O Intelectual – o poder positivo do pensamento negativo (2005), de Steve Fuller; ou Confissões de um leitor incompetente

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

Steve Fuller, em O Intelectual

Estamos aqui claramente diante de mais uma não resenha – ou, se preferirem, anti-resenha. Explico. Dentre os livros que nos caem nas mãos, há uma categoria que reúne todos aqueles que se afiguram como demasiado complexos para nossa compreensão. Como, por exemplo, Austeridade – A História de uma Ideia Perigosa (2013), de Mark Blyth, cujo argumento fascinante não foi, todavia, suficiente para que eu, abatido pela flagrante insuficiência de conhecimento econômico, persistisse em sua leitura.

O Intelectual (2005), do filósofo Steve Fuller, claramente pertence a este grupo de obras que desafiam nossa compreensão, desta vez por uma virtuosa combinação de pressupostos filosóficos (vai dos gregos aos dias de hoje) com uma linguagem compacta, com altos índices de síntese e densidade lógica. Só que, desta vez, não me deixei intimidar pela incompreensão inicial de muitas passagens (a bem dizer, a maioria delas), chegando diligentemente ao final tão somente para reiniciar imediatamente a leitura, desta vez mais pausada e sublinhando muita coisa importante que, na pressa da primeira leitura, acabara deixando para trás.

Grandes obras são assim, abertas, revelando novas nuances a cada releitura, principalmente de acordo com o amadurecimento do leitor. Não envelhecem com o passar das décadas mas, ao contrário, se resignificam e, com isto, enriquecem. Querem um exemplo ? 2001, de Kubrick, que vi pela primeira vez na adolescência, quando foi lançado, e que até hoje me fascina e intriga.

* * *

Devo confessar, inicialmente, que o que me atraiu em O Intelectual foi seu singular subtítulo, “o poder positivo do pensamento negativo”, que de imediato me soou como a antítese de uma manual de autoajuda. Espécie de Paulo Coelho (de quem só conheço a reputação, pois nunca li) às avessas ou, no mínimo, um elogio à rabujice. Caí na cilada. Isto por que tal locução – provavelmente a interferência de algum editor na tentativa de conferir glamour a uma obra outrossim hermética, destinada a especialistas – sequer pertence ao título original. É bem verdade que o título poderia ser, como é comum em textos filosóficos, O Elogio do Intelectual –  mas devemos reconhecer que, neste caso, seria bem menos apelativo. Façamos, pois, esta pequena concessão ao marketing.

Sou assim. Me encanto facilmente com promessas, por vezes elusivas, contidas em nomes de livros. Às vezes me dou bem, cavocando tesouros como Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber, ou The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, de Berg & Seeber. Noutras, nem tanto, como no supracitado Austeridade. No presente caso, deve ser dito, em favor do criativo e atraente subtítulo aposto à edição brasileira de O Intelectual, que a expressão, mais do que uma nota de orelha rabiscada às pressas, ao menos denota a impressão de que só pode ter sido imaginado após uma leitura extensiva e dedicada dos argumentos de Fuller.

* * *

A primeira coisa que o autor declara, na introdução, é que “O Intectual segue de certa forma a estrutura de O Príncipe, de Maquiavel, o famoso livro de conselhos do século 16 sobre a arte de governar”. De fato, o tom aforístico (“o príncipe/intelectual deve…”) é o mesmo. Mas termina aí qualquer semelhança. Pois, enquanto o livro de Maquiavel, em que pese a ácida perspicácia do autor, tem uma linguagem direta e unívoca, capaz de ser entendida por qualquer escolar (sem dúvida um atributo invejável em textos de teor filosófico),  já O Intelectual, não. Nele, frases longas, com argumentos complexos ricamente detalhados, são uma constante – de tal modo que é praticamente impossível alcançar uma compreensão mínima do que recém foi lido sem retroceder frequentemente ao início de cada frase ou parágrafo. Não se deixem, portanto, enganar pela aparência: se trata de um livro curto (ca. 150 páginas), mas de leitura demorada.

Provavelmente o melhor modo de transmitir uma visão global d’O Intelectual seja através de seu sumário. Não riam – pois, porquanto a frase anterior possa parecer francamente tautológica, índices são amiúde elusivos. Tal não é o caso, no entanto, n’O Intelectual, onde cada tópico representa da forma mais clara possível o que encontraremos em cada seção. Ao sumário, então.

O livro é dividido em 3 partes de aproximadamente 50 páginas cada uma. Na primeira, são apresentadas quatro teses sobre intelectuais, a saber, (1) que intelectuais nasceram de pé atrás; (2) que  intelectuais sofrem de ligeira paranoia; (3) que intelectuais carecem de uma plano de negócios e (4) que intelectuais procuram a verdade total. A segunda consiste num longo diálogo entre o intelectual e o filósofo. Na terceira, são respondidas perguntas usuais sobre intelectuais como, por exemplo, “Como o intelectual adquire credibilidade ?”, “O que leva o intelectual a escolher uma causa para defender ?” ou “Por que os intelectuais parecem prosperar no conflito ?”. Esta parte inclui, também, uma tipologia dos intelectuais e seções francamente aforísticas sobre “Como intelectuais devem se relacionar [respectivamente] com políticos, acadêmicos, cientistas e filósofos”. É nestas últimas que Fuller melhor estabelece, em contraste com as supracitadas categorias de pensadores (aqui entendidos não no sentido restrito de filósofos mas mais abertamente, como homens de ideias), uma definição por aproximação do que vem a ser, afinal, um intelectual.

