Textos sombrios (iii): projeções nefastas a propósito da pandemia

Os primeiros casos, na longínqua China, pareceram eventos distantes cuja existência apenas admitimos 1) por ter tido, em algum momento, alguma instrução em geografia; 2) pela rápida circulação de notícias remotas típica de nossos dias ou 3) por topar vez que outra com algum chinês expatriado circulando entre nós. Até aí, os mais pobres de imaginação e/ou informação – i.e., a maioria – não deu muita importância.

A peste só se tornou parte da realidade palpável com o início, entre nós, da transmissão comunitária, a qual desencadeia, junto com medidas urgentes por parte de autoridades sanitárias, uma consciência coletiva da ameaça – tanto mais perigosa porquanto invisível. Súbito, todos passaram a enxergar os outros como possíveis vetores de contaminação.

Estamos neste momento da pandemia, no qual ainda é cedo demais para estimarmos o tamanho do impacto do medo do contágio no comportamento social, muito mais intenso do que no improvável caso de um apocalipse zumbi – no qual é sempre possível identificar imediatamente, por sinais externos visíveis e inequívocos, facilmente reconhecíveis, o perigo iminente representado pela aproximação de um indivíduo infectado, infectante e incurável.

Já se pode, no entanto, tendo como premissa a marcha dos acontecimentos numa mesma direção (hesitação na tomada de medidas contra a expansão da peste e consequente incerteza quanto a um ponto, futuro e ainda hipotético, de inversão da já famosa curva), bem como a ausência, até o momento, de uma vacina e protocolo de tratamento testados e eficazes, imaginar até onde poderia chegar a exacerbação de reações anti-sociais desencadeadas pelo supracitado medo. Dois sintomas deste ambiente falam por si só: a corrida às armas nos EUA e os quase linchamentos em toda parte (Tornaremos a isto adiante).

Aqui, se faz necessário esclarecer que de modo algum nos referimos à quarentena como uma medida anti-social.  Muito antes pelo contrário. Por que a quarentena, dada a invisibilidade da presença do vírus em seu período de incubação (a qual não permite, por sua vez, que contaminados se saibam contaminados por cerca de duas semanas, durante as quais poderiam contaminar muita gente), serve muito mais para prevenir a contaminação dos outros por parte de quem se isola do que, propriamente, destes últimos por parte de quem circula. Isto é facilmente demonstrável, já que a circulação de alguém testado positivamente para o coronavírus é potencialmente muito mais nociva a sociedade (i.e., pode contaminar muitos) de que a circulação de alguém que teste negativamente para o mesmo (a qual pode acarretar, no máximo, a contaminação do indivíduo saudável que circula). Assim, a quarentena pode ser definida muito mais como uma medida de proteção aos outros do que a si mesmo – o que, portanto, a qualifica mais como uma medida altruísta do que, propriamente, anti-social.

Os linchamentos. Mesmo que ainda não haja relatos sobre nenhum incidente fatal, já é possível se observar, em ambiente públicos, olhares incômodos, antes casuais mas agora sistemáticos, em direção aos que tossem ou espirram sem proteger o próprio rosto. Soube, por um comentário em rede social (este manancial de enunciações falsas, redundantes ou francamente desnecessárias a diluir o que realmente importa), que, dia desses na Ceasa, um carregador que espirrou sem tapar o nariz quase foi agredido, não fosse a intervenção rápida de agentes de segurança. Os nervos andam à flor da pele.

Também é perfeitamente compreensível, em tempos de peste como agora, o desaparecimento de produtos tidos como essenciais das prateleiras dos supermercados. Quem não riu, por exemplo, da corrida ao papel higiênico vista nos primeiros dias ? Eventos assim sugerem um comportamento de manada, em que todos correm na mesma direção sem saber ao certo por que estão correndo. Neste caso, quando todos viram um número de pessoas maior do que o habitual adquirindo papel higiênico, se pusessem, desesperadamente, a esvaziar as prateleiras do produto. Bastou, porém, que comerciantes, reconhecendo o fenômeno, repusessem imediatamente o mesmo, sinalizando, com isto, sua não escassez, para que a demanda voltasse à normalidade.

Bem mais fácil de entender, no entanto, é a escassez daqueles produtos recomendados para a prevenção do contágio, como álcool e água mineral (cujo abastecimento já foi normalizado com o estabelecimento de cotas máximas por consumidor), álcool gel (só encontrado a valores exorbitantes) e luvas e máscaras cirúrgicas, que sumiram do mercado.

Assim, mais do que a escassez ou a falta dos produtos supracitados, me causou um calafrio constatar, há algumas semanas do início da crise, um inusitado vazio nas outrora repletas prateleiras destinadas a pães industriais. Aqueles, brancos ou escuros, vendidos em sacos plásticos e conserváveis sob refrigeração por um tempo mais prolongado. Isto quer dizer que as pessoas estão se preparando para sobreviver à base de sanduíches numa eventual escassez de gás de cozinha, que certamente virá. Na mesma projeção, não é de todo inverossímil estarmos nos encaminhando para crises de abastecimento de eletricidade e água potável.  Que dirão de serviços de provimento de telefonia, internet, streamming e broadcasting (rádio e TV).

