Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Textos sombrios (ii): o futuro do trabalho

Advertência: devo aqui ruminar mais um pouco na linha pessimista de meu texto anterior, desta vez sobre o que esperar, num futuro não muito distante, de uma civilização cujos indivíduos, principalmente nos últimos 500 anos, passaram cada vez mais a definir sua existência pelo trabalho.

Um ser humano típico, exercendo uma ocupação formal (i.e., com garantias e vínculos reconhecidos), passa, via de regra, durante sua vida, por três idades distintas, a saber, a formativa, na qual se prepara para ingressar no mundo do trabalho; a da produção, quando exerce a ocupação para a qual foi treinado; e a terceira, eufemisticamente chamada de “melhor idade” e geralmente associada à aposentadoria, na qual já não tem a oferecer à sociedade a mesma energia vital de outrora, sendo, portanto, dispensado dos esforços (mas não dos tributos !) exigidos dos mais jovens.

Se o ócio é mais aceitável em idosos do que em gente mais jovem, tal se deve principalmente a razões econômicas como menor produtividade e custos mais elevados advindos de adoecimento. Tais imperativos são via de regra esquecidos ou ignorados com o uso de expressões como “terceira” ou “melhor” idade, que possuem uma carga semântica, respectivamente, neutra ou francamente mais positiva do que, simplesmente, velhice. Uma espécie de recompensa por uma vida dedicada a não se sabe muito bem o quê. Alguma dúvida, até aqui, sobre o fato de que a linguagem é, sim, ideológica ?

(da mesma forma que me incomodam anúncios de bancos com pessoas sempre sorrindo (quem já viu coisa parecida, i.e., rostos sorridentes num atendimento bancário típico, no mundo real ?), também tenho uma aversão cética em relação à propaganda de planos e serviços de saúde e previdência para idosos no qual os mesmos são retratados invariavelmente felizes. Tal situação não corresponde de  modo algum ao que se vê em instituições, beneficientes ou de luxo, na qual velhos recebem cuidados enquanto lá são deixados para envelhecer e morrer)

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A distinção geralmente aceita entre trabalho (o que se faz para (sobre)viver) e lazer (o que se faz por prazer ou enriquecimento espiritual pessoal) é uma relativamente recente na história da humanidade quando observada numa escala de tempo mais ampla.  Com efeito, desde nossos ancestrais caçadores-coletores, passando pela idade agrícola e até a idade média (deixando, é claro, de lado o trabalho escravo), jornadas de trabalho eram mais curtas, o trabalho facultativo, e não havia uma distinção clara entre o que o ser humano fazia pela própria subsistência ou apenas por prazer. Entre caçadores-coletores, por exemplo, canto, dança e histórias ao redor da fogueira eram uma necessidade tão vital quanto alimentação ou abrigo e, se alguém eventualmente não quisesse participar da caçada, não havia problema algum, pois seria de bom grado alimentado pelo bando (vide Economistas estão obcecados pela “criação de empregos”. E se trabalhássemos menos ?, no final do oitavo parágrafo).

É razoável, portanto, supor que a noção de trabalho como a temos hoje tenha se originado com a divisão de classes nas revoluções comercial e industrial – já que, antes, não fazia qualquer sentido a ideia de exploração do trabalho humano por terceiros. Foi só com a maximização do lucro obtido, primeiro com a comercialização e depois com a fabricação, de bens que passou a ser importante o aproveitamento de toda a força de trabalho, só limitado pelas conquistas trabalhistas. A partir daí a história é conhecida, com reivindicações sindicais e, mais recentemente, proteção da infância e reconhecimento de direitos iguais para mulheres.

