Da diferença essencial entre (i) blogs e redes sociais e (ii) orquestras e universidades públicas; on conducting (xii)

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Isto não é um instrumento musical !

Sou um blogueiro procrastinador. O motivo é bem simples. Blogs são o derradeiro reduto do direito de expressão de seus donos quando outros espaços não se interessam por seus discursos, pouco importando quantas pessoas leiam as postagens neles publicadas. Só que, pela própria natureza do funcionamento de cada tipo de plataforma, redes sociais são imensamente mais interativas do que blogs. Basta ver a proporção existente entre postagens e comentários em cada ambiente. Enquanto blogs são mais afeitos a longos discursos monológicos e geram relativamente poucos comentários, em redes sociais postagens lacônicas podem desencadear, dependendo da temática (i.e., se for mais ou menos polêmica ou ultrajante), enormes sucessões de reações que podem se estender, em muitos casos, por vários dias após a postagem original.

Talvez por isto eu me sinta muito mais compelido a compartilhar inquietações na algaravia do facebook do que no conforto do discurso mais controlado em meu blog. Pois a conversa em si me interessa muito mais do que meus pensamentos depurados em palavras bem acabadas.

Por outro lado, o discurso dos blogs é muito mais permanente do que aquele das redes sociais. Pois é nitidamente mais fácil recuperar ideias lançadas no passado em um blog do que em timelines do facebook. Por isto, gosto de pensar no blog como uma espécie de back up do facebook, para onde exporto, a fim de conferir maior permanência, ideias mais relevantes recortadas de plataformas mais efêmeras.

Foi assim que decidi copiar aqui as palavras extremamente lúcidas proferidas por Graziela Bortz, entre outros comentários interessantes, acerca de um ótimo artigo do  crítico Ali Hassan Ayache (que eu ainda não conhecia !) a propósito da necessidade e supostos benefícios de alguém como Marin Alsop à frente da OSESP. Sob o mesmo, Graziela expressou, de modo ao mesmo tempo conciso e abrangente, tudo o que sempre achei sobre os modos de gestão diametralmente opostos de orquestras e universidades públicas. Sem mais delongas, eis o que ela disse:

[…] orquestra é um monumento artístico como muitos outros, um veículo de expressão artística como muitos outros, que deve, sim, ser mantida como patrimônio cultural importantíssimo. A estrutura precisa, e em alguns lugares isso tem acontecido, ser modernizada. Eu toquei em orquestra, o Augusto ainda toca (tocamos juntos no passado) e ambos dividimos também, como você, Damián, a experiência muito diferente que é a de trabalhar em universidade. Nesta última, a despeito de todos os problemas que enfrentamos, creio que possamos concordar nisso, temos imensamente mais autonomia. Por que? O Augusto disse a palavra-chave: conselhos. Nós somos representados nos órgãos colegiados. Por mais imperfeito que seja esse modelo de democracia, ainda é uma democracia. A orquestra está anos-luz disso. O maestro continua se cercando de puxa-sacos que muitas vezes até são músicos bons, muitas vezes não, e maltratando aqueles sem grandes habilidades na arte do cinismo. É um jogo horroroso de egos que nada tem a ver com técnica ou conhecimento musical, que favorece o crescimento do ego e mata o desenvolvimento da alma, da arte e do espírito de colaboração. Não é preciso ser assim, nós sabemos; vivenciamos outra maneira de gerir o trabalho no cotidiano. Acontece que maestros normalmente são escolhidos e nomeados por políticos, ainda que indiretamente (por um conselho que tem tudo menos músicos da própria orquestra). Lembre-se que, no passado, foram os professores universitários que escolheram esse tipo de gestão, a tal da autonomia universitária. É por isso que temos brigado tanto por mantê-la. Faz toda a diferença em nossas vidas e na de toda a comunidade universitária.

Um pouco adiante na mesma conversa, Graziela exemplificou brilhantemente com as consequências nefastas da concentração de poder em mãos de políticos numa orquestra prá lá de conhecida como a OSESP. Vale muito a pena a leitura.