Que fique claro, no entanto, estarmos nos referindo aqui a crises de abastecimento de bens e serviços exclusivamente acessíveis à minoria da população – crises as quais se configuram, portanto, como legítimos white people problems (mais sobre white people problems adiante). Mas deixemos, por hora, de lado este exercício de pior cenário para nos concentrar sobre um sintoma, já documentado, potencialmente muito bem mais insidioso, conquanto aparentemente enigmático, a saber, a supracitada corrida às armas.

Por que, num contexto de contágio inexorável e potencialmente letal, alguns (sintomaticamente primeiro na competitiva sociedade norte-americana) se preocuparam em estocar armas e munições ? Um surto repentino de serial killers, veteranos desequilibrados de guerra, talvez representantes da supremacia branca, dando vazão a sentimentos homicidas ? Pouco provável. Antes, porém, de nos dedicarmos à hipótese mais verossímil, conquanto macabra, para esta tendência, olhemos um pouco mais de perto para um conflito social que mal começa a se delinear.

Devemos admitir que o capitalismo agonizante, em meio a todas as suas limitações, sempre logrou um certo equilíbrio entre oprimidos e opressores, nos quais os primeiros, pressionados pelas circunstâncias, toleravam sua própria expropriação pelos últimos. Foi este arranjo tácito que sempre manteve seguramente afastada a hipótese do grande levante – pesadelo maior de todo grande proprietário, já que pobres são, via de regra, em número muito maior do que ricos. Difícil, portanto, imaginar um cenário de confronto em que os últimos não fossem aniquilados pelos primeiros. Um equilíbrio altamente instável, se preferirem, eufemisticamente chamado de ordem estabelecida.

Surge a covid-19, a peste seletiva. Bem disse um indiano que as medidas de prevenção estão apenas ao alcance de uma minoria incluída, enquanto que, abaixo da linha de exclusão, a maioria da população se expõe impotente ao contágio e à morte. Ilustrativo disto é um meme, que circulou dias atrás mas de cuja origem não lembro, no qual um indiano (acho) afirmava que as medidas conhecidas de prevenção contra a expansão do coronavirus são, tipicamente um white peope problem, já que a maioria da população mundial vive ao relento ou em sub-habitações super povoadas e sequer tem água tratada corrente, o que dirá sabão, para lavar as mãos. (um doce para quem me ajudar a recuperar a citação, primorosa).

Neste contexto, já são comuns relatos de membros da extrema-direita que abraçam a nova peste como bem-vinda enquanto potencialmente capaz de promover uma limpeza social que já julgavam impossível.

Posto isto, não é difícil imaginar por que tantos norte-americanos estão comprando, como artigos para sobrevivência, armas e munições. Tornemos, por um instante, à hipótese do apocalipse zumbi. Se você estivesse armado e fosse ameaçado por um zumbi (dos velozes – pois, segundo a tradição do gênero, há os lerdos e os velozes, dos quais é impossível fugir correndo): você atiraria no mesmo ? Provavelmente sim, até por que, segundo a moral do apocalipse zumbi, é, mais do que lícito, praticamente obrigatório abatê-lo. Substituamos, agora, o zumbi por um sujeito infectado pelo corona. Não do tipo cordato, altruísta, que, ciente do possível auto sacrifício, busca o tratamento e o isolamento como sua contribuição para um bem social maior; mas, ao contrário, desesperado, consciente de seu pertencimento à classe dos excluídos “insalváveis” a que nos referimos acima, que foi deixado à própria sorte para morrer e na hipótese cada vez menos remota de um grande levante, insiste em invadir, senão sua casa, ao menos seu perímetro seguro de distanciamento social recomendável. Você não sabe (nem ele) se ele está infectado. Você atiraria nele ? Prefiro pensar que não. Mas não ponho a mão no fogo pela turma de arminha em punho.

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Mas basta, por hoje, de ideias sombrias. Relutei bastante em postar ou não estas projeções distópicas. Pensei inicialmente em reuni-las numa obra curta de ficção. Em vão, pois não consegui deitar sucintamente seus elementos constituintes (das crises de abastecimento aos linchamentos e armamento da população) na estrutura para a escrita de um conto. É que padeço do “mal do blogueiro”, i.e., saio detalhando e lapidando cada parágrafo, um depois do outro, no afã de tudo explicitar e sem deixar espaço algum para a imaginação do leitor. Me resignei, então, a meu gênero habitual.

Além disso, fui advertido por alguém muito querido, habituado a minhas ruminações pessimistas, a pensar, antes de publicar, se estaria prestando um serviço ou, ao invés, um desserviço. Mais hesitação. Por fim, concluí que exercícios de pior cenário possível não induzem desesperança mas, outrossim, são necessários para a emergência, inicialmente de hipóteses e, depois, de linhas de ação mais otimistas. O que quero dizer com isto é que, concomitantemente à espera de que a ciência nos ofereça, além de uma vacina, uma melhor compreensão de como inibir a rápida expansão do coronavírus, ainda muito novo, atenuar sua letalidade e mitigar seus sintomas, precisamos também acelerar a substituição, nas relações humanas, do paradigma competitivo, tão caro ao neoliberalismo, pelo cooperativo – impasse fundamental ao qual me refiro aqui.