Quanto ao lazer, é tolerado indiscriminadamente em idosos (já que “socialmente inúteis”); um pouco menos em crianças (só depois da realização dos deveres escolares) e muito pouco entre adultos. Pelo menos entre adultos trabalhadores, não ricos (rentistas). Notem que tanto adultos como crianças devotam suas melhores horas (aquelas em que estão mais dispostos) ao estudo e ao trabalho, lhes sendo concedidas para o próprio lazer apenas aquelas em que estão, na maioria das vezes, exaustos, só esperando o sono, por sua vez restaurador para uma nova jornada de esforços nos quais, muitas vezes, não percebem qualquer sentido. Mas não vou me deter nos bullshit jobs, tão bem descritos e estudados por David Graeber na obra que resenhei aqui. Graeber dedica seu livro “aos desempregados, que são quem efetivamente cuida dos outros”.

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Estudiosos de Oxford estimaram, já em 2013, a probabilidade de extinção, nos 20 anos seguintes, das principais profissões que conhecemos hoje. A lista (compilada por Harari em Homo Deus e citada aqui), encabeçada por operadores de telemarketing e corretores de seguros, é impressionante.

Face a esta realidade onipresente, não surpreende que agremiações de classes ocupacionais, reeditando o movimento ludista (trabalhadores que, no início da revolução industrial, quebraram máquinas num gesto desesperado para tentar manter seus empregos), tentem garantir a manutenção de suas profissões, as quais vão se tornando obsoletas face a avanços tecnológicos irreversíveis. Como, por exemplo, carteiros numa era de comunicações digitais; taxistas em meio a aplicativos de transporte; vendedores de lojas concorrendo com o comércio eletrônico; caminhoneiros (que já tiveram sindicatos poderosos, como mostrou recentemente Martin Scorcese em O Irlandês) em estradas cada vez mais povoadas por veículos autônomos; caixas em bancos e postos de cobrança de estacionamento em shopping centers e operadores em qualquer atividade outrora existente que, em tempos recentes, foi contemplada com o auto atendimento.

Quando o declínio progressivo da quantidade de postos de trabalho em razão da automação crescente e da proliferação do do it yourself e do self service, não tardará o dia em que, em razão da necessidade minguante de trabalhadores, a divisão de classes, ainda hegemônica, entre patrões (proprietários) e trabalhadores (empregados), será rendida totalmente obsoleta. Harari estima que, numa futura sociedade voltada para o lazer, uma das únicas profissões ainda em demanda será a de programador de jogos. Tal contexto já foi bastante explorado em obras de ficção – como no filme de animação Wall-e (2008), rara distopia para o público infantil, onde uma humanidade ociosa e obesa migra para outro planeta, deixando para trás uma Terra suja e esgotada, povoada por robôs faxineiros.

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Alguém já observou, com muita propriedade, que atividades como a caça ou a pesca, que nos primórdios da história humana eram consideradas uma espécie de trabalho (ainda que, como dissemos acima, não havia uma distinção clara entre trabalho e lazer como a que temos hoje) são atualmente exercidas por muitos francamente como lazer. Ao mesmo tempo, sem entrarmos no mérito da questão sobre se cada uma das atividades abaixo arroladas se constitui ou não, no entender de Graeber, num bullshit job, é difícil imaginar algum prazer (exceto, é claro, o da gratificação econômica) experimentado pelo operador de uma máquina numa linha de produção industrial; por vendedores no comércio varejista ou e por burocratas dedicados ao tráfego de informações, seja em papel ou por meios digitais, em bancos, tribunais, cartórios ou repartições de toda sorte. Notem que uma parte considerável da população economicamente ativa exerce, em nome da própria subsistência, alguma destas atividades.

Reconhecer tal estado de coisas implica, necessariamente, num impasse em se tratando de educar indivíduos para o assim chamado mundo da produção. Como educar filhos para viver num mundo em que a sobrevivência (mais: a própria identidade individual) ainda depende fundamentalmente do trabalho quando não temos razões para acreditar que, num futuro não muito distante, o trabalho ainda existirá como fator hegemônico de definição da existência humana ?

