas opções. Você pode obter um trabalho basicamente bullshit, que pagará o aluguel mas lhe deixará estragado, com o sentimento de culpa por estar sendo forçado, contra sua vontade, a ser uma fraude e um parasita. Ou você pode obter um trabalho útil, cuidando de pessoas, fazendo, movendo ou conservando coisas que as pessoas querem ou das quais precisam – só que, provavelmente, lhe pagarão tão pouco que você não será capaz de sustentar sua própria família.

Existe uma relação inversa quase perfeita entre o quanto seu trabalho beneficia os outros e sua remuneração. O resultado é uma cultura política tóxica de ressentimento.

Aqueles em um trabalho largamente sem sentido se ressentem de professores ou mesmo mecânicos de automóveis, os quais realmente fazem algo útil, e acham ultrajante que [mecânicos e professores] demandem bons salários, seguro saúde e férias remuneradas. Pessoas da classe trabalhadora, que fazem predominantemente coisas úteis, se ressentem da elite liberal que abocanhou todo o trabalho útil ou benéfico que realmente paga bem e no qual lhe tratam com respeito e dignidade.

Todos detestam a classe política, a qual vem (em minha opinião, com bastante razão) como um bando de trapaceiros. Mas todos os outros ressentimentos tornam difícil para qualquer um se associar com outros e fazer alguma coisa a respeito. Em grande parte, nossas sociedades se uniram a partir da inveja e do ressentimento: não inveja dos ricos mas, em muitos casos, inveja daqueles que são vistos como de algum modo moralmente superiores ou, ainda, ressentimento daqueles que se proclamam moralmente superiores mas que são vistos como hipócritas.

 

The Economist: As pessoas tendem a se ajustar emocionalmente às circunstâncias. Então, há alguma razão para se acreditar que seríamos dramaticamente mais satisfeitos num mundo sem labuta ?

David Graeber: O que me surpreendeu foi o quão difícil era para tanta gente se ajustar ao que pareciam problemas menores: basicamente, tédio e sensação de falta de propósito na vida. Por que não podiam simplesmente dizer “Ok, então estou ganhando algo por nada. Torçamos para que o chefe não note !”

Mas a grande maioria descreveu a si própria como totalmente miserável. Relataram depressão, ansiedade, doenças psicossomáticas que desapareceriam magicamente no momento em que ganhassem o que consideravam trabalho de verdade e horríveis dinâmicas sadomasoquistas de lugares de trabalho.

Minha conclusão é que psicologicamente, não é exatamente que as pessoas queiram trabalhar mas, antes, que elas querem sentir que estão transformando o mundo ao redor delas de modo a produzir algum tipo de diferença positiva para outras pessoas. De certo modo, é isto que as torna humanas. Tire isto delas e elas começam a se despedaçar. Então, não se trata só de labuta.

Conforme disse Dostoievsky em algum lugar:  se você quiser destruir psicologicamente um prisioneiro por completo, basta fazê-lo cavar um buraco e tornar a tapa-lo, repetidamente, durante todo o dia (em alguns gulags de fato tentaram isto como forma de tortura – o que funcionou, tornado as pessoas completamente loucas). Creio que pessoas suportem até trabalho enfadonho desde que saibam que há uma boa razão para executá-lo.

Como antropólogo, sei que o lazer não é um problema por si só. Há muitas sociedades onde pessoas trabalham no máximo de duas a três horas por dia e encontram todo tipo de coisas interessantes para fazer com seu tempo. Pessoas podem ser infinitamente criativas se lhes derem tempo para pensar.

 

The Economist: Pessoas no Ocidente tem mais liberdade de escolher suas carreiras do que em qualquer época da história humana. O liberalismo merece algum crédito por isto e, neste caso, não seriam as próprias pessoas responsáveis por seus bullshit jobs ?

David Graeber: Bem, se você falar com jovens recém saídos da faculdade, não ouvirá muitos deles dizendo: “Ah, o mundo se descortina diante de mim… então o que seria melhor eu fazer ?”

