Antivacs: algumas teorias conspiratórias, tão divertidas quanto potencialmente catastróficas

Advertência: conquanto aborde um tema trágico, este é um post humorístico.

Com o acirramento da peste e o acesso às vacinas cada vez mais distante, começo a receber em redes sociais depoimentos de segmentos anti-vacina, também conhecidos como antivacs. Alguns primam pelo aspecto de credibilidade, como uma compilação que me veio de vídeos como este:

Outras postagens, mais toscas, que apelam para o terror, impressionam pela criatividade:

A VACINA DA ESTERILIZAÇÃO


Quer saber a verdade? …


A “vacina” que quase todos os governos do nosso planeta estão a aceitar é o chamado “mRNA”, que circula pelo sangue até encontrar um receptor de enzima [ACE2] que existe principalmente nos testículos, nos ovários e muito pouco na mielina dos neurônios.


O “m” é para mensageiro, através do receptor, o RNA penetra na célula e nela reescreve seu código genético. A célula deixa de servir para aquilo que a natureza a criou, serve apenas para criar o que os laboratórios projetaram para o RNA. Teoricamente “defesas”.


O resultado dessa vacina será que, em curto prazo 97% dos homens inoculados ficarão estéreis. Se forem crianças pequenas, nunca desenvolverão características sexuais secundárias. Serão crianças andróginas, sem desejo sexual e provavelmente muito mais manejáveis ​​e obedientes do que alguma vez os nossos ancestrais foram, ou mesmo do que nós mesmos.


Por outro lado, 45% das meninas serão estéreis, ou seja, não poderão conceber filhos. O dano neural, por outro lado, afetará parte do seu córtex frontal “a frontex” Sim, poderá trabalhar e também dirigir um carro, mas não será capaz de pensar profundamente. Escravos perfeitos do Novo Normal … da Nova Ordem. !! É a FASE 3 do plano, a finalização do projeto do EVENTO 2001.


A FASE 1 era para assustá-lo, isolá-lo e prendê-lo com um vírus que, como causa única, matou apenas uma pequena percentagem de pessoas em comparação com a população mundial. Muito menos do que a gripe do ano passado.


A FASE 2 era para o fazer usar uma máscara grotesca e inútil que não só despersonaliza como também te priva do oxigênio necessário para os pulmões e sangue … em suma, para respirar corretamente … E por tão pouco, perdeu seu emprego, seu parceiro, seus pais, seus filhos, … seus afetos.


FASE 3, Já está desesperado e quer acabar com tudo isso de uma vez por todas… Até já pede a Vacina. Vão te dizer que eu minto,… Pergunte: o que contém a vacina? Vão responder que por lei nem os médicos podem saber. Segredo.!!! Será que não tem maturidade para conhecer, confiar no seu governo, nos média, na OMS e nos funcionários assalariados de George Soros e Bill Gates.


Eles dirão que os laboratórios são responsáveis, mas por lei você não poderá reivindicar a ninguém. Vejamos, quando “as bolas” secarem, você só terá que chorar pelo que sobrou delas. Sabe que nunca poderá ter filhos ou netos, que nunca verá seu filho porque não poderá ser pai, também não terá cérebro para pensar nisso … porque terá sido lobotomizado.


A oposição ? Não quero deixá-los amargos, mas 90% dos partidos nas democracias ocidentais, mesmo no terceiro mundo, recebem dinheiro da “Sociedade Aberta” de George Soros, da Fundação Bill e Melinda Gates, da Fundação Ford, mda Fundação Rockefeller, do Partido Comunista Chinês por meio de seu homem de frente, o investidor Ming Wai Lau.


Quem te vai dizer a verdade? pessoas como Dra. Roxana Bruno, Dra. Chinda Brandolino ou Dr. Heiko Schöning, aqueles de Doutores pela Verdade, Advogados pela Verdade, Professores pela Verdade. Desligue a TV, respire, saia para abraçar seus pais, abrace a liberdade, não deixe nenhum médico que não seja da verdade lhe tocar, nem nenhum advogado que não seja da verdade o aconselhar sobre o assunto.


Só assim , a Ditadura da Saúde Global da Nova Ordem Mundial entrará em colapso e vamos acordar de uma vez por todas deste pesadelo terrível. Além de que a vacina está completamente ligada à 5G e à futura 6G e aos Mega Computadores de Inteligência Artificial – Controle total, Dominio total. Mas isso fica para mais tarde!

Cris.

(devo confessar que, em consideração aos leitores deste blog, dei uma “ajudinha” ao texto acima (querem prova maior de carinho pelo contraditório ?…), que me veio como um desabafo, de uma sentada só, corrigindo sua distribuição em parágrafos).

