Vinil

Há hoje um certo glamour em torno do disco de vinil. Vamos aqui especular sobre possíveis origens do fenômeno. Fatos e mitos. A inexorável marcha dos meios comerciais de distribuição de gravações sonoras. Eis algo bom para se começar, organizando um pouco o campo no qual o vinil se insere.

Desde a invenção do som gravado, já tivemos cilindros sulcados, que logo se converteram em discos (mais facilmente industrializáveis, porque passíveis de serem “impressos”), em seus diferentes diâmetros e rotações de reprodução, até o advento do CD que, por sua vez, deu lugar ao streamming. Tudo isto em pouco mais de 100 anos, apenas. Tempo suficiente, no entanto, para influenciar o padrão de duração da música comercial até como a conhecemos hoje. Da seguinte maneira.

O disco compacto, lançado pela RCA em 1949, com 7 polegadas de diâmetro e reproduzido a 45 rotações por minuto, podia conter no máximo 4 minutos de música em cada face. Com o disco compacto rapidamente se tornando o formato hegemônico para o lançamento de hits (músicas mais promovidas pelos meios de comunicação, que por isto mesmo se tornam as mais populares), ocorre que os 4 minutos acabaram se tornando uma espécie de limite superior para a duração de qualquer coisa que se grave almejando ao sucesso comercial imediato. Vale ressaltar que um LP (disco de 30 centímetros de diâmetro) contém obrigatoriamente um hit (e via de regra não mais do que isto), sendo o restante de seu “espaço” reservado a manifestações mais “autorais”. De tal modo que podemos, grosseiramente, afirmar que, enquanto o hit pertence ao produtor, o resto de um LP é território por excelência de seu titular – o qual, ironicamente, costuma ser preenchido por composições que não ultrapassam o limite dos 4 minutos, mesmo sem jamais serem comercializadas em discos compactos.

É claro que esta padronização exacerbada se aplica somente àquela música mais imediatamente consumível, reconhecida pelo rótulo de canção popular, não tendo qualquer validade para gêneros como o jazz, a música eletrônica, algum rock progressivo e discursos musicais mais experimentais. E a música chamada “erudita”, é claro. Em tais gêneros, não é nada raro ouvirmos peças que começam num lado de um LP e terminam no outro, com um par fade in/fade out ao fim do lado A e no início do lado B a sinalizar a continuidade.

Notem que tal critério duracional repercute ainda sobre formatos que nada tem a ver como o disco compacto, sepultado há décadas – como, por exemplo, os abomináveis reality shows musicais televisivos, que tentam resgatar os velhos festivais e shows de calouros com auditórios, tais com The Voice ou The Masked Singer. Se em The Voice cada música é abreviada pelo corte de repetições presentes nas gravações originais, já The Masked Singer apresenta as canções inteiras. Num ou noutro, a padronização do tempo alocado a cada candidato visa não apenas garantir uma certa isonomia de oportunidade aos mesmos mas, sobretudo, regular a quantidade de “conteúdo” oferecida aos espectadores entre um intervalo comercial e o próximo. Pois a proporção propaganda/conteúdo, maximizada ao limite da suportabilidade, é o principal fator a determinar grades de programação na mídia comercial.

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Quando uma nova mídia, quase sempre apregoada como revolucionária, desbanca uma anterior, hegemônica, se travam verdadeiras guerras por fatias de mercado, com argumentos abundantes contra ou em prol de uma mídia ou de outra. Quando surgiu o CD, se dizia que soava melhor e durava mais do que um LP. Prefiro deixar a discussão quanto à qualidade do som para os especialistas, até por que tanto CDs como LPs podem conter tipos distintos de gravações, a saber, analógicas ou digitais. Tal distinção, por si só, diz muito mais da qualidade do som de uma gravação do que, propriamente, o meio (CD ou LP) onde está codificada.

