A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

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Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

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A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

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O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

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O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

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PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”

Plano sequência

É o nome que se dá a uma sequência cinematográfica sem cortes, filmada toda num único movimento de câmera. Desde que foi inventado, não sei quando nem por quem, é tido como uma espécie de patamar máximo de virtuosismo cinematográfico. É só imaginar o grau de planejamento e ensaio prévio de todos os movimentos de câmera e de todas as ações e falas dos atores que precisam ser perfeitamente coreografados. Se pensarmos que, com os recursos de edição disponíveis e largamente empregados nas linguagens cinematográfica e televisiva, cada fala ou ação por parte de técnicos e atores pode ser repetida até a perfeição ou exaustão (o que acontecer primeiro), planos sequência não são pouca coisa. Nem nos distantes tempos da filmagem em película, nem tampouco agora, com as fartas possibilidades inauguradas com a gravação de imagens em movimento em HDs.

Talvez o mais célebre exercício de virtuosidade na utilização de planos sequência seja o filme Festim Diabólico (Rope), dirigido por Alfred Hitchcock em 1948, o primeiro da série de 4 colaborações do ator James Stewart com o diretor.

Festim Diabólico é uma peça teatral adaptada para o cinema cuja ação se passa em tempo real (interessante observar o cair da noite sobre Nova Iorque, que serve de fundo ao cenário, através de uma janela panorâmica) e, o que é mais importante, toda ela filmada em apenas 4 (sic!) planos sequência, habilmente editados em três momentos em que uma superfície negra (invariavelmente as costas do paletó de um dos atores) é enquadrada na íntegra. Tais “pontos de edição” se devem ao fato de que, com a tecnologia da época, era impossível se rodar um filme inteiro num único plano sequência, já que interrupções eram necessárias para recarregar a câmera com novos rolos de filme. Hitchcock entrou, então, para a história ao filmar um longa-metragem com o mínimo de interrupções necessárias entre cada plano sequência e o seguinte.

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Outra obra, bem mais recente, que esbanja na utilização de planos sequência é o filme independente norte-americano A Subida (The Climb, 2019), de Michael Angelo Covino, do qual já falei no link acima.

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P.S.: Juliano Dupont, que acabo de conhecer, me enviou a seguinte correção:

“Festim Diabólico tem 10 cortes, não apenas 4, unindo 11 planos-sequência. Na época, as bobinas tinham um limite de 10m de filme para rodar.”

Muito obrigado, Juliano, pela leitura atenta e informação precisa !

Shows em estádios e algumas especulações sobre bandas X artistas avulsos

Nunca fui num. O mais perto que cheguei disto foi quando assisti a Rick Wakeman, acompanhado pela OSPA (da qual, na época, eu nem sonhava em fazer parte), no Gigantinho. Na vez seguinte, décadas depois, no show de Luciano Pavarotti e Roberto Carlos no Gigante da Beira-Rio, eu já estava tocando na orquestra. Nisto se resume toda minha experiência no assunto, sobre o qual, não obstante, não me furto de dar uns pitacos.

Sobre o espetáculo de Pavarotti e Roberto Carlos, nada, até hoje, me convenceu de que aquilo não passou de uma gigantesca operação de lavagem de dinheiro que entrara sorrateiramente na campanha de Antônio Britto para o governo do estado. Lembro que Britto e esposa, assim como Hebe Camargo e outras celebridades, estavam na plateia e foram generosamente exibidos em telões. Pavarotti era, então, auto-exilado da Itália por sonegação fiscal e casado com sua secretária, com a qual morava num paraíso fiscal. É preciso dizer mais ?

Lembro, também, que, durante o ensaio geral, uma coluna cenográfica de madeira compensada desabou sobre a orquestra durante a execução da abertura da ópera A Força do Destino, de Verdi. A orquestra, felizmente, conseguiu correr a tempo, mas a estrutura ficou cravada nas cadeiras e estantes. Pavarotti, ao ser informado do incidente, imediatamente cancelou a obra no concerto daquela noite. Este é apenas mais um episódio na longa crônica de superstição (quando é tocada, algo de ruim acontece) envolvendo a abertura de Verdi.