Superficialmente, não imagino o que pode levar negacionistas a ignorar evidências contundentes como o sistema de saúde entubando casos graves e nações sepultando seus mortos em taxas diárias superiores às de atentados terroristas ou, desde o início da pandemia, em número superior ao de vidas perdidas nos maiores conflitos bélicos da história.

Ora, para fazer frente a uma teoria conspiratória amplamente aceita, nada melhor do que outra teoria conspiratória, mais mirabolante do que a primeira. Então, pensando numa motivação capaz de levar médicos e cientistas (supostamente) respeitados a negar evidências avassaladoras ao emprestar sua chancela a tais teorias, me lembrei do célebre princípio investigativo, conhecido como follow the money, usado para explicar comportamentos outrossim… inexplicáveis. Desta forma, não seria de todo implausível que conglomerados farmacêuticos que ficaram de fora da corrida pela vacina (e cujas ações, portanto, despencaram em relação às da Pfizer, Moderna, AstraZeneca ou Sinovac) tenham patrocinado vozes respeitáveis para sabotar a concorrência. Pois não esqueçam que, no hipercapitalismo, vale tudo.

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Demasiado mirabolante ? Certamente não mais do que a teoria conspiratória que deu origem a esta contra teoria. Fiquem bem ! E, quando conseguirem, tomem a vacina !

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Em tempo: tentando descobrir a origem do primeiro vídeo citado neste post, topei com o seguinte debunking – que, em razão da importância do tema, vale a pena citar:

A educação a distância e o enfraquecimento da voz docente

Blogar é procrastinar. Isto por que, a menos que tenhamos um blog dedicado (tido, neste caso, como referência em sua área temática) e, consequentemente, monetizado, sempre que nele mergulhamos – e, acreditem, manter um blog toma muitas horas – estamos adiando tarefas mais urgentes, quase sempre associadas a nosso(s) modo(s) de sustento. É como se o blogueiro estivesse sempre prestes a ouvir de entes próximos a clássica exclamação, atribuída à esposa de Richard Strauss“- Vá compor, Richard !”.

Dito isto, interrompo temporariamente o burocrático (e, por vezes, difícil) trabalho, ensejado pela pandemia, de verter ao Moodle (plataforma ultra formatada de educação a distância) disciplinas acadêmicas que ministrei por  décadas, em encontros presenciais, periódicos e, por que não dizer (ainda que isto possa causar horror a algum teórico da educação), improvisados. Não estou, com isto, preconizando a prática a quaisquer docentes. O planejamento e a sequenciação pedagógica são, sem sombra de dúvida, absolutamente necessários a professores encarregados, num modelo escolar, de administrar a aquisição de um enorme volume de conhecimentos a um grande número de alunos.

Tal não é a situação, no entanto, no caso específico de aulas individuais ou em pequenos grupos de instrumento musical, que transcorrem numa abordagem clínica, em que os passos imediatamente seguintes são determinados a cada instante em razão da escuta docente.

Mas não vim aqui para reclamar disto – até por que, se em décadas de magistério, ainda não tivesse apreendido a ajustar planos de ensino e quetais a esta imponderabilidade intrínseca, melhor teria sido mudar logo de profissão.

A peste está colocando em cheque, entre tantas outras coisas, pressupostos educacionais há muito naturalizados e poucas vezes criticados – dentre os quais o tradicional binômio professor/livro-texto, sobre o qual repousa grande parte da atividade escolar. Mais ou menos como no caso de um ator preso a um script, quase toda interferência docente se dava no sentido de maximizar, por meio de estímulos positivos e inibição de eventuais desvios de processo, a assimilação de conteúdos pré-estabelecidos. Não que tais conteúdos, em grande parte conhecimentos e habilidades, não fossem essenciais à aquisição de artes e ofícios. Muito antes o contrário. Só que a curiosidade, a capacidade crítica e a auto-aprendizagem podiam muito bem passar ao largo da vida acadêmica de muitos estudantes outrossim brilhantes. Não canso de lembrar do caso de uma colega de um de meus filhos, dentre as melhores de sua turma, com notas irrepreensíveis, que, de certa feita, perguntou se o Japão ficava na Europa.

Hoje, dependendo de como se posiciona em relação aos meios de pesquisa e aquisição de conhecimento facultados pela web, um estudante depende cada vez menos, em sua formação, da voz docente. Bons professores sabem disto e, antes de se renderem obsoletos, se reinventam. Em vez de respostas, oferecem perguntas. No lugar de certezas, dúvidas. E, sobretudo, antes de investirem qualquer fonte de uma autoridade suprema, ensinam meios de validação capazes de equipar sujeitos para a escolha de suas próprias referências.