* * *

Como já disse, a leitura de O Intelectual pressupõe o conhecimento prévio, ou pelo menos uma visão abrangente, da história da filosofia, de Sócrates e Platão às escolas contemporâneas, passando pela Idade Média, pelo Iluminismo e pelos idealistas alemães, até chegar à ruptura do bloco socialista, ao neoliberalismo e ao terrorismo – conceitos e categorias aos quais Fuller, em sua linguagem compacta, se refere constantemente sem, no entanto, explicar a não ser por definições ultra sintéticas, de difícil compreensão para não portadores, como eu, de uma formação filosófica ampla e detalhada.  Reflexões sobre o espírito da ciência de cada época também são uma constante no texto.

Dentre as passagens mais significativas com que me deparei na primeira parte, destaco:

o esforço de reabilitação dos sofistas, opositores clássicos de Sócrates, cuja dimensão podemos depreender de passagens como

“O sinal mais evidente de que os juízos históricos dificilmente voltam atrás é o destino de grupos específicos que dão nome a vícios e deficiências da humanidade em geral: “hunos” e “vândalos”, “anarquistas” e “fascistas” são alguns deles. Para o intelectual, o mais relevante grupo dessa categoria é constituído pelos “sofistas”, os grandes reivindicadores da razão nos tempos da antiga Atenas.”

ou

“[…] reabilitar os sofistas atualmente está fadado a se tornar uma luta inglória.”

Não obstante, é precisamente o que Fuller faz ao longo de mais de dez páginas, que incluem pérolas como

“No mundo de hoje, os sofistas estariam à vontade em seminários de treinamento de gerência de negócios e escrevendo livros de autoajuda. Um Sócrates moderno teria rotulado tais indivíduos como “gurus” e reclamado por suas obras estarem pressionando por mais espaço nos currículos universitários e nas seções de “filosofia” das livrarias.”

Ainda na linha das reabilitações, o autor dedica especial atenção às teorias conspiratórias, as quais chega mesmo a considerar – em especial na tese de que os intelectuais sofrem de ligeira paranoia – como ferramentas essenciais a seu trabalho.

Além da paranoia estrutural, inerente a todo intelectual, Fuller também discute, na primeira parte, questões como

o ceticismo, em

“Enquanto a razão for exercida de forma desigual pela humanidade, o intelectual se oporá a tudo em que acredita a maioria das pessoas, provavelmente sob o jugo de um poder dominante.”

a responsabilidade negativa (i.e., a responsabilidade por aquilo que não se fez, mas que deveria ter sido feito), emblemática do julgamento do nazista Adolf Eichmann;

a obsolescência planejada de Henry Ford a Bill Gates, Steve Jobs e o mercado editorial;

o direito autoral;

a distinção semântica entre “toda a verdade” (posição mais liberal, assumida por intelectuais, que admite a dúvida e, consequentemente, a possibilidade de erro) e “só a verdade” (posição mais conservadora, equivalente a “nada além da verdade”, que exclui qualquer dúvida) arraigada à história do pensamento ocidental e, principalmente, à cultura jurídica;

a imaginação enquanto instrumento de revelação da verdade e

o mito da infalibilidade científica.

No extenso diálogo em que o intelectual é sabatinado pelo filósofo, o primeiro, entre outras coisas,

explica por que

“[…] o único meio confiável para se chegar à verdade é a crítica”;

categoriza os filósofos contemporâneos como “continentais” (franceses e alemães), que reciclam o pensamento de mestres do passado, e “analíticos”, que se expressam primordialmente em língua inglesa;

justifica sua restrição ao “texto difícil”;

manifesta sua preferência incondicional pela abrangência em relação à profundidade em passagens como

“Um intelectual genuíno suspeita da ideia de que exista somente um caminho ou pelo menos um número limitado de rotas para uma verdade supostamente de importância universal.”

e

“Qualquer coisa que valha a pena ser dita pode ser dita em outras palavras.”

Além disso, fala da universidade, das ciências sociais e da redundância inerente à pesquisa científica (fenômeno identificado e batizado como “conhecimento público não descoberto” por Don Swanson, bibliotecário da Universidade de Chicago, que demonstrou que

“[…] o problema principal da pesquisa médica pode ser localizado, ou até mesmo resolvido, através de uma leitura sistemática da literatura científica. Entregue a si mesma, a pesquisa científica tende a se tornar cada vez mais especializada e abstraída dos problemas do mundo real que a motivaram e para os quais continua a ter importância. Isso sugere que tal questão pode ser resolvida efetivamente não contratando ainda mais pesquisas, mas assumindo que parte ou toda a solução já se encontra em várias publicações científicas, à espera de alguém querendo ler através das diferentes especialidades.”

Este ponto me é especialmente caro, já tendo me debruçado sobre o mesmo, ainda  que indiretamente, aqui (no sexto parágrafo) e aqui.

A terceira parte é aquela cuja leitura flui melhor. É nas quatro seções dedicadas ao modo como o intelectual deve se relacionar com, respectivamente, políticos, acadêmicos, filósofos e cientistas que Fuller melhor descreve o ressentimento mútuo nutrido entre intelectuais e cada uma das categorias de pensadores acima, em relação às quais chega a ser, por vezes, particularmente sarcástico. Como, por exemplo, em

“[…] os políticos se vêm tentados a descartar ou a adiar decisões de modo a permitir-lhes escapar a potenciais colapsos.”;

“[acadêmicos e intelectuais] se vêm com mútua suspeita. Cada um trata o outro como um atravessador que inunda o mercado com produtos inferiores. [Os acadêmicos] consideram intelectuais impressionistas em suas observações, tendenciosos em seus julgamentos, descuidados em suas pesquisas e parasitas do trabalho dos outros – esses outros, naturalmente, outros acadêmicos. […] Os acadêmicos parecem preocupados com pelo menos três coisas: receber o crédito devido a seu trabalho, proteger seu trabalho contra desvalorização e, mais sutilmente, justificar a própria necessidade do trabalho. Esta última preocupação admite a possibilidade de que intelectuais possam reduzir argumentos acadêmicos complexos a pontos-chave e criar um contexto que lhes atribui uma significância capaz de atrair uma audiência bem maior do que a que os acadêmicos conseguem reunir.”;

