Reality shows: anatomia de um desgaste

Depois de mais de duas décadas de hegemonia nas grades de programação da TV aberta, os reality shows finalmente apresentam (viva !) inegáveis sinais de desgaste. Não que não estivessem presentes antes. É que, agora, talvez pela primeira vez, os próprios realizadores se vem forçados a tomar providências para tentar garantir alguma sobrevida ao formato.

Fatos como a adoção, depois de mais de vinte anos (!), de um voto único, associado ao CPF, em cada votação ou, ainda, o telefone através do qual espectadores podem veicular críticas à produção do Big Brother são sintomas inquestionáveis disto. Tais sinais sugerem que emissoras estejam reagindo a audiências minguantes, numa tentativa de perpetuar uma fórmula até então bem sucedida que, todavia, começa a não mais convencer.

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Por mais que realizadores de realities apregoem, como no caso do telefone cujas ligações o próprio apresentador do programa estaria sempre pronto a atender (que belo golpe publicitário !…), é razoável supor que as demandas do público sejam editadas. Voltaremos a isto. Por hora, vejam, por exemplo, demandas, até certo ponto fáceis de atender, como:

que aconteçam mais provas de inteligência do que de resistência; ou

que a famosa xepa seja mais restritiva, como, por exemplo, um regime de pão e água;

e por aí afora. Até aí, tudo bem. Mas imaginem se espectadores começassem a reivindicar coisas como

opinar no processo de seleção dos participantes – numa tentativa, talvez, de quebrar o padrão de corpos jovens e esbeltos, que impera no programa, em favor de mais conteúdo mental. Tipo menos músculos, bundas e peitos e mais cérebro. Ou ainda

a supressão de publicidade dos patrocinadores nos cenários das provas. Já notaram como as marcas e as cores dos anunciantes nas arenas de provas demoradas dominam por muito mais tempo do que em comerciais de 30 segundos ? Vejam ainda o destaque dado no próprio programa ao carro ganho pelo vencedor do The Voice. Perto disto, o clássico merchandising de uma garrafa de Coca-Cola “casualmente” deixada sobre uma mesa de refeição em uma telenovela é uma perversão não mais do que tímida.

Não sei o que vocês acham, mas quero acreditar que emissoras jamais dariam ciência de demandas de telespectadores como as acima, que dirá atendê-las. Donde inferimos que o poder de edição dos realizadores sobre o desejo do público é a última coisa da qual estariam dispostos a abrir mão.

Eis o principal fator de distinção entre os broadcasting media – que, como o próprio nome já diz, concentra um enorme poder na definição de conteúdos nas mãos de seus proprietários – e as mídias sociais – nas quais, ao menos em tese, há uma certa isonomia na possibilidade de externar opiniões, doam a quem doer ou, até mesmo, quando não passam de asneira.

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A TV aberta vive de fofoca. Seus donos sabem disto e se aproveitam do fato. Realilies são o melhor exemplo disto. Não é por menos que a maioria deles seja sobre canto e culinária, matérias nas quais qualquer leigo se sente autorizado a opinar. Com o povo sarado do Big Brother (só eu acho que aquilo parece uma academia de ginástica ?), não é diferente. Por vezes, parece que, quanto mais raso, melhor. Maior o “engajamento” (adoro essa palavra !) popular. Tudo isto no único intuito de maximizar o alcance da mensagem publicitária. Imaginem, agora, se a competição fosse sobre astrofísica. Ou física quântica. Vislumbram algum possível engajamento ?

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Terminamos de assistir a mais uma temporada do The Voice (dizem que a última !), por sorte curta. Neste programa, o foco é muito mais no júri do que nos calouros. O sorrisão do Teló. Parece o gato de Alice. E já viram algum dos jurados falar algo desabonador sobre algum candidato ? E os perdedores, que sistematicamente escondem sentimentos de frustração por trás de um discurso de gratidão ? É só love. Hipocrisia pouca é bobagem. O mais irônico de tudo é que, em poucos anos, os jurados continuarão célebres enquanto que a maioria dos calouros, esquecida.