Na falta de maiores conhecimentos técnicos, me arrisco, todavia, a manifestar certa preferência pelo som de um disco de vinil. No caso de gravações analógicas, um CD não pode fazer nada para melhorar como uma mesma música soaria num LP. O mesmo não se dá com gravações digitais. Há, aqui, uma diferença fundamental. Enquanto no CD a música é codificada digitalmente, num LP a mesma gravação digital precisa ser convertida em analógica antes de ser “impressa” no disco. Então, a possível diferença é muito mais lógica do que sensorial (talvez a diferença seja pequena demais para ser ouvida), formulada da seguinte maneira: qual deve ser o melhor conversor digital-analógico: o contido nos circuitos de um tocador de CDs produzido em massa para consumo ou aquele utilizado numa planta industrial para converter os pulsos binários de uma gravação digital em uma onda analógica capaz de ser “impressa” em LPs ? A resposta definitiva, envolvendo bytes e bits, é, no entanto, de uma complexidade técnica fora do meu alcance, razão pela qual prefiro deixá-la a cargo de especialistas, passando, de pronto, ao próximo argumento, a saber, a durabilidade.

Quando surgiu o CD, se dizia que era eterno. Um argumento fácil, se levarmos em conta a facilidade com que um LP acumula arranhões e sujeira. Tudo bem. Mas só por um certo tempo. A imutabilidade do som do CD ao longo dos anos era bem convincente (uma noção falsa, já que, sabemos, o mais simples tocador de CDs é capaz de sintetizar pequenas porções de informação faltante na medida em que um CD é lido pelo feixe de laser). Isto até eu tentar ouvir, anos atrás, CDs da prestigiosa Deutsche Grammophon adquiridos no fim da década de 80 nos quais havia trechos de informação faltante longos demais para serem sintetizados pelo aparelho reprodutor. Foi quando, num exame visual da superfície do CD, constatei que a película metálica na qual é gravada a informação binária estava corrompida, com grandes manchas, visíveis a olho nu, denotando o ataque por fungos. Em contrapartida, ouço até hoje os LPs favoritos de minha juventude, comprados ca. 10 anos antes.

A maior diferença entre o CD e o LP não é, todavia, a qualidade sonora, possivelmente mensurável só em laboratórios, nem tampouco a durabilidade, que só pode ser percebida depois de muitas décadas, talvez mais do que o período de vigência de cada meio. Entendo que tenha a ver com a própria música que se gravava em cada um. Falo, aqui, de curadoria.

O ressurgimento do LP é revestido de um certo fetiche. Seu aspecto saudosista, que nos faz gostar de tecnologias e objetos antigos. Vintage virou sinônimo de glamoroso. Fotografia com filmes negativos em vez da digital. Cinema em vez de televisão. Rituais não são menos importantes. Assim como ir ao cinema (embora os modernos projetores reproduzam arquivos de HDs), é mais prazeroso (ainda que mais trabalhoso) do que ver televisão, com os discos se dá o mesmo. Descer suavemente a agulha sobre uma superfície giratória e virar o disco ao fim do lado A agrega à experiência da audição musical muito mais do que simplesmente apertar botões. Por que ? Não sei.

Sei, no entanto, que os caminhos percorridos por uma música até ser impressa num CD ou LP são totalmente distintos. Principalmente no que se refere à curadoria. Na era do LP, os meios de produção eram caros (estúdios com mesas de 24 ou mais canais e máquinas gravadoras de fita de 2 polegadas) e escassos (eram poucas as fábricas de discos), e eram franqueados pela indústria fonográfica a produtores todo poderosos que lhes apontavam com quais artistas e repertórios poderiam auferir maiores lucros. Se a década de 80 (quando o LP já minguava) foi dominada por produtores descobridores de talentos, anteriormente o acesso mais democrático aos selos importantes era regulado pelos festivais.

Foi, contudo, na era do CD que o acesso ao disco mais se democratizou. Com o surgimento do home studio, todo autor passou a poder, a custos bem mais acessíveis do que no período precedente, industrializar e divulgar seu próprio trabalho. Então, ainda que as fábricas de CDs não fossem, talvez, muito mais numerosas do que as de LPs, muito mais títulos foram fabricados pelas primeiras do que pelas últimas. Numa proporção astronômica, eu diria.

Nesta transição, um fator importante que não pose ser subestimado é a internet. Sem ela, uns poucos produtores, que representavam poucos selos fonográficos, tinham poder de vida ou morte sobre a música que era ou não industrializada e promovida, pois sua área de atuação também incluía o acesso, por meio de expedientes como o jabá, à programação de rádio e TV. Hoje, além de se auto-produzir, todo autor também se promove publicando sua obra em plataformas de streamming e a divulgando em redes sociais. Deste modo, não é nenhum exagero se afirmar que, hoje, uma aprovação maciça (likes) vale bem mais do que qualquer crítica publicada.