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Quando Rick Wakeman tocou a Viagem ao Centro da Terra em Porto Alegre, já não participava mais do Yes. Este é um dos pontos ao qual quero chegar, a saber, que bandas são uma espécie de trampolim para carreiras solo, geralmente de cantores e songwriters mas, excepcionalmente no caso de Wakeman, de um instrumentista. Mas tornaremos a isto adiante. Por hora, devo dizer que tirei fotos no evento que, se fosse hoje, teriam sido provavelmente postadas em redes sociais. A experiência. Só que como, na época, ainda não havia telões nem eu tinha tele-objetivas, o famoso tecladista não passava, em minhas fotos (slides, lembram ?), de um pontinho iluminado no meio da imensidão.

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Antevejo aqui uma possível crítica, a saber, sobre como posso falar de megashows sem ter uma experiência primária e recorrente em relação aos mesmos. Isto não me preocupa nem me demove do propósito. Pois penso que tão somente se tivesse testemunhado uma apresentação dos Beatles no Cavern Club ou, sei lá, do Nirvana num porão de Seattle é que eu poderia encher a boca prá falar da experiência. Mas, convenhamos, tais eventos teriam sido completamente aleatórios, já que seus protagonistas sequer tinham conquistado, até então, qualquer fama. Afora isto, celebrar recordações em catarses coletivas com milhares de pessoas e, além disso, pagando ingressos exorbitantes para tanto, nada mais é do que contribuir para a aposentadoria (milionária) de celebridades remanescentes de outros tempos. E de seus empresários e produtores, é claro. Há muita música boa por aí para ser ouvida, esperando ser descoberta, em espaços confortáveis para algumas dezenas de pessoas sentadas.

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O trampolim. Salvo raras exceções, bandas longevas costumam acabar subitamente pela ascensão de um ou mais de seus membros à carreira solo. Mesmo quando isto não acontece, a proeminência de um dos membros sobre os demais é avassaladora. Sabemos quem são George Harrison e Ringo Starr por que, afinal, eram dos Beatles. Mas nada que se compare à trajetória meteórica de Lennon e McCartney. O mesmo vale para Roger Waters. Sabemos, é claro, quem foi Syd Barrett, mas talvez isto se deva ao histórico de drogadição que o levou, como a Kurt Cobain, à morte. Mas e o resto da banda ? Tudo bem, tem o David Gilmour. Deixemos, então, de lado o Pink Floyd, que, reconheço, não foi um bom exemplo. Mas quem foi o Queen além de Fred Mercury ? Ou os Secos e Molhados além de Ney Matogrosso ou, ainda, os Mutantes além de Rita Lee ? Sabemos mais sobre Courtney Love (namorada de Kurt Cobain) do que sobre os demais integrantes do Nirvana. Guns’n’Roses é uma notória exceção pois, além de Axl Rose, todos sabem quem é Slash. Ou, pelo menos, todos os guitarristas. (especialistas que não me contestem, pois sei que sabem recitar a nominata completa de cada banda) Ok, sejamos mais modernos e locais. O que são os Paralamas sem Herbert Vianna, Skank sem Samuel Rosa, Legião Urbana sem Renato Russo ou Pato Fú sem Fernanda Takai ? A lista é infindável. Os Novos Baianos se constituem numa exceção não apenas por que todos eram cantores mas, principalmente, por que a denominação designava muito mais um movimento do que, propriamente, uma banda.

(toda a argumentação acima me faz lembrar que conheci um grande amigo no facebook ao me meter sem ser chamado numa discussão sobre a propriedade ou não do canto ser admitido como componente da interação jazzística, face à notória e indiscutível dominