Relativismo moral: o álcool no Big Brother e na novela das 9

Telenovelas como a das 9 e reality shows como o Big Brother me causam profundo incômodo, até irritação. São reações instintivas, na maioria das vezes sem qualquer justificativa racional. Noutras, mais raras, sou acometido por insights capazes de explicar tamanha aversão. É só por causa de uma destas constatações que invado a esfera intelectual de meus leitores, via de regra avessos a tais baixarias que povoam o horário da Globo entre seus dois telejornais noturnos. Se me detenho, aqui, em certos detalhes deste tipo de lixo televisivo, é tão somente para poupá-los da entediante exposição a estes programas para entender do que estou falando.

Na atual novela das 9, um personagem alcoólatra – uma cantora de meia idade, mãe de um adulto, que se apresenta em bares às próprias expensas, sem êxito para fazer sua carreira decolar e que aparentemente não compreende a dinâmica do circo de celebridades – é retratado como alguém fraco e raso. Um fracassado que não faz nada por si próprio e que sabota a si mesmo. Num contexto maniqueísta e altamente roteirizado como o das telenovelas, está nitidamente mais para lado dos maus do que dos bons.

Noutro contexto, o do Big Brother, o consumo descontrolado de álcool é não somente tolerado como incentivado, em festas semanais, como um expediente para provocar maior desinibição e espontaneidade por parte dos participantes.

Então, temos que, em programas distintos, ainda que em janelas adjacentes na grade de horários da emissora, o consumo de álcool é mocinho e bandido ao mesmo tempo. Se isto não é relatividade moral, então não sei mais o que é.

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Tais pesos e medidas diversos para diferentes programas campeões de audiência de uma empresa de mídia que deveria, supostamente, aderir a uma linha editorial é, no mínimo, intrigante, levando, de pronto, a algumas considerações.

A primeira, mais óbvia, é que, em se tratando de canais de mídia, de pouco importa qualquer posição editorial. O que existe é, de fato, um vale-tudo em se tratando de maximizar a audiência.

Já ao examinarmos mais de perto os dois formatos, a principal diferença que salta à vista é que, enquanto a telenovela é, como já dissemos, um gênero altamente roteirizado, i.e., em que autores predeterminam minuciosamente o comportamento, a trajetória e mesmo a aprovação ou reprovação popular de cada personagem; reality shows são como tubos de ensaio nos quais substâncias variadas são misturadas para se descobrir como reagem. Como num laboratório, os reagentes podem ser estimulados a reagir mas rápido ou facilmente por catalisadores como, por exemplo, pressão (competições) ou calor (álcool).

(tudo bem, o Big Brother não é tão imprevisível e descontrolado como nos querem fazer acreditar. A indução de resultados começa na própria seleção dos participantes, na qual produtores se esmeram para escolher candidatos que mais provavelmente produziriam os resultados esperados (confesso que eu até assistiria, por curiosidade e diversão, a uma edição do Big Brother que tivesse, entre seus participantes, alguém que não desse a mínima para o programa, com aversão ao formato, ficando na casa tão somente para desfrutar de suas benesses e, é claro, com uma cláusula de imunidade capaz de impedir que fosse eliminado de pronto por outros participantes ou pelo público em razão de sua recusa explícita em “jogar o jogo”. Mas já tirei meu cavalo da chuva, pois um improvável candidato assim seria o primeiro a ser descartado pelos diligentes recrutadores). Além disto, abundam teorias conspiratórias sobre a manipulação de resultados por realizadores do programa)

Deste modo, uma emissora pode “deitar moral” num programa, dizendo como cada um deve ser e, no seguinte, mostrar que “não adianta, o ser humano é assim”. E se quisermos, podemos ainda entender, por trás da contradição representada por esta dicotomia aparentemente irreconciliável, um possível discurso subjacente à justaposição da mortal roteirizada com a baixaria espontânea que diria “este é o povo que queremos educar/consertar”. Mas será que a emissora pensou nisto ? Acho difícil. O vale-tudo pela audiência deve falar mais alto. Mas e se tivesse pensado, seria um ponto a favor da emissora ou contra ela ? Para responder isto, só mesmo um Huxley (Admirável Mundo Novo), Orwell (1984) ou, mais recentemente (mas nem tanto), Neil Postman (Amusing Ourselves to Death).

Sociedade do cansaço (2010), de Byung-Chul Han

O sul-coreano Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta, professor da Universidade de Artes de Berlim. Tendo estudado filosofia na Universidade de Friburgo e teologia e literatura alemã na Universidade de Munique, doutorou-se em Friburgo em 1994 com uma tese sobre Martin Heidegger. Seus ensaios se constituem como críticas ao hiperconsumismo, à tecnologia e à sociedade do trabalho.

Sociedade do cansaço (Vozes, 2017) é um pequeno grande livro. Como quase todo bom livro de filosofia, foi escrito originalmente em alemão (Müdigkeitsgesellschaft, 2010).

Como todo bom livro de filosofia, também é repleto de citações, incluindo Adorno, Agamben, Arendt, Aristóteles, Baudrillard, Benjamin, Deleuze, Ehrenberg, Esposito, Foucault, Freud, Gadamer, Heidegger, Hendke, Kant, Kerényi, Marx, Nietzsche, Platão, Schmitt e Sennett. Com esse mar de referências, um índice onomástico até que cairia bem, mesmo ao fim de suas suas modestas 120 páginas – 40 das quais contendo, como anexo, a transcrição de uma conferência, totalmente afeita ao resto do volume, chamada Sociedade do esgotamento.

Como todo bom livro de filosofia, Sociedade do cansaço não explicita pronta e univocamente a que veio. Antes de definir claramente suas categorias sem deixar qualquer sombra de dúvida, Han prefere, ao invés, lograr profundidade gradativamente rodeando o tema, ao modo de um redemoinho, conduzindo o leitor neste mergulho vertiginoso.

Deste modo, o significado de sociedade do cansaço ou do desempenho vai se delineando aos poucos por meio de comparações com o modelo anteriormente vigente, a saber, a sociedade da disciplina ou da vigilância. Logo no início do livro, aprendemos que as doenças típicas do século 21 são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e a síndrome de burnout (SB). No segundo capítulo, vemos que a sociedade disciplinar de Foucault, constituída de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a de hoje, cujos lugares mais emblemáticos são academias de fitness, prédios de escritórios, aeroportos, bancos, shoppings e laboratórios de genética. Que enquanto a sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes, a do desempenho produz, ao contrário, depressivos e fracassados.

Aos poucos, vai deixando claro para o leitor que, enquanto o trabalho no regime anterior era dominado pelo imperativo do dever, hoje a palavra de ordem é o (verbo) poder. Então, se antes o sujeito era explorado por um algoz externo, hoje seu algoz passou a ser ele mesmo. Esta substituição do dever pelo poder caiu nas graças do hipercapitalismo por que o último incrementa em muito a produtividade em relação ao primeiro. Com efeito, nada é mais eficiente do que um indivíduo empenhado em tirar o máximo de si. Muito mais do que qualquer outro submetido a um feitor, gerente ou fiscal. Por que a coação dá lugar à liberdade. De tal modo que o relógio ponto desapareceu para dar lugar a espaços laborais que não mais distinguem entre trabalho e lazer. Laptops, home offices, dispositivos móveis. Hoje, todo tempo e todo lugar servem para trabalhar.

A conferência transcrita ao final do livro é sobre a falta de festa e celebração na vida atual, tendo sua culminância nas afirmação de Aristóteles de que “o homem não nasceu para trabalhar”, que “quem trabalha não é livre” e que “são livres apenas os poetas, filósofos e políticos” – com a ressalva de que, hoje, até a política deixou de ser livre, por que políticos, reduzidos a administradores da economia doméstica ou a contadores, sucumbiram à necessidade e à utilidade, deixando de lado a política no sentido aristotélico, que consiste em mudar a sociedade em busca da beleza e da justiça. Conclui que, hoje, políticos trabalham muito, mas não agem.

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Estranhei que o livro não mencionasse a dicotomia, explorada à exaustão por Neil Postman em Amusing ourselves to death, entre as distopias de Huxley e Orwell, respectivamente, em Admirável Mundo Novo e 1984, já que ambas representariam perfeitamente a oposição entre as sociedades da disciplina e do desempenho abordadas por Han. Com a única diferença, talvez, que, enquanto na obra-prima de Huxley o autocomprometimento com o desempenho é logrado por meio de manipulação genética, na sociedade descrita por Han se chega ao mesmo através de determinantes comportamentais.