“Os textos acadêmicos são muito mais interessantes graças às notas de rodapé do que pelo argumento principal – isto é, mais pelo que consomem do que pelo que produzem.”;

“Os cientistas são os adversários mais falaciosos a ser enfrentados em público. […] são tidos como especialistas nas áreas que pretendem dominar e mesmo em outras mais. Todas estas características, que depõem a favor da credibilidade “prima facie” dos cientistas, colocam o intelectual em verdadeira desvantagem.”;

“De modo geral, os filósofos asseguram sua autoridade intelectual transformando cada disputa substantiva em outra logicamente anterior sobre o significado de alguma palavra-chave avaliativa, tal como ‘verdadeiro’ ou ‘bom’.”

Para o leitor, fica claro que o intelectual, um irremediável intruso em qualquer destes grupos, não nutre, todavia, qualquer ressentimento por sua exclusão. Entende sua crítica independente como necessária ao aperfeiçoamento social e não se importa em ser amiúde e francamente atacado. Isto fica perfeitamente claro em

“[…] os intelectuais são inerentemente autodestrutíveis: ajudam a criar a competição contra eles mesmos, quando advogam educação em massa, leitura de jornais e debate público. Num determinado sentido, encorajam outros a seguirem seus atos, não suas palavras: melhor criticarem o que digo do que repetirem o que digo sem crítica. Talvez isto explique por que os intelectuais se distinguem dos acadêmicos, dos empresários e dos políticos. Eles não se importam quando lhes apontam um erro, desde que lhes reconheçam o direito de errar no presente e no futuro. Essa é a melhor forma de entender a máxima muitas vezes atribuída cinicamente aos intelectuais: ‘Não há nada pior do que a publicidade; porém, ser ignorado é o mesmo que a morte.'”

Mais sobre a hostilidade frequentemente dirigida a intelectuais:

“A crítica raramente é bem recebida, principalmente se vier de intelectuais. Eles procuram atingir não simples ideias ou proposições, mas blocos inteiros de pensamento, que, no calor da discussão, são confundidos com seus defensores. Por isso, a crítica de um intelectual é muitas vezes vista como um ataque pessoal. Como revanche, eles se tornam os mensageiros que são mortos por conta de suas mensagens. Você não é formalmente repudiado – é apenas “reapropriado”. Na verdade, você fica sabendo que é um intelectual quando é denunciado em discursos ou plagiado nos escritos.”

* * *

Se fosse para apontar uma única deficiência em O Intelectual, ao menos em sua edição brasileira (Relume, 2006), seria esta, indiscutivelmente, a falta de um índice onomástico. Se trata, muito mais do que uma falha autoral, de uma de seus editores. Pois, numa obra em cuja leitura, conquanto breve, desfilam diante de nossos olhos centenas de nomes, desde aqueles pivotais na história do pensamento, como Platão, Galileu, Voltaire, Newton e afins (que comparecem repetidamente no texto, ainda que de modo não cronológico) até autores “colaterais” (como, por exemplo, Christopher Hitchens, o célebre desmistificador de Madre Teresa de Calcutá, que aparece uma única vez), uma indexação que permita uma referência rápida a qualquer um deles se faz mais do que necessária. Sorte que, habituado a esta má prática editorial, costumo, já na primeira leitura, sublinhar e anotar furiosamente nas margens quaisquer referências importantes que possa vir a querer recuperar rapidamente depois.

* * *

O livro termina brilhantemente com a seguinte frase, impressa em itálicos, que serve de epígrafe a este post mas que repetimos em nome da ênfase:

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

* * *

 

 

Para que serve um TCC ?

Quando cursava meu mestrado, lá pelos idos do fim dos anos 80, fiquei indelevelmente marcado por um professor de teoria musical, compositor, que declarou, em sua primeira aula, ser flexível e tolerante em relação a qualquer insuficiência discente, que se propunha a ajudar a sanar, exceto uma, a saber, a desonestidade acadêmica, que implicaria em reprovação sumária. Aquela fala calou fundo em minha mente. Até hoje a tenho como pináculo ético absoluto em práticas de ensino.

Esses dias, conversando com um amigo psicólogo que sempre me traz informações interessantes, soube (ou, melhor dizendo, confirmei a suspeita) que a prática de plágio é comum em praticamente um terço (entre 30 e 40%) de todos os TCCs defendidos. Há uma verdadeira guerra não declarada entre, de um lado, alunos que buscam rechear seus trabalhos acadêmicos com trechos de textos alheios sem a devida atribuição de autoria e, de outro, professores que se valem cada vez mais de ferramentas online para detectar o expediente.

De posse destas informações, me dispus a explorar o problema – nem tanto em relação às múltiplas formas como se apresenta ou aos recursos disponíveis para sua detecção mas, sobretudo, quanto à sua própria razão de existência e o tanto de tempo de atenção, tanto de professores como alunos, que é desviado de atividades de aprendizagem mais pertinentes.