Se disponibilizassem um telefone do The Voice, nos moldes do telefone do Tadeu no Big Brother, as duas coisas que eu mais gostaria de ver reivindicarem seriam

participação popular na escolha das vozes selecionadas para aparecer no programa; e

disponibilização da íntegra da interação, entre um programa e outro (já que não são ao vivo) entre cada “técnico” e seu “time”. Pois desconfio de que pouco do que vemos e ouvimos possa ser atribuído à interferência dos técnicos.

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(notas rabiscadas às pressas depois da última edição do The Voice e antes da próxima do Big Brother)

Relativismo moral: o álcool no Big Brother e na novela das 9

Telenovelas como a das 9 e reality shows como o Big Brother me causam profundo incômodo, até irritação. São reações instintivas, na maioria das vezes sem qualquer justificativa racional. Noutras, mais raras, sou acometido por insights capazes de explicar tamanha aversão. É só por causa de uma destas constatações que invado a esfera intelectual de meus leitores, via de regra avessos a tais baixarias que povoam o horário da Globo entre seus dois telejornais noturnos. Se me detenho, aqui, em certos detalhes deste tipo de lixo televisivo, é tão somente para poupá-los da entediante exposição a estes programas para entender do que estou falando.

Na atual novela das 9, um personagem alcoólatra – uma cantora de meia idade, mãe de um adulto, que se apresenta em bares às próprias expensas, sem êxito para fazer sua carreira decolar e que aparentemente não compreende a dinâmica do circo de celebridades – é retratado como alguém fraco e raso. Um fracassado que não faz nada por si próprio e que sabota a si mesmo. Num contexto maniqueísta e altamente roteirizado como o das telenovelas, está nitidamente mais para lado dos maus do que dos bons.

Noutro contexto, o do Big Brother, o consumo descontrolado de álcool é não somente tolerado como incentivado, em festas semanais, como um expediente para provocar maior desinibição e espontaneidade por parte dos participantes.

Então, temos que, em programas distintos, ainda que em janelas adjacentes na grade de horários da emissora, o consumo de álcool é mocinho e bandido ao mesmo tempo. Se isto não é relatividade moral, então não sei mais o que é.

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Tais pesos e medidas diversos para diferentes programas campeões de audiência de uma empresa de mídia que deveria, supostamente, aderir a uma linha editorial é, no mínimo, intrigante, levando, de pronto, a algumas considerações.

A primeira, mais óbvia, é que, em se tratando de canais de mídia, de pouco importa qualquer posição editorial. O que existe é, de fato, um vale-tudo em se tratando de maximizar a audiência.

Já ao examinarmos mais de perto os dois formatos, a principal diferença que salta à vista é que, enquanto a telenovela é, como já dissemos, um gênero altamente roteirizado, i.e., em que autores predeterminam minuciosamente o comportamento, a trajetória e mesmo a aprovação ou reprovação popular de cada personagem; reality shows são como tubos de ensaio nos quais substâncias variadas são misturadas para se descobrir como reagem. Como num laboratório, os reagentes podem ser estimulados a reagir mas rápido ou facilmente por catalisadores como, por exemplo, pressão (competições) ou calor (álcool).

(tudo bem, o Big Brother não é tão imprevisível e descontrolado como nos querem fazer acreditar. A indução de resultados começa na própria seleção dos participantes, na qual produtores se esmeram para escolher candidatos que mais provavelmente produziriam os resultados esperados (confesso que eu até assistiria, por curiosidade e diversão, a uma edição do Big Brother que tivesse, entre seus participantes, alguém que não desse a mínima para o programa, com aversão ao formato, ficando na casa tão somente para desfrutar de suas benesses e, é claro, com uma cláusula de imunidade capaz de impedir que fosse eliminado de pronto por outros participantes ou pelo público em razão de sua recusa explícita em “jogar o jogo”. Mas já tirei meu cavalo da chuva, pois um improvável candidato assim seria o primeiro a ser descartado pelos diligentes recrutadores). Além disto, abundam teorias conspiratórias sobre a manipulação de resultados por realizadores do programa)

