O Intelectual – o poder positivo do pensamento negativo (2005), de Steve Fuller; ou Confissões de um leitor incompetente

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

Steve Fuller, em O Intelectual

Estamos aqui claramente diante de mais uma não resenha – ou, se preferirem, anti-resenha. Explico. Dentre os livros que nos caem nas mãos, há uma categoria que reúne todos aqueles que se afiguram como demasiado complexos para nossa compreensão. Como, por exemplo, Austeridade – A História de uma Ideia Perigosa (2013), de Mark Blyth, cujo argumento fascinante não foi, todavia, suficiente para que eu, abatido pela flagrante insuficiência de conhecimento econômico, persistisse em sua leitura.

O Intelectual (2005), do filósofo Steve Fuller, claramente pertence a este grupo de obras que desafiam nossa compreensão, desta vez por uma virtuosa combinação de pressupostos filosóficos (vai dos gregos aos dias de hoje) com uma linguagem compacta, com altos índices de síntese e densidade lógica. Só que, desta vez, não me deixei intimidar pela incompreensão inicial de muitas passagens (a bem dizer, a maioria delas), chegando diligentemente ao final tão somente para reiniciar imediatamente a leitura, desta vez mais pausada e sublinhando muita coisa importante que, na pressa da primeira leitura, acabara deixando para trás.

Grandes obras são assim, abertas, revelando novas nuances a cada releitura, principalmente de acordo com o amadurecimento do leitor. Não envelhecem com o passar das décadas mas, ao contrário, se resignificam e, com isto, enriquecem. Querem um exemplo ? 2001, de Kubrick, que vi pela primeira vez na adolescência, quando foi lançado, e que até hoje me fascina e intriga.

* * *

Devo confessar, inicialmente, que o que me atraiu em O Intelectual foi seu singular subtítulo, “o poder positivo do pensamento negativo”, que de imediato me soou como a antítese de uma manual de autoajuda. Espécie de Paulo Coelho (de quem só conheço a reputação, pois nunca li) às avessas ou, no mínimo, um elogio à rabujice. Caí na cilada. Isto por que tal locução – provavelmente a interferência de algum editor na tentativa de conferir glamour a uma obra outrossim hermética, destinada a especialistas – sequer pertence ao título original. É bem verdade que o título poderia ser, como é comum em textos filosóficos, O Elogio do Intelectual –  mas devemos reconhecer que, neste caso, seria bem menos apelativo. Façamos, pois, esta pequena concessão ao marketing.

Sou assim. Me encanto facilmente com promessas, por vezes elusivas, contidas em nomes de livros. Às vezes me dou bem, cavocando tesouros como Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber, ou The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, de Berg & Seeber. Noutras, nem tanto, como no supracitado Austeridade. No presente caso, deve ser dito, em favor do criativo e atraente subtítulo aposto à edição brasileira de O Intelectual, que a expressão, mais do que uma nota de orelha rabiscada às pressas, ao menos denota a impressão de que só pode ter sido imaginado após uma leitura extensiva e dedicada dos argumentos de Fuller.

* * *

A primeira coisa que o autor declara, na introdução, é que “O Intectual segue de certa forma a estrutura de O Príncipe, de Maquiavel, o famoso livro de conselhos do século 16 sobre a arte de governar”. De fato, o tom aforístico (“o príncipe/intelectual deve…”) é o mesmo. Mas termina aí qualquer semelhança. Pois, enquanto o livro de Maquiavel, em que pese a ácida perspicácia do autor, tem uma linguagem direta e unívoca, capaz de ser entendida por qualquer escolar (sem dúvida um atributo invejável em textos de teor filosófico),  já O Intelectual, não. Nele, frases longas, com argumentos complexos ricamente detalhados, são uma constante – de tal modo que é praticamente impossível alcançar uma compreensão mínima do que recém foi lido sem retroceder frequentemente ao início de cada frase ou parágrafo. Não se deixem, portanto, enganar pela aparência: se trata de um livro curto (ca. 150 páginas), mas de leitura demorada.