Sempre que mergulho na leitura de textos filosóficos, me sinto mais ignorante. Isto por que é praticamente impossível tangenciar o pleno significado de cada frase, tamanho o corpo de referências implícitas, acessíveis somente aos que dedicaram tempo e esforço, academicamente ou não, ao conhecimento da disciplina. Mais ou menos como é impossível a qualquer leitor da literatura de ficção universal fruir todas as entrelinhas de uma obra sem uma ideia básica das histórias contadas na bíblia, mãe de todo imaginário ocidental (esta ideia não é minha, mas – pasmem ! – de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo).

Ainda assim, insisto na leitura. Não só pela altíssima densidade lógica da filosofia – com seus significados abertos equiparáveis, talvez, apenas aos da poesia – mas, principalmente, por que ninguém consegue tão bem como os filósofos contemplar com suficiente distância crítica a época em que estão imersos.

Amusing ourselves to death – public discourse in the age of show business (1985), de Neil Postman

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Terminei de ler um livro fascinante, a saber, Amusing ourselves to death – public discourse in the age of show business, escrito por Neil Postman (1931-2003). Publicado em 1985, sequer foi traduzido para o português.

Até por volta do ano 2000 e antes de conhecer, portanto, a internet, lia tudo o que me chegasse às mãos precedido por boas recomendações. Depois, tendo adquirido a noção de excesso editorial que define os dias atuais, passei a declinar, por vezes com alguma frustração, da leitura da maior parte do que generosamente me indicam para dedicar o restante de meus dias exclusivamente a alguns daqueles textos que me parecem absolutamente imprescindíveis – como, no caso, este livro.

Por que tanta certeza ? Primeiramente, por se tratar de uma daquelas visões privilegiadas a explicar convincentemente o contexto a que chegamos no que diz respeito à circulação de informações. Segundo, por que o texto de Postman tem um alvo claro e convidativo, a saber, a televisão. Tais fatos, dos quais vim a saber por meio de um artigo do filho do autor publicado recentemente no The Guardian por ocasião da eleição de Donald Trump, foram suficientes para que eu importasse o volume (que, como já disse, espantosamente ainda não foi traduzido para o português) e me entregasse avidamente a sua leitura. No decorrer da mesma, não tardei a perceber, com grande prazer, que, dentre tudo o que li nos últimos anos, o livro é um dos que apresenta, talvez, a maior densidade lógica – categoria que formulei, não lembro ao certo onde, que significa a quantidade relativa de ideias expressas em uma certa extensão de texto.

Deste modo, é de se esperar que, salvo raras exceções, textos de não ficção tenham uma densidade lógica superior aos de ficção, que são, por natureza, mais descritivos, evocativos e, em muitos casos, redundantes. Sem nenhum demérito, pois assim é a literatura. Suficiente declarar, aqui, minha irrestrita preferência pelos escritos de alta densidade lógica – talvez, sei lá, em razão de minha impaciência. Precisaria nascer de novo para me tornar um leitor mais competente.

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Mas estou a abusar da paciência dos leitores, pois lá já se foram quatro parágrafos e nada, até agora, do teor do volume incensado. A ele, então.

Em Amusing ourselves to death, Postman inaugura ou simplesmente pratica (me desculpem a falta de pesquisa, fruto da pressa, já que outras leituras me aguardam) algo a que convencionou chamar de epistemologia da mídia – pois, argumenta, todo meio de comunicação tem seu próprio modo de aquisição do conhecimento. Sem detalhar historicamente (apenas mencionando) a origem do alfabeto e da página impressa, descreve os primeiros séculos da história norte-americana como uma época de primazia absoluta do discurso impresso. Ou, em suas palavras, a Era da Tipografia, também chamada Era da Explanação. Tal período se caracteriza pelo alto apreço à argumentação lógica e pela abominação da contradição. Todos os grandes oradores, tanto da política como do direito ou da religião, se dirigiam a seus públicos por meio de discursos escritos, e a leitura era hegemônica em todas as camadas sociais na América do Norte colonial até a de meados do século 19. Ler, naquele tempo, à luz de velas ou mesmo à gás, depois das horas de trabalho, estava longe de se constituir numa atividade recreativa, exigindo, outrossim, um esforço devotado e deliberado. Assim, para os norte-americanos daquela época não faria o menor sentido a noção, como temos hoje, de “um problema de leitura”, nem tampouco a existência de uma disciplina curricular chamada “interpretação de texto”. Era, portanto, uma civilização amplamente letrada, capaz de acompanhar linhas de raciocínio extensas e complexas. Postman defende seus argumentos com números que denotam a existência, então, de uma enorme atividade editorial.