Neste cenário, ainda tido pela maioria como pessimista mas cada vez mais aceito como realista, há quem se atreva a propor utopias capazes de lidar com o problema do desemprego generalizado. Uma destas vertentes é a da renda mínima universal (UBI, para universal basic income), que prevê o aporte pelo estado de uma quantia substancial a cada cidadão, suficiente para lhe garantir uma existência digna, independentemente do mesmo pertencer ou não à força de trabalho. O holandês Rutger Bregman é um dos principais representantes desta corrente, esmiuçada em detalhe em sua obra Utopia para Realistas, de 2016.

Também digna de nota é a candidatura à presidência dos EUA, ainda neste ano, de Andrew Yang, que defende a concessão pelo governo de mil dólares mensais a cada cidadão. Antes, no entanto, de saudarmos a renda mínima como um projeto de esquerda e nos entusiasmarmos com a plataforma de Yang, é preciso que se diga que ele a vê, antes de tudo, como um modo ideal de estimular – pasmem ! – o empreendedorismo. Vem, meteoro.

Utopia para Realistas (2016), de Rutger Bregman

Quando meu amigo Ivo Eduardo me recomendou, num comentário sob uma postagem que fiz no facebook sobre renda mínima, Utopia para realistas (2016), do historiador holandês Rutger Bregman, logo desconfiei que se tratava de um grande livro, por já ter traduzido dois artigos do autor, respectivamente, sobre trabalhos inúteis (“bullshit jobs“) e redução da jornada de trabalho. Consoante a isto, tratei logo de obter o volume e passá-lo à frente de minha fila de leitura (a grande vantagem dos livros sucintos: o de Bregman tem só 225 páginas, fora as notas).

As notas. Ocupando 28 páginas (mais de 10% do livro, portanto), denotam inequivocamente um dos principais traços do estilo do autor, a saber, o de comprovar toda e qualquer alegação sua – muitas das quais contundentes, na contramão do senso comum – por meio de farta bibliografia de estudos e pesquisas já conduzidos e disponíveis online para quem quiser conferir. Há mesmo uma seção inteira dedicada a explicar o que é um estudo controlado randomizado, ou ECR (aqueles com grupos de controle) – como, por exemplo, um realizado no Quênia em 1998 para investigar o efeito da ajuda humanitária sob a forma de doação de livros escolares. Curiosidade: o primeiro ECR de que se tem notícia foi realizado no século VII a.C. e relatado na bíblia.

Outra faceta convidativa do estilo de Bregman é a fragmentação de cada capítulo em seções com subtítulos que não passam de duas páginas. Com isto, fica mais fácil interromper e retomar a leitura, bem como localizar passagens específicas em referências futuras.

De resto, seu estilo é francamente aforístico (como, suponho, num manual de autoajuda), incessantemente conclamando o leitor a alguma linha de conduta em prol do progresso social.

Dito isto, deixemos de lado o estilo do texto para nos concentrarmos em seu conteúdo. Como o título indica, se trata de uma utopia, alicerçada sobre três princípios centrais: a implementação de (1) uma renda mínima universal; de (2) jornadas de trabalho radicalmente mais curtas (idealmente, 15 horas semanais, como previra Keynes em 1930) e (3) a abolição de todas as fronteiras nacionais.

Discutindo a renda mínima, Bregman cita exemplos históricos, a começar por sua quase implementação nos EUA por Nixon,  citando inúmeros estudos realizados sobre populações que já a experimentaram. Tais estudos tem por principais objetivos a derrubada de mitos tais como os de que uma renda mínima universal seria demasiado onerosa ou de que, ainda, induziria à indolência e/ou ao oportunismo. Ao fim, estudos conduzidos sobre populações que já foram submetidas a programas de renda mínima demonstraram que

o custo de tais programas é significativamente menor do que aqueles outros, assistenciais e paliativos, destinados a mitigar os efeitos da pobreza; e que

sujeitos contemplados com uma renda mínima, ao contrário de se resignarem a não trabalhar e a consumir os recursos que lhes foram destinados com alcoolismo e drogadição (como muitos detratores acreditam), usam os mesmos para custear despesas de subsistência, utilizando o tempo livre, não mais comprometido com empregos subremunerados ou mesmo inúteis, para buscar ocupações socialmente significativas.