Deste modo, uma emissora pode “deitar moral” num programa, dizendo como cada um deve ser e, no seguinte, mostrar que “não adianta, o ser humano é assim”. E se quisermos, podemos ainda entender, por trás da contradição representada por esta dicotomia aparentemente irreconciliável, um possível discurso subjacente à justaposição da mortal roteirizada com a baixaria espontânea que diria “este é o povo que queremos educar/consertar”. Mas será que a emissora pensou nisto ? Acho difícil. O vale-tudo pela audiência deve falar mais alto. Mas e se tivesse pensado, seria um ponto a favor da emissora ou contra ela ? Para responder isto, só mesmo um Huxley (Admirável Mundo Novo), Orwell (1984) ou, mais recentemente (mas nem tanto), Neil Postman (Amusing Ourselves to Death).

Como a peste acelera a agonia do broadcasting

Não é de hoje que a televisão aberta vem dando claros sinais de esgotamento frente a outros meios mais interativos ou, no mínimo, customizáveis. Quando perguntei, tempos atrás, a um de meus filhos qual o sentido dele navegar na web enquanto permanecia diante da TV ligada indiferente à mesma, sua resposta foi rápida e categórica: “é que aqui (no celular) tenho mais opções e maior controle sobre o que quero assistir”.

A grade de programação da TV comercial aberta se consolidou, grosso modo, como um mix de noticiários, telenovelas, reality shows, programas de entrevistas e variedades (geralmente com auditórios), filmes e seriados – estes últimos anteriormente referidos como “enlatados”. Com a pandemia, toda a rede de produção, pelas emissoras, das quatro primeiras categorias  acima colapsou.

Os auditórios foram os primeiros a desaparecer. Cada vez mais passamos a ver repórteres com máscaras e, pouco a pouco, apresentadores e âncoras começaram a transmitir de suas casas. Entrevistas e depoimentos passaram a ser obtidos por meio de videoconferência. Mesmo que alguns telejornais, com cenários e bancadas imponentes e estúdios super povoados,  ainda resistam, o formato está com os dias contados. Comparem, por exemplo, a parafernália envolvida (e diretamente associada ao conceito dos mesmos) em telejornais de abrangência nacional com aquela de seus primos mais pobres, os noticiários locais e regionais, que já aderiram a formatos mais econômicos.

Cabe, ainda, notar que, face ao colapso das estruturas de produção, a TV mergulhou numa profusão de reprises. Não só de telenovelas mas, também, de entrevistas requentadas e, espantosamente, partidas de futebol. Nunca antes acervos televisivos foram tão importantes.

Com tudo isto, os conteúdos veiculados pela TV estão cada vez mais parecidos com o que vemos habitualmente em redes sociais. Com a significativa vantagem, cabe lembrar, de que, em redes sociais (narrowcasting), podemos, ao contrário de na TV (broadcasting), 1) melhor custumizar conteúdos e 2) interagir, se assim o quisermos, com seus transmissores. Não é pouca coisa. Assim como não tem sido pouca a capacidade de rápida reação e adaptação da TV a novos contextos desfavoráveis desde o surgimento da internet. De modo que, diante de inequívocos sinais de mudança, é impossível prever a sobrevivência ou não de grandes conglomerados televisivos

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A TV sempre funcionou, tradicionalmente, em sintonia com valores centralizados. Poucas emissoras. Grandes patrocinadores. Programas tipo “one size fits all”, capazes de captar audiências num vasto território. Neste cenário, chama muita atenção campanhas como VAE (Vamos Ativar o Empreendedorismo), uma ode ao pequeno negócio. Se vingar, uma coisa é certa: empresas individuais ou familiares incentivadas pela supracitada campanha jamais estarão em condições de comprar as caras janelas publicitárias comercializadas por redes concessionárias de TV junto a grandes grupos empresariais.