A grande ruptura tecnológica veio com a invenção por Samuel Morse do telégrafo, o qual, segundo Postman, aniquilou com a correlação até então existente entre comunicação e transporte. Mas não foi só isto. O telégrafo também deitou por terra a correlação existente, nos meios tipográficos, entre uma informação e aquela que a precede ou sucede. Com isto, a informação se emancipou da obrigatoriedade de um contexto – um dos principais atributos da circulação de informação na televisão até a época em que o livro foi escrito – quando Postman alertou, inclusive, para problemas futuros em relação ao computador, então ainda uma novidade. Imaginem o que teria pensado se chegasse a conhecer sua versão mais recente, os telefones móveis, e as redes sociais.

Depois de analisar, na primeira parte do livro, as transformações epistemológicas ocorridas na passagem da Era da Tipografia para a Era do Show Business, Postman se dedica, em sua segunda parte, ao comentário detalhado da degradação do discurso público sob o impacto da televisão em diferentes áreas, principalmente na política, na religião e na educação. Para tanto, se detém bastante sobre a linguagem dos comerciais. Sua tese é a de que o foco dos mesmos não são os produtos mas seus consumidores. Empresas deixam, assim, de investir em pesquisas sobre produtos para pesquisar mercados. Palavras de políticos se tornam irrelevantes quando apenas suas imagens passam a importar. O fenômeno Nixon é demoradamente discutido. No início, o público se importava com suas mentiras. Com o passar do tempo, não é que jornalistas tenham deixado de denunciá-las. A grande tragédia, para Postman, é que o próprio público deixou de lhes dar importância. Pois contradições dependem da existência de um contexto. Numa sucessão rápida de imagens da qual é abolido qualquer contexto, toda contradição perde seu sentido.

Contra tal estado de coisas, o autor desqualifica como naive uma série de antídotos propostos por terceiros para, em seguida, formular o seu – o qual, no intuito de não oferecer um spoiler (pois quero, afinal, que vocês empreendam o esforço de ler o livro em inglês), declino de revelar.

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Me referi, no início desta resenha, à grande densidade lógica da obra-prima de Postman, que conspira contra qualquer redução abrangente de seu conteúdo. É, pois, suficiente dizer que os dados e casos que arrola para ilustrar seus pontos de vista são tão ricos quanto contundentes. Um exemplo. Embora os 15 primeiros presidentes norte-americanos (que viveram na Era da Tipografia) provavelmente não seriam reconhecidos ao circular pela rua (eram conhecidos por seus discursos), em tempos mais recentes, sob o domínio da imagem (na Era do Show Business), ninguém teria dificuldade alguma em reconhecer a imagem de qualquer celebridade, de Einstein a políticos e artistas, sem conhecer, no entanto, na maioria das vezes, o mínimo de suas palavras, ideias ou obras. Noutra passagem, lembra que não há sequer uma única imagem do carrancudo Lincoln sorridente – e que, portanto, este jamais seria eleito nos dias de hoje. Ainda noutra, informa que a Associated Press foi fundada apenas 4 anos (!) depois da invenção do telégrafo, germe da descontextualização da informação nos meios de comunicação.

Outro dos pontos altos do livro é o elenco de autores citados, que declino de enumerar tão somente para não cometer injustiças por omissão. É preciso no entanto, mencionar dois gigantes, autores de duas das maiores distopias escritas em língua inglesa no século 20, a saber, Aldous Huxley, autor de O Admirável Mundo Novo, e George Orwell, que escreveu 1984. Postman considera estas duas obras paradigmáticas e diametralmente opostas no que tange ao modo pela qual a estabilidade política do mundo seria alcançada. Alega que a profecia de Orwell, fundada sobre uma rigorosa vigilância estatal, não se realizou (ao menos nas democracias ocidentais); já a de Huxley, baseada na submissão dócil e voluntária de cada indivíduo à sua condição social, foi perfeitamente realizada na Era do Show Business, tendo a exacerbação do entretenimento, por meio da televisão, como meio principal de sustentação.