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Leituras obrigatórias são um tipo sofisticado de violência. “- Ah, mas o prazer da leitura só se adquire com a força do hábito, e leituras obrigatórias são o que há de melhor em se tratando de incutir tal hábito”, dirão os defensores da escolarização – aos quais retrucarei de pronto: “- Mas nenhum prazer se compara ao da descoberta casual de um grande livro – a qual se dá muito mais frequentemente por recomendação confiável do que por imposição curricular.”

(a língua inglesa dispõe de uma palavra adorável e intraduzível – serendipity – para designar a descoberta casual)

Estamos imersos numa cultura de textos sagrados. Em se tratando de escritos religiosos, não faltarão filósofos, intelectuais ou cientistas a lhes minar a credibilidade ou a própria relevância. Na arte, infelizmente, a situação é um pouco mais complicada. Pois, ainda que sempre possamos nos apoiar sobre uma crítica mais lúcida e/ou arguta, o mercado está aí para subverter as hierarquias estéticas, de tal modo que hordas ainda se deixam levar pelo “sábio consenso das maiorias” que consagra bestsellers e blockbusters. Em música tampouco é diferente. O que só nos leva a concluir que, nestes casos, o livre artbítrio não é assim tão livre.

O mantra do consumo cultural acrítico é o célebre “gosto não se discute”, tão invocado em defesa de obras que não resistem a uma apreciação mais demorada. Ora, gosto se discute sim. A pretensa inatacabilidade do gosto lembra muito a revolta de Richard Dawkins em relação à aura de respeito (enquanto não questionamento) que cerca toda e qualquer crença religiosa. Mas isto já é outro assunto.

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A sala de aula e a internet. Dois paradigmas educacionais contrastantes. No primeiro, o lugar do professor é um de autoridade. Mais do que ser quem controla o processo, é através dele que o mesmo se dá. Depois que uma aula começa, ninguém entra e ninguém sai. Celulares, quando permitidos, são ostensivamente indesejáveis. Neste formato, não cabe ao aluno questionar o propósito ou a eficácia das atividades propostas, já que fazem parte de um contrato previamente estabelecido entre, de um lado, instituições e professores e, de outro, alunos ou seus pais ou responsáveis e tacitamente aceitas, portanto, por ambas as partes.

Alguns  aspectos questionáveis, ainda que velados, do estado de coisas acima descrito, muitos deles resumidos na oposição entre saberes dos mais novos e dos mais velhos, foram escancarados com a implementação praticamente hegemônica, ensejada pela peste,  de formatos de educação a distância, antes restritos apenas a segmentos do ensino superior. Crianças tendo aulas em casa, situação antes impensável, se tornou o novo normal. Nesta modalidade, a voz de professores, que antes imperava em ambientes compulsoriamente silenciosos, está agora restrita a apenas uma  das múltiplas janelas que podem se abrir diante de cada aluno, ao sabor de sua atenção flutuante.  Isto é ruim ? Não necessariamente. Se há, por um lado, um evidente enfraquecimento da autoridade docente, existe também, claramente, um empoderamento discente. Ainda que poucos saibam utilizá-lo, em razão de não terem tido tempo de serem treinados para tanto.

Noutras palavras: se hoje ficou bem mais fácil a quem não quer não assistir a uma aula, também é verdade que agora só assiste a uma aula quem quer – o que é muito melhor !

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Como a peste acelera a agonia do broadcasting

Não é de hoje que a televisão aberta vem dando claros sinais de esgotamento frente a outros meios mais interativos ou, no mínimo, customizáveis. Quando perguntei, tempos atrás, a um de meus filhos qual o sentido dele navegar na web enquanto permanecia diante da TV ligada indiferente à mesma, sua resposta foi rápida e categórica: “é que aqui (no celular) tenho mais opções e maior controle sobre o que quero assistir”.

A grade de programação da TV comercial aberta se consolidou, grosso modo, como um mix de noticiários, telenovelas, reality shows, programas de entrevistas e variedades (geralmente com auditórios), filmes e seriados – estes últimos anteriormente referidos como “enlatados”. Com a pandemia, toda a rede de produção, pelas emissoras, das quatro primeiras categorias  acima colapsou.

Os auditórios foram os primeiros a desaparecer. Cada vez mais passamos a ver repórteres com máscaras e, pouco a pouco, apresentadores e âncoras começaram a transmitir de suas casas. Entrevistas e depoimentos passaram a ser obtidos por meio de videoconferência. Mesmo que alguns telejornais, com cenários e bancadas imponentes e estúdios super povoados,  ainda resistam, o formato está com os dias contados. Comparem, por exemplo, a parafernália envolvida (e diretamente associada ao conceito dos mesmos) em telejornais de abrangência nacional com aquela de seus primos mais pobres, os noticiários locais e regionais, que já aderiram a formatos mais econômicos.