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Tendo feito, acima, uma apologia do disco de vinil, caímos na complexa experiência de comprar LPs hoje. Primeiro, por que o hype do formato contribuiu muito para o aumento de seu preço médio. Ao ponto de se cobrar por LPs novos (de 180 gr) algo como R$ 250, sejam lançamentos ou reedições. A situação dos usados não é mais alentadora, custando em média entre 50 e 100 reais. O problema dos usados merece um parágrafo autônomo.

Adotei recentemente a disciplina de garimpar LPs em feiras de usados, na crença de que, vez que outra, meus esforços seriam recompensados com a descoberta de algo excepcional. Ledo engano. Em todas as minhas incursões até agora (ainda não perdi de todo a esperança), só topei com discos dos quais as pessoas se desfizeram em reduções de coleções; elas invariavelmente guardam para si (assim como eu) seus melhores discos. Então, para você que, por qualquer motivo, gosta de discos de vinil, as notícias não são das melhores. Das duas uma: ou você tem que ter muito dinheiro ou se contentar com aquilo de bom que adquiriu num passado remoto.

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Para um mergulho mais profundo, repleto de informações valiosas, nos meandros da indústria fonográfica, vale a pena conhecer três obras: Como a música ficou grátis, de Stephen Witt; Os Donos da Voz, de Márcia Tosta Dias; e Maestros, obras-primas e Loucura, de Norman Lebrecht. Enquanto os títulos de Lebrecht (sobre o declínio da indústria da música clássica) e de Witt (sobre a pirataria) se encontram traduzidos para o português, o de Dias, sobre a indústria da música no Brasil, além de ser original em nosso idioma, é um daqueles raros casos em que uma tese de pós-graduação, de tão boa e pertinente, acabou se tornando um livro publicado.

Ode a meu amigo livreiro

Me tornei um leitor maduro. Explico. Até pouco tempo atrás, tinha lido quase todo meu “repertório” acumulado até pouco antes de completar 30 anos, quando me tornei, segundo aquele a quem dedico este post, “um leitor de catálogos e manuais” (não canso de repetir esta definição que adoro) e, ultimamente, nem isto. Bem, mais exatamente, até o Milton se tornar livreiro – fato decisivo, como veremos adiante, para modificar, espero que de modo duradouro, meu hábito de leitura. Antes, porém, breves considerações sobre trocas de carreiras.

É complicado, para aqueles que , como dizem, já cruzaram o Cabo de Boa Esperança (para não usar termos infelizes como Terceira ou Melhor Idade), redesenhar suas vidas. Primeiro, por já não se poder contar mais com a disposição da juventude. Ou, mais precisamente, é necessário se conciliar a disposição mental (que parece crescer com a experiência) com o declínio da disposição física. Depois, há circunstâncias peculiares a cada campo ocupacional, as quais se dividem em duas categorias – a saber, a confiança de terceiros na capacidade de trabalho e atualização de quem se aproxima da aposentadoria e a própria incerteza decorrente da instabilidade do cenário ocupacional (desgraçadamente conhecido por mercado de trabalho), típica dos dias que correm.

Tais fatos servem para realçar a juventude mental e a ousadia de meu amigo que, depois de, aos 50 anos, deixar uma bem sucedida carreira em tecnologia da informação (é assim que chamam ?) para virar jornalista e, novamente aos 60, largar tudo (bem, quase tudo: ele ainda publica assiduamente em seus blogs) para se tornar livreiro. Não canso de repetir sua história, quase como um mantra de autoajuda para aplacar a insegurança congelante dos mais jovens.

A principal razão de eu considerar seu movimento de virar livreiro um de extrema ousadia é que, mesmo tendo amado a literatura desde (deve haver uma expressão melhor equivalente a “a mais tenra idade”…), Milton comprou uma livraria exatamente quando muitas começam a fechar suas portas, a começar pelas maiores. Tal se deve à suposta “morte dos livros” ensejada pelas mídias digitais e preconizada pelos mais alarmistas. Ora, é claro que o livro não vai morrer, como sustentam sensacionalmente os filósofos do Parêntesis de Gutenberg. Não é possível, no entanto, se acreditar que a leitura de livros e impressos em geral seja hoje tão hegemônica como em tempos anteriores. Bem mais sensato é reconhecer que livros vem se tornando, pouco a pouco, um território de especialistas. É contra esta tendência que se posiciona o intenso ativismo bibliófilo. É também esta tendência que faz da decisão de alguém se tornar livreiro hoje uma de extrema ousadia, exclusiva dos que não nasceram para coisas pequenas.