[…] nesse caso, são oportunidades das quais os políticos fazem uso por deterem o poder de escolha nas mãos, a escolha de nomear os conselheiros (quando tem conselho!), de nomear o líder artístico (sic), os cargos administrativos, e por aí vai. A associação de músicos da Osesp que ousou questionar os contratos de gravações no passado foi 100% demitida na época em que o Neschling era o diretor artístico! E o conselho fez alguma coisa? Claro que não, foi nomeado por ele em comum acordo com os políticos. Isso não acontece na universidade, por razões diversas: nossos contratos são de funcionários públicos e, portanto, estáveis, e nós, professores, somos os conselhos (de membros eleitos pela comunidade). Diferença básica, modelo de autonomia. Tem seus problemas, como mencionei antes, mas não esse, de abuso de autoridade. O perigo é misturar isso com a arte em si. E é disso que estamos falando, e creio que concordamos, que é preciso modernizar o modelo de gestão. O que creio que torna difícil a mudança é que alguns músicos preferem se beneficiar da aproximação do poder, enquanto a maioria (silenciosa, covarde – covardia esta muitas vezes compreensível, pelo medo de perder o emprego) se ferra pelas decisões aleatórias que vêm de cima.

Se tirei meu blog da hibernação para repercutir estas palavras, foi tão somente por pensar que a discussão é altamente pertinente. Mesmo que instituições como orquestras estejam, como as políticas, entre as mais inerciais – i.e, são altamente resistentes a mudanças – e, portanto, como costuma dizer um grande amigo, só devem evoluir depois de alguns séculos (se ainda existirem). Exagero ou não, nada deve mudar antes de minha aposentadoria. Atestando, portanto, neste caso, a total falta de interesses pessoais em minha defesa do que aqui foi ventilado.

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Existe esta naturalização das ideias de que, enquanto em universidades professores são eleitos como líderes por seus pares (i.e., de baixo para cima), em orquestras diretores artísticos (leia-se maestros) são indicados por políticos (de cima para baixo) à revelia de seus quadros estáveis. Ora, tal se deve exclusivamente ao fato de que, para a grande maioria (dos políticos, inclusive), regentes não são percebidos como músicos temporariamente investidos de uma atribuição especial (a regência), mas como pertencentes a uma categoria autônoma e hermética. Uma outra casta, se quiserem, diferente da dos músicos. Deste modo, qualquer evolução da orquestra em direção a um modelo mais democrático passa, obrigatoriamente, pela derrubada deste mito.

Uma analogia bem útil: a carreira de regente orquestral, como a do político, não deveria existir. Isto quer dizer que, num “mundo perfeito”, do mesmo modo que governantes e legisladores deveriam ser não mais do que cargos honoríficos temporariamente ocupados por cidadãos comuns que não abdicassem de suas ocupações originais (sem aposentadorias especiais), também o pódio orquestral deveria ser ocupado, em regime de revezamento, por músicos talentosos que não abdicassem de sua responsabilidade de execução de um instrumento. Tão simples e tão distante do que temos hoje. Ou, como diz meu amigo, é algo para daqui a uns 300 anos.

on conducting (xi): tempo falado X tempo tocado: uma correlação nada espúria

Sempre insisti que a qualidade de um ensaio orquestral pode ser facilmente relacionada à proporção entre o tempo empregado pelo maestro no pódio para se dirigir à orquestra com palavras e o tempo, nesse mesmo ensaio, em que os mesmos (orquestra e maestro) estão tocando. Pois observo que melhores resultados são indiscutivelmente obtidos por aqueles regentes que tocam (regem) mais do que falam. A tal ponto de eu já ter sugerido, em tom jocoso, que todos no pódio deveriam obedecer a um “protocolo do regente amordaçado” – uma indiscutível vantagem pelo menos naqueles concertos populares em que, a certa altura, o maestro toma um microfone para se dirigir ao público, proporcionando, nestes casos, a todos os presentes inesquecíveis momentos de vergonha alheia.