Ao longo do livro, Bregman sustenta várias teses interessantes. Dignas de nota são

a história do PIB (produto interno bruto); suas limitações; o mito da sustentabilidade de modelos econômicos baseados em crescimento constante e a necessidade de novos índices para aferição do progresso social;

o mito de que o setor privado (indústria e serviços) é mais barato e o público (saúde e educação), muito caro; para refutá-lo Bregman se vale dois itens excluídos do PIB, a saber, os custos ocultos do setor privado e os benefícios ocultos do público.

o fenômeno dos empregos inúteis (bullshit jobs), citando amplamente David Graeber, autor do ensaio de 2013 no qual cunhou o termo e do livro de 2018 totalmente dedicado ao tema;

a relação inversa normalmente verificada entre a utilidade e a remuneração de cada trabalho (quanto maior a importância social, menor a remuneração, e vice-e-versa); por esta regra, garis, enfermeiros e professores (profissões que produzem riqueza) ganham muito menos do que, por exemplo, advogados, lobistas e operadores financeiros (profissões que transferem riqueza). No sugestivo capítulo intitulado Por que não vale a pena trabalhar em banco, Bregman compara o efeito imediato (negociação após 6 dias) da greve dos lixeiros de Nova Iorque em 1968 com a dos bancários da Irlanda em 1970, suspensa depois de 6 meses por não ter produzido qualquer resultado esperado pelos grevistas;

a permanência de modelos falidos por meio da ideologização da credulidade,  sintetizada pela máxima “pessoas inteligentes não utilizam seu intelecto para obter a resposta correta; usam-no para obter o que elas querem que seja a resposta” (citando Ezra Klein em How politics makes us stupid).

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Conquanto brilhantemente defendida e fartamente documentada, a utopia de Bregman não é, como qualquer utopia, de fácil implementação. Seu estabelecimento depende da adoção progressiva, por parte de lideranças internacionais importantes, de um ou mais dos três princípios arrolados no quinto parágrafo deste post. Sua aceitação, no entanto, por parte de eleitores, não é nada simples, implicando, antes, uma revolução cultural para desinstalar falsos pressupostos “naturalizados”, tais como, por exemplo, o mito do crescimento contínuo e o valor incondicional do trabalho.

Felizmente, a pauta de Bregman, contra todas as expectativas mais conservadoras, já faz parte do discurso político, começando pela candidatura à presidência dos EUA em 2020 de Andrew Yang, que pretende, entre outras coisas, dar a cada cidadão norte-americano a quantia de 1000 dólares por mês, independentemente de estarem desempregados ou inscritos em qualquer programa de assistência ao desemprego. Oxalá iniciativas assim proliferem !

Por que devemos conhecer as ideias de Andrew Yang, candidato à presidência norte-americana em 2020; ou Sobre a renda mínima universal

Por que devemos prestar atenção nas eleições presidenciais norte-americanas ? Simples: por que, esmagados pelo imenso conservadorismo da nação mais poderosa do mundo, a mesma que elege um até então impensável Donald Trump, alguns candidatos preteridos defendem, por vezes, ideias visionárias, tidas não raro como utópicas, capazes de mitigar, ao menos em parte, as mazelas que acometem o planeta. Tal se deu com Al Gore, um paladino na luta contra o aquecimento global que, em 2000, perdeu o pleito para George W. Bush, outro nacionalista, truculento como Trump, que foi responsável pela mais recente incursão militar maciça em solo estrangeiro.