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So much for the context. Tratemos de nos ater ao prometido no kaput, namely, de como a súbita disponibilidade de um amigo livreiro me tornou um leitor, senão melhor, ao menos mais contumaz. (este é um daqueles posts de desfecho previsível, mas vamos lá)

Semana passada, ouvi de um psicólogo que, ao contrário do que reza o senso comum, as livrarias não estão fechando devido à leitura em meios digitais, mas por causa da Amazon. Em suporte ao argumento, citou um par de livros (o CID (código internacional de doenças) e um outro) que, orçados em grandes livrarias, custavam em torno da terça ou da quarta parte no gigante do comércio online.  Ao externar seu espanto, ouviu de um livreiro resignado o conselho “compre sem hesitar !”. Nossa conversa enveredou, então, pela análise dos fatores econômicos e logísticos por trás de tal discrepância mas que foge, no entanto, ao (vá lá: escopo, de uma precisão semântica indispensável, é um baita clichê…) deste texto.

Antes do Milton comprar a Bamboletras, eu já tinha encomendado lá alguns livros, movido pela facilidade de poder contatar pelo facebook Lu Vilella, sua proprietária anterior. Não foi, no entanto, só pela conveniência que intensifiquei minha relação com a livraria após sua aquisição. Pois é igualmente fácil, além de muito mais barato, comprar livros pela internet e recebê-los pelo correio. De fato, sigo usando o expediente para importar um que outro volume, cuja aquisição por meio de livrarias físicas seria demasiado trabalhosa e demorada, além de onerosa.

Concluo, então, que, mais do que qualquer facilidade, o que ainda me leva a frequentar livrarias (bom, na verdade, apenas uma) é a qualidade da experiência. Não gosto de garimpar em estantes: o excesso de oferta tem para um geminiano um efeito sinestésico paralisante. Não troco por nada, isto sim, a possibilidade de conversar com o próprio livreiro ou seus ilustrados colaboradores. Gente que conhece minhas preferências de leitura e, como tal, é capaz de emitir recomendações confiáveis. O livreiro como curador. Ou, se quiserem, personal booker. E isto é praticamente impossível em grandes livrarias.

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Aos 20 anos, podíamos nos dar ao luxo de ler qualquer coisa que nos caísse nas mãos. Pois o tempo era uma commodity abundante e, portanto, não reputávamos leituras supérfluas como tempo perdido. Aos 60, é bem diferente. Começamos a ver o tempo como mais escasso e, logo, precioso. É por isto que, na maturidade, só consagramos tempo a leituras precedidas por fortes recomendações. Imperiosas, eu diria.

Tão logo me dei conta desta nova realidade, pensei que, doravante, só teria olhos para a não ficção até que, apenas mais recentemente, comecei a me reconciliar também com a ficção, com a qual tive tão pouco contato. Clássicos dos quais sempre ouvira falar sem jamais conhecer por experiência própria. Ainda que não saiba explicar por que bons livros fazem tanto bem, devo o hábito de sua leitura indubitavelmente ao Milton. Vida longa a ele e a sua aconchegante livraria !

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

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E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

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Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

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O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

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Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

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Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

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E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

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E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.

Mais sobre reality shows

big brother 3Reality shows são a derradeira tentativa da TV  ser, de algum modo, participativa – o que é absolutamente impossível, já que todo broadcasting é, por definição, centralizador. Isto por que a TV, por mais que queiram seus proprietários, jamais será colaborativa e/ou participativa de modo a incluir cada um de seus espectadores em seus desígnios (esta será, aliás, a causa de sua extinção nos próximos anos).

Reality shows falham sistematicamente em seu propósito não declarado de suprir continuamente novas celebridades. Vencedores do Big Brother não costumam lograr a grandeza sustentável de astros ungidos por outros modos de curadoria. Por produtores, suponho, na maioria dos casos. Pois foi, por exemplo, tão somente pela vontade de George Martin que os Beatles – e não outras tantas bandas juvenis provavelmente existentes na cena suburbana londrina de então – foram escolhidos para ter acesso às então caríssimas prensas fonográficas e programas de TV. Mas isto já é outra conversa.