Antes de sair deitando ideias do nada, fui brevemente à nuvem para dimensionar e qualificar o que de mais evidente há sobre o problema. As primeiras dez entradas retornadas para uma  busca sobre plágio acadêmico são textos de blogs destinados a alunos esclarecendo o fenômeno e tentando prevenir o plágio involuntário, decorrente de formatação indevida, i.e., que não distingue claramente entre citações e ideias originais. Sintomaticamente, se encontram nestes sites anúncios de ferramentas para a elaboração de TCCs – tais, como por exemplo, formatadores automáticos para as temidas normas da ABNT. O melhor texto encontrado nesta busca é, de longe, uma cartilha da UFF (Universidade Federal Fluminense) contendo a definição e uma tipologia do plágio, orientação sobre como evitá-lo e as diversas formas que pode assumir uma licença Creative Commons. De resto, nada encontrei que me direcionasse a sites de trabalhos prontos como, por exemplo, o tristemente célebre Zé Moleza.

Já uma busca mais específica, por detecção de plágio acadêmico, retorna uma impressionante coleção de ferramentas existentes. À parte de inúmeros programas dedicados, se apreende que a forma mais simples e rápida de se identificar uma porção de texto plagiado é, como de se esperar, jogando o mesmo no google.

(tal facilidade me remete de pronto à época (no início dos anos 90) em que ministrava disciplinas de análise musical – quando, para identificar trechos plagiados, num verdadeiro jogo de gato e rato, precisava conhecer amplamente as fontes. Mas isto foi muito antes do excesso virtual)

* * *

Consoante à proposta inicial de ruminar sobre o estado de coisas que eleva o plágio acadêmico ao patamar de uma indústria, vou, sem rodeios, direto ao ponto: é perfeitamente razoável se afirmar que a prática de copiar, na íntegra ou em fragmentos, obras alheias sem atribuição de autoria se deve, antes de tudo, à importância exacerbada conferida pela academia à redação de textos volumosos (artigos, teses, TCCs e monografias) em formatos tão rigorosos quanto enfadonhos (tornarei a isto). Ouço, aqui, protestos indignados. Então, se alguém afirmar sentir habitualmente algum prazer na leitura desta sorte de documento, fingirei que acredito.

Neste contexto, o relato de uma pesquisa também pode facilmente assumir uma dimensão maior do que a própria pesquisa em si – podendo, inclusive, em muitos casos, distorcer pelo exagero a importância da mesma para a respectiva área de conhecimento.

O texto acadêmico, dito científico, é, por definição, redundante, i.e., contém, por força normativa, uma elevada proporção de informação já comunicada por outrem alhures. Ao mesmo tempo, ambiciona à originalidade, segundo o mito da primazia de enunciação.

Aqui se faz necessário explicar, ainda que correndo o risco de assumir um caráter demasiado didático, no que consiste o supracitado mito. A primazia de enunciação, um dos pilares da citologia (neste caso entendida como a arte e a ciência da citação), sobre o qual repousa a hierarquia do saber acadêmico, nada mais é do que a presunção de que qualquer enunciação seja original desde que não se encontre nenhuma instância anterior da mesma. Noutras palavras, um absurdo ontológico. Não que uma enunciação não possa ser original. O que é, no entanto, absurdo é o pressuposto de que, pelo mero desconhecimento de qualquer ocorrência anterior da mesma, ela seja necessariamente original. Numa redução ao absurdo, é como a história da espanhola que patenteou o sol, reivindicando o direito de cobrar royalties por seu uso.

É claro que isto não teria a menor importância, toda formulação sendo bem-vinda a qualquer campo de conhecimento, não fosse por um fato singelo: na pirâmide acadêmica, citações funcionam como moeda, seu mapeamento engendrando uma verdadeira economia, resultando por determinar hierarquias de pessoas mais pelo que publicam do que por suas capacidades lógicas e cognitivas. Tal estado de coisas se popularizou como a cultura do “publish or perish“.

O excesso de texto decorrente desta cultura possui sérias consequências logísticas e econômicas. Há 30 anos atrás o problema já tinha sido identificado, inicialmente por bibliotecários, preocupados com o armazenamento e disponibilidade de “documentos” científicos produzidos pela academia, que então alertavam: ” – Publiquem menos ! “Hoje, com todos os custos educacionais postos em cheque, cada vez mais são questionados os valores astronômicos cobrados por assinaturas de publicações científicas pouco lidas pelas bibliotecas universitárias.

Finalmente, o texto acadêmico é, por definição, muito chato. Nele, protocolos bem restritivos obrigam autores a altíssimos níveis de redundância. Em nome da exatidão, todas as premissas, mesmo as mais óbvias, devem ser minuciosamente explicitadas. Além disto, a enorme quantidade de citações, com as devidas atribuições de autoria, são responsáveis por grande parte do corpo do texto e seus apêndices, tanto em notas de rodapé como em referências bibliográficas ao fim da obra ou de cada um de seus capítulos, superando, em muitos casos, a quantidade de texto devotada à enunciação de ideias originais. Tudo isto conspira contra qualquer escrita criativa, a qual premia, acima de tudo, o estilo individual do autor e o espaço interpretativo do leitor. Num texto acadêmico, todavia, há pouco ou nenhum lugar para qualquer um deles.

Só que, mesmo com as limitações acima, a modalidade de escrita acadêmica talvez constitua a maior parte de tudo o que é escrito (como eu gostaria de ter uma estimativa confiável para esta proporção !). Por outro lado, está, por razões óbvias já mencionadas, entre as formas de texto menos lidas. No máximo, por orientadores, avaliadores, estudantes em busca de referências para seus próprios textos e, minimamente, por pesquisadores efetivamente preocupados com o avanço da ciência que, não obstante, são lembrados em primeiro lugar quando se trata de justificar tão prolixa malha de informações.