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Sobre telas, gente que não vê televisão e, ainda, o Admirável Mundo Novo

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Uma das maiores virtudes de um bom livro é permanecer vivo na mente por mais tempo do que o ordinário do restante que se lê. Assim é comigo. Enquanto ainda não posso devorar Amusing ourselves do death, sigo matutando sob o impacto do futurismo distópico de Huxley. Aqui, especulando sobre o que seria, em nossa civilização, análogo ao soma.

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Frequentemente topo, em conversas que tenho no facebook, com gente que não assiste TV. Fosse eu um antropólogo, entrevistaria tantos destes espécimes quanto conseguisse.  Pois se tratam, praticamente, de selvagens, heroicamente sobrevivendo numa era de (ainda) hegemonia televisiva.

Televisão não quer dizer hoje a mesma coisa que significava quando foi inventada. No início e por um bom tempo, a TV só dava acesso à visualização de conteúdos de pouquíssimas redes e emissoras. Então vieram os canais a cabo e por satélite, bem mais diversos. Hoje, telas adquiridas como aparelhos de TV são amplamente utilizadas para a visualização, bem mais customizável, de séries no Netflix ou vídeos no Youtube. Diante de tais possibilidades, millennials se interessam cada vez menos por conteúdos da TV aberta – preferindo, antes, garimpar conteúdos melhores na internet. Tenho que concordar que não é nada difícil.

Se por um lado a qualidade das grandes telas, propícias à sinestesia, melhorou tremendamente, é preciso também que consideremos outro aspecto importantíssimo de sua evolução, a saber, a miniaturização. Cujo “estado da arte” é hoje o telefone celular.

Tendo surgido despretensiosamente como mera extensão móvel do telefone fixo, o celular logo se revelou um Gargantua de funções ao incorporar, pouco a pouco, recursos de internet. Mais: em memórias cada vez mais generosas, tem hoje residentes, em boa resolução, toda a música que alguém gosta de ouvir, suas imagens favoritas e acesso imediato, por vários meios, a qualquer de seus amigos, colaboradores ou conhecidos. O que mais alguém pode querer para ser feliz ?

Desde que o celular se tornou demasiado interessante para só ficar guardado no bolso, sua onipresença se tornou facilmente constatável em quaisquer ambientes.. Cada nova geração do iPhone é aguardada e celebrada como um título mundial. Já foi até noticiado o caso de um “empresário” que aluga aparelhos caros (e vistosos !), sem linha, a usuários que fingem usá-los em festas. Youtubers são campeões de audiência, e há mesmo quem prefere adormecer olhando para uma tela. A primeira coisa que a maioria dos jovens trata de descobrir ao adentrar um novo ambiente é a senha do wi-fi.

Em nossa civilização, passamos uma parte considerável de nossos dias em deslocamento de um lugar a outro. Estejamos atravessando bairros, cidades, países ou continentes, é predominantemente nestes momentos que vemos o mundo ao redor. Antes, era comum se espreitar o mar sobre decks de navios, ver a paisagem através de janelas de trens, ônibus ou carros, de bicicleta ou a pé, ou até por escotilhas de aviões. Hoje, quase sempre em lugares públicos estamos cercados por pessoas com a atenção drenada pelas pequenas telas de seus dispositivos móveis. É o mesmo em meios de transporte, salas de espera, mesas de bares e restaurantes e, se deixarem, até em salas de aula.

Face a tudo isto, gosto de pensar que o soma, idealizado por Huxley como uma substância capaz de anular toda possível frustração (que garantia, portanto, em seu livro, uma civilização sem tédio), é, em muitos aspectos, análogo ao que temos hoje no telefone celular. Poderia explicar em miúdos, mas seria um insulto à inteligência dos leitores.

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Sobre o fim das grandes formas, ao término de um livro e à espera de outro

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Aldous Huxley

Livros, ainda. Alguns se conectam ao longo dos séculos ou,  mais recentemente, das décadas, dada a evidente aceleração histórica de nossa época. Como, por exemplo, alguns de Shakespeare (que devem se conectar com muitos !), escritos entre os séculos 14 e 15; o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, da primeira metade do século 20 e, de apenas meio século após, Amusing ourselves do death, de Neil Postman.

