A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

* * *

Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

* * *

A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

* * *

O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

* * *

O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

* * *

PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”

Maestros, obras-primas e loucura (2008), de Norman Lebrecht

Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.

* * *

O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.

Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.

As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.

* * *

O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.

Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.

* * *

É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.

Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?

A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.

Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.

Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.

Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.

Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.

Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.

Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.

* * *

Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.

Sobre marcadores e celebridades

Costumo utilizar marcadores (bookmarks, em inglês), que são etiquetas com nomes de categorias, para salvar, para referência futura, toda página da internet que, numa leitura cuidadosa ou rápida, se afigure como de algum interesse. Deste modo, acumulei, desde 2009, quando comecei a usar a plataforma de marcadores Delicious, mais de 7000 páginas marcadas.

Dentre minhas categorias mais populosas, se destacam, entre outras, as de music economics, celebrities, album, orchestral crisis e fontes como Norman Lebrecht, The Guardian ou brainpickings. Pensadores da internet como Clay Shirky, Cory Doctorow, Henry Jenkins e Howard Rheingold também mereceram categorias próprias. Numa analogia com o conhecimento acadêmico, podemos, então, afirmar que tais categorias resumem exemplarmente o que, num programa de pós-graduação, seria considerado, respectivamente, como as “linhas de investigação” adotadas por alguém, bem como seu elenco de “gurus”.

Só que, anos atrás, o Delicious foi comprado pelo Yahoo e, desde junho último, numa tremenda puxada de tapete, o site opera em modo read only, tendo perdido, portanto, toda a funcionalidade para armazenar novas páginas. Tiveram ao menos o decoro de manter a coisa no ar por tempo suficiente para que usuários desesperados, como eu, tivessem tempo de migrar com seus dados para outras plataformas. Meu desespero, no caso, não se trata de nenhum eufemismo, posto que todo meu conhecimento adquirido ao longo da última década passou a correr o risco de, por não estar mais acessível, se pulverizar.

Foi quando decidi, semanas atrás, empreender uma cruzada em busca tanto de uma nova plataforma com um bom prognóstico de sobrevivência (por que nessas horas sempre confiamos tanto no Google ?) como de um meio prático para executar a migração. Pois 7000+ páginas não é pouca coisa. O Delicious tentou facilitar a tarefa, disponibilizando uma ferramenta para gravar um arquivo HTML que pudesse ser importado por seus concorrentes. De pouco adiantou, entretanto, pois os aplicativos de migração davam pau (como eu disse, 7000+ é uma quantidade atipicamente grande) em meio à operação de importação.

O que me fez sair atrás de um editor de HTML para fracionar o arquivo em partes menores, mais manejáveis pelo algoritmo de importação do Google Bookmarks, meu novo hospedeiro de marcadores. Não sem antes, no entanto, promover uma faxina nas páginas hospedadas no Delicious, no intuito de reduzir significativamente seu número. Em vão, pois só logrei eliminar ca. 1000 páginas. É sobre o que constatei neste processo que falarei daqui em diante.

* * *

Antes, porém, de examinar mais de perto os links eliminados, algumas palavras sobre por que me tornei tão obcecado por marcadores. Tem a ver, principalmente, com a velocidade do feed nas redes sociais e, ao mesmo tempo, a necessidade de aglutinar notícias, fatos ou descobertas descontínuos no tempo e isolados por tudo aquilo que acontece entre eles em categorias, definidas por um mesmo headline, capazes de alguma significação mais permanente. Deste modo, tudo aquilo que vem no feed que, de algum modo, reverbera singularmente em nossa mente, entra em ressonância com um conjunto de outros fatos, já coletados ou não, que, embora nada signifiquem isoladamente, podem dizer muito se considerados em conjunto.

O hábito de salvar marcadores se torna, assim, extremamente útil quando da recuperação de referências para pesquisa ou citação. Pensem, se quiserem, por analogia, naquela profusão de papeizinhos com notas afixados às páginas de documentos impressos levantados e perscrutados na fase de revisão bibliográfica de qualquer tese acadêmica. Pois os marcadores virtuais vieram para render essas etiquetas obsoletas, tanto pela facilidade de recuperação de informações como pela de cruzamento entre as mesmas.

* * *

Há 24 horas atrás, estava, com lhes disse acima, às voltas com o problema de ter que reduzir drasticamente, para futura exportação, os links que armazenara no Delicious. Nesta situação, um método se afigurava como absolutamente necessário, posto que não teria tempo de examinar cada um dos links antes de decretar sua permanência ou exclusão. De sorte que ataquei, de pronto, aquelas categorias mais numerosas sobre as quais não pretendia mais me concentrar. Curioso como nossos interesse mudam, ainda que só consigamos perceber isto quando distanciados no tempo.

Quando comecei a salvar marcadores em 2009, estava obcecado pela indústria fonográfica, querendo anunciar como um arauto ou profeta uma realidade que, para qualquer observador mais atento, já estava caindo de maduro – a saber, o declínio de certas mídias e formatos e, com eles, da própria indústria. Pois poucas coisas mudaram tanto nas últimas décadas, sob efeito da internet, como o modo como ouvimos música e a forma como ela é produzida e distribuída. Testemunhamos o empoderamento dos autores e o esfacelamento dos impérios do disco, que reinaram absolutos por cerca de 50 anos.

O primeiro conjunto de links salvos que descartei sumariamente foi aquele gerado quando de minha descoberta do compartilhamento gratuito, reunidos sob o sugestivo marcador free music. Foi um enxugamento formidável. Posso afirmar, hoje, que salvei muito mais páginas de blogs e álbuns do que efetivamente cheguei a ouvir. Tempo perdido. Pois não há nada mais fácil do que descobrir, instantaneamente, de onde baixar qualquer coisa que queiramos ouvir. Num dos poucos links que preservei, alguém pontifica que ouvimos muito mais a música que compramos do que aquela que baixamos. Pode ser. Devo ler com atenção.

Procedi, então, às igualmente numerosas categorias celebrities e album, além de fontes especializadas na indústria fonográfica como hypebot e pitchfork. Nesta etapa, excluí centenas de referências a pessoas como Rihana, Milley Cirus, Britney Spears, Katy Perry, Lady Gaga, Kanye West, Will.i.am, Jay-Z, Madonna e afins. Foi quando confirmei algo de que, por muito tempo, sempre suspeitara – a saber, a tremenda redundância verificada entre os factoides exaustivamente divulgados como notícias por estes atores. Tanto que vale a pena uma compilação dos gêneros assumidos pelos mesmos.

Em primeiríssimo lugar, celebridades e seus produtores competem entre si para ver quem emite mais anúncios sobre planos futuros, do tipo “A banda X lançará até o mês Y o primeiro disco depois de Z anos !”. Em seguida, vem as notas de lançamento de cada novo álbum, invariavelmente apregoado como algo inovador. Acompanham estas notas aquelas sobre o sobe e desce de cada artista em vendas de discos, audições em rádio e outras plataformas e visualizações em redes sociais. Como numa bolsa de valores.

São também frequentes os anúncios de colaborações em forma de dobradinha entre um rapper e um cantor ou cantora. Só que nem sempre produtores acertam e, com isto, nos deparamos frequentemente com imbroglios envolvendo desmentidos, insultos e até pedidos de desculpa. Ao fim e ao cabo, de pouco importa se as colaborações se concretizam, já que os encontros e desencontros estão na mídia, a um custo muito mais barato do que o de casamentos e divórcios entre celebridades.

No lado B da indústria do entretenimento, são também muito comuns os cancelamentos de shows e os casos de hostilidade em relação a celebridades, como copos jogados pelo público em Axl Rose ou garrafas d’água em Justin Bieber. E como não há nada para quebrar o marasmo do noticiário upbeat, bombam as notícias sobre cada vez que uma celebridade é flagrada pisando na bola. Como o uso ocasional de cocaína por Lady Gaga, de maconha por um tal de George Michael, a agressão de um fã por Justin Bieber ou, ainda, as 19 tentativas empreendidas por Ozzy Osbourne até obter, finalmente, uma carteira de motorista.