Por que, então, o acúmulo exacerbado de textos em tal estrutura, que cresce descontroladamente (a wikipedia, ao contrário, cresceu até convergir para um valor mais ou menos estável, em torno de 3 milhões de verbetes), favorecendo a redundância e dificultando o garimpo de informações ao ponto de que o mesmo seja considerado como uma competência necessária e exclusiva de pesquisadores ? Já aludimos acima à resposta: tal estado de coisas serve, primordialmente, à manutenção de uma hierarquia acadêmica, cuja economia repousa sobre fatores de impacto e na qual citações valem como moeda.

Mas qual seria, então, a melhor alternativa ao sistema vigente ? Simples: a abolição de todo conhecimento proprietário, tal como na comunidade do software livre com código aberto, com  textos colaborativos e enxutos, à razão de uma referência única por assunto (contendo, é claro, todos os contraditórios formulados), à maneira da wikipedia.

Uma última ressalva em relação ao modo como usualmente são valorados textos acadêmicos tem a ver com o campo de leitores responsáveis pela aceitação ou validação dos mesmos, a saber, comitês de especialistas previamente designados, sejam eles participantes de bancas ou conselhos editoriais. Tal expediente é conhecido como avaliação por pares. Ora, num mundo ideal, a apreciação e validação de qualquer texto se daria mediante sua exposição pública a um vasto conjunto indeterminado de leitores voluntários – sua consagração, neste caso, se dando muito mais pelo conjunto da crítica espontânea de um grande número de sujeitos, não necessariamente pertencentes às mesmas esferas do autor, do que pela aprovação por uns poucos pares do mesmo, reunidos em comissões e, muitas vezes, com interesses próprios inconfessáveis em relação à promoção ou não de textos específicos submetidos a avaliação.

Mais sobre o excesso de publicações científicas e alternativas embrionárias para a solução do problema aqui.

* * *

Inicialmente um alerta sobre o problema dos TCCs, este post acabou degenerando num libelo contra o texto acadêmio-científico conforme o conhecemos. Não pude evitar: é mais forte do que eu. Torno, então, ao propósito original.

A exacerbação da importância do TCC parte da questionável premissa de que todo profissional deve estar também capacitado a comunicar não importa o que numa linguagem compatível com a das publicações científicas. Assim, na ausência de ideias originais (haja assunto para a horda de formandos em todas as faculdades !), se escreve sobre qualquer coisa, nem que seja uma revisão bibliográfica. Com isto, perdem, de um lado, alunos que deveriam estar mais ocupados, em seus estágios, com competências que lhes serão exigidas mais tarde, no exercício profissional e, de outro, professores condenados a revisar milhares de páginas de documentos visando adequá-los às normas para publicação em periódicos aos quais a maioria nunca será submetida. A trágica ironia disto tudo é que, muito provavelmente, a maioria dos autores de TCCs jamais chegarão a redigir qualquer coisa destinada a tais publicações.

Além disto, conquanto professores e alunos tenham igualmente a lamentar a exigência absurda de TCCs, tanto uns quanto os outros devotam um esforço enorme à prática arraigada de tentar burlar o sistema: enquanto alguns alunos se valem do plágio como forma de se desvencilhar de uma tarefa por vezes tida como impossível ou, quando muito e com alguma razão, além da relação custo/benefício razoavelmente aceitável, qualquer professor mais zeloso se dedica diligentemente a detecção de sua prática. O que cada um deles, a ciência e a comunidade ganham com isto ? Ainda estou por descobrir.

Se concluirmos, por outro lado, que a expressão escrita é realmente fundamental a qualquer egresso do ensino superior, haveria meios muito mais eficazes de verificar tal competência – como, por exemplo, em provas de redação, como as aplicadas a candidatos ao ingresso em qualquer faculdade.

Não sou tão nostálgico ou purista a ponto de querer banir, também, o uso de editores de texto. A recursividade na escrita é, afinal, um verdadeiro avanço que veio para ficar. Então, em provas de redação, a simples ausência de conexão com a internet seria suficiente para impedir qualquer tentativa de se apropriar indevidamente de blocos de texto de outras fontes.

Aqui, muitos hão de objetar que a redação de um artigo ou monografia é uma tarefa bem diferente da de uma redação escolar – ao que direi: em extensão, sim, mas, em essência, não. Pois quem não é capaz de desenvolver uma argumentação inteligível e elegante em 3 ou 4 parágrafos jamais o será ao longo de um documento com dezenas de páginas. Ao mesmo tempo, quem consegue elaborar uma argumentação num texto sucinto deve ser também capaz de fazer o mesmo em um documento mais extenso – a diferença sendo, no caso, não mais do que uma questão de tempo necessário à tarefa, esforço empreendido e formatação.

Pensem, então, na economia de atenção e esforço que a substituição de longos trabalhos domiciliares não supervisionados por redações presenciais sem consulta representaria para toda a comunidade acadêmica. E pensem, sobretudo, no fim da existência de um vasto corpo de textos  redundantes cuja única função é a comprovação na prática da competência de sujeitos para a elaboração de peças longas rigorosamente formatadas outrossim inúteis. A maior atenção à confecção de textos publicáveis não deveria, portanto, ser exigida indiscriminadamente de todo e qualquer profissional mas, tão somente, daqueles que efetivamente terão que lidar, em suas rotinas de trabalho, com a publicação de textos, científicos ou não.

 

 

O discurso artístico e o discurso sobre a arte

É razoável se supor que, para cada quantum de discurso artístico criado, seja em forma de livro, música, filme, quadro ou escultura, haverá uma quantidade bem maior de discurso sobre a obra, tanto maior quanto mais antiga e/ou consagrada ela for.  Isto por que a resenha sobre objetos artísticos, antes confinada a um seleto círculo de especialistas, acabou por se tornar o café da manhã, o almoço e o jantar de toda uma comunidade acadêmica voltada para a produção de textos analíticos sobre obras de arte em teses de pós-graduação e artigos para periódicos.