Recentemente, tive minha atenção voltada para o último por conta de um excelente artigo do filho de seu já finado autor publicado no Guardian. Tendo rapidamente descoberto que ainda não havia sido traduzido para o português, tratei logo de importá-lo. No tempo que ainda me falta para finalmente tê-lo em mãos, procedi, então, ao preenchimento de outra enorme lacuna de leitura: o clássico Admirável Mundo Novo (Brave New World), de 1932.

Notem que, nos casos acima, as referências vão muito além de meras citações – sendo, outrossim, essenciais à conceituação das obras que se referem a outras. O próprio nome do clássico de Huxley, estampado já em sua epígrafe, vem de uma passagem de A Tempestade, de Shakespeare. Tratam-se, pois, de textos que, como diria Bakhtin, dialogam entre si. Curioso que estou de saber como o livro de Postman dialoga com o o de Huxley, me consolo, enquanto ele, todavia, não chega, anotando ideias desencadeadas pela leitura da clássica distopia de Huxley.

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Podemos entender nosso tempo como uma era de morte das formas longas. No filme cult dos anos 70 “Jonas que terá 25 anos no ano 2000”, de Alain Tanner, o protagonista imaginava diariamente, ao pedalar para o trabalho, as longas “preleções” (chautauquas) que daria os filho que estava para nascer. Nelas, deitava clara sua visão de mundo – o que não é pouco !

Duas décadas e meia mais tarde,  ouço de um experiente psicólogo que a melhor maneira de se comunicar com adolescentes é por meio de falas curtas. Percebem a diferença abissal entre as duas formas de discurso ? De um lado, chautauquas. De outro, máximas proverbiais. Ou, como no livro de Huxley, a educação hipnopédica, que consistia no condicionamento moral dos indivíduos pela repetição, várias vezes ao dia por meses a fio (qualquer semelhança com frequência e período de exibição de anúncios publicitários não deve ser mera coincidência…), de bordões, repetidos como mantras, durante seus períodos de sono, reforçando o que seria ou não socialmente desejável.

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Neil Postman

Antes de ler o livro de Postman, sei, em grande parte por meio do artigo de seu filho no Guardian, que a tese de fundo de Amusing ourselves to death é a ideia de uma civilização fundada sobre a diversão e a gratificação – e, portanto, não mais sobre a reflexão e a permanência. Consideremos a máxima, cuja autoria me foge à memória, de que é a morte que define a vida. Haveriam, assim, vidas esquecidas (a maioria) e, em quantidade bem menor, lembradas. No último caso, invariavelmente por seu legado – que pode ser, por sua vez, material (afeito à posse) ou intelectual (científico ou artístico; afeito à autoria e avesso à propriedade). Tomemos, então, o seguinte referencial

antes, não que educava mais para querer ser lembrado por algum tipo de legado (material ou não; todo empresário visa, ao final, a uma herança, assim como todo artista quer, acima das circunstâncias temporais, deixar uma obra legada para a posteridade);

hoje, não estamos envolvidos por uma cultura na qual a maioria trabalha, antes de tudo, em nome do máximo de entretenimento e bem estar material que possa, porventura, conquistar. Em vida ou, quando muito, para seus sucessores biológicos.

Neste último cenário, as grandes formas narrativas (tais como grandes romances, novelas, contos, ensaios, sinfonias, concertos, música de câmera, ópera, filmes (notem que não falo em séries !) e outros) perdem importância e espaço para enunciações mais sucintas (tais como singles, tweets, posts em redes sociais, mensagens instantâneas e afins). O fim do conceito de álbum é um dos sintomas mais precoces disto.

O fim das grandes formas discursivas também pode ter a ver com a evolução das tecnologias. Queira-se ou não, foi só depois do surgimento da internet qua a autoria quase universal teve que privilegiar (pelo excesso discursivo, como já dissemos) falas mais curtas. Compare-se, por exemplo, a extensão média dos enunciados em redes sociais (postagens no facebook, twitter e outras plataformas de mensagem textuais e visuais) com a de romances, novelas, contos, artigos e notícias da era anterior, de hegemonia do texto impresso.

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Insisto na importância, para toda edição de qualquer livro, da escolha dos tipos mais adequados. Vejam, por exemplo, uma comparação entre edições de Admirável Mundo Novo da Globo, da qual já reclamei aqui, e da Abril, encadernada – a qual descobri escondida em minha modesta biblioteca só depois que terminei de ler o volume novo que recém adquirira.