Talvez a Globo não espere, com uma boa dose de razão, que, em decorrência da provável explosão de pequenos empreendimentos incentivados pelo VAE, seus grandes patrocinadores quebrem. O que denotaria uma disposição da emissora de, na impossibilidade de prever que ventos soprarão na economia, ficar bem com todo mundo, tanto grandes quanto pequenos. Numa posição corporativa, diga-se de passagem, perfeitamente razoável. Como a de empresas que, em eleições, doam para campanhas de candidatos rivais. Mas, como ninguém é bobo, trata de diversificar as fontes de seu capital de custeio. Isto pode ser claramente observado na agressividade com que vem promovendo seriados, nacionais e enlatados, em sua plataforma de streamming (pago) Globoplay. É como se, na incerteza de poder contar, num futuro não muito distante, com seu custeio maciçamente bancado por anunciantes, busque inclinar drasticamente sua matriz de financiamento para  consumidores finais de sua programação, até então acostumados a não pagar nada pelo que assistem na TV aberta.

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Em sua agonia, a TV não esconde a relação ambivalente que mantém com sua grande rival, a internet. Ao mesmo tempo em que tenta, desajeitadamente, assimilar atributos tão afeitos à web quanto estranhos ao broadcasting (como, por exemplo, o arremedo de interatividade das “votações populares” em reality shows), reivindica para si um suposto monopólio da credibilidade, por sua vez apregoada como o calcanhar de Aquiles das mídias sociais. Como se o jornalismo tradicional, e somente ele, fosse capaz de verificar a veracidade do que é veiculado. Ora, é largamente sabido que, na infância da rede, da qual mal saímos, notícias falsas são abundantes – tanto que seu manejo pode facilmente eleger um presidente. Umberto Eco estava coberto de razão quando disse que a internet era habitada por uma legião de idiotas – declaração que lhe custou a acusação de ser um netskeptic.

A suspeição levantada acerca da credibilidade da web é, no entanto, apenas transitória. A rede veio para ficar e, diante de seu avanço inexorável, é cada vez mais necessário que seus usuários dominem uma das habilidades descritas por Howard Rheingold como dentre as competências essenciais à aprendizagem no século 21, a saber, crap detection (detecção de lixo). O exemplo clássico de Rheingold é uma biografia falsa, caluniosa, de Martin Luther King, que desponta em primeiro lugar numa consulta ao Google, plantada num site mantido pela Ku Klux Klan.

Acreditar no monopólio de empresas jornalísticas sobre a competência para a verificação de fatos é mais ou menos como defender a volta de datilógrafos ou, ainda, de revisores em salas de redação. Pois novas tecnologias implicam em novas responsabilidades (que me perdõe o Homem Aranha pela apropriação).

Mas não é só por meio de notícias falsas que se pode distorcer a realidade. Padrões de omissão e ênfase também dão conta de imprimir claramente em mensagens posições ideológicas assumidas por seus enunciantes – e, neste ponto, veículos de imprensa são tão parciais quanto quaisquer perfis proselitistas nas redes sociais das quais tanto desdenham. Vejam, por exemplo, o contraste entre, de um lado, a ampla cobertura dada pela Globo a ações filantrópicas corporativas e, de outro, seu absoluto silêncio sobre as repetidas doações de alimentos pelo MST a populações mais afetadas. A imparcialidade jornalística é um mito.

Rieufobia

Dia desses me deparei, na algaravia do facebook, com o seguinte comentário, sob uma postagem de divulgação de um texto sobre o estupendo ensemble parisiense sans baton Les Dissonances:

Sempre que músicos conversam surge a rieufobia. Por que?

Em ambientes musicais, tal pergunta soa francamente retórica e revestida de fina ironia. Só que a maioria dos leitores deste blog, que chegam até ele principalmente por meio de anúncios do Sul21 em redes sociais, não é constituída de músicos. Até mesmo entre meus amigos no facebook há muitos que não são músicos. Por isto, decidi responder à interessante pergunta (juro que pensei bastante nela) usufruindo da atemporalidade, da permanência e da introspecção inerentes ao blog.

Não estaria muito longe da verdade se simplesmente dissesse que o que André Rieu oferece a seus apreciadores não passa de uma embalagem vazia. Pois a importância absolutamente secundária da música em todo o complexo cênico vendido em suas apresentações seria suficiente para corroborar esta resposta.

Se fosse apenas para brigar com campos adversários, haveria evidência suficiente para chamá-lo, assim como tantos outros que se apropriam de elementos musicais a fim de produzir um encanto irresistível em audiências mal formadas e/ou informadas, de charlatão. Tal qualificação não suscitaria reações adversas em quem quer que tenha algum conhecimento musical e nutra um certo apreço pela música. Tal querela, no entanto, não valeria a pena.