Cabe, ainda, notar que, face ao colapso das estruturas de produção, a TV mergulhou numa profusão de reprises. Não só de telenovelas mas, também, de entrevistas requentadas e, espantosamente, partidas de futebol. Nunca antes acervos televisivos foram tão importantes.

Com tudo isto, os conteúdos veiculados pela TV estão cada vez mais parecidos com o que vemos habitualmente em redes sociais. Com a significativa vantagem, cabe lembrar, de que, em redes sociais (narrowcasting), podemos, ao contrário de na TV (broadcasting), 1) melhor custumizar conteúdos e 2) interagir, se assim o quisermos, com seus transmissores. Não é pouca coisa. Assim como não tem sido pouca a capacidade de rápida reação e adaptação da TV a novos contextos desfavoráveis desde o surgimento da internet. De modo que, diante de inequívocos sinais de mudança, é impossível prever a sobrevivência ou não de grandes conglomerados televisivos

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A TV sempre funcionou, tradicionalmente, em sintonia com valores centralizados. Poucas emissoras. Grandes patrocinadores. Programas tipo “one size fits all”, capazes de captar audiências num vasto território. Neste cenário, chama muita atenção campanhas como VAE (Vamos Ativar o Empreendedorismo), uma ode ao pequeno negócio. Se vingar, uma coisa é certa: empresas individuais ou familiares incentivadas pela supracitada campanha jamais estarão em condições de comprar as caras janelas publicitárias comercializadas por redes concessionárias de TV junto a grandes grupos empresariais.

Talvez a Globo não espere, com uma boa dose de razão, que, em decorrência da provável explosão de pequenos empreendimentos incentivados pelo VAE, seus grandes patrocinadores quebrem. O que denotaria uma disposição da emissora de, na impossibilidade de prever que ventos soprarão na economia, ficar bem com todo mundo, tanto grandes quanto pequenos. Numa posição corporativa, diga-se de passagem, perfeitamente razoável. Como a de empresas que, em eleições, doam para campanhas de candidatos rivais. Mas, como ninguém é bobo, trata de diversificar as fontes de seu capital de custeio. Isto pode ser claramente observado na agressividade com que vem promovendo seriados, nacionais e enlatados, em sua plataforma de streamming (pago) Globoplay. É como se, na incerteza de poder contar, num futuro não muito distante, com seu custeio maciçamente bancado por anunciantes, busque inclinar drasticamente sua matriz de financiamento para  consumidores finais de sua programação, até então acostumados a não pagar nada pelo que assistem na TV aberta.

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Em sua agonia, a TV não esconde a relação ambivalente que mantém com sua grande rival, a internet. Ao mesmo tempo em que tenta, desajeitadamente, assimilar atributos tão afeitos à web quanto estranhos ao broadcasting (como, por exemplo, o arremedo de interatividade das “votações populares” em reality shows), reivindica para si um suposto monopólio da credibilidade, por sua vez apregoada como o calcanhar de Aquiles das mídias sociais. Como se o jornalismo tradicional, e somente ele, fosse capaz de verificar a veracidade do que é veiculado. Ora, é largamente sabido que, na infância da rede, da qual mal saímos, notícias falsas são abundantes – tanto que seu manejo pode facilmente eleger um presidente. Umberto Eco estava coberto de razão quando disse que a internet era habitada por uma legião de idiotas – declaração que lhe custou a acusação de ser um netskeptic.

A suspeição levantada acerca da credibilidade da web é, no entanto, apenas transitória. A rede veio para ficar e, diante de seu avanço inexorável, é cada vez mais necessário que seus usuários dominem uma das habilidades descritas por Howard Rheingold como dentre as competências essenciais à aprendizagem no século 21, a saber, crap detection (detecção de lixo). O exemplo clássico de Rheingold é uma biografia falsa, caluniosa, de Martin Luther King, que desponta em primeiro lugar numa consulta ao Google, plantada num site mantido pela Ku Klux Klan.

Acreditar no monopólio de empresas jornalísticas sobre a competência para a verificação de fatos é mais ou menos como defender a volta de datilógrafos ou, ainda, de revisores em salas de redação. Pois novas tecnologias implicam em novas responsabilidades (que me perdõe o Homem Aranha pela apropriação).