Não me senti um idiota por ter gasto com um livro que já tinha – mas por ter desnecessariamente enfrentado uma leitura mais penosa tão somente por ignorar que dispunha de uma edição com tipos bem mais amigáveis. Ainda que o espaço entre linhas seja, no volume da Globo, bem mais confortável e elegante. Os dois livros em números: o da Globo tem 306 páginas de 29 linhas; o da Abril, 310 de 32.

Não sei vocês, mas eu pagaria de bom grado por um pouco mais de papel. Não só no tamanho da folha como na gramatura (o papel da Abril é, como podem ver abaixo, mais transparente). Pois nenhuma leitura que não seja confortável pode ser prazerosa.

À esquerda, página da edição da Globo; à direita, da Abril.

Respeitável Público, de Henrique Schneider, e considerações sobre o problema da leitura numa época de escrita excessiva

Livros. Ontem, tentei explicar a meus filhos que um dos maiores problemas de nossa era de excesso de conteúdo é que, ao contrário de como costumava ser logo antes do surgimento da internet – quando, sob a  hegemonia dos broadcasting media, tínhamos  uma coleção mais ou menos delimitada suficientemente ampla de textos máximos cuja totalidade representava tacitamente tudo o que de mais notável já fora produzido pelo espírito humano; vivemos hoje numa época em que a quantidade de textos disponíveis se multiplicou exponencialmente, de tal modo que é impossível a qualquer um ler, ao longo de uma vida, tudo o que a humanidade escreveu de importante até agora.

Então, se antes, com alguma dedicação, se podia, ao longo de toda uma vida, ler quase tudo o que de mais sublime a humanidade já produziu; hoje, seguramente, não. Até por que, para começar, teríamos enorme dificuldade em discriminar o essencial do excessivo numa era de expansão exacerbada da autoria (age of nearly universal authorship, significando que nunca antes tantos escreveram tanto).

Foi quando Astrid me disse que um leitor dedicado é capaz de ler um livro por dia; um profissional (i.e., que divide a leitura com outras ocupações), um a cada 3 ou 4 dias.

Então, podemos grosseiramente afirmar que lemos, na maioria das vezes, mais ou menos na mesma “velocidade lógica” em que vemos um filme, ou seja, na medida em que, em nome da “apropriação” de uma narrativa, suportamos frustrar nossa expectativa de um desfecho dramático por uma ou duas horas. Ou, no caso da música (sem entrar na controversa seara da complexidade harmônica – nem que só para não despertar os ânimos mais exaltados), de formas mais ambiciosas. Na prática, falo da duração da maior forma não repetida que é ouvida em cada música. Naquela chamada de “popular” (jazz, inclusive), se costuma ter como extraordinária qualquer coisa com 5 ou mais minutos de duração (“a 5+, 6+, 7+ or longer track”); na “clássica” ou “erudita”, nada que não tenha lá seus 12 ou 15 minutos. Coisas de 3 minutos ou menos ? Desconfiem sempre. Tal preconceito, que orgulhosamente professo, tem me ajudado a discriminar muito lixo dentre tudo o que há, na era de excesso em que estamos, para ser ouvido.

Em todos os casos, a leitura de um livro implica num tipo de foco mais prolongado. Uma sorte de atenção praticamente desconhecida na cultura mobile, cujos feeds se atualizam à razão de até muitas vezes por minuto.

(já devo ter dito aqui, mais de uma vez, que, no contexto atual, Bakhtin de esbaldaria com sua teoria do discurso articulado pela alternância de falantes)

Distopias com a proscrição de livros existem às pencas. As melhores que conheço são as novelas Admirável mundo novo, de Huxley,  e Fahrenheit 451, de Bradbury, filmada por Truffaut. Enquanto na primeira o banimento da leitura se dá pelo condicionamento, na última se deve a uma proibição. Por ser, de algum modo, menos violento (não, havendo, por exemplo, a poderosa figura da queima de livros), o primeiro é muito mais perverso e eficaz do que o segundo.