É claro que esta relação não é linear. Posto que algumas palavras endereçadas aos músicos em ensaios são essenciais. Só que a assertividade de uma orquestra durante um concerto costuma ser diretamente proporcional ao tempo efetivamente passado tocando e/ou repetindo a música durante ensaios. Conquanto isto possa parecer óbvio a observadores casuais, devo dizer que não são poucos os maestros que perdem tempo demais falando à orquestra, seja por falta de foco naqueles problemas que mais dificultam uma boa performance ou, não raro, se sentirem mais confortáveis falando do que regendo (sim, isto existe !). Com efeito, muitos parecem sentir genuíno pânico de estar à frente da orquestra por todo o tempo que lhes é facultado – daí soltarem descontroladamente o verbo, na maioria das vezes com detalhes ou assuntos colaterais que pouco ou em nada contribuem para o aprimoramento da execução. Quando isto acontece, pode ser “lido” na cara dos músicos, que passam a tocar burocraticamente, à espera do final de cada ensaio. Ao contrário, bons regentes são facilmente reconhecíveis pelo ânimo dos músicos que dirige – os quais, mais do que não denotar o peso inerente à atividade, parecem recuperar, ao tocar, algo de uma alegria infantil.

Desde que, muito cedo, constatei esta correlação, a meu ver nada espúria, entre a razão entre os tempos tocado X falado e a qualidade (aproveitamento) de ensaios, penso que o meio ideal para se estabelecer, em termos numéricos, esta relação seria através da utilização, durante os mesmos, de um daqueles cronógrafos duplos utilizados em partidas de xadrez por tempo, i.e., ganhas por xeque-mate ou esgotamento do tempo do adversário. Então, não estranhem quando eu finalmente aparecer num ensaio com um desses, pressionando os botões correspondentes a cada alternância entre a fala e a regência do maestro.

relógio para xadrez 5Estimo que a análise dos dados assim obtidos será bem elucidativa, ajudando a compreender melhor uma atividade pouco discutida e, por isso mesmo, repleta de mitos.

 

On conducting (x): a formação do regente segundo Teraoka

Um dos grandes privilégios de se tocar numa orquestra como a OSPA é o de ser, ocasionalmente, regido por excelentes maestros convidados. Mais raro, nos encontrarmos em posição de ouvir suas palavras – até por que, quanto melhor o maestro, mais rege e menos fala durante ensaios.

É, pois, natural que nossa curiosidade, nessas raras ocasiões, se volte para questões essenciais que definem o arte e o ofício da regência orquestral. Coisas tais como quais são os pré-requisitos fundamentais da regência, como se dá sua transmissão ou mesmo se mulheres são ou não aptas a seu exercício.

De sorte que, num desses memoráveis encontros, ouvi do grande Kyotaka Teraoka (discípulo de Jorma Panula, reconhecido como um dos maiores didatas da regência orquestral), que, enquanto no Japão é possível se graduar em regência orquestral regendo, predominantemente, dois pianos, na célebre escola finlandesa de regência é exigida de todo aluno não só a proficiência em algum instrumento orquestral mas também a participação como instrumentista na orquestra regida pelos alunos. Como única exceção aos executantes de instrumentos orquestrais, também são admitidos em cursos de regência pianistas excelentes. Concertistas.

Concordando sobre a vantagem de uma boa leitura ao piano e  indagado sobre o nível de proficiência ao teclado necessária a um bom maestro, Teraoka disse considerar suficiente saber lidar com o grau de dificuldade de uma sonata de Beethoven.

Tais limiares de acesso se constituem, a nosso ver, numa barreira considerável à ambição de aventureiros mais atrevidos. Com esperança, paciência e, sobretudo, perseverança, chegamos lá.