Sigo, então, perseguindo o propósito de explicar em termos objetivos por que o que Rieu optou por fazer, conquanto lucrativo, não passa de… charlatanice (me desculpem se não encontro palavra melhor que o descreva).

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Inicialmente, examinemos o público que se encanta com seus espetáculos comparativamente às audiências que efetivamente buscam, em concertos presenciais ou gravações, a fruição musical e a ampliação do repertório que conhecem.

Tomemos, inicialmente, o típico melômano com vasto conhecimento musical. Seu repertório conhecido, conquanto abrangendo vários séculos, algumas dúzias de compositores e centenas de obras, é por definição incompleto. Nosso amigo melômano tem profunda consciência disto e faz da exploração de territórios desconhecidos e inexauríveis uma missão de vida.

Num nível intermediário, temos os apreciadores de música que “comem o mingau pelas bordas”. Pertencem a esta categoria aqueles capazes de identificar, após ouvidos uns poucos acordes, trechos da quinta e da nona sinfonias de Beethoven, do primeiro concerto de piano de Tchaikovsky, do segundo de Rachmaninoff, de Carmina Burana, da Pequena Serenata Noturna de Mozart, das Czardas de Monti, das Estações de Vivaldi, da Ária na Corda Sol ou do coral Jesus Alegria dos Homens de Bach, do Bolero de Ravel, de algumas valsas vienenses e de umas poucas árias de óperas. A ópera é um nicho bem especializado, mas é pouco provável que a maioria de seus apreciadores já tenha ouvido obras inteiras, de onde suas árias favoritas foram desmembradas.

Representantes das duas categorias acima, conquanto frequentem salas de concerto (os da primeira muito mais do que os da segunda), sabem que não podem restringir a descoberta de novas obras ao repertório habitual de conjuntos a cujas apresentações tenham acesso. Por isto, costumam investir pesado na formação de discotecas ou, mais recentemente, em serviços de streamming. Bem, estou sendo otimista. Na verdade, acho que só os membros da primeira categoria fazem da audição de gravações de repertório novo um hábito regular.

Um terceiro modo de relação com a música dita “clássica” é o praticado por pessoas que nunca ou muito raramente (só em casos circunstanciais, como, por exemplo, quando não tem como recusar um convite) frequentam concertos de qualquer espécie. É o público, por excelência, dos concertos populares (que prefiro chamar de demagógicos), o qual, mesmo sem empreender qualquer esforço ou iniciativa para ouvir orquestras ou conjuntos de câmera aos quais tenha acesso, acredita, talvez por ter ouvido falar, que a música faça bem para a alma, que é uma maneira de manter jovens no bom caminho, que concertos ao ar livre são ótimos para popularizar uma manifestação cultural de outro modo “elitista” e até que a música tenha alguma influência na aprendizagem (o célebre efeito Mozart). De quebra, a música clássica confere a quem professa algum apreço pela mesma um certo verniz cultural.

Concertos demagógicos em geral e os de André Rieu em particular contemplam exclusivamente os integrantes desta terceira categoria. Todos os restantes padecem, como bem disse meu comentarista, de rieufobia.

 

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Um dos maiores problemas dos concertos demagógicos é a ideia de que a música pode ser levada às audiências por amostragem, com trechos selecionados de muitas obras concebidas para serem ouvidas na íntegra. Como num desfile variadíssimo de épocas, lugares, gêneros e estilos, somos contemplados com um mosaico aleatório de recortes cujo único objetivo é angariar o aplauso fácil. Nestes eventos, a imersão mais prolongada no universo de uma obra ou autor, como em concertos sinfônicos, está fora de qualquer questão.

Notem que concertos sinfônicos com mais de uma hora de duração costumam ter no máximo três ou quatro obras, não sendo raros aqueles com apenas duas ou até mesmo uma só. Suponho que a enorme profusão de “números” curtos, entrecortados por aplausos, em concertos populares tente emular, de algum modo, uma dinâmica de espetáculo específica da música popular, limitada, ao mesmo tempo, historicamente pela duração do que cabia num lado dum disco de 78 rpm e também pelo próprio exaurimento de suas formas depois de 3 ou 4 minutos.