Dentre os grandes micos nacionais, se destacam o fiasco novaiorquino de Ivete Sangalo (episódio que deve ter ensinado muito a produtores nativos sobre o equívoco de se comparar protagonistas de degêneros regionais como aché, tchê, pagode e sertanejo a celebridades pop internacionais) e o imbroglio de Xuxa no twitter (aquele em que culpou Sacha por seus atentados linguísticos).

Outra categoria interessante são os leilões. Como, por exemplo, do piano empregado em gravações dos Beatles ou do vaso sanitário (sic !) usado por John Lennon. Jamais duvidem da devoção de um fã. Acrescente-se à trivia do célebre piano a indignação dos fãs do quarteto de Liverpool com o uso do mesmo por Lady Gaga, como se isto se constituísse numa profanação do icônico instrumento.

Quando a indústria constata a exaustão criativa de seus elencos atuais, se volta invariavelmente a seus acervos históricos. Foi assim que, dentre os links que deletei, encontrei notas bombásticas sobre reedições como, por exemplo, a das primeiras gravações, ainda em mono, de Bob Dylan e até, pasmem, a publicação póstuma de músicas inéditas de Michael Jackson. Neste departamento, a cereja do bolo é, a coleção de “duetos” não consentidos entre Renato Russo, já morto, e terceiros – as quais foram recebidas naturalmente, como um grande achado, longe de se constituírem em algo ligeiramente macabro. E, aproveitando a deixa, passemos a um último tópico – que, compreensivelmente, deverá suscitar certa revolta entre muitos fãs.

De todas as categorias a mais especial é, sem sombra de dúvida, a morte. Pois não há nada mais extraordinário – e, portanto, monetizável – em relação à mesmice produzida por qualquer celebridade pop ao longo de sua carreira do que a própria morte. As luxuosas reedições de gravações, os onerosos ingressos para shows de tributo e os altos valores alcançados em leilões de objetos pessoais de, digamos, um Elvis Presley, Michael Jackson, John Lennon, Kurt Cobain ou Amy Winehouse estão aí para provar que mais vale investir em seus espólios do que em suas obras em vida. Para pelo menos um analista, a morte precoce teria literalmente salvado, senão a carreira, ao menos a obra de Jackson.

Mais: é bem mais interessante para uma celebridade, sob o ponto de vista econômico, ter sua vida interrompida abruptamente, por acidente, assassinato, overdose ou suicídio, no auge de sua capacidade criativa do que por morte natural aos seus 80 anos, já tendo enfrentado o declínio e o esquecimento. É só comparar os obituários de uns com os de outros, que aparecem, respectivamente, em capas e nas últimas páginas – ou, ainda, o tempo relativo que lhes é consagrado pela TV.

* * *

PS: tão logo terminei de escrever este post, lembrei deste, bem mais denso, de Norman Lebrecht (um dos primeiros links salvos em meus marcadores, em 2009), sobre o por que do não surgimento, após suas mortes, de mitos com a força de Elvis Presley e Maria Callas. Prestem atenção na parte em que ele culpa os executivos fonográficos desde os anos 70, que “are not in the market for uninsurable risks”. Melhor citação: “cultural narcolepsy”.

Por que a justiça faz vista grossa ao abismo existente entre os discursos público e privado dos políticos ?

A nação está pasma. Dia após dia, os que ainda tem estômago para acompanhar noticiários tentam desesperadamente entender como uma quadrilha de ladrões e potenciais assassinos confessos permanecem, apesar dos crimes em que se envolvem, à frente do governo. Depois da última onda de prisões e solturas (que mercado para os advogados !), parece consenso que contam, inclusive, com a conivência do judiciário.

Entendo, outrossim, que a falha que permitiu chegarmos à absurda situação atual se encontra, primordialmente, na letra fria da lei. Mais especificamente, no regramento que invalida toda prova obtida por meio de microfones ocultos.

Sob o pretexto de salvaguardar a privacidade dos denunciados, tribunais superiores perdem tempo discutindo se esta ou aquela gravação incriminatória – obtida, no entanto, sem a ciência e o consentimento explícito de um criminoso confesso  – pode ou não ser utilizada como prova em processos contra o mesmo.

Vale a pena nos determos por um instante sobre os termos (tanto a forma como o conteúdo) das últimas falas reveladas do malfeitor, espécie de inimigo público número um (ou dois, vá lá, pois ele ainda não está na presidência da república, à qual é eterno candidato) Aécio Neves. Tenho certeza de que qualquer um que ouça, de um lado, as já célebres gravações reveladas na delação da JBS e, de outro, tanto a peça publicitária de alegação de inocência de Aécio quanto o discurso por ocasião de sua volta triunfal ao senado, não teria a menor dificuldade em identificar, tanto pelo linguajar quanto pelo teor, o que foi proferido pelo senador em contextos, respectivamente, públicos e privados.

Se Aécio fosse uma pessoa comum na qual precisássemos confiar, perderíamos qualquer confiança nele depois de ouvir o que disse quando julgava que suas palavras morreriam ali, sem serem jamais publicadas.

Só que a lei não funciona assim. Enquanto o abismo reconhecido por todo cidadão entre o discurso público e o privado de Aécio é suficiente para que o consideremos um mentiroso notório, a justiça só reconhece como expressão da verdade o que é dito por ele publicamente – como, por exemplo, na tribuna do senado ou em peças publicitárias (videos inclusos neste post) – ignorando, pasmem, suas falas mais comprometedoras proferidas, no entanto, sob o conveniente manto da privacidade.

Deste modo, a mensagem implícita passada pelo poder judiciário a quem quer que ingresse na carreira política pode ser mais ou menos formulada como “cometa crimes à vontade, desde que jamais os assuma publicamente”.

Mais. Tecnicamente, não há qualquer diferença entre as gravações de Joesley e aquelas produzidas diariamente pela polícia entre traficantes e seus cúmplices. Por que umas servem como provas para a condenação de criminosos e as outras não ?

* * *

Cheguei a dizer, de certa feita, que, num mundo perfeito, deveríamos escolher governantes em reality shows nos quais todos os candidatos estariam sob vigilância pública permanente, sempre ao alcance de câmeras e, principalmente, microfones. É claro que isto foi uma piada. Pois todos os políticos de sucesso são, antes, grandes atores e, como tais, não teriam (assim como não tem) qualquer dificuldade em fingirem virtude o tempo todo. Notem, no entanto, que um Big Brother eleitoral assim dificultaria em muito qualquer maracutaia. Pois que outra razão haveria, afinal, para o Palácio do Planalto estar há vários anos sem um sistema de câmeras de segurança a documentar idas e vindas entre gabinetes ?

* * *

Falando sério. Político algum deveria desfrutar de qualquer privacidade, com a qual a figura do “homem público” não passa de um eufemismo. Obviamente, não estou a defender que não tenham direito ao sexo ou à higiene pessoal longe de vistas alheias.  Mas sua privacidade deveria terminar aí, ou não muito longe disto. Pois enquanto a justiça fizer vista grossa às provas irrefutáveis obtidas por meio de escutas camufladas, continuaremos ouvindo protagonistas da política dizendo, com a maior cara de pau, coisas como “isto é calúnia”, “caí numa armadilha” ou “minhas campanhas sempre ocorreram rigorosamente dentro da lei”.

 

Mais e melhores grampos já !, Moroleaks ou O Elogio do Riso

Girl phone talk Pop art vintage comic

Muito se tem discutido se o juiz Sérgio Moro agiu certo ou errado ao trazer a público escutas telefônicas legalmente obtidas mas protegidas por sigilo judicial. Difícil “julgá-lo” sem dissociar os aspectos legal e ético da questão.

Este blog sempre defendeu a ideia de que segredos de estado são um entrave ao progresso humano que servem, quando muito, à obsoleta doutrina da segurança nacional (vide crise de refugiados e infiltrações terroristas (mas estas já são outras histórias))). Consoante a isto, entendemos que todo cidadão deve ter acesso facilitado a todo documento ou informação que afete, de algum modo, qualquer interesse público. Como, neste caso, as conversas, reveladas por Moro, mantidas por Lula com Dilma e outros figurões.