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On conducting (vii): o metrônomo defeituoso de Mendelssohn

O post abaixo foi originalmente publicado em meu extinto blog n’O Pensador Selvagem como O Metrônomo Defeituoso de Beethoven. Se minha escrita mudou em alguma coisa, em nada se alterou, no entanto, desde então, meu humor e atitude em relação a malfeitorias perpetradas contra indicações metronômicas apostas ou aceitas por compositores em partituras de suas obras. Me poupando, então, de bater na mesma tecla, republico, abaixo, o que escrevi acerca da mutilação de uma sinfonia de Beethoven anos atrás – lhes rogando, apenas, que substituam seu nome, na maioria das vezes em que ocorre, pelo de Mendelssohn para que tenham uma ideia bem precisa de meu sentimento em relação a como temos que tocar nos dias que correm.

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Beethoven foi, senão o primeiro de todos os compositores, ao menos o primeiro dentre os mais importantes a indicar com precisão, nas partituras de suas sinfonias, por meio de indicações metronômicas, os andamentos (tempos) em que seus movimentos deveriam ser executados. Infelizmente, se tornou uma prática corriqueira e culturalmente aceitável executar sua música sinfônica em andamentos bem distintos da intenção do compositor, ao sabor dos caprichos da maioria dos maestros, muitos deles consagrados e, portanto, acima de qualquer suspeita.

Especulando-se sobre as possíveis origens da má prática, se chega rapidamente à evidência exacerbada conferida pela indústria da música (fonográfica e de concertos) às muitas estrelas da batuta que se alternam à frente de tantas orquestras e na direção de um repertório extremamente redundante. Instituiu-se, assim, o mito da “concepção do maestro”, invocado na legitimização de tantas malfeitorias perpetradas contra obras de compositores na maioria das vezes já mortos – consubstanciadas, em grande parte, na não observância da vontade do autor quanto ao tempo de execução de sua música.

O recurso pioneiramente empregado por Beethoven para indicar o andamento em que uma composição deve ser executada foi a atribuição à sua unidade de tempo, convencionalmente chamada de pulso, de um valor correspondente ao número de vezes que o mesmo ocorre durante o intervalo de tempo de um minuto. Tal possibilidade, sem precedentes históricos, foi facultada pela invenção do Metrônomo de Maazel, mecanismo semelhante a um relógio, capaz de manter constante a frequência de oscilação de um pêndulo – ajustável, por sua vez, mediante o deslocamento de um peso em forma de cursor sobre o raio do pêndulo, dentro de uma faixa que varia de 40 a 208 pulsos (batidas) por minuto, a qual abrange toda a gama de andamentos, do Largo ao Prestissimo, encontrada na música ocidental no período dito de prática comum (i.e., do barroco ao tonalismo tardio).

A maior ironia do descaso histórico para com as indicações metronômicas de Beethoven é, sem dúvida, a já popular alegação – mesmo entre segmentos musicais supostamente mais esclarecidos – de que o metrônomo de Beethoven seria defeituoso e que, por esta razão, o compositor teria se equivocado drasticamente, sentenciando suas tão caras sinfonias a gerações de execuções abusivas, justamente ao tentar assegurar para a posteridade a coerência de seus tempos de execução. Imaginem, então, duas premissas mais francamente falsas do que Beethoven não conseguindo encontrar um metrônomo em boas condições de funcionamento em Bonn ou Viena ou mesmo, pasmem, sequer chegar a perceber o mau funcionamento de um !

Nem mesmo suas sinfonias mais conhecidas estão isentas dos efeitos devastadores de batutas caprichosas – como bem observou o grande Herbert Caro ao comparar a duração de um mesmo movimento sinfônico “interpretado” por maestros diferentes (Böhm e Karajan) e, inclusive, por um mesmo maestro em diferentes momentos de sua carreira.

Notem que é comum que maestros eminentes executem, ao longo de suas carreiras, as mesmas obras em andamentos progressivamente mais lentos (anotação posterior ao texto original).

É sobretudo na execução de peças mais obscuras (se é que se pode dizer isto de uma 1ª ou 2ª de Beethoven !) que o estrago em razão de tempos drasticamente alterados (ainda que assim percebidos por músicos, todavia, frustrados e impotentes diante do protocolo da autoridade que emana do pódio) resulta evidente e impune.