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Muito da apologia que se faz dos espetáculos capitaneados por Rieu está fundada na soberania absoluta do gosto popular. Só que, neste caso, não faz sentido algum se falar numa opção por um tipo de espetáculo por parte de ouvintes que não têm a menor ideia da vastidão daquilo que ignoram. A imensa popularidade, portanto, de Rieu e congêneres é, no fundo, reflexo de um problema maior de educação.

Conquanto Rieu tenha alcançado, ainda que por méritos próprios, uma evidência que o coloca como símbolo internacional desta espécie de degeneração da música de concerto, está longe de ser seu representante exclusivo. Sua versão nacional mais conhecida é o pianista e maestro João Carlos Martins, que já virou até filme e enredo de escola de samba. Os agravantes, no caso de JCM, são a exploração do próprio “coitadismo” e o pretenso trabalho social que desenvolve.

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O surgimento de personagens como Rieu,  que personificam para uma parcela numerosa do público o que se poderia chamar de “a cara da música clássica” (do mesmo modo que, até pouco tempo atrás, os “3 tenores” encerravam para muitos o significado do canto lírico), é um fenômeno típico da época em que vivemos – na qual a celebração da autoria deu lugar à primazia absoluta da figura do intérprete. Pois se antes os grandes festivais serviam principalmente como plataforma de lançamento para compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Milton Nascimento (ainda que os mesmos fossem, incidentalmente, intérpretes de suas próprias obras), o que temos hoje, em reality shows como Fama ou The Voice, é a busca incessante por novos invólucros descartáveis para antigos sucessos. Esta tendência reflete perfeitamente uma opção exercida pela indústria do entretenimento que, não sem razão, talvez por perceber que a autoria sofre períodos recessivos nos quais bons autores não conseguem suprir a demanda permanente por novidades, se volta para a fabricação de celebridades fugazes capazes de dar ares novos a velhas canções repaginadas.

A música erudita desfruta atualmente de um status de anacronismo e elitismo em parte por resistir a se alinhar a esta tendência, i.e., nela a autoria ainda prevalece sobre a interpretação. Explico. Por mais notórios que sejam os regentes ou solistas, a parte mais assídua e expressiva do público que aflui a concertos sinfônicos ainda sai de casa primordialmente para ouvir obras de fulano ou beltrano do que, propriamente, “versões” das mesmas por este ou aquele maestro ou solista. Prova disto é que obras conhecidas por intérpretes desconhecidos ainda atraem muito mais público do que obras desconhecidas por intérpretes célebres. Neste contexto, figuras como Rieu, que logram uma popularidade análoga à de muitos artistas pop, constituem uma grande exceção, só possível devido às concessões cometidas em detrimento da qualidade da experiência musical.

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A exuberância visual de um espetáculo de Rieu também merece uma análise mais demorada, com dois pontos a serem destacados. Primeiro, temos os trajes de gala, com flagrante sugestão de indumentárias de época, como a reforçar uma ideia de deslocamento mágico entre o que se passa no palco e o cotidiano de quem assiste a esses shows.  Como se, através do espetáculo oferecido, o público pudesse se transportar, ainda que por breves instantes, a  mundos distantes e/ou inexistentes de luxuosas cortes de outrora. Algo como um complexo de Sissi. Ou a suposta magia de um desfile na Sapucaí.

Segundo, salta à nossa percepção o fato de que, enquanto concertos são idealizados primordialmente para serem ouvidos, o circo de Rieu é concebido essencialmente para ser visto. Não tenho como afirmar que existam à venda muito mais DVDs do que CDs do músico – o que constituiria uma tremenda inversão dos números do mercado da música clássica. Posso, no entanto, sustentar que seus DVDs possuem muito mais apelo aos ouvintes do que seus CDs. Já que, enquanto os primeiros não conhecem nenhum produto concorrente, já os últimos competem em franca desvantagem com inúmeras outras gravações das mesmas obras.