Mas não é só por meio de notícias falsas que se pode distorcer a realidade. Padrões de omissão e ênfase também dão conta de imprimir claramente em mensagens posições ideológicas assumidas por seus enunciantes – e, neste ponto, veículos de imprensa são tão parciais quanto quaisquer perfis proselitistas nas redes sociais das quais tanto desdenham. Vejam, por exemplo, o contraste entre, de um lado, a ampla cobertura dada pela Globo a ações filantrópicas corporativas e, de outro, seu absoluto silêncio sobre as repetidas doações de alimentos pelo MST a populações mais afetadas. A imparcialidade jornalística é um mito.

Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Textos sombrios (iv): Qual o sentido de ser produtivo durante a quarentena ?

Depois de algumas semanas, começa a ficar claro que o isolamento vai durar bem mais do que uns poucos meses. Já há quem fale que o distanciamento social perdurará, ainda que intermitentemente, até 2022, e que qualquer coisa antes disto, tipo uma vacina, deverá ser saudada como uma grata surpresa. Uma realidade bem pesada, até mesmo para quem tem a sorte de poder permanecer em quarentena. Digo sorte por que só uma minoria, que desfrutou de condições iniciais vantajosas, como apoio dos pais e/ou certo lastro financeiro, para estudar mais do que os outros e, com isto, lograr posições de trabalho relativamente mais estáveis dentro do colapso social e econômico que vivemos, pode se dar ao luxo de cumprir as determinações de autoridades sanitárias.

Neste contexto, é perfeitamente natural que tantos se entreguem à manutenção de rotinas de trabalho com uma dedicação quase maníaca, espécie de surto produtivo, numa tentativa desesperada de negar o que está acontecendo. Será, no entanto, daqui prá frente, cada vez mais difícil sustentar este tipo de comportamento, que pode bem ser chamado de negacionismo profilático.

Embora o grande capital (bancos e grandes conglomerados industriais e comerciais) já venha, há algum tempo, se aproveitando da crise para agregar à sua imagem a de grande benfeitor público,

(ora, não fazem mais do que a obrigação; os que doam não são heróis – antes, os que não doam é que são omissos; empresas “generosas” tentam fazer passar por filantropia migalhas que concedem de seus lucros exorbitantes e sub-taxados)

ainda não foram sentidos os efeitos da ruptura definitiva dos tênues laços que ainda sustentam o tecido social.

O grande levante nunca esteve tão próximo. Não falta muito para que pobres finalmente se sintam irremediavelmente abandonados pelos ricos e, finalmente, se revoltem. E aí, não há repressão armada que segure. Esses dias, uma notícia não recebeu a repercussão que merecia.  Citava uma pesquisa que estimava que 60% da população de favelas  do Rio de Janeiro só tinha renda para se alimentar por mais uma semana. Se isto for verdade, e se a pandemia se prolongar, de pouco adiantará o auxílio temporário de 600 reais.

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Mas deixemos de lado, por hora, tal cenário apocalíptico. Até por que a resignação, a submissão e a passividade dos oprimidos já deu provas contundentes de resistir às maiores provações. Então, se você pertence à minoria privilegiada que pode se dar ao luxo de uma quarentena, assegurada por tele-entregas e amenizada pela interação exacerbada em redes sociais, será atormentado, no máximo, por típicos “problemas de gente branca” – tal como, por exemplo, “o que será de minha ocupação principal quando (se) tudo isto passar ?”. Pois a peste só veio a acelerar o fenômeno, há anos postulado, da obsolescência das profissões.

Tais ideias são, obviamente, angustiantes e, portanto, justificam em parte o supracitado negacionismo por meio de surtos de produtividade. Longe de mim querer entender por que isto acontece – até por que muita gente vem fazendo isto, com maior ou menor grau de profundidade, respectivamente, aqui e aqui.

É claro, no entanto, que este súbito interesse renovado pela produtividade compulsiva me remete diretamente a um livro fundamental que, já em 2017, se preocupava com o fenômeno (ainda que restrito à comunidade acadêmica), e que resenhei aqui. Se tiverem a paciência e o interesse de ler os artigos de agora e a resenha do livro de três anos atrás, devem perceber alguma correlação.

 

Textos sombrios (iii): projeções nefastas a propósito da pandemia

Os primeiros casos, na longínqua China, pareceram eventos distantes cuja existência apenas admitimos 1) por ter tido, em algum momento, alguma instrução em geografia; 2) pela rápida circulação de notícias remotas típica de nossos dias ou 3) por topar vez que outra com algum chinês expatriado circulando entre nós. Até aí, os mais pobres de imaginação e/ou informação – i.e., a maioria – não deu muita importância.

A peste só se tornou parte da realidade palpável com o início, entre nós, da transmissão comunitária, a qual desencadeia, junto com medidas urgentes por parte de autoridades sanitárias, uma consciência coletiva da ameaça – tanto mais perigosa porquanto invisível. Súbito, todos passaram a enxergar os outros como possíveis vetores de contaminação.