Provavelmente o melhor modo de transmitir uma visão global d’O Intelectual seja através de seu sumário. Não riam – pois, porquanto a frase anterior possa parecer francamente tautológica, índices são amiúde elusivos. Tal não é o caso, no entanto, n’O Intelectual, onde cada tópico representa da forma mais clara possível o que encontraremos em cada seção. Ao sumário, então.

O livro é dividido em 3 partes de aproximadamente 50 páginas cada uma. Na primeira, são apresentadas quatro teses sobre intelectuais, a saber, (1) que intelectuais nasceram de pé atrás; (2) que  intelectuais sofrem de ligeira paranoia; (3) que intelectuais carecem de uma plano de negócios e (4) que intelectuais procuram a verdade total. A segunda consiste num longo diálogo entre o intelectual e o filósofo. Na terceira, são respondidas perguntas usuais sobre intelectuais como, por exemplo, “Como o intelectual adquire credibilidade ?”, “O que leva o intelectual a escolher uma causa para defender ?” ou “Por que os intelectuais parecem prosperar no conflito ?”. Esta parte inclui, também, uma tipologia dos intelectuais e seções francamente aforísticas sobre “Como intelectuais devem se relacionar [respectivamente] com políticos, acadêmicos, cientistas e filósofos”. É nestas últimas que Fuller melhor estabelece, em contraste com as supracitadas categorias de pensadores (aqui entendidos não no sentido restrito de filósofos mas mais abertamente, como homens de ideias), uma definição por aproximação do que vem a ser, afinal, um intelectual.

* * *

Como já disse, a leitura de O Intelectual pressupõe o conhecimento prévio, ou pelo menos uma visão abrangente, da história da filosofia, de Sócrates e Platão às escolas contemporâneas, passando pela Idade Média, pelo Iluminismo e pelos idealistas alemães, até chegar à ruptura do bloco socialista, ao neoliberalismo e ao terrorismo – conceitos e categorias aos quais Fuller, em sua linguagem compacta, se refere constantemente sem, no entanto, explicar a não ser por definições ultra sintéticas, de difícil compreensão para não portadores, como eu, de uma formação filosófica ampla e detalhada.  Reflexões sobre o espírito da ciência de cada época também são uma constante no texto.

Dentre as passagens mais significativas com que me deparei na primeira parte, destaco:

o esforço de reabilitação dos sofistas, opositores clássicos de Sócrates, cuja dimensão podemos depreender de passagens como

“O sinal mais evidente de que os juízos históricos dificilmente voltam atrás é o destino de grupos específicos que dão nome a vícios e deficiências da humanidade em geral: “hunos” e “vândalos”, “anarquistas” e “fascistas” são alguns deles. Para o intelectual, o mais relevante grupo dessa categoria é constituído pelos “sofistas”, os grandes reivindicadores da razão nos tempos da antiga Atenas.”

ou

“[…] reabilitar os sofistas atualmente está fadado a se tornar uma luta inglória.”

Não obstante, é precisamente o que Fuller faz ao longo de mais de dez páginas, que incluem pérolas como

“No mundo de hoje, os sofistas estariam à vontade em seminários de treinamento de gerência de negócios e escrevendo livros de autoajuda. Um Sócrates moderno teria rotulado tais indivíduos como “gurus” e reclamado por suas obras estarem pressionando por mais espaço nos currículos universitários e nas seções de “filosofia” das livrarias.”

Ainda na linha das reabilitações, o autor dedica especial atenção às teorias conspiratórias, as quais chega mesmo a considerar – em especial na tese de que os intelectuais sofrem de ligeira paranoia – como ferramentas essenciais a seu trabalho.