O impacto dos áudios tornados públicos no episódio – um grande momento da Operação Lava Jato que deve entrar para a história dos grandes vazementos como Moroleaks – derrubam ou dificultam tremendamente qualquer pretensão dos envolvidos a um bom desempenho em eleições futuras. Pior. As gravações logo viraram o principal objeto de riso, tanto nas redes (como em remixes do Mc Lula !) como na mídia. Quem ainda não ouviu piadas com a música da secretária eletrônica da Dilma ? Fato é que, tenha Moro incorrido ou não em algum ilícito, não há quem não tenha rido de alguma conversa por ele vazada – e o riso é, como ensina Bakhtin, a mais destronante de todas as armas.

Por isso, não me parece nem um pouco exagerado se equiparar a façanha de Sérgio Moro as de um Julian Assange ou Edward Snowden, heróis absolutos de nosso tempo, que colocaram sua crença no direito ao conhecimento público do que é público acima da própria liberdade.

Notem, aqui, a interessante nuance entre as histórias de Snowden, sentenciado e foragido por revelar a existência de escutas telefônicas, e de Moro, submetido a uma censura pública por tornar público o teor das mesmas. Os paralelos possíveis entre os dois casos não param aí. Ambos envolvem chefes de estado. Só que, enquanto num as escutas foram obtidas pela justiça, noutro são produto da ação de órgãos de inteligência. O que mais chama, no entanto, a atenção é que, conquanto o primeiro tenha denunciado a escuta e o último tenha feito ele próprio uso da mesma – ambos, por meio de seus gestos extremados, correram riscos em nome de uma maior consciência pública.

Mas tornemos ao riso, mesmo que tão somente para dizer que, depois de ouvir Lula e Dilma ao telefone, votar neles será mais ou menos como votar, sei lá, no Tiririca. E antes que tachem as linhas acimas de anti-petistas, que fique claro que este blog é apartidário. Mais que isto. Não é que alguns partidos estejam podres. É o próprio sistema partidário e de representação que está podre. Conceitualmente. Só que políticos bons, se existem, ingenuamente ainda não percebem isto. Então, é mais do que claro que não se pode esperar nenhuma regeneração política deste ou de qualquer país a não ser por meio de constituintes exclusivas.

Enquanto isto não acontece por aqui, que tenhamos, então, ao menos mais grampos tão engraçados como os de Lula. Onde estão, por exemplo, só para começar, as gravações de um Cunha, Renan, Feliciano ou Bolsonaro ? Ou mesmo, retroativamente, de um Collor, Sarney ou Maluf ? Pois, se é verdade que reality shows se constituem no pior tipo de lixo cultural da mídia atual, é preciso também se reconhecer que não seria de todo uma má ideia que todo cidadão pudesse vigiar em tempo integral cada político eleito, seja para cargos executivos ou legislativos, ou mesmo, idealmente, cada candidato. Até por que sempre é preferível prevenir do que remediar.

Imaginem. Em vez dos desinteressantes concorrentes de um Big Brother, teríamos aquelas pessoas de cujas decisões nossas vidas realmente dependem. Nem precisaríamos de tanto. Sons e imagens do Lula e da Dilma dormindo ou em seus momentos de higiene seriam perfeitamente dispensáveis. Mas qual eleitor não preferiria ter acesso a todas as suas conversas ao invés de a seus ainda mais ridículos e/ou irrelevantes pronunciamentos públicos ?

Penso, pois, que uma lei que garantisse microfones e câmeras em cada gabinete e grampos nas linhas de cada governante ou representante eleito já seria de bom tamanho (ainda que tornozeleiras fossem interessantes para melhor monitorar seus passos…). Idealmente, a escuta deveria se estender também a todo candidato. Mesmo que as complicações de infraestrutura fossem bem maiores, ao menos não seria preciso nenhuma tecnologia ainda não existente. Estou a defender um estado de vigilância ? É claro que sim ! Não sobre seus cidadãos, evidentemente, mas, tão somente, sobre todos seus dirigentes.