Neste contexto, se deve acompanhar atentamente a candidatura do obscuro empresário Andrew Yang – que, em 2020, tentará deter a recondução de Trump à Casa Branca – por uma simples razão, a saber: Yang defende a implantação de um programa de renda mínima universal (em inglês, UBI, para universal basic income) que garantiria a cada cidadão US$ 1.000,00 mensais, independentemente de estar ou não trabalhando como empregado ou empreendedor.

A objeção mais comumente levantada contra os programas de renda mínima, como o bolsa-família, é que, por garantirem recursos sem a obrigação de nenhum trabalho em contrapartida, favoreceriam a indolência generalizada. Yang é categórico ao rebater esta crítica, entendendo que, ao contrário, a renda mínima garantiria a todo cidadão a capacidade de saldar seus compromissos permitindo, ao mesmo tempo, que se torne um micro empreendedor naquilo que bem entender sem ter, outrossim, as mãos atadas pelo peso da dedicação exclusiva a empregos que, na maioria das vezes, drenam todo o tempo útil e a energia criativa de cada indivíduo.

Quando se fala em renda mínima universal, uma questão inevitavelmente se sobrepõe às outras, a saber, de onde viria o dinheiro. Aqui também, Yang é categórico: sobretaxaria o Vale do Silício, posto que as empresas de tecnologia são, a seu ver e com enormes chances de que esteja certo, as maiores responsáveis pelas altas taxas atuais de desemprego. Daí já se pode antever a magnitude da resistência que enfrentará – antes e, principalmente, depois de sua improvável eleição. Já que é impossível se produzir os recursos necessários ao programa sem uma profunda redefinição da matriz tributária. Assim, se é verdade que setores preocupados em não ter que reduzir suas emissões de carbono mantiveram Al Gore longe da Casa Branca em 2000, é bem provável que a Nasdaq se mobilize para obstruir os planos de Yang em 2020.

Alterar uma matriz tributária é algo bem complexo. Quando uns pagam menos, é preciso que outros paguem mais.  Ou, visto de outra forma, a ampliação do lucro de uns é o achatamento do lucro de outros. Nestes conflitos de interesse, chega a ser impossível detectar até onde vai a verdade e a partir de onde começa o blefe em se tratando de afirmações sobre a capacidade de cada setor suportar cortes em suas margens de lucro. Para complicar ainda mais as coisas, a economia está longe de ser uma ciência exata e, portanto, os valores da Curva de Laffer (que, supostamente, representa a relação entre alíquotas tributárias e níveis de arrecadação) não passam de hipóteses duvidosas. Ou seja: não se pode afirmar com qualquer segurança a partir de que alíquota média a arrecadação de impostos começa a cair em razão da sonegação e do desestímulo ao investimento.

É claro que o modelo de Yang não se aplica à economia brasileira, cujo setor tecnológico é ínfimo se comparado ao norte-americano. Então, uma aplicação por aqui da mesma proposta precisaria buscar financiamento em outros setores mais lucrativos  – tais como, por exemplo, os bancos, a mineração ou o agronegócio. Aqui também, portanto, é impossível não vislumbrar uma resistência organizada considerável à ideia. De tal modo que já é possível se imaginar algum dirigente classista dizendo: “- Por que nós, empreendedores lucrativos, deveríamos financiar o ócio de vagabundos ?” Grandes ideias não são nada fáceis.

Céticos em relação à renda mínima hão de existir ainda muito depois que ela seja majoritariamente implementada, pois é muito difícil não se posicionar em relação à mesma. O dilema é estreitamente ligado ao paradigma egoísmo X altruísmo, de tal modo que ser contra a renda mínima pressupõe a crença de que todo indivíduo seja essencialmente egoísta, centrado em si mesmo, segundo a outrora popular Lei de Gerson (“é preciso levar vantagem em tudo”), enquanto defensores da renda mínima professam uma confiança na índole altruísta de cada um, voltada para a realização de algo verdadeiramente benéfico à humanidade.

