Como já sabe quem me acompanha no facebook, ontem me revoltei ante a obrigatoriedade de baixar um aplicativo em meu celular só para participar de um sorteio mediante a troca de notas fiscais de supermercado por cautelas para concorrer. Desisti na hora e desabafei na rede social. Para meu espanto (ou nem tanto), um coro de solidariedade reverberou minha irritação, senão com a onipresença de celulares, da qual nem vale a pena falar, pelo menos com a enxurrada de aplicativos que disputam a memória de nossos aparelhos. Com isto, o que era prá ser um insight fugaz acabou virando um post. Aguentem.
Até algum tempo atrás, se podia afirmar que todo indivíduo era univocamente identificado por seu CPF ou equivalente – como, por exemplo, o social security number nos EUA. Hoje, arrisco supor que celulares sejam mais universalmente populares do que números de cadastro governamentais. Com efeito, os celulares, conquanto provavelmente mais numerosos do que CPFs, só ainda não substituíram os últimos como meio de identificação unívoca por vários motivos, dentre os quais se destacam os fatos de que um indivíduo pode possuir mais de um celular e que celulares trocam de mãos muito facilmente, sejam eles vendidos ou roubados. Tudo bem, vá lá: CPFs também podem ser roubados.
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Meu primeiro celular, há mais de vinte anos, era um lingote com 2 cm de espessura, teclas mecânicas e um visor monocromático de quartzo líquido de 2 X 3 cms. Servia exclusivamente para originar e receber chamadas de voz e mensagens de texto. Ou seja, era aquilo que outrora chamávamos de telefone, com a inegável vantagem de ser móvel. Na ciranda das marcas que vem e vão, o mercado era dominado pela Nokia.
Algo bem diferente dos atuais smartphones (ou, como diz um amigo, espertofones). O mercado se esfacelou. Quem tem mais dinheiro – e quer gastar numa coisa dessas – tem um da Apple. Se, no entanto, entender o objeto como não mais do que um descartável, ficará com os da Samsung, best buy da hora. Marcas minoritárias como Motorola subsistem para dar suporte ao mito da virtude da livre concorrência.
Verdadeira maravilha tecnológica, ápice da miniaturização, um smartphone nada mais é do que um computador de bolso. O que era um mainframe virou um desktop que virou um laptop que virou um notebook que virou um tablet que, finalmente, virou um smartphone. Logo estaremos no próximo nível. Tenho um amigo que chama os celulares de próteses. Irônico, sem dúvida, mas também visionário, pois não está de todo errado ao preconizar (sei lá se ele pensou nisso) que, num futuro não muito distante, dispositivos computacionais e de comunicação entre indivíduos serão implantes cerebrais.
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Os celulares já atingiram tamanho poder computacional que as únicas razões remanescentes para alguém preferir uma plataforma fisicamente maior do que um smartphone é a dificuldade em 1) digitar textos maiores (outra coisa em extinção) num minúsculo tecladinho virtual (nunca aprendi a digitar só com os dedões); 2) visualizar planilhas amplas ou 3) armazenar volumes de dados maiores do que o usualmente necessário no cotidiano (um problema transitório, face à inexorável miniaturização das memórias digitais).
O ser humano é, por natureza, adaptativo, mas há limites. Nunca usei, por exemplo, um aplicativo bancário; prefiro sempre o homebanking. Infelizmente, muitos bancos vem deixando de oferecer opções nessa modalidade, exigindo, nestes casos, alguma ação a ser realizada exclusivamente em aplicativos – me obrigando, com isto, a baixá-los e instalá-los.
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Celulares e lifecasting. Não resta dúvida de que a possibilidade de fotografar e publicar imediatamente com celulares tornou o lifecasting muito mais fácil. Publicizar a própria vida é bem mais fácil hoje, tanto para diletantes como para ditos “influencers”, graças à sensibilidade dos projetistas destes aparelhos. Postar o que comemos, aonde vamos, o que vemos, lemos ou ouvimos ou até mesmo o que pensamos (!) é questão de cliques.
Sua majestade a experiência. Quem ainda não se sentiu incomodado por braços erguidos com celulares em shows, com milhares de pessoas diante de um palco onde as atrações só podem ser vistas em telões ? Com efeito, vi, esses dias, num grupo de WhatsApp, uma postagem de uma imagem do Macca num telão no Maracanã, ao fundo de uma formiguinha num palco que, presumo, fosse o próprio.
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Agora, a parte chata. Aquela menos objetiva, que diz de um mal-estar que sinto (e outros também), mas que ainda não consigo explicar, que dirá descrever. Mal-estar este que tem a ver com coisas que vamos deixando para trás em nome de inegáveis vantagens de avanços tecnológicos. Saudosismo ? Acho que não. O que pode haver de bom no abandono progressivo do aqui e do agora em favor de uma conectividade quase universal ? Dispor de engenhos de busca ? É bom. Criptomoedas ? Deve ser (ainda prezo cédulas na carteira). Dados na nuvem ? Idem. Mas se, depois de um tempo, isto for tudo o que restar ?
Quando aldeias se tornam cidades, o fato é saudado como um louvável aumento da proximidade entre pessoas e da fricção social. Em minha mania de imaginar cenários distópicos, percebo a conectividade quase universal (exceto, é claro, em recantos “excluídos” da África ou do Oriente) como um caminho acelerado para cenários de degradação civilizatória como em Blade Runner, Elysium ou Wall-E. Ou em Matrix.
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Não pretendia falar do fenômeno contemporâneo, cada vez mais comum, de grupos de pessoas fisicamente próximas, só que cada uma delas imersa na tela de seu celular. Casais em restaurantes, estudantes no intervalo entre aulas (ou mesmo durante as mesmas), pessoas no transporte público, etc. Só que uma situação recente me chamou a atenção, se revestindo de uma enorme carga simbólica.
Festa de Natal. Familiares e amigos que não se encontram há muito tempo reunidos, ao menos em tese, para rir, brindar e confraternizar. Súbito, me deparo com a seguinte cena: acomodadas em sofás dispostos diante de uma TV ligada, vejo quatro pessoas mergulhadas em seus celulares.