Você certamente ouviu muito nos anos 70, 80 e 90: “O que eu realmente quero ?” Já hoje, nem tanto. A maioria dos formados está em pânico sobre como irá pagar seus empréstimos estudantis e o verdadeiro dilema que você ouve é: “Posso obter um emprego que vá realmente me pagar o suficiente para viver (que dirá ter uma família algum dia) e pelo qual não me sinta totalmente envergonhado ?”

É a mesma armadilha que descrevi acima: como se pode viver uma vida que beneficie os outros ou, ao menos, não prejudique ninguém de um modo óbvio e, ainda assim, conseguir cuidar de uma família ou de quem se ama. E durante todo o tempo há este mantra a que chamo “repreensão de direitos”, que vem igualmente da esquerda e da direita. É uma injúria moral dirigida aos jovens como sendo presunçosos e estragados por se acharem meritórios de todas as coisas que a geração de seus pais (que são os que geralmente censuram) tinha como asseguradas.

Então eu não culparia ninguém por fazer o melhor possível nesta situação. A questão para mim é: por que esta situação não é vista como um problema social maior ? Quero dizer que, se você contar todas as pessoas que estão num emprego real em suporte a bullshit jobs, tais como faxineiros, recepcionistas e motoristas que não sabem que a empresa para a qual trabalham serve basicamente pare se esquivar de impostos ou coisa parecida, bem como a bullshitização do trabalho verdadeiro; então talvez metade do trabalho que é realizado é totalmente desnecessário.

Pensem em que tipo de cultura, música, ciência e ideias resultariam se todas essas pessoas fossem liberadas para fazer coisas que realmente achem importantes. Então se o problema é um de responsabilidade pessoal, eu diria: que se dê a todos o suficiente para viver, como algum tipo de renda básica universal, e que se diga “Ok, agora vocês estão totalmente livres para decidir por si mesmos como podem contribuir para o mundo.”

Então poderíamos dizer com certeza que pessoas seriam responsáveis por aquilo que fazem. É claro que muito do que é feito não faria qualquer sentido. Mas é difícil se imaginar que 40 ou 50% da força de trabalho seja composta por inúteis, conquanto seja esta precisamente a situação que temos hoje. E se, com tudo isto, ainda assim tivermos como resultado apenas um ou dois novos Miles Davises, Einsteins, Freuds ou Shakespeares, eu diria que teríamos recuperado bem mais do que nosso investimento.

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Viajar é superestimado ?

Este blog tem especial predileção por pautas polêmicas. Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers Sapiens e Homo Deus, é um dos atuais campeões mundiais da polêmica. Uma de suas ideias mais controversas é a de que o hábito de viajar a passeio é superestimado. Abracemos, então, mais esta.

Antes de proceder à defesa desta ideia, aparentemente tão na contramão do que a maioria parece acreditar e praticar, é importante que se faça uma distinção entre viagens turísticas e aquelas empreendidas por motivos acadêmicos ou de trabalho.

Quando alguém viaja a estudo ou a trabalho, tem o propósito de expandir seu horizonte de atuação. Como ganho colateral, acaba por conhecer outros lugares e, com sorte, experimentar situações às quais dificilmente teria acesso de outro modo.

Não é, todavia, o que costuma ocorrer em viagens turísticas. Nesses casos, o viajante quase sempre busca, por meio de deslocamentos temporários a sítios distantes durante suas férias, um descolamento de seu dia-a-dia, por vezes (por que não dizer ?) da mesmice de um bullshit job à espera de uma sonhada aposentadoria. Se sobreviver ao emprego e a aposentadoria for mais do que uma miragem, poderá afirmar, em idade madura, ser um sujeito viajado – e as fotos destas viagens estarão, por certo, entre suas melhores memórias. Também é quase um clichê, citado por Harari, a situação do casal em crise que busca revitalizar a relação por meio de uma viagem a algum lugar exótico, quanto mais diferente melhor, como se isto fosse por si só suficiente para superar as dificuldades enfrentadas pelos cônjuges no cotidiano laboral.

Suponho que Harari também faça esta distinção – até por ser, ele mesmo, um scholar provavelmente requisitado para conferências ao redor de todo o planeta.