Estamos neste momento da pandemia, no qual ainda é cedo demais para estimarmos o tamanho do impacto do medo do contágio no comportamento social, muito mais intenso do que no improvável caso de um apocalipse zumbi – no qual é sempre possível identificar imediatamente, por sinais externos visíveis e inequívocos, facilmente reconhecíveis, o perigo iminente representado pela aproximação de um indivíduo infectado, infectante e incurável.

Já se pode, no entanto, tendo como premissa a marcha dos acontecimentos numa mesma direção (hesitação na tomada de medidas contra a expansão da peste e consequente incerteza quanto a um ponto, futuro e ainda hipotético, de inversão da já famosa curva), bem como a ausência, até o momento, de uma vacina e protocolo de tratamento testados e eficazes, imaginar até onde poderia chegar a exacerbação de reações anti-sociais desencadeadas pelo supracitado medo. Dois sintomas deste ambiente falam por si só: a corrida às armas nos EUA e os quase linchamentos em toda parte (Tornaremos a isto adiante).

Aqui, se faz necessário esclarecer que de modo algum nos referimos à quarentena como uma medida anti-social.  Muito antes pelo contrário. Por que a quarentena, dada a invisibilidade da presença do vírus em seu período de incubação (a qual não permite, por sua vez, que contaminados se saibam contaminados por cerca de duas semanas, durante as quais poderiam contaminar muita gente), serve muito mais para prevenir a contaminação dos outros por parte de quem se isola do que, propriamente, destes últimos por parte de quem circula. Isto é facilmente demonstrável, já que a circulação de alguém testado positivamente para o coronavírus é potencialmente muito mais nociva a sociedade (i.e., pode contaminar muitos) de que a circulação de alguém que teste negativamente para o mesmo (a qual pode acarretar, no máximo, a contaminação do indivíduo saudável que circula). Assim, a quarentena pode ser definida muito mais como uma medida de proteção aos outros do que a si mesmo – o que, portanto, a qualifica mais como uma medida altruísta do que, propriamente, anti-social.

Os linchamentos. Mesmo que ainda não haja relatos sobre nenhum incidente fatal, já é possível se observar, em ambiente públicos, olhares incômodos, antes casuais mas agora sistemáticos, em direção aos que tossem ou espirram sem proteger o próprio rosto. Soube, por um comentário em rede social (este manancial de enunciações falsas, redundantes ou francamente desnecessárias a diluir o que realmente importa), que, dia desses na Ceasa, um carregador que espirrou sem tapar o nariz quase foi agredido, não fosse a intervenção rápida de agentes de segurança. Os nervos andam à flor da pele.

Também é perfeitamente compreensível, em tempos de peste como agora, o desaparecimento de produtos tidos como essenciais das prateleiras dos supermercados. Quem não riu, por exemplo, da corrida ao papel higiênico vista nos primeiros dias ? Eventos assim sugerem um comportamento de manada, em que todos correm na mesma direção sem saber ao certo por que estão correndo. Neste caso, quando todos viram um número de pessoas maior do que o habitual adquirindo papel higiênico, se pusessem, desesperadamente, a esvaziar as prateleiras do produto. Bastou, porém, que comerciantes, reconhecendo o fenômeno, repusessem imediatamente o mesmo, sinalizando, com isto, sua não escassez, para que a demanda voltasse à normalidade.

Bem mais fácil de entender, no entanto, é a escassez daqueles produtos recomendados para a prevenção do contágio, como álcool e água mineral (cujo abastecimento já foi normalizado com o estabelecimento de cotas máximas por consumidor), álcool gel (só encontrado a valores exorbitantes) e luvas e máscaras cirúrgicas, que sumiram do mercado.

Assim, mais do que a escassez ou a falta dos produtos supracitados, me causou um calafrio constatar, há algumas semanas do início da crise, um inusitado vazio nas outrora repletas prateleiras destinadas a pães industriais. Aqueles, brancos ou escuros, vendidos em sacos plásticos e conserváveis sob refrigeração por um tempo mais prolongado. Isto quer dizer que as pessoas estão se preparando para sobreviver à base de sanduíches numa eventual escassez de gás de cozinha, que certamente virá. Na mesma projeção, não é de todo inverossímil estarmos nos encaminhando para crises de abastecimento de eletricidade e água potável.  Que dirão de serviços de provimento de telefonia, internet, streamming e broadcasting (rádio e TV).