Além da paranoia estrutural, inerente a todo intelectual, Fuller também discute, na primeira parte, questões como

o ceticismo, em

“Enquanto a razão for exercida de forma desigual pela humanidade, o intelectual se oporá a tudo em que acredita a maioria das pessoas, provavelmente sob o jugo de um poder dominante.”

a responsabilidade negativa (i.e., a responsabilidade por aquilo que não se fez, mas que deveria ter sido feito), emblemática do julgamento do nazista Adolf Eichmann;

a obsolescência planejada de Henry Ford a Bill Gates, Steve Jobs e o mercado editorial;

o direito autoral;

a distinção semântica entre “toda a verdade” (posição mais liberal, assumida por intelectuais, que admite a dúvida e, consequentemente, a possibilidade de erro) e “só a verdade” (posição mais conservadora, equivalente a “nada além da verdade”, que exclui qualquer dúvida) arraigada à história do pensamento ocidental e, principalmente, à cultura jurídica;

a imaginação enquanto instrumento de revelação da verdade e

o mito da infalibilidade científica.

No extenso diálogo em que o intelectual é sabatinado pelo filósofo, o primeiro, entre outras coisas,

explica por que

“[…] o único meio confiável para se chegar à verdade é a crítica”;

categoriza os filósofos contemporâneos como “continentais” (franceses e alemães), que reciclam o pensamento de mestres do passado, e “analíticos”, que se expressam primordialmente em língua inglesa;

justifica sua restrição ao “texto difícil”;

manifesta sua preferência incondicional pela abrangência em relação à profundidade em passagens como

“Um intelectual genuíno suspeita da ideia de que exista somente um caminho ou pelo menos um número limitado de rotas para uma verdade supostamente de importância universal.”

e

“Qualquer coisa que valha a pena ser dita pode ser dita em outras palavras.”

Além disso, fala da universidade, das ciências sociais e da redundância inerente à pesquisa científica (fenômeno identificado e batizado como “conhecimento público não descoberto” por Don Swanson, bibliotecário da Universidade de Chicago, que demonstrou que

“[…] o problema principal da pesquisa médica pode ser localizado, ou até mesmo resolvido, através de uma leitura sistemática da literatura científica. Entregue a si mesma, a pesquisa científica tende a se tornar cada vez mais especializada e abstraída dos problemas do mundo real que a motivaram e para os quais continua a ter importância. Isso sugere que tal questão pode ser resolvida efetivamente não contratando ainda mais pesquisas, mas assumindo que parte ou toda a solução já se encontra em várias publicações científicas, à espera de alguém querendo ler através das diferentes especialidades.”

Este ponto me é especialmente caro, já tendo me debruçado sobre o mesmo, ainda  que indiretamente, aqui (no sexto parágrafo) e aqui.

A terceira parte é aquela cuja leitura flui melhor. É nas quatro seções dedicadas ao modo como o intelectual deve se relacionar com, respectivamente, políticos, acadêmicos, filósofos e cientistas que Fuller melhor descreve o ressentimento mútuo nutrido entre intelectuais e cada uma das categorias de pensadores acima, em relação às quais chega a ser, por vezes, particularmente sarcástico. Como, por exemplo, em

“[…] os políticos se vêm tentados a descartar ou a adiar decisões de modo a permitir-lhes escapar a potenciais colapsos.”;

“[acadêmicos e intelectuais] se vêm com mútua suspeita. Cada um trata o outro como um atravessador que inunda o mercado com produtos inferiores. [Os acadêmicos] consideram intelectuais impressionistas em suas observações, tendenciosos em seus julgamentos, descuidados em suas pesquisas e parasitas do trabalho dos outros – esses outros, naturalmente, outros acadêmicos. […] Os acadêmicos parecem preocupados com pelo menos três coisas: receber o crédito devido a seu trabalho, proteger seu trabalho contra desvalorização e, mais sutilmente, justificar a própria necessidade do trabalho. Esta última preocupação admite a possibilidade de que intelectuais possam reduzir argumentos acadêmicos complexos a pontos-chave e criar um contexto que lhes atribui uma significância capaz de atrair uma audiência bem maior do que a que os acadêmicos conseguem reunir.”;