Afinal, por pior que seja o dano infligido à música de Beethoven ou à motivação de uma orquestra, o maior prejuízo será sempre o do público que, em sua inocência, imputará, com uma boa parcela de razão, às sinfonias juvenis do compositor uma qualidade bastante inferior àquela de suas obras mais maduras e, por isto, populares.

Eu mesmo, na ignorância e arrogância da juventude, cheguei a considerar as duas primeiras sinfonias de Beethoven (assim como as de Tchaikovsky) como justamente relegadas ao ostracismo. Hoje, tendo, mais do que as imaginado, as ouvido (a partir do movimento restaurador capitaneado por Norrington e outros valentes bretões desde meados dos anos 80) em versões bem mais próximas às intenções composicionais, nutro pelas mesmas uma sorte especial de apreço, as tendo, digamos, como dentre as melhores sinfonias de… Haydn.

on conducting (vi): para que serve, afinal, um maestro ?

Partindo de um músico como o que vos escreve, o título deste post pode até soar como provocação. Mas não é. Pois a pergunta me foi endereçada pelo Marquinhos, simpático garçom de uma churrascaria que comecei a frequentar décadas atrás, depois de concertos da OSPA – quando, portanto, meu trato digestivo ainda permitia extravagâncias alimentares àquela hora.

Pois o Marquinhos tem o privilégio de também ser músico amador (tornaremos à questão da vantagem do amadorismo mais tarde). Toca teclado, baixo e violão. Daí que conhece, ao menos, algo de harmonia. Numa das últimas vezes em que estive lá, me pediu que lhe esclarecesse para que servem os gestos de um maestro.

Pânico. Raramente em minhas aulas ouço perguntas de tamanho potencial didático e, por isto mesmo, tão perigosas. Do tipo que esperamos ouvir ao menos uma vez na vida mas que quando são, finalmente, proferidas, não parecemos suficientemente preparados para responder. Pensei rápido. Lhe adverti que estava perguntando para a pessoa errada. Que qualquer resposta que ouvisse de mim seria, necessariamente, tendenciosa. Em vão. Ele foi em frete. Disse que alguém lhe perguntara se aqueles gestos serviam para indicar entradas de naipes ou instrumentos – ao que ele respondeu que não, que aquela gesticulação servia para indicar o tempo. Queria se assegurar comigo de haver dado uma resposta satisfatória.

O tranquilizei dizendo que, de fato, o que talvez a maioria dos músicos mais espere de maestros é uma indicação clara e precisa de em que ponto do eixo temporal da música se está a cada instante. Já vi, inclusive, grandes músicos desdenharem de ótimos maestros exclusivamente por abrirem mão, temporariamente, de cumprirem esta que seria (senão para a maioria, ao menos para alguns) sua função primordial.

Pois bem. O que menos espero de bons maestros é esse tipo de preocupação obsessiva com a marcação do tempo. Pois, antes de tudo, é função dos músicos de qualquer orquestra tocarem juntos uns aos outros. Já repararam como alguns mitos da batuta parecem, por vezes, até ocultar intencionalmente a marcação do tempo ? Vejam, por exemplo, no video abaixo, o grande Neeme Järvi, pai de Paavo e Christian, à frente da mítica Filarmônica de Berlim.

Ao invés, espero de quem quer que esteja no pódio nada menos do que inspiração para tocar. Algo meio intangível, tido por vezes como um dom, que tem a ver mais com a densidade emocional da música do que, propriamente, com tecnicismos relacionados à execução precisa de parâmetros (como alturas, ritmos ou intensidades) indicados em sua partitura. Sim, admito que isto não seja lá muito objetivo. Recorrerei, então, a imagens em busca de tentar dizer o que talvez não consiga verbalizar.

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A meu ver essas fotos dizem mais do que qualquer verbalização, redutora por definição, poderia da espécie de intensidade emocional que distingue regentes verdadeiramente excepcionais daqueles meramente bonzinhos.

Notem que todos os maestros retratados acima tocam ou tocaram proficientemente um instrumento antes de ter acesso ao pódio.