Que fique claro, no entanto, estarmos nos referindo aqui a crises de abastecimento de bens e serviços exclusivamente acessíveis à minoria da população – crises as quais se configuram, portanto, como legítimos white people problems (mais sobre white people problems adiante). Mas deixemos, por hora, de lado este exercício de pior cenário para nos concentrar sobre um sintoma, já documentado, potencialmente muito bem mais insidioso, conquanto aparentemente enigmático, a saber, a supracitada corrida às armas.

Por que, num contexto de contágio inexorável e potencialmente letal, alguns (sintomaticamente primeiro na competitiva sociedade norte-americana) se preocuparam em estocar armas e munições ? Um surto repentino de serial killers, veteranos desequilibrados de guerra, talvez representantes da supremacia branca, dando vazão a sentimentos homicidas ? Pouco provável. Antes, porém, de nos dedicarmos à hipótese mais verossímil, conquanto macabra, para esta tendência, olhemos um pouco mais de perto para um conflito social que mal começa a se delinear.

Devemos admitir que o capitalismo agonizante, em meio a todas as suas limitações, sempre logrou um certo equilíbrio entre oprimidos e opressores, nos quais os primeiros, pressionados pelas circunstâncias, toleravam sua própria expropriação pelos últimos. Foi este arranjo tácito que sempre manteve seguramente afastada a hipótese do grande levante – pesadelo maior de todo grande proprietário, já que pobres são, via de regra, em número muito maior do que ricos. Difícil, portanto, imaginar um cenário de confronto em que os últimos não fossem aniquilados pelos primeiros. Um equilíbrio altamente instável, se preferirem, eufemisticamente chamado de ordem estabelecida.

Surge a covid-19, a peste seletiva. Bem disse um indiano que as medidas de prevenção estão apenas ao alcance de uma minoria incluída, enquanto que, abaixo da linha de exclusão, a maioria da população se expõe impotente ao contágio e à morte. Ilustrativo disto é um meme, que circulou dias atrás mas de cuja origem não lembro, no qual um indiano (acho) afirmava que as medidas conhecidas de prevenção contra a expansão do coronavirus são, tipicamente um white peope problem, já que a maioria da população mundial vive ao relento ou em sub-habitações super povoadas e sequer tem água tratada corrente, o que dirá sabão, para lavar as mãos. (um doce para quem me ajudar a recuperar a citação, primorosa).

Neste contexto, já são comuns relatos de membros da extrema-direita que abraçam a nova peste como bem-vinda enquanto potencialmente capaz de promover uma limpeza social que já julgavam impossível.

Posto isto, não é difícil imaginar por que tantos norte-americanos estão comprando, como artigos para sobrevivência, armas e munições. Tornemos, por um instante, à hipótese do apocalipse zumbi. Se você estivesse armado e fosse ameaçado por um zumbi (dos velozes – pois, segundo a tradição do gênero, há os lerdos e os velozes, dos quais é impossível fugir correndo): você atiraria no mesmo ? Provavelmente sim, até por que, segundo a moral do apocalipse zumbi, é, mais do que lícito, praticamente obrigatório abatê-lo. Substituamos, agora, o zumbi por um sujeito infectado pelo corona. Não do tipo cordato, altruísta, que, ciente do possível auto sacrifício, busca o tratamento e o isolamento como sua contribuição para um bem social maior; mas, ao contrário, desesperado, consciente de seu pertencimento à classe dos excluídos “insalváveis” a que nos referimos acima, que foi deixado à própria sorte para morrer e na hipótese cada vez menos remota de um grande levante, insiste em invadir, senão sua casa, ao menos seu perímetro seguro de distanciamento social recomendável. Você não sabe (nem ele) se ele está infectado. Você atiraria nele ? Prefiro pensar que não. Mas não ponho a mão no fogo pela turma de arminha em punho.

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Mas basta, por hoje, de ideias sombrias. Relutei bastante em postar ou não estas projeções distópicas. Pensei inicialmente em reuni-las numa obra curta de ficção. Em vão, pois não consegui deitar sucintamente seus elementos constituintes (das crises de abastecimento aos linchamentos e armamento da população) na estrutura para a escrita de um conto. É que padeço do “mal do blogueiro”, i.e., saio detalhando e lapidando cada parágrafo, um depois do outro, no afã de tudo explicitar e sem deixar espaço algum para a imaginação do leitor. Me resignei, então, a meu gênero habitual.