“Os textos acadêmicos são muito mais interessantes graças às notas de rodapé do que pelo argumento principal – isto é, mais pelo que consomem do que pelo que produzem.”;

“Os cientistas são os adversários mais falaciosos a ser enfrentados em público. […] são tidos como especialistas nas áreas que pretendem dominar e mesmo em outras mais. Todas estas características, que depõem a favor da credibilidade “prima facie” dos cientistas, colocam o intelectual em verdadeira desvantagem.”;

“De modo geral, os filósofos asseguram sua autoridade intelectual transformando cada disputa substantiva em outra logicamente anterior sobre o significado de alguma palavra-chave avaliativa, tal como ‘verdadeiro’ ou ‘bom’.”

Para o leitor, fica claro que o intelectual, um irremediável intruso em qualquer destes grupos, não nutre, todavia, qualquer ressentimento por sua exclusão. Entende sua crítica independente como necessária ao aperfeiçoamento social e não se importa em ser amiúde e francamente atacado. Isto fica perfeitamente claro em

“[…] os intelectuais são inerentemente autodestrutíveis: ajudam a criar a competição contra eles mesmos, quando advogam educação em massa, leitura de jornais e debate público. Num determinado sentido, encorajam outros a seguirem seus atos, não suas palavras: melhor criticarem o que digo do que repetirem o que digo sem crítica. Talvez isto explique por que os intelectuais se distinguem dos acadêmicos, dos empresários e dos políticos. Eles não se importam quando lhes apontam um erro, desde que lhes reconheçam o direito de errar no presente e no futuro. Essa é a melhor forma de entender a máxima muitas vezes atribuída cinicamente aos intelectuais: ‘Não há nada pior do que a publicidade; porém, ser ignorado é o mesmo que a morte.'”

Mais sobre a hostilidade frequentemente dirigida a intelectuais:

“A crítica raramente é bem recebida, principalmente se vier de intelectuais. Eles procuram atingir não simples ideias ou proposições, mas blocos inteiros de pensamento, que, no calor da discussão, são confundidos com seus defensores. Por isso, a crítica de um intelectual é muitas vezes vista como um ataque pessoal. Como revanche, eles se tornam os mensageiros que são mortos por conta de suas mensagens. Você não é formalmente repudiado – é apenas “reapropriado”. Na verdade, você fica sabendo que é um intelectual quando é denunciado em discursos ou plagiado nos escritos.”

* * *

Se fosse para apontar uma única deficiência em O Intelectual, ao menos em sua edição brasileira (Relume, 2006), seria esta, indiscutivelmente, a falta de um índice onomástico. Se trata, muito mais do que uma falha autoral, de uma de seus editores. Pois, numa obra em cuja leitura, conquanto breve, desfilam diante de nossos olhos centenas de nomes, desde aqueles pivotais na história do pensamento, como Platão, Galileu, Voltaire, Newton e afins (que comparecem repetidamente no texto, ainda que de modo não cronológico) até autores “colaterais” (como, por exemplo, Christopher Hitchens, o célebre desmistificador de Madre Teresa de Calcutá, que aparece uma única vez), uma indexação que permita uma referência rápida a qualquer um deles se faz mais do que necessária. Sorte que, habituado a esta má prática editorial, costumo, já na primeira leitura, sublinhar e anotar furiosamente nas margens quaisquer referências importantes que possa vir a querer recuperar rapidamente depois.

* * *

O livro termina brilhantemente com a seguinte frase, impressa em itálicos, que serve de epígrafe a este post mas que repetimos em nome da ênfase:

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

* * *

 

 

Por que a farinata de Doria é tão ultrajante

De todas as iniciativas filantrópicas aventadas nos últimos tempos, não me lembro de nenhuma que tenha ensejado tantas reações de repúdio e indignação quanto a farinata – composto reciclado de resíduos alimentares destinado à distribuição, pelo prefeito João Doria de São Paulo, a seus habitantes em condição de miséria.