Não que todo discurso sobre a arte seja totalmente irrelevante ou supérfluo. Longe disto. Afinal, há textos secundários excelentes, geralmente de fôlego e em linguagem atraente, que iluminam a compreensão sobre um autor, grupo de autores ou mesmo todo um contexto ou uma época. Tais são os tratados de teoria literária de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre Dostoiévski e Rabelais, ou ainda os livros de Charles Rosen (1927-2012) sobre o estilo clássico e a forma sonata. São também respeitáveis as contribuições de schollars como Alan Tyson ou Robert Winter para periódicos como Beethoven Studies ou ainda as obras de Walter Frisch sobre a música de Brahms. Assim como estes, há muitos outros. Quase sempre, nestes casos, os textos analíticos secundários sobre a obra de epígonos artísticos são de interesse tão universal que acabam fatalmente publicados como livros.

Fora deste círculo de brilhantismo, no entanto, o que há – e em muito maior quantidade – é uma miríade de papers, de diferentes extensões (artigos, os mais curtos; teses, os mais longos), produzidos primordialmente para a promoção de seus autores na carreira acadêmica, que serão lidos não mais do que por aspirantes a posições mais ambiciosas no intuito de melhor rechearem seus próprios textos com citações.

Aqui se faz necessário um disclaimer (antes que comecem as inevitáveis pedradas): é claro que há teses e artigos interessantes e necessários; estes se constituem, no entanto, muito mais em exceções do que na regra.

É sobre tais textos secundários, bem escritos no máximo, ainda que de pouca relevância para a apreciação das obras examinadas, que trato nesta diatribe.

* * *

Não conheço a origem das teses e artigos científicos, nem tampouco tenho paciência para buscar tal erudição. Quer me parecer, no entanto, que a disseminação  generalizada do texto acadêmico que temos hoje seja como uma praga que fugiu ao controle.  Escrever (e publicar) já foi um privilégio exclusivo de quem (1) soubesse escrever bem e/ou  (2) tivesse algo original ou, ao menos, interessante a dizer. Só que, nalgum momento, pareceu às elites universitárias que talvez fosse uma boa ideia exigir de aspirantes a melhores posições acadêmicas que escrevessem intensamente, quase compulsivamente.

Aqui nos deparamos com um desequilíbrio fundamental, a saber, o de que existem muito mais pesquisadores (assim são chamados) do que, propriamente, objetos de estudo carentes de textos elucidativos. Isto foi suficiente para instaurar uma corrida, entre orientandos e orientadores, pela identificação de temas passíveis de uma boa tese ou de um bom artigo. E nesta busca, um lugar óbvio para o qual olharam (especialmente pesquisadores em arte) foi o imenso manancial de discurso artístico produzido em todas as épocas.

Só que tal expediente não se afigurou, na prática, tão simples, posto que campos de estudo sobre epígonos como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms ou Schoenberg (para citar uns poucos) já estavam saturados com textos consagrados do eminente círculo de schollars supracitado. A solução foi se voltar, então, para obras de artistas novos ou novíssimos menos conhecidos. E se garantiu, com isto, a perpetuação do exercício acadêmico da escrita. Para desespero dos bibliotecários – que são, em última instância, aqueles que devem lidar com o excesso textual.

* * *

Sei. A visão acima será certamente descartada como o delírio de um outsider pela academia, a qual se perpetua sem a necessária autocrítica, ignorando por vezes mesmo contribuições valiosas de insiders argutos – como, por exemplo,  Maggie Berg e Barbara Seeber no sensacional The Slow Professor – challenging the culture of speed in the academy.

Vejamos, então, a coisa sob outro prisma: o do artista que tem a obra dissecada em textos secundários sobre a mesma. Antes, porém, algumas palavras sobre os limites da análise.

Torno a dizer que, é claro, não falo aqui dos impressionantes insights de um Rosen, Tyson ou Frisch (que, é preciso dizer, não caberiam na extensão de um artigo ou mesmo de uma tese de dimensões normais – sendo, na maioria das vezes, a investigação de uma vida inteira). Falo, sim, do tipo de achado normalmente resultante da aplicação de alguma técnica consolidada de análise musical. Pois há muitas: Schenker, Meyer, Reti, semiótica e por aí afora.

Ministrando, décadas atrás, disciplinas de análise musical a alunos de graduação, passei pelo constrangimento de ter que lhes revelar, ao fim do curso, que nenhuma técnica conhecida de análise pode nos dizer sobre uma música qualquer coisa que já não saibamos depois de ouvi-la.

Os mais céticos hão de dizer que há um certo exagero nisto, visando o efeito fácil – com o que, admito, tenho que concordar. Tomemos, então, um caso extremo: o da análise semiótica, formulada por Jean-Jacques Nattiez. Na década de 90 do século passado, Nattiez falou num congresso da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música na UFRGS. Sua concorrida conferência foi sobre uma análise em andamento da Catedral Submersa, de Claude Debussy. Disse que tinha submetido seus dados a uma especialista em computação para o processamento numérico. Desconfiado, achei aquilo tudo muito estranho. Como se quisessem descobrir algo novo sobre a célebre música através de um equipamento, sei lá, como um espectógrafo de massa (utilizado para identificar átomos de elementos constituintes da matéria). Ao final, a cereja do bolo: Nattiez informou à reverente plateia que a especialista ainda não havia lhe retornado os resultados. O que não o impediu, no entanto (pensei com meus botões), de cruzar o Atlântico, provavelmente não de graça, para nos falar daquilo. Curiosamente, não nutro hoje, mais de 20 anos depois, a menor curiosidade para saber o que descobriu sobre a maravilhosa peça de Debussy.