Como dizia, reality shows apareceram com a desastrosa missão de prover à voraz cena do broadcasting um fluxo contínuo de novas celebridades. Que não se sustentam, todavia, após o fim do programa. Quando, então, vidas tidas como interessantes (ao menos por magos da TV) perdem todo e qualquer interesse para a maior parte da audiência tão logo deixam o ambiente privilegiado do espaço cenográfico.

Então vieram os especializados. Primeiro, os shows de calouros, como The Voice Brasil ou Superstar, que ainda não lograram, até onde eu saiba, revelar talentos sustentáveis como, por exemplo, no tempo dos festivais. Depois, alguém (preciso rastrear a origem do fenômeno !) se deu conta de que o que funcionava bem com microfones deveria também funcionar com panelas. Os concursos televisivos de cozinheiros foram uma decorrência natural. Assim como os de dança.

Já podemos estabelecer uma tipologia dos reality shows em razão do balanço que há, em cada um deles, entre a opinião popular e a de júris especializados. Nesta categorização, teríamos, de um lado, o grau máximo de concessão de poder à audiência (desconsiderem, por favor, o tremendo poder nas mãos dos produtores que escolhem os participantes do programa) em realities de confinamento como o Big Brother. Cujos produtores, inferimos, ousam confiar totalmente no discernimento de espectadores em se tratando de apreciação de vidas ordinárias (alheias, deve ser dito).

Em realities um pouco mais especializados, como os de música ou dança, produtores já não arriscam depender exclusivamente da avaliação popular, recorrendo, nestes casos, a um júri cuidadosamente designado, incluindo especialistas e profissionais reputados. São os casos dos júris em programas como The Voice Brasil, Superstar ou A Dança dos Famosos, cuja apreciação é balanceada com a avaliação popular.

Já os reality shows culinários são, presumivelmente, tidos por seus produtores como os mais especializados, posto que repousam exclusivamente sobre o julgamento de uns poucos especialistas, sem qualquer contraponto com um veredito popular. Acho isto muito estranho. Talvez, sei lá, por achar mais fácil cozinhar do que cantar. De sorte que, se a máxima participativa qualquer um pode [verbo no infinitivo], celebrizada em Ratatouille como qualquer um pode cozinhar  for verdadeira no que diz respeito ao canto ou qualquer outro fazer musical, tanto mais o será no que toca à arte das panelas. Talvez por isto não entenda todo esse hype em torno de bons cozinheiros. Ou chamem, se quiserem, de glamourização da culinária.

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Atinente à minha má vontade em relação a reality shows de qualquer espécie (ok, aquele sobre a família que fazia motocicletas artesanais até que era bem legal – mas não havia nenhuma competição envolvida – os caras, só por fazer o que faziam, eram vencedores absolutos !), perguntei no facebook sobre a sina de vencedores históricos do Big Brother esperando respostas vazias. Quebrei a cara. Soube que, entre eles, há várias apresentadoras de TV e até um deputado federal. Chama a atenção, ainda assim, que a grande maioria perseguiu, quase sempre com êxito, o único propósito de enriquecer investindo o prêmio ganho no programa. É, pois, perfeitamente razoável considerar o gênero como um retumbante fracasso em seu propósito velado de produzir novas celebridades.

Se a mesma argumentação também vale para reality shows musicais e culinários, talvez ainda seja muito cedo para se dizer. Antes, será preciso saber quantos vencedores do The Voice ou Superstar efetivamente embarcaram em carreiras musicais, ou que vencedores do Masterchef lograram alguma permanência em programas culinários ou seus próprios restaurantes. Até lá, muito lixo ainda está por vir.

(repararam que os quatro mais populares reality shows possuem nomes em inglês ? Sei que, para assistir a alguns dele, pagamos royalties no exterior. Será o caso de todos eles ?)

Carta aberta a um conselheiro da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura

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Uma das melhores coisas das redes sociais é que, ao tornarem públicos os discursos individuais, desencadeiam reações tão imprevisíveis quanto maior for o tamanho de cada rede. E se as mesmas reunirem, como eu meu caso, pessoas de diferentes matizes de pensamento (detesto o adjetivo ideológico quase tanto quanto as bolhas discursivas), se torna mais provável que, a cada posição forte proferida, se colham contraditórios que, com sorte, serão, como aqui, altamente qualificados.