A um primeiro olhar, o gesto se afigura como uma afronta principalmente pela institucionalização da prática de dar aos mais pobres, como caridade, o que sobra aos mais ricos. Mas será que a repulsa à iniciativa é só de índole política, a saber, pelo reconhecimento e perpetuação da ideia, por meio de seu endosso pelo estado, de um modelo de sociedade composta, em suas extremidades, por vencedores (os que compram em supermercados e frequentam restaurantes) e perdedores (os que catam restos de alimentos jogados no lixo) ?

Ora, a caridade burguesa sempre foi exercida como redistribuição daquilo que já não serve mais às classes dominantes. Desde roupas que saíram de moda até equipamentos tecnológicos que se tornaram obsoletos, tudo que já não serve aos incluídos é repassado, tanto por indivíduos como por governos (por meio de campanhas de agasalho ou recolhimento de sucata informática), a quem não se encontra em posição de comprar aquilo de que precisa. O próprio lixo reciclável de vidros, papéis e garrafas pet entra nessa conta, que oportunamente traveste a responsabilidade pelo meio ambiente em projetos de geração de renda.

Por que, então, o reaproveitamento de resíduos alimentares proposto pelo prefeito de São Paulo desencadeou tanta contrariedade ? Claro está que o buraco deve ser um pouco mais embaixo. O clamor generalizado contra a farinata serve, entre outras coisas, para nos darmos conta de que o ser humano, independentemente de sua situação econômica, preza enormemente sua capacidade de sempre saber (ou pretender saber) o que ingere como alimento.

Se ninguém informasse que a farinata é composta de resíduos, a mesma seria consumida sem maiores restrições. Pois a coisa tem o aspecto de flocos de cereais – pelos quais os mais abastados pagam, aliás, um valor super inflacionado, supostamente por sua praticidade e alto valor nutricional, com a inestimável ajuda da publicidade. Só que, ao contrário dos produtos comercializados a peso de ouro por Kellog’s, Nestlé e afins, a farinata não vem numa embalagem com sua composição de nutrientes, rigorosamente padronizada,  estampada na embalagem. O que, por si só, gera desconfiança. Ou seja: quem a consumir jamais terá meios de saber o que está ingerindo, já que sua composição é variável, de acordo com a oferta de resíduos aportados a seu processo de fabricação.

Em situações extremas, pessoas com restrições alimentares a glúten, lactose, glicose ou coisa que o valha estariam impedidas de consumir a gororoba de Doria. Tampouco é possível vislumbrar vegetarianos aderindo à farinata. Mas estou só tergiversando. Afinal, vegetarianismo e dietas controladas são para quem pode; não para quem quer. Assim pensam políticos demagogos.

* * *

Sei que este ponto de vista – i.e., o de que é inerente à dignidade humana poder discriminar todo alimento ingerido – é um tanto controverso. Em sua defesa, vale citar que são raros os casos em que indivíduos abrem mão da prerrogativa de selecionar, ainda que minimamente, aquilo que comem. Isto acontece, por exemplo, em presídios ou na luta pela sobrevivência após naufrágios e outros desastres com resgate demorado – nas quais há relatos, inclusive, de canibalismo.

Então, proponho, ainda em favor da premissa da necessária discriminação alimentar, uma hipótese alternativa, a título de demonstração por redução ao absurdo. Suponham que, ao invés da farinata reciclada de resíduos indiscerníveis, a prefeitura de São Paulo montasse uma rede para distribuir a seus habitantes mais pobres marmitas com alimentos que restaram em buffets, preparados por cheffs sob a supervisão de nutricionistas, com a identidade e o sabor de seus ingredientes preservados. Quero acreditar que tais quentinhas passariam longe de sofrer a mesma rejeição que a famigerada farinata. É fácil, também, supor que os custos (inclusive de energia) de uma rede assim de reencaminhamento de excedentes alimentares (descentralizada, envolvendo praticamente só embalagens) ficariam muito aquém daqueles de recolhimento, processamento e distribuição de resíduos em forma de farinata.