Fecho parênteses, voltando à questão de especular sobre a preferência de um autor entre ter sua obra minuciosamente analisada por e para um reduzido número de especialistas ou, ao contrário, ter a mesma amplamente vista, lida ou escutada por um grande público atento, ainda que leigo.

A “licença para prescindir do público” foi talvez pela primeira vez formulada e concedida, ao menos em música, no manifesto Who cares if you listen ?, de Milton Babbit (1916-2011), compositor e professor da Universidade de Princeton, publicado em 1958 pela revista High Fidelity. No célebre ensaio, Babbitt defende a tese de que a universidade se constitui no lugar ideal para o compositor criativo, uma vez que somente nela fica o mesmo livre de qualquer compromisso com a aceitação pública de sua obra.

Lasco, no entanto, o palpite de que a grande maioria dos pintores, escultores, escritores, compositores e cineastas deva preferir, inquestionavelmente, a segunda opção.

Fazendo, ainda, as vezes de advogado do diabo, caberia perguntar se a profusão de textos secundários disponíveis em teses e periódicos sobre o discurso artístico não contribuiriam de forma decisiva para o entendimento e, quando fosse o caso, realização (como na música), do mesmo. Não tenho resposta. Por isto mesmo, quero conhecer o contraditório – a saber, o valor de textos analíticos secundários para uma melhor realização e/ou compreensão de discursos artísticos.

* * *

P.S.: comecei a ler, meses atrás, o grande livro de Michael Benson sobre 2001: Uma Odisséia no Espaço. Ainda que nem todo filme mereça um livro a seu respeito, com certeza qualquer obra de Kubrick justificaria o volume. Por isto, será interessante rever mais uma vez o épico espacial do cineasta após concluída a leitura (que interrompi para ler outras coisas mas, oportunamente, devo retomar) para saber de que modo a obra secundária afetou minha apreciação da primária.

Por que desisti de escrever uma tese

Seria um baita lugar-comum iniciar este texto com um alerta de textão. Não. Definitivamente, não. Qualquer coisa com mais do que três ou quatro parágrafos começa assim. Prefiro, em vez disto, começar com outro tipo de disclaimer. Informando os leitores de que já perdi a conta do número de vezes que tentei, sem êxito, ser aceito em programas de doutorado, em áreas que incluem a música, a educação musical e a informática na educação. As razões para minha frustração em tais tentativas já foram exaustivamente esmiuçadas, de sorte que não pretendo (relaxem, portanto) remoê-las neste post. Outrossim, esta ressalva tem por finalidade exclusiva deixar claro que, abaixo, tudo pode não passar, como muitos certamente pensarão, de um discurso de ressentimento. Por isto, ofereço a estes e aos leitores desavisados a oportunidade de abandonarem a leitura por aqui.

* * *

Você ainda está aí ? Então talvez eu deva começar dizendo que, até hoje, não sei se minhas malfadadas tentativas de frequentar mais um curso de pós-graduação (sim, pois, ao fim dos anos 80, sobrevivi a um curso de mestrado) em verdade me protegeram, ainda que contra minha vontade naquele momento , de embarcar no colossal exercício retórico que é redigir e defender uma tese. Sim, há teses criativas, que agregam muito a seus campos de conhecimento. Mas que, suponho, infelizmente sejam uma minoria. Pois, grosso modo, teses são, muito mais do que comunicações de descobertas relevantes, um rito de passagem na vida acadêmica que, mais do que qualquer coisa, exercitam ao máximo a capacidade de se manter, por vezes contra a própria vontade ou intuição, a concentração em uma temática única, quanto mais específica melhor, empreendendo leituras exaustivas e redundantes, ao bel prazer de orientadores, e redigindo um documento que, na maioria das vezes, repousará, encadernado e com lombadas impressas em dourado, nas prateleiras das bibliotecas universitárias.

Vale lembrar uma matéria que saiu no New York Times, por volta de quando eu cursava meu mestrado, na qual a bibliotecária-chefe de Harvard conclamava a comunidade acadêmica a escrever menos (sic !). Outra: um amigo, professor do Instituto de Letras da UFRGS, declarou, em tom jocoso, que, consultando a ficha de empréstimo de sua tese na biblioteca da faculdade em que lecionava, constatou se tratar de um best-seller, já que, em muitos anos, QUATRO (!) pessoas haviam tomado o volume emprestado.

Outro caso que me impressionou foi o de um colega que, ao submeter a um comitê de pós-graduação um mui relevante projeto de tese no qual procurava relacionar as características acústicas de um espaço de prática instrumental ao progresso de quem nele estudava (uma ideia original), foi dissuadido, com base na alegação de que o corpo docente não estaria apto a orientar tal tipo de estudo. Ao mesmo tempo, foi persuadido a criar  um método para o ensino de seu instrumento baseado na utilização de cantigas infantis. Ou seja, um tremendo lugar-comum, como, provavelmente, muitos métodos já existentes. E assim, um pesquisador promissor foi induzido a uma relativa mediocridade em nome de um suposto nivelamento. Histórias como estas devem ser bem comuns. Tem a ver com uma espécie de fidelidade devida às linhas de pesquisa ostentadas por orientadores. É claro que este tipo de sacrifício é amplamente compensado por prestígio e vantagens financeiras na carreira acadêmica.

* * *

Faz tempo que quero examinar com mais atenção as fragilidades do discurso acadêmico. Este post é, então, provavelmente, o primeiro de uma série que pretende dialogar com acadêmicos que pensem o contrário.