Fotos assim (i.e., de gente cuja excelência reconhecemos) sempre me fazem lembrar algo que ouvi, no curso de fotografia que frequentei quando tinha uns quinze anos, de um eminente professor de fotojornalismo, que pode ser formulado mais ou menos assim:

“Como profissional, tenho inveja de vocês, amadores, que podem escolher o que fotografar.”

Talvez por isto nunca tenha escolhido a fotografia como profissão.

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Teaser: on cunducting (vii): por que maestros viajam tanto ?

On conducting (v): da aquisição da competência da regência

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Sempre que me deparo com absurdos programas acadêmicos, de curto (festivais) e longo (graduações e pós-graduações) prazo, para didática da regência orquestral, torno a insistir que a regência não pode ser ensinada. Sim, sei que virão com a importância do gesto – ao que, de pronto, respondo: de nada importa o melhor gesto para as câmeras (pois o maestro está, via de regra, de costas para o público), se o cara não souber pedir, educadamente e de um modo inteligível e interessante a todo músico, do mais refinado ao mais grosso, como espera que a música soe.

Nesta cena caótica, em que, muitas vezes, músicos limitados são içados ao pódio por algum tipo de poder político ou econômico, despontam invariavelmente, como melhores maestros independentes (uma categoria que deveria ser bem mais populosa – i.e., a de regentes com vinculação temporária e não exclusiva com as orquestras que regem) despontam, invariavelmente, virtuosi de todos os instrumentos, com predominância absoluta de tecladistas sobre os demais. Ashkenazy, Barenboim, Harnoncourt, Levine … (a lista é interminável) estão aí para comprovar. Suponho, assim, que tampouco um Bernstein ou Boulez faça feio ao teclado.

Há, com efeito, entre músicos um certo consenso, apoiado sobre fortes evidências, de que, dentre os melhores músicos, os mais afeitos a regência sejam os que dominem instrumentos harmônicos (isto é, capazes de emitir vários sons simultaneamente) em geral e de teclado por excelência. Tendo pensado, por algum tempo, na interessante questão de por que há, no volátil universo dos regentes competentes, bem mais tecladistas do que instrumentistas de cordas (tanto dedilhadas como friccionadas), concluí que deve ser por que, enquanto um teclado disponibiliza, a qualquer instante, quaisquer sons de uma escala, as cordas oferecem um número mais limitado de sons simultâneos. Posto que separados, obrigatoriamente, por intervalos mínimos.

Meio técnico, né ? Digamos, então, simplesmente que um tecladista consegue realizar, por definição, harmonias mais densas (com sons mais próximos) do que, por exemplo, violonistas (conheço exímios guitarristas que preferem compor ao teclado). O que torna, por sua vez, mais natural ao tecladista, enquanto regente, realizar sonoramente quaisquer texturas contidas numa partitura. Ou, dito ainda de outro modo, tecladistas podem, melhor do que quaisquer outros músicos, ouvir (e estudar !) uma música ao instrumento antes de se aventurarem a dirigir uma orquestra na execução da mesma. Isto faz uma diferença enorme. Acreditem.

(querem pensar sobre a relativização da densidade harmônica ? É só comparar, por exemplo, numa linha de tempo, a polifonia primitiva com a harmonia dos clássicos e barrocos (praticamente a mesma, pois a grande novidade que distingue, em música, o barroco do clássico é muito mais de ordem formal do que harmônica) e a dos românticos. Ou, se preferirem, em jazz, a do dixie com a do swing e a de Monk…)

Devo confessar, no entanto, que, para além do restrito círculo de celebridades maduras e lendárias da batuta, nada sei sobre os dotes pianísticos de jovens como, por exemplo, Alondra ou Dudamel. Que não devem, evidentemente, ser poucos. Pois já vi um video da primeira tocando, ao piano a quatro mãos, música popular mexicana (outra hora explico a superioridade de certos fazeres musicais populares sobre os eruditos). E acho que não deixariam o último reger óperas se não soubesse, ao menos, reduzir partituras ao piano.