Não sou ingênuo, no entanto, ao ponto de supor que qualquer de nossos governantes idealizasse ou promovesse uma política social assim. Até por que jamais conseguiriam explicar a seus patrões do andar de cima por que raios os inúteis e incompetentes do de baixo deveriam comer a mesma comida pela qual pagam valores tão altos. As quentinhas gourmet minariam, assim, um dos maiores pressupostos neoliberais, que é a presunção à meritocracia, mãe de toda desigualdade.

Então, a farinata, mais do que uma solução infeliz e canhestra para um problema que aflige as metrópoles, traz em sua concepção, também e principalmente, a missão de lembrar, sempre que for servida, a noção doentia de que, em última instância, cada um faz por merecer aquilo que lhe é servido à mesa.

* * *

As primeiras notícias que surgiram, semanas atrás, sobre a ração humana de Doria me trouxeram de pronto à memória o filme de ficção científica Soylent Green (no Brasil, No mundo de 2020), de 1973. Nele, uma superpopulação urbana disputava furiosamente uma ração, tal como a farinata, de distribuição governamental e composição obscura. Chamada soylent green, a coisa tinha o aspecto de um biscoito cracker verde. Ao fim da distopia, se descobre que soylent green era, na verdade, feito com restos mortais humanos reprocessados. 2020 é logo ali.

* * *

Para saber mais sobre a farinata, seus idealizadores e promotores, leia isto e veja isto.

 

Por que se evita tanto falar em democracia direta ?

Quem mais ouviu ontem, na Band News FM, o Ricardo Boechat defender a democracia direta, ainda que sem se referir a ela pelo nome ? Pois, ao pleitear que, a exemplo do que já é feito em alguns países, as cédulas eleitorais permitam aos cidadãos, além de escolher representantes, deliberar sobre decisões a serem tomadas em relação a matérias importantes, se referiu inequivocamente àquilo em que se constitui, em essência e em última análise, uma democracia direta – a saber, a voz do eleitor se fazendo valer em todas as matérias de interesse público. Isto é o contrário do que temos hoje, com representantes eleitos a quem outorgamos o direito e o poder de decidir em nosso nome.

No mesmo editorial, o âncora da Band caçoou da única e improvável possibilidade que a população tem hoje de fazer sua vontade adquirir força de lei. Pois, mesmo que alguma causa consiga angariar os milhões de assinaturas requeridas para o encaminhamento de uma emenda popular à constituição, a mesma ainda dependerá, para sua implementação, do endosso de casas legislativas numericamente muito inferiores aos signatários de cada emenda proposta – a vontade de milhões ficando, portanto, sujeita à aprovação de umas poucas centenas.

Esta questão deveria estar, portanto,  juntamente com outras tais como o fim do foro privilegiado e das aposentadorias especiais, rituais mais sumários para cassação de mandatos e criminalização de políticos corruptos ou flagrados em estelionato eleitoral (o não cumprimento do que foi prometido), redução dos salários de políticos, enxugamento de custos legislativos e tantas outras, no âmago de qualquer reforma política. Mas não. Em vez disto, políticos eleitos tentam incutir em eleitores perplexos a impressão de que estão de fato fazendo alguma coisa simplesmente tergiversando sobre a composição de distritos eleitorais. Sob esta cortina de fumaça, tratam de amealhar para suas próximas campanhas eleitorais mais um bocado colossal do orçamento nacional. Tenho, então, que concordar com Boechat quando diz que a reforma política, tal como vem sendo encaminhada, será totalmente inócua, a não ser pela concessão de mais vantagens aos políticos e aos partidos.