Assim, temos, de um lado,

viagens de estudo ou trabalho, que guardam alguma relação com o saber e/ou fazer habitual do viajante. Incluem-se nestes casos todos os programas de graduação e pós-graduação (atualmente sob a mira do governo brasileiro), bem como apresentações artísticas – não se realizando, necessariamente, durante férias laborais ou acadêmicas; e, de outro,

viagens com finalidades exclusivamente turísticas, empreendidas em períodos de férias, nas quais o viajante investe, na maior parte das vezes, recursos poupados durante um ou mais anos de trabalho.

Um e outro dos viajantes hipotéticos acima descritos poder ser acolhidos em diferentes lugares de modo totalmente distinto. Pois, ao mesmo tempo em que turistas são usualmente bem-vindos em quase toda parte, restrições mais duras são impostas a cada potencial imigrante.  Duvidam ? Anos atrás, um casal de amigos viajou à Europa. Ao chegar, foram enviados a filas separadas. Ele, então jornalista, passou sumariamente pela imigração,  enquanto ela, violinista, foi, como potencial trabalhadora, submetida a um rigoroso interrogatório. A única diferença aparente entre ambos é que ela portava, a tiracolo, um estojo com seu instrumento.

É preciso desenhar ? Como cidadão estrangeiro visitante, cada um é tratado em razão do que puder gastar ou ganhar. That simple.

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Quem viaja pode buscar diferentes coisas. Há quem preze mais um clima diferente. Outros hão de preferir parques, museus, festas, restaurantes ou hotéis. Em qualquer caso, se tratam de experiências nas quais se gasta dinheiro. O único modo de se viajar ganhando dinheiro é a trabalho ou, ao menos para despesas, a estudo. Então, penso que, quando Harari deplora viagens, fala, obviamente, das turísticas, i.e., daquelas nas quais se gasta mais dinheiro do que se ganha.

Ok, aceito os merecidos protestos de quem tem em alta estima grandes orquestras, suas salas de concerto ou museus. Sobre esta ressalva, só tenho duas coisas a dizer:

1) mesmo que outrora tenha havido um abismo cognitivo entre ouvir uma orquestra numa sala ou ver um quadro num museu e, ao contrário, “conhecê-los” só por meio de reproduções sonoras ou visuais (impressas,  projetadas ou, mais recentemente, digitalizadas), há de se convir que este hiato vem encurtando dramaticamente com novas tecnologias; e

2) mesmo sem ser, eu próprio, um viajante contumaz, ouso supor que a frequência a museus e salas de concerto seja restrita a poucos viajantes e, mesmo nestes casos, nem sempre ocupando uma parte (tempo turístico) substancial de cada viagem de lazer. Estou enganado ? Algum cientista social (além, é claro, de Harari) já pensou nisto ? Quem sabe, até, em termos quantitativos ?

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Contra a especialização

Nos últimos dias, exercitei obsessivamente um brevíssimo, porém altamente exposto, solo de clarineta que toquei duas vezes, felizmente sem intercorrências fatídicas (pois tocar é sempre uma loteria: por mais que se esteja preparado, na hora é sempre como chutar a gol: nunca se sabe quando vamos estufar a rede ou lançar a pelota pela linha de fundo ou, no máximo, acertar a trave). Acho, portanto, justificável que, durante esses dias, não tenha dado atenção alguma a este blog, nem tampouco tirado fotos da orquestra em ação – outra atividade à qual me dedico com grande prazer.

Agora, livre temporariamente de responsabilidades musicais, torno com alegria a escrever e fotografar. Admito que este comportamento disperso, com a atenção fragmentada entre atividades díspares entre si, por maior que seja minha afinidade com cada uma delas, é totalmente contrário ao cânone da boa conduta profissional dominante em nossa sociedade. Contextos altamente competitivos, acirrados pela ideia do mercado como medida ideal de todo esforço humano, impelem indivíduos a se dedicarem ao máximo – e, portanto, exclusivamente – a qualquer coisa na qual queiram ter sua competência reconhecida.  É a cultura da especialização como via única para a otimização da eficiência e consequente maximização do crescimento e do lucro.