Outro grande defensor da renda mínima universal é o antropólogo David Graeber que, em seu último livro Bullshit Jobs: A Theory, preconiza sua aplicação como panaceia para o fenômeno que descreve, caracterizado como a tendência do capitalismo a criar e manter ocupações inúteis ou mesmo nocivas, sem as quais o mundo seria de imediato melhor. Graeber se define como um anarquista. Já Yang se auto proclama um defensor da insólita ideologia do Capitalismo Humano (human-centered capitalism), segundo a qual (1) pessoas importam mais do que dinheiro; (2) cuja unidade econômica é a pessoa e não a moeda e (3) que mercados existem para atender a nossos objetivos e valores comuns. Por mais estranha e contraditória que a última formulação possa parecer, cabe notar que ambos, um anarquista e um capitalista, concordam que a renda mínima universal seria a forma ideal de se lidar com o problema ocupacional crônico de nossa época.  Sendo assim, a ideia merece respeito.

O Futuro do Trabalho, Robotização e a Capacidade do Capitalismo para gerar Empregos Inúteis

O valor de seu trabalho não deveria ser medido pelo seu salário

Publicado em Evonomics por Rutger Bregman, em 17 de maio de 2017

Originalmente publicado em World Economic Forum

 

Muito já foi escrito em anos recentes sobre os perigos da automação. Com previsões de desemprego em massa, redução de salários e desigualdade crescente, obviamente devemos todos nos preocupar.

Hoje, não são mais apenas os observadores de tendências e tecnoprofetas do Vale do Silício que estão apreensivos. Em um estudo que já acumula mais de uma centena de citações, pesquisadores da Universidade de Oxford estimaram que não menos do que 47% de todos os empregos norte-americanos e 54% dos europeus correm alto risco de serem substituídos por máquinas – não em torno de cem anos, mas nos próximos vinte. “A única diferença real entre céticos e entusiastas é uma questão de tempo”, diz um professor da New York University. “Mas daqui a um século, ninguém vai mais se preocupar sobre quanto tempo levou, mas com o que aconteceu depois”.

Admito que já ouvimos isto antes. Empregados já vem se preocupando com a maré ascendente de automação por 200 anos, e por 200 anos empregadores vem dizendo que novos empregos se materializarão para substituí-los. Afinal, por volta de 1800, cerca de 74% dos norte-americanos eram fazendeiros, enquanto que em 1900 este número caiu para 31% e, em 2000, para meros 3%. Ainda assim, isto não resultou em desemprego em massa. Em 1930, o famoso economista John Maynard Keynes previa que estaríamos todos trabalhando apenas 15 horas por semana em 2030. Todavia, desde os anos 80 o trabalho vem consumindo cada vez mais nosso tempo, trazendo consigo ondas de stress e esgotamento.

Enquanto isto, o cerne da questão sequer vem sendo discutido. A grande pergunta que deveríamos fazer é: o que constitui realmente “trabalho” nos dias de hoje ?

O que é, afinal, “trabalho” ?

Em um levantamento de 2013 com 12.000 profissionais pela Harvard Business Review, a metade dos entrevistados declarou que seu trabalho não tinha “sentido e significado” e um número equivalente não se via inserido nas missões de suas empresas; enquanto outra pesquisa com 230.000 empregados em 142 países mostrou que apenas 13% dos trabalhadores realmente gostavam de seu trabalho. Uma pesquisa recente entre britânicos revelou que 37% deles tinham trabalhos que consideravam inúteis.

Eles possuem aquilo a que o antropólogo David Graeber se refere como “bullshit jobs”. No papel, tais trabalhos parecem fantásticos. Há mesmo hordas de profissionais de sucesso, com perfis de Linkedin vistosos e salários impressionantes, que no entanto voltam para casa todos os dias resmungando que seu trabalho não serve a propósito algum.