Céticos ou simplesmente desavisados hão de citar, ainda assim, notáveis exceções à regra. Como Simon Rattle, sucessor de Claudio Abbado há mais de dez anos à frente da lendária Filarmônica de Berlim que está em posição de exigir ao poder público londrino a construção de um novo teatro como condição para seu retorno ao reino. A estes é, no entanto, suficiente lembrar que Sir Rattle anunciou recentemente sua estréia (!) como pianista, dividindo o palco do Wigmore Hall (!!) com Lady Rattle – que é, segundo o Milton, uma verdadeira uma glória tcheca.

No video, Lady Rattle ou, como também é conhecida, Magdalena Kožená.

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on conducting (i): da escolha dos andamentos de execução de uma música

Nenhuma variável afeta tanto o caráter emocional de uma peça musical quanto o andamento em que ela é executada. Muito mais, por exemplo, do que sua tonalidade ou instrumentação. Senão, basta efetuarmos o experimento de, tendo variado deliberadamente a tonalidade, a instrumentação ou o andamento de uma mesma música, determinar quais versões melhor preservam a identidade da composição original.

Gosto de pensar que o tempo (andamento) ideal de uma música é perfeitamente análogo ao ponto exato de cozimento de uma massa, também conhecido como al dente. Se for cozida um pouco menos do que o necessário, parecerá crua. Já se cozida demais, ficará irremediavelmente mole. Qualquer cozinheiro sabe disto. Infelizmente, muitos músicos não.

Tanto isto é verdade que muitos compositores, de Beethoven em diante, tomaram o cuidado de indicar, para além de vagas expressões italianas como largo, adagio, andante, allegro ou presto, com bastante exatidão a velocidade em que suas obras deveriam ser executadas, expressa, a cada novo andamento, em pulsos por minuto. Já me referi, tempos atrás, ao descaso para com indicações metronômicas de Beethoven.

Infelizmente, muitos compositores não tiveram a mesma preocupação, deixando, na maioria das vezes, a escolha dos tempos de execução de sua música orquestral ao sabor da vontade de cada maestro no pódio.(surpreende como, ainda hoje, há quem acredite e defenda o monopólio interpretativo de regentes – mas deixemos de lado, por hora, o problema do carteiraço acadêmico, digno de atenção mais extensa)

Felizmente, toda regra tem suas exceções, e vez que outra (bem raramente, é verdade) regentes experientes dialogarão com orquestras sobre andamentos de obras seminais. Com sorte, tais discussões se nortearão exclusivamente pela busca da melhor expressão musical. Como no caso do último movimento da Bachianas Brasileiras nº 2, de Villa-Lobos, o célebre Trenzinho do Caipira, executado recentemente pela OSPA sob  direção de Nicolás Rauss. Convicto de que muitos registros fonográficos da obra iniciavam lento demais, experimentou, ao longo dos ensaios, tempos bem mais rápidos. Até ser alertado por alguns de que, embora seu pulso básico estivesse perfeito a partir de certo ponto, talvez estivesse iniciando rápido demais. Fosse outro, teria provavelmente desconsiderado a experiência da orquestra e deixado o trem desgovernado até o concerto. Mas não. Temperou sua concepção da obra com o que provavelmente lhe pareceu um consenso entre outros intérpretes. Tão rara quanto a atitude foi seu resultado, digno de nota.

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Há, no entanto, que se ressalvar um tipo de interferência da orquestra, nociva à qualidade musical, a saber, certos pactos de mediocridade que se estabelecem, por vezes na privacidade dos camarins, para que a música seja executada em tempos mais lentos por força de limitações técnicas de executantes. Cabe, pois, ao maestro, nestes casos, discernir se tempos sugeridos diferentes dos seus visam, antes, a melhor expressão musical do que à mera acomodação a limitações técnicas.

De resto, é sempre preferível uma versão no tempo certo com erros ocasionais do que outra perfeitamente correta num andamento mais… contido. Há, no entanto, quem pense diferente. Felizmente. Pois só a controvérsia justifica a coexistência de execuções repetidas dos mesmos clássicos.