Até que ponto esta maior resistência de assimilação aos formatos visuais oferecida pela música de concerto em relação à popular está por trás da baixa popularidade da primeira quando comparada à do universo pop, no qual André Rieu deve ser incluído, é uma pergunta que não sei responder.

Por que não vou a megashows de roqueiros veteranos

Quem lê este blog sabe o quanto gosto de causar polêmica. Por isto, regozijei ontem ao lograr dividir opiniões, no facebook, sobre megashows atuais de roqueiros veteranos. Li atentamente todos os comentários, compreendendo as razões de ambos os lados – me esforçando, no entanto, para me manter em silêncio (que esforço !), já pensando em explorar melhor o tema num post. O qual, advirto, não deve ser lido por quem pretende ir ao show do The Who em Porto Alegre hoje à noite. Não, ao menos, antes de ter ido ao show.

Há bandas e bandas; roqueiros e roqueiros. É, assim, um exercício totalmente inútil tentar discutir com fãs de uns ou de outros sobre os enormes méritos de seus ídolos em relação aos demais. Não cairei nesta cilada. Antes, tentarei me debruçar sobre certos atributos genéricos de apresentações requentadas, comuns à maioria dos astros veteranos que optaram, por razões pecuniárias ou quaisquer outras, por retardar indefinidamente o abandono dos palcos. Que me perdoem, então, os fãs das honrosas exceções.

Primeiro, preciso esclarecer por que tenho o rock, dentre os gêneros populares, como algo datado, intrinsecamente associado a experiências da juventude de seus apreciadores. Senão, me apontem um ouvinte que seja que, tendo vivido a juventude alheio ao rock (ou seja, numa caverna), desenvolveu algum tipo de apreço pelo gênero em idades mais maduras. Não conheço ninguém assim. Mas me disponho alegremente a conhecer tal sujeito, como objeto de estudo.

Assim, tendo a presumir que pessoas com mais de 40 ou 50 anos prefiram, em sua maioria, ouvir música sentadas, em ambientes relativamente silenciosos. Ouvir música em pé ? Pior: em meio a uma multidão de sovacos a erguerem celulares sobre suas cabeças ? Incluam-me fora disso. O megashow tem outros agravantes. Citarei dois. Exceto para os felizes portadores dos ingressos mais caros, os astros não serão mais do que minúsculos vultos distantes, tendo a maioria dos espectadores que se contentar com closes dos mesmos projetados em telões ao lado do palco. Depois, tem aquela passarela, que se estende perpendicularmente ao palco cortando o espaço destinado à audiência, na qual protagonistas empreenderão, ao longo do show, uma ou duas corridas ensaiadas – premiando, com isto, os que ousarem disputar um espaço junto à mesma com a fugaz sensação de maior proximidade com seus ídolos.

Música ? A música é secundária neste contexto, em que mais vale a comunhão entre os presentes no culto aos que se apresentam. Isto explica, ao menos em parte, o fenômeno dos celulares – pois, para muitos, mais importante do que estar lá é poder mostrar, aos outros e mesmo a si próprios, que se esteve lá.

But so much for the stage. Aos atores, então.

Comecemos por um preconceito. Com o qual, devo confessar, me identifico profundamente – a saber, o de que o rock é, acima de tudo, uma das mais intensas manifestações de espíritos jovens que habitam corpos jovens. Muito já se disse que rock é atitude e coisas semelhantes. Pois a atitude rock é, na maioria das vezes, explosiva, de inconformidade e rebeldia em relação a valores herdados à revelia. Com o avançar da idade, além de preferirmos ouvir música sentados ao invés de em pé, tendemos a elaborar nossa crítica a valores hegemônicos com os quais não concordamos de modo mais introspectivo ou contemplativo. Notem que, como eu disse, se tratam, aqui, de preconceitos, realçados pelas notáveis exceções. Pois bem. Acontece que a maioria dos roqueiros veteranos que espreito (confesso: jamais vi um show inteiro de algum…) são de velhos que se comportam e vestem como meninos, na tentativa patética de emular suas performances de décadas atrás. É claro que, nestes casos, os fãs são condescendentes, não esperando dos mesmos o  desempenho atlético e vocal de outrora.