Além disso, fui advertido por alguém muito querido, habituado a minhas ruminações pessimistas, a pensar, antes de publicar, se estaria prestando um serviço ou, ao invés, um desserviço. Mais hesitação. Por fim, concluí que exercícios de pior cenário possível não induzem desesperança mas, outrossim, são necessários para a emergência, inicialmente de hipóteses e, depois, de linhas de ação mais otimistas. O que quero dizer com isto é que, concomitantemente à espera de que a ciência nos ofereça, além de uma vacina, uma melhor compreensão de como inibir a rápida expansão do coronavírus, ainda muito novo, atenuar sua letalidade e mitigar seus sintomas, precisamos também acelerar a substituição, nas relações humanas, do paradigma competitivo, tão caro ao neoliberalismo, pelo cooperativo – impasse fundamental ao qual me refiro aqui.

 

 

Impressões do isolamento: ruminações em tempos de COVID-19

Resisti o que deu. Sou, no entanto, compelido a reunir impressões que me tomaram no início do isolamento nestes tempos estranhos de COVID-19. Decidi me isolar ao máximo possível ao perceber que pertenço simultaneamente a dois grupos de risco: o dos diabéticos e o daqueles com mais de 60 anos. Ademais, padeço há anos de uma tosse crônica, funcional, que, no clima paranoico (não sem razão) atual, é capaz de atrair, em ambientes públicos, olhares incômodos por parte de quem não me conhece.

Me conecto, por conseguinte, ao mundo quase exclusivamente por meio de redes sociais. Nestas, a primeira constatação óbvia é que jamais houve um trending topic, dominante em todas as conversações, tão hegemônico como o Corona Virus.

A irresistível mania de categorizar. Dentre a avalanche de enunciados sobre a pandemia, encontramos, nitidamente, dois tipos: 1) aqueles preocupados em 1.1) informar sobre o surto e sua prevenção e 1.2) outros, chistosos, que visam (ao menos assim suponho) aliviar a angústia da ameaça de contaminação por meio de tiradas engraçadinhas, mais ou menos na linha da outrora popular coluna de Seleções do Reader’s Digest chamada “rir é o melhor remédio”. Só que, na presente situação, rir de nada adianta. O contágio silencioso ameaça indiscriminadamente tanto os mais preocupados como os mais bem humorados. Em tal contexto, muito me tocou a seguinte postagem, publicada por um amigo cuja identidade, por uma questão de netiqueta, preservo (assim como em todas as citações subsequentes):

” Vai chegar a hora que tu não vai ter mais culhão de enviar meme de covid19. Então melhor reavaliar desde já… pelo menos não banaliza aquilo que é sério e que não vai te poupar. “

A mais pura verdade.

Outra postagem digna de nota foi compartilhada por um amigo médico que disse:

” Prá quem tá perguntando sobre como é ser da área da saúde durante o Corona Vírus: Sabe quando o Titanic tava afundando e a banda continuava tocando? Então, nós somos a banda. “

Auto-explicativa. Irretocável.

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No último domingo, minha esposa presenciou verdadeiras batalhas campais no supermercado por, pasmem, água e papel higiênico. Na fila do caixa, ouviu de uma velhinha algo de causar vergonha aos contendores pelos produtos escassos:

” Eu passei pela guerra. Nessas horas, este é um tipo de atitude que não ajuda em nada. “

Ainda no supermercado, testemunhei algo que diz muito do comportamento corporativo em crises como esta. Sabemos todos do impacto simbólico de prateleiras vazias. É um daqueles signos indiscutíveis, favorito de reportagens televisivas, de que a coisa anda mal. Pois numa ida estratégica ao Zaffari, constatei que a prateleira de álcool (que uso, inclusive, em compressas para injeções de insulina) estava vazia . Próximo dela, alguns clientes insatisfeitos e um funcionário da loja falando num walkie-talkie. Fui atrás de outros insumos dos quais precisava. Voltando ao sítio do álcool, constatei que, para minha surpresa, as prateleiras há meses ocupadas pelos frascos do popular desinfetante estavam plenamente ocupadas por, pasmem, pacotões de papel higiênico – como se, com isto, conseguissem disfarçar a falta de um produto em alta demanda com outro, passando a impressão de mais perfeita normalidade.

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Não imaginava, ao escrever, dias atrás, sobre o binômio colaboração X competição no comportamento humano, estar me debruçando sobre um tema de tamanha atualidade. Pois o COVID-19 é, dadas suas peculiaridades, o maior teste já imposto à humanidade em relação a sua vocação solidária ou, ao invés, egoísta. Dada a forma invisível com a qual circula entre nós, aliada à facilidade de contágio (pelo ar que respiramos), o Corona é uma ameaça cuja prevenção depende, muito mais do que de isolarmos os casos conhecidos de indivíduos infectados, de, outrossim, evitarmos contaminar os que nos cercam, sejam eles ou não caros a nós, antes de sabermos se estamos infectados. In short, protegermos os outros antes de a nós mesmos. Que a espécie humana passe no teste !