Por que a justiça faz vista grossa ao abismo existente entre os discursos público e privado dos políticos ?

A nação está pasma. Dia após dia, os que ainda tem estômago para acompanhar noticiários tentam desesperadamente entender como uma quadrilha de ladrões e potenciais assassinos confessos permanecem, apesar dos crimes em que se envolvem, à frente do governo. Depois da última onda de prisões e solturas (que mercado para os advogados !), parece consenso que contam, inclusive, com a conivência do judiciário.

Entendo, outrossim, que a falha que permitiu chegarmos à absurda situação atual se encontra, primordialmente, na letra fria da lei. Mais especificamente, no regramento que invalida toda prova obtida por meio de microfones ocultos.

Sob o pretexto de salvaguardar a privacidade dos denunciados, tribunais superiores perdem tempo discutindo se esta ou aquela gravação incriminatória – obtida, no entanto, sem a ciência e o consentimento explícito de um criminoso confesso  – pode ou não ser utilizada como prova em processos contra o mesmo.

Vale a pena nos determos por um instante sobre os termos (tanto a forma como o conteúdo) das últimas falas reveladas do malfeitor, espécie de inimigo público número um (ou dois, vá lá, pois ele ainda não está na presidência da república, à qual é eterno candidato) Aécio Neves. Tenho certeza de que qualquer um que ouça, de um lado, as já célebres gravações reveladas na delação da JBS e, de outro, tanto a peça publicitária de alegação de inocência de Aécio quanto o discurso por ocasião de sua volta triunfal ao senado, não teria a menor dificuldade em identificar, tanto pelo linguajar quanto pelo teor, o que foi proferido pelo senador em contextos, respectivamente, públicos e privados.

Se Aécio fosse uma pessoa comum na qual precisássemos confiar, perderíamos qualquer confiança nele depois de ouvir o que disse quando julgava que suas palavras morreriam ali, sem serem jamais publicadas.

Só que a lei não funciona assim. Enquanto o abismo reconhecido por todo cidadão entre o discurso público e o privado de Aécio é suficiente para que o consideremos um mentiroso notório, a justiça só reconhece como expressão da verdade o que é dito por ele publicamente – como, por exemplo, na tribuna do senado ou em peças publicitárias (videos inclusos neste post) – ignorando, pasmem, suas falas mais comprometedoras proferidas, no entanto, sob o conveniente manto da privacidade.

Deste modo, a mensagem implícita passada pelo poder judiciário a quem quer que ingresse na carreira política pode ser mais ou menos formulada como “cometa crimes à vontade, desde que jamais os assuma publicamente”.

Mais. Tecnicamente, não há qualquer diferença entre as gravações de Joesley e aquelas produzidas diariamente pela polícia entre traficantes e seus cúmplices. Por que umas servem como provas para a condenação de criminosos e as outras não ?

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Cheguei a dizer, de certa feita, que, num mundo perfeito, deveríamos escolher governantes em reality shows nos quais todos os candidatos estariam sob vigilância pública permanente, sempre ao alcance de câmeras e, principalmente, microfones. É claro que isto foi uma piada. Pois todos os políticos de sucesso são, antes, grandes atores e, como tais, não teriam (assim como não tem) qualquer dificuldade em fingirem virtude o tempo todo. Notem, no entanto, que um Big Brother eleitoral assim dificultaria em muito qualquer maracutaia. Pois que outra razão haveria, afinal, para o Palácio do Planalto estar há vários anos sem um sistema de câmeras de segurança a documentar idas e vindas entre gabinetes ?

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Falando sério. Político algum deveria desfrutar de qualquer privacidade, com a qual a figura do “homem público” não passa de um eufemismo. Obviamente, não estou a defender que não tenham direito ao sexo ou à higiene pessoal longe de vistas alheias.  Mas sua privacidade deveria terminar aí, ou não muito longe disto. Pois enquanto a justiça fizer vista grossa às provas irrefutáveis obtidas por meio de escutas camufladas, continuaremos ouvindo protagonistas da política dizendo, com a maior cara de pau, coisas como “isto é calúnia”, “caí numa armadilha” ou “minhas campanhas sempre ocorreram rigorosamente dentro da lei”.