A longevidade de certas bandas é, para mim, um completo mistério. Por exemplo, não entendo o êxito estrondoso de cada nova tourné dos Rolling Stones, invariavelmente anunciada como sendo a última. Outra coisa: o que faz com que uma banda veterana, com apenas alguns de seus integrantes originais, ostente a denominação que consagrou a banda ou, ao contrário, apenas o nome de seus integrantes remanescentes ? Como, por exemplo, o que faz com que Pete Townshend se apresente como The Who e David Gilmour ou Roger Waters não se apresentem como Pink Floyd – já que, em todos estes casos, o núcleo duro dos shows se constitua de canções de suas bandas míticas ? Desconheço detalhes, mas suspeito que o uso de nomes de bandas como marcas seja objeto de complexas disputas comerciais.

Ainda vou entender por que bandas de enorme sucesso como Beatles, Nirvana, Legião Urbana ou Mamonas Assassinas não tiveram qualquer carreira depois das mortes de, respectivamente, Lennon, Cobain, Russo ou todos os seus membros. Pois, em todos os casos, bastaria um produtor com algum senso de oportunidade e muita habilidade no manejo de contratos para garantir o influxo contínuo de dividendos sobre sucessos garantidos.  Seriam, nestes casos, as figuras dos intérpretes mais importantes do que as músicas ? A pergunta não é retórica. Vou modificar ligeiramente. O que é preferível: ouvir  membros remanescentes de bandas icônicas cantando novas canções desconhecidas ou, ao contrário, bandas cover interpretando velhos sucessos da maneira mais próxima possível à original ?

O megashow é território por excelência da indústria do espetáculo, comandada por produtores. Que, como os barões de qualquer indústria, abominam todo risco. Pois os investimentos são demasiado volumosos para sequer se admitir a hipótese de qualquer erro. Assim, sempre que ingressos são postos à venda para qualquer megashow, já se sabe de antemão que um público numeroso afluirá ao mesmo e dele sairá plenamente gratificado. Caminhando sobre nuvens. Vastos recursos de sonorização, iluminação e pirotecnia contribuem, além do elenco aclamado cuidadosamente escolhido para cada audiência, para a sinestesia da experiência.

Já uma situação totalmente diferente ocorre em espetáculos de gêneros musicais mais intimistas, como, por exemplo, o jazz, apresentados para plateias sentadas, escuras e silenciosas diante de um palco despojado de recursos visuais no qual músicos efetivamente correm riscos ao improvisarem em público.

Vale a pena, aqui, tecer algumas comparações entre o megashow de rock e o espetáculo intimista de jazz. Num a audiência é iluminada; no outro, não. Num o público faz parte da experiência; noutro não (vide, por exemplo, a quantidade de selfies tirados num e noutro). Um segue um roteiro minucioso, com todas as ações dos protagonistas cuidadosamente planejadas; o outro é aberto ao imprevisto. Num o público fica em pé; no outro, sentado. Num o público grita e canta junto; no outro, permanece em silêncio. Em qual deles vocês acham que ouvintes estão mais propensos a uma apreciação crítica ?

Para produtores e investidores habituados à indústria do espetáculo, a anulação do risco pode até ser tida como natural. Discordo. Pois tenho a imponderabilidade em relação ao êxito como um dos principais atrativos de qualquer manifestação artística. Pensem, por exemplo, no que seriam os famosos festivais de MPB televisionados ao vivo nos anos 70 sem o expediente da vaia. Os próprios reality shows de calouros atuais exploram ao limite a tensão entre o sucesso e o fracasso.

Além disto, no caso de manifestações radicalmente inovadoras, uma vaia contemporânea é um dos melhores indicativos de um êxito futuro. Lhes contarei uma história. Após a estréia de A Sagração da Primavera, fragorosamente vaiada pela platéia do teatro dos Champs-Elysées em 1913, seu compositor Stravinsky, o empresário dos Ballets Russes de Paris, Serge Diaghilev e o coreógrafo Vaslav Nijinsky retornaram juntos ao hotel. Diaghilev estava furioso; Nijinsky, em estado de choque e Stravinsky, radiante – somente o último, portanto, perfeitamente ciente do enorme triunfo que aquela vaia representou.