Quem me conhece a mais tempo sabe que, por volta de quando tinha 30 anos, me tornei um “leitor de catálogos e manuais”. A alcunha, criada pelo Milton, não poderia ser mais precisa, pois venho lendo, por décadas, tão somente textos longos referentes a alguma preocupação bem específica de índole técnica ou acadêmica. Com isto, os poucos textos de ficção que li nos últimos 20 ou 30 anos foram quase sempre presentes de amigos que escrevem bem. Muito bem. Tenho sorte quanto a isto. Então, costumo ler (talvez, sei lá, por medo de não saber o que dizer ao lhes reencontrar), contos ou novelas que me chegam carinhosamente às mãos (ou à vistas, se quiserem) como presentes de seus autores. Como Respeitável Público, de Henrique Schneider (Dublinense, 2015).

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Lendo Respeitável Público, se descobre rapidamente por que seu autor já teve ao menos uma história roteirizada para o cinema. É que suas descrições de lugares, ações e personagens grudam na memória como as melhores cenas de um filme. Os diálogos são, mais do que precisos, cirúrgicos, desprovidos de quaisquer acessórios. Dignos, no mínimo, de bons dramaturgos.

Li em poucos dias (mais, é claro, do que nas poucas horas levadas por Astrid para devorá-lo). Livros e filmes, de assimilação lenta por definição, tem que ter, como bons pratos, um certo after taste. Há, na novela de Schneider, twists (nós) dramáticos claros, de diferentes intensidades, ao longo de toda a narrativa, guarnecidos por capítulos adjacentes como cenas de um filme bem montado. Como em muita boa música (mostly jazz & late romantic) e, de resto, em toda boa literatura policial, o uso inteligente das cadências deceptivas. Tanto que arrisco até o palpite de que tais injunções foram planejadas pelo autor, como em algumas composições de Beethoven, bem antes do próprio detalhamento do texto. Como, no entanto, não queremos oferecer spoilers, é suficiente por hora dizer que o principal contraste de tensão dramática existente entre dois pontos da obra, para os quais toda a narrativa converge, é entre os acontecimentos (ou cadências deceptivas, se quiserem) que culminam, respectivamente, nas páginas 110 e 126 do volume. Curioso ? Leia o livro, então !

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Ainda que irrelevante para a atribuição de qualidade ao teor do livro acima resenhado, o que será dito em seguida é, a meu ver (no second meanings, please !), de crucial importância para garantir alguma audiência a tudo o que ainda é impresso em papel. Tem a ver com tipografia. Parece pouco importante ? Vamos, então, a alguns fatos.

qualquer texto impresso é lido com mais facilidade (e, portanto, maior prazer) quanto maior for a fonte tipográfica utilizada na composição do volume;

a iluminação, tanto de telas como de papéis impressos, também contribui, em razão direta, para a legibilidade de um texto;

indivíduos com mais idade tendem a ser mais preparados e/ou predispostos para a leitura do aqueles mais jovens, notadamente nativos digitais; tragicamente, no entanto, a visão humana se deteriora com o avançar do tempo.

Em razão disto, o tamanho e o contraste de uma fonte tipográfica são fatores cruciais para a maior ou menor leitura de qualquer coisa que se imprima. Especialmente no caso de livros, que demandam uma atenção mais persistente. Os quais, por cansarem mais a vista em razão da demora na leitura, demandam tipos visualmente mais confortáveis.

Por que tudo isto ? Tão somente para sublinhar que, no caso do volume que acabo de ler da Dublinense, contribuiu para a manutenção de meu propósito de enfrentar o (ótimo) texto até o final, tanto quanto sua qualidade intrínseca, também o fato de ter sido impresso num ótimo papel com letras suficientemente grandes e “pesadas” – como se impressas em negrito (ou bold) para vistas mais cansadas. Tipos serifados, como Times Roman, também são bem mais legíveis, quando impressos em papel, do que, por exemplo, o que utilizamos aqui.

Editores: jamais subestimem os benefícios de uma boa composição tipográfica !

Pois não devo ser o único a padecer de pouca paciência com fontes rarefeitas e tipos pequenos demais. Agora mesmo, sofro com as minúsculas letras de uma outrossim belíssima edição da Globo de Admirável mundo novo – lacuna de leitura à qual prazeirosamente hora me dedico. Para melhor ler Amusing ourselves to death, de Postman, assim que  chegar.

Comparação entre os tipos utilizados em volumes publicados pela Dublinense (acima) e pela Globo (abaixo)