Deixemos outra coisa clara: não estou falando aqui de lixeiros, professores ou enfermeiros espalhados pelo mundo. Se estas pessoas entrassem em greve, teríamos em mãos um estado de emergência instantâneo. Não. Falo nos crescentes exércitos de consultores, banqueiros, conselheiros de impostos, gerentes e outros que ganham seu dinheiro em encontros estratégicos inter-setoriais entre pares para especular sobre valor agregado e co-criação na sociedade conectada. Ou algo no gênero.

Então, ainda haverá empregos suficientes para todos daqui a algumas décadas ? Qualquer um que tema desemprego em massa subestima a extraordinária capacidade do capitalismo de gerar bullshit jobs. Se realmente quisermos colher as recompensas pelos tremendos avanços tecnológicos das últimas décadas (incluindo a ascensão da robótica), precisamos redefinir radicalmente nossa definição de “trabalho”.

O paradoxo do progresso

Partimos de uma questão antiga: qual o sentido da vida ? Muitos dirão que o sentido da vida é tornar o mundo um pouco mais belo, mais aprazível ou mais interessante. Mas como ? Hoje, nossa principal resposta a isto é: através do trabalho.

Nossa definição de trabalho é, entretanto, incrivelmente estreita. Somente trabalho que gere dinheiro pode ser computado no PIB. Não é prá menos, então, que organizamos a educação em torno de fornecer o maior número possível de pessoas, em parcelas flexíveis, ao mercado de trabalho. Ainda assim, o que acontece quando uma proporção crescente de pessoas consideradas bem sucedidas segundo a régua de nossa economia do conhecimento diz que seu trabalho é inútil ?

Este é um dos grandes tabus de nossos tempos. Todo nosso sistema de atribuir sentido poderia de dissolver como fumaça.

A ironia é que o progresso tecnológico exacerba esta crise. Historicamente, a sociedade foi capaz de absorver mais bullshit jobs precisamente por que robôs vem se tornando melhores. À medida em que fazendas e fábricas se tornaram mais eficientes, contribuíram para o encolhimento da economia. Quanto mais produtivas a agricultura e a manufatura de tornaram, menos pessoas empregaram. Chamem a isto o paradoxo do progresso: quanto mais ricos nos tornamos, mais tempo temos para desperdiçar. Como diz Brad Pitt no Clube da Luta: “Frequentemente, trabalhamos em empregos que detestamos só para comprar aquilo de que não precisamos”.

Chegou a hora de pararmos de dar as costas ao debate e focar no problema real: como seria nossa economia se radicalmente redefiníssemos o sentido de “trabalho” ? Acredito firmemente que uma renda mínima universal seja a resposta mais eficiente ao dilema da robotização crescente. Não por que robôs assumirão todo o trabalho útil, mas por que uma renda mínima daria a cada um a oportunidade de realizar algum trabalho que tenha sentido.

Acredito num futuro em que o valor de seu trabalho não seja determidado pelo tamanho de seu salário, mas pela quantidade de felicidade que você espalhe e de sentido que você dê. Acredito num futuro em que o objetivo da educação não seja prepará-lo para mais um trabalho inútil, mas para uma vida bem vivida. Acredito num futuro em que “trabalho seja  para robôs e vida para pessoas”.

E se a renda mínima lhe soa utópica, então eu gostaria de lhe lembrar que todo marco civilizatório – do fim da escravidão à democracia e aos direitos iguais para homens e mulheres – foi um dia uma fantasia utópica. Ou, como escreveu Oscar Wilde há muito tempo: “O Progresso é a realização de Utopias”.

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Rutger Bregman é historiador e escritor, publicando na plataforma holandesa de jornalismo online The Correspondent. É autor de Utopia for Realists: How We Can Build the Ideal World, publicado por Bloomsbury na Reino Unido e por Little, Brown nos EUA. Twitter: @rcbregman