Embora não fosse nenhuma novidade, compartilhei em meu perfil no facebook uma compilação das mais bizarras licenças para captação de incentivos fiscais federais por meio da Lei Rouanet – cujos termos, confesso, ignoro solenemente. O que, no entanto, não desqualifica o que penso sobre sua aplicação desastrosa. Ocorre que, como uma metralhadora giratória, acabei atingindo um amigo – o músico, compositor e maestro Arthur Barbosa, por quem nutro grande estima e que (havia me esquecido !) participa, como conselheiro, da comissão do Ministério da Cultura que avalia projetos que pleiteiam os benefícios da referida lei.

Em seu longo e pertinente desabafo, disse, entre outras coisas, que

Existem dispositivos na lei que protegem as formas de cultura mais “debilitadas” e “carentes de público”

(o que é ótimo); e que

a grande maioria destes projetos caem sobre o artigo que não possibilita a captação de 100 % do valor do projeto pela lei Rouanet, mas uma porcentagem bem menor…ou seja , estar aprovado pela lei não significa que a empresa ou pessoa terá 100 % do valor do projeto incentivado pela lei...

(o que também é ótimo).

A parte de seu comentário, no entanto, da qual discordo veementemente e que serve de inspiração a este texto, é aquela onde diz que

O que nós não podemos como conselheiros é fazer juizo de valor…não podemos avaliar um projeto com base na nossa opinião se esta arte é “mais arte” ou “menos arte” que aquela outra, pois perante a lei todos têm o direito de participar de um edital.

É claro que todos podem participar de uma concorrência lançada em um edital público. Só que a isonomia deve terminar aí. Ora , comitês avaliadores de projetos culturais que se pretendam financiados, ainda que parcialmente, por recursos oriundos de renúncia fiscal são, essencialmente, conselhos de curadores e, como tais, possuem, sim, talvez como uma de suas principais atribuições, o dever de questionar o mérito artístico de cada proposta que lhes for apresentada. É neste sentido que defendo que produtos como Cláudia Leite ou Luan Santana não deveriam, em hipótese alguma, ter permissão para obter sequer um centavo de recursos oriundos de renúncia fiscal – que são, afinal, dinheiro público que deixará de ser investido em melhores causas.

Além disto, ao conceder licenças de captação, ainda que de valores parciais, a projetos  milionários, o governo federal vira as costas à necessária descentralização das iniciativas culturais. Mesmo que a lei proteja, conforme foi dito, as manifestações mais debilitadas e carentes de público, ao incentivar o patrocínio de espetáculos questionáveis como os supra-citados, de celebridades midiáticas e com retorno de bilheteria garantido (os quais não dependem, portanto, de nenhum incentivo governamental para sua realização), acaba estendendo a cada patrocinador em potencial uma carta branca que lhe permite escolher o que apoiar. Este, por sua vez, sempre optará, por razões econômicas, por apoiar o que lhe trouxer mais retorno em termos de público atingido – funcionando, assim, como uma espécie de publicidade subsidiada a beneficiar exclusivamente celebridades abastadas e seus patrocinadores em prejuízo de formas de cultura, como foi dito, mais debilitadas. Ora, permitir a todo mecenas interessado na publicidade subsidiada em que se constitui, em última análise, todo patrocínio contemplado com algum tipo de renúncia fiscal implica em se desistir de proteger manifestações culturais menores e mais importantes, se relegando, com isto, a economia da arte inteiramente às leis do mercado. Um desastre, a nosso ver, já em andamento.

Concordo que a discussão do mérito de qualquer iniciativa que deve ou não ser apoiada com dinheiro público é complexa, envolvendo nuances estéticas que se esquivam ao consenso. É, então, senão mais prudente e socialmente mais justo, ao menos necessário que decisões sejam tomadas com base em critérios econômicos. E assim chegamos ao dilema entre a concentração e a distribuição de recursos. Não pretendo (nem teria como num espaço tão exíguo) discutir os prós e os contras do apoio a isto ou aquilo. Prefiro, ao invés, deixar ao leitor a incumbência de intuir sobre o mérito do apoio estatal a categorias mais ou menos centralizadas por meio da menção a alguns binômios que falam por si só. Consoante a isto, pergunto: que categorias, em cada par abaixo, devem ser beneficiadas por políticas públicas de incentivo: o latifúndio ou a agricultura familiar ? Grupos industriais consolidados (como, por exemplo, Gerdau ou Tramontina) ou vitivinicultores e produtores de cervejas artesanais ? Montadoras automotivas ou luthiers ? Redes de supermercado ou fruteiras e padarias ? Orquestras e grupos de teatro e música de câmera ou celebridades midiáticas ? Tirem suas próprias conclusões. E me poupem, por favor, de argumentos em prol de grandes empregadores – amolando com isto, se quiserem, os economistas.