* * *

Nomes importam. Muitos ainda se incomodam com a designação de “golpe” à articulação que afastou Dilma do poder por delitos bem menores do que malfeitorias perpetradas pela quadrilha hoje instalada. Pois o que são, afinal, pedaladas fiscais perto da abolição de direitos e flexibilização dos contratos trabalhistas ? Sem falar em propinas milionárias e na compra de votos de parlamentares.  Querem nos fazer acreditar, no entanto, que nos livraremos de tudo isto simplesmente com a “reforma política” que aí está. Ao mesmo tempo, se evita a qualquer custo a popularização da noção de “democracia direta” tão somente por que ela rende óbvia a obsolescência dos representantes eleitos tais como hoje os conhecemos. Esta é uma verdade inconveniente (para os políticos profissionais) protegida a sete chaves.

Daí a necessidade de uma assembleia constituinte soberana e exclusiva (i.e., sem a participação dos atuais congressistas) para a redação, após ampla discussão (que tarefa para os tribunais eleitorais !), de uma nova carta magna da qual sejam expurgadas as mazelas da representação.

Não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que isto venha a acontecer num futuro próximo nem tampouco sem alguma comoção popular, pois a blindagem contra esta ideia é fortemente sustentada pelo congresso e pela mídia, ambos controlados pelo poder econômico. Mas sonhos só possuem alguma chance de se tornar realidade se falarmos sobre eles.

De como Lula abdicou de qualquer pretensão eleitoral para 2018

Ontem acirrei ânimos em meu perfil no facebook ao mencionar, de raspão, a absurda necessidade que certos petistas de carteirinha têm de blindar o Lula. Como se, para ser convincente, só ter carisma bastasse – como se ele fosse, sei lá, uma espécie de Fidel. Deve haver quem pense assim, ou sua figura de proa já teria sido há muito abandonada pelo PT.

Lula deve ter recebido enfáticas recomendações para que, ao teimar em se defender perante a nação de acusações vazias recebidas na véspera, não falasse de improviso em hipótese alguma. Inutilmente, no entanto. Pois improvisou. Foi quando proferiu o monumental disparate de comparar, favoravelmente aos primeiros, políticos com funcionários públicos concursados.

Ou seja, de um lado,

oportunistas que obtém mandatos mediante publicidade e recebem até 14 polpudos salários anuais para prestarem expedientes reduzidíssimos, se aposentando com o teto dos vencimentos depois de apenas 8 anos de trabalho em ambientes confortáveis e privilegiados;

e, de outro,

profissionais capacitados que tiveram sua proficiência averiguada em certames isonômicos para trabalharem jornadas extensas em condições frequentemente adversas e receberem aposentadorias proporcionais só depois de 30 ou 35 anos.

Abaixo, a polêmica fala.

Não preciso dizer que estas poucas palavras, que nenhum marqueteiro ou assessor aprovaria (daí minha insistência para que, no horário de propaganda eleitoral gratuita, fossem transmitidos obrigatoriamente, em vez das ridículas peças publicitárias com que somos bombardeados, reality shows com os candidatos) – ganharam imediatamente toda a mídia e as redes sociais. Ainda não tivemos tempo de conhecer os melhores memes. Com elas, Lula conseguiu, por puro erro de avaliação, irritar profundamente tanto seus adversários políticos (representados como categoria em sua fala ultrajante) quanto sua imensa base de apoio – constituída, vale lembrar, por uma enorme quantidade de funcionários públicos.

Então, se Lula tinha qualquer pretensão eleitoral para 2018, dela abdicou ontem à noite, diante de uma nação divertida (adversários e detratores) e estupefata (aliados e simpatizantes). O que me restou disto tudo foi a profunda convicção de que, embora não possa provar, quem ainda ficou a seu lado o faz por razões estritamente econômicas ou, no máximo, ingenuidade. Pois todo ser humano merece o benefício da dúvida. Até o Lula.

* * *

PS: Nesta pesquisa, vídeos mais extensos situando a fala desastrosa num contexto maior.