Falo da insaciável matriz de publicações dedicadas a legitimar o enorme volume de produção textual da academia. De imediato, salta aos olhos de qualquer observador o mito da primazia de enunciação. Significa que, aos olhos da academia, a autoria de uma ideia pertence ao primeiro a enunciá-la. Ora, nada é capaz de garantir (ao menos antes da implementação da web semântica) que alguma coisa dita num documento já não tenha sido dita alhures. Ainda assim, toda a hierarquia acadêmica está alicerçada sobre um conjunto de enunciações presumivelmente originais. Sobre textos, tidos como basais, se engendra, então, uma complexa malha de citações, na qual discípulos pagam tributo a seus mentores. Citações por terceiros se transformam em capital intelectual, rendendo pontuação aos autores dos textos citados no formidável ranking conhecido por currículo LATTES. Exagero ? Experimentem não citar, em suas teses, seus orientadores.

Anos atrás, foi amplamente noticiado o escândalo das citações cruzadas (eu te cito; tu me citas), descoberto internacionalmente e responsável pela cassação dos índices qualitativos de vários periódicos científicos brasileiros. Nem vale a pena falar, aqui, de artigos aceitos para publicação que foram escritos por geradores automáticos de texto.

* * *

A especialização galopante hoje observável em toda área acadêmica se opõe diametralmente ao ideal (renascentista ?) do homem universal, i.e., do ser crítico e curioso, obcecado por uma ampla gama de interesses, mais comumente personificado na figura de Leonardo da Vinci. De modo que não é nenhum exagero dizer que não haveria lugar para o mesmo na universidade de hoje. Ao menos, é claro, que abdicasse, em nome do aprofundamento necessário à especialização, de todas exceto uma de suas áreas de interesse. De tal modo que o artista não mais poderia ser o inventor ou o cientista, e vice-e-versa.

* * *

Um pouco acima, me referi à anedota de uma tese lida (ou consultada) por apenas quatro pessoas poder ser considerada um best-seller. Não exagero. Pois quem, além de autores, orientadores e bancas de defesa, efetivamente lê cada palavra escrita numa tese ? Na verdade, só as leem por força do ofício os que são pagos para tanto. De resto, quem mais já empreendeu, espontaneamente, a leitura de alguma tese ? Podem rir, mas já tentei. Não passando, no entanto, das primeiras páginas. Pois teses não são, de modo algum, reader friendly. Sim, sei que não se destinam a isto. Acompanhem, mesmo assim, um pouco mais o argumento.

A pouca popularidade das teses como objetos de leitura tem a ver, fundamentalmente, com o tipo de texto que nelas mais comumente encontramos. No entanto, para falar disto devemos, antes, formular uma variável, mensurável em qualquer tipo de texto, que poderia ser definida como sua densidade lógica.

Contrariamente às teses, textos tais como livros, matérias de jornais ou revistas e posts em blogs precisam ser convidativos à leitura por si só. Qualquer autor sabe disto, se esforçando para suprir seus escritos com elementos atrativos para que a leitura não seja abandonada por aqueles que a ela se aventurem. Com isto, é possível ao analista quantificar ideias ou silogismos encadeados presentes em tudo o que se lê. É a esta quantificação de conteúdo que chamamos densidade lógica. Talvez não seja possível atribuir, de forma unívoca, um coeficiente que dê conta da densidade lógica de qualquer coisa que é escrita. Mas, dado um par de textos para comparação, não restará qualquer dúvida, para leitores experientes, sobre qual deles será o mais logicamente denso.

Assim, é a densidade lógica que torna os posts de um blog mais interessantes do que os de outro, o mesmo valendo também para textos impressos de qualquer espécie. A densidade lógica independe do meio. De modo que, tanto em meios virtuais como impressos, haverá textos mais rasos e mais densos. As teses não fogem a isto. Só que, dado o protocolo do texto acadêmico, que implica tanto numa ampla revisão bibliográfica como na necessidade de expressão unívoca mesmo daquilo que é mais óbvio, a densidade lógica (i.e., a quantidade de ideias ou argumentos numa dada extensão de texto) costuma ser tremendamente mais baixa em teses e artigos acadêmicos do que em publicações que precisam conquistar seus leitores.

* * *

Pronto, falei. Espero, com isto, não ter ofendido os muitos amigos que tenho que se dedicam honestamente à vida acadêmica. E antes que eles comecem a debandar de meu círculo de relações, me apresso em reconhecer o brilhantismo e a originalidade de algo que porventura tenham escrito. Este post é, como quase tudo que escrevo, um convite à contestação. Que deve se dar, idealmente, por meio de menções às honrosas exceções do universo acima descrito – a saber, teses que tenham se tornado fundamentais a seus campos de conhecimento, as quais, insisto, estão longe de ser a maioria.

* * *

Ainda que as ideias acima martelem em minha mente já há alguns anos, o fato de eu ter finalmente começado a abordá-las pode ter a ver com eu me encontrar em meio à leitura de um livro do qual certamente voltarei a falar, a saber, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, de Maggie Berg e Barbara K. Seeber (University of Toronto Press, 2016), que me foi recomendado pelo Éder Silveira.

The Slow Professor 1

* * *

P.S.: Nunca antes algo permaneceu tanto tempo latente como rascunho antes de ser publicado neste blog como o texto acima, pelo simples temor de que não fosse bem recebido por grandes amigos. Se, finalmente, decidi publicá-lo, foi principalmente por duas razões, a saber

pelo Milton ter me assegurado que eu não falava de pessoas, mas de um sistema;

e por descobrir, com alegria e também graças ao Milton, que estou longe de ser o único a me preocupar com a questão. Vejam, prá começo de conversa, o que é dito aqui. Sinto que encontrei minha turma. Aguardo reações fortes. Prometo tornar ao assunto. Que a peleia seja proveitosa !