Deve ser grande, para qualquer governo, a tentação de privilegiar, sempre que possível, os grandes arrecadadores. Senão, imaginem a complexidade adicional da burocracia para se lidar com, ao invés do capital concentrado, toda uma diversidade de pequenos contribuintes. É, portanto, bem mais fácil para qualquer órgão de fomento trabalhar com um número reduzido de projetos mais caros do que com uma infinidade de iniciativas menores e dispersas.

A insistência governamental em facilitar a vida de quem já é grande não se dá, no entanto, meramente em razão da simplificação burocrática. Pois grandes empreendimentos também favorecem mais a corrupção. Não vemos, por exemplo, na Lava-Jato, indiciamentos de pequenos negócios na mesma proporção do que os de gigantes como a Petrobrás ou as grandes empreiteiras. Por uma razão muito simples: grandes empreendedores pagam propinas maiores. O político corrupto não está, então, interessado no cheque da pequena empresa familiar, do mesmo modo que produtores de grandes eventos não estão dispostos a captar uma miríade de pequenos apoios. É fácil, então, se intuir que a abolição, em qualquer esfera pública, do dinheiro graúdo se constituiria num tremendo baque na rapinagem dos aproveitadores de plantão. Até por que é, também, muito mais fácil comprar o silêncio de poucos do que o de muitos.

Mais. Entre os casos citados como bizarros na postagem que deu origem a este texto figuram ainda os de filmes (inevitavelmente dispendiosos) sobre biografias de políticos, vivos (como José Dirceu) ou mortos (como Leonel Brizola), que interessam a forças que hora disputam o poder e que podem ser, portanto, qualificados, direta ou indiretamente, como propaganda eleitoral. Ao que alguém poderá rapidamente objetar que o longa-metragem sobre Getúlio Vargas (que provavelmente também recebeu recursos oriundos de renúncia fiscal) se enquadre na mesma situação. Ora, Getúlio, ao contrário de Brizola ou Dirceu, já pode ser visto com algum distanciamento histórico – sendo, portanto, bem mais difícil a vinculação de sua imagem a esta ou aquela corrente partidária hora a disputar o poder.

Atualização: horas depois que publiquei este texto, fomos brindados com a notícia hilária de que alguém recém afirmara, numa reunião do diretório nacional do PDT, que, até hoje, uma “bancada estelar” (sic !) composta por Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola cuidava do partido e de suas decisões país afora. Ante tal evidência de uma conexão, por assim dizer, espiritual talvez eu devesse suprimir o parágrafo anterior – o qual, por vaidade ou pura teimosia, insisto em manter.

Se o problema da curadoria já é bem complexo, o da descentralização o é muito mais. Por isto, uma das muitas possíveis saídas para o aperfeiçoamento de leis de incentivo seria a vedação da concessão de benefícios a megaespetáculos, que só servem a celebridades e seus patrocinadores, com o estabelecimento de limites máximos de captação para cada categoria de manifestação artística. Teríamos, assim, tetos diferentes para exposições, publicações, espetáculos musicais, montagens teatrais ou filmes (notoriamente mais caros) de curta e longa metragem. E, mais importante, o banimento de iniciativas concentradoras de recursos – obrigando, com isto, todo empresário disposto ao mecenato a investir, senão na qualidade (tão intangível, esquiva ao consenso, mesmo entre os curadores mais aptos), então ao menos na diversidade cultural.

claudia leite 3

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Depois que comecei a escrever este post, meu amigo Vagner Cunha, a quem também devo menção, se juntou à conversa sobre o discernimento e a ponderação necessários a toda discussão sobre leis de incentivo que, não obstante, já avançaram muito. Ao lhes agradecer pelas posições contrastantes inteligentemente defendidas, concluo rogando a Arthur Barbosa que, em sua próxima reunião de trabalho em Brasília, leve este texto à atenção dos demais conselheiros responsáveis pelo destino dos recursos oriundos da Lei Rouanet, no intuito de que os argumentos acima se tornem, de algum modo, relevantes para o aprimoramento da mesma e/ou de sua aplicação. Pois tão ou mais importante que a redação de qualquer lei é o espírito que a norteia.