Vivemos num mundo de especialistas e, pior, tendemos a confiar mais, para a realização de qualquer tarefa, em quem a ela se dedique exclusivamente. O capitalismo espera que ninguém perca tempo com qualquer coisa que não seja aquilo que saiba fazer melhor. Assim, por exemplo, músicos que queiram triunfar neste ambiente devem praticar o máximo que puderem, abrindo mão de quaisquer outras paixões, tais como o cultivo de plantas, a culinária, a fotografia, a escrita ou outras “dispersões”.

Não há dúvida que a especialização exacerbada é benéfica para o mundo corporativo. Nele, empreendimentos resistem ou declinam em razão de superarem outras iniciativas com as quais competem. Nesta arena, o trabalho de indivíduos mais dedicados ou especializados costuma ser determinante.

Mas tal estado de coisas é, afinal, bom para o ser humano ? O que é melhor: uma vida de dedicação a algo no que se possua notória excelência; ou, ao contrário, uma existência voltada para um conjunto de atividades nas quais se obtenha mais gratificação ?

É aí que economistas, políticos e gestores de um lado e psicólogos, antropólogos e afins de outro divergem. Não resta dúvida de que a especialização incensada por lideranças nos últimos quinhentos anos produziu e continua produzindo um crescimento sem precedentes na história humana. É cada vez maior, no entanto, o grupo de estudiosos a sustentar que caçadores-coletores pré-históricos, que não viam necessidade de produzir mais do que o necessário para a própria subsistência e podiam, com isto, se dedicar mais a atividades lúdicas, eram mais felizes.

Esta última afirmação é polêmica, principalmente por que a cultura capitalista, por meio da mola mestra da publicidade, já naturalizou, entre os segmentos incluídos, a noção que a felicidade está intrinsecamente associada ao consumo e ao acúmulo de bens materiais (caçadores-coletores não acumulavam – até por que isto não fazia, para eles, sentido algum).

Quem acompanha este blog sabe que venho me dedicando, nos últimos meses, a traduzir e difundir artigos publicados em Evonomics que procuram desmistificar a ideia de que a exacerbação do trabalho e a especialização crescente constituam uma espécie de virtude, sendo até parte da natureza humana (esta última um arcabouço semântico do qual muitas ideologias, econômicas e religiosas, buscam tirar proveito). Uma antologia destes textos pode ser lida aqui, aqui, aqui e aqui.

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É preciso uma boa dose de coragem para se interpor ao cânone da especialização que faz com que a maioria se dobre à escravidão de uma ocupação única. Por isto, não canso de enaltecer a juventude de espírito de um amigo que, aos 50 anos, abandonou uma carreira consolidada como profissional de informática para se tornar jornalista e, aos 60, virou livreiro.

Também refleti muito sobre a preocupação de uma amiga de que seu filho visse o êxito num concurso público como panaceia para tudo em sua vida. Restrições à ideia de que uma vida de dedicação ao estado e, em última instância, ao povo são comuns entre os que conhecem o serviço público por dentro, com todos os seus vícios e limitações. Por outro lado, não deixo de ser simpático à noção de que empregos públicos, que garantem alguma estabilidade sem a ameaça de demissão iminente ao menor desvio do máximo de produtividade exigido pelo mercado, são benéficos à plenitude existencial do ser humano – que, desde que não se descuide de suas responsabilidades mínimas, pode “respirar” e se dedicar melhor à matriz de seus interesses, quase nunca restrita a uma única atividade.

De resto, vale lembrar que o homem universal de Leonardo da Vinci não teria, hoje, a menor vez.

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Depois de haver escrito o post acima, me dei conta de que a pirâmide acadêmica, com seus progressivos níveis de pós-graduação, é co-responsável (juntamente com o mercado) pela manutenção do mito que atribui maior importância a alguém quanto maior seja o estreitamento do foco sobre seu objeto de interesse. Neste cenário, agências de fomento governamentais incentivam o estudo de temas cada vez mais restritos e específicos, como se a proximidade do olhar fosse por si só capaz de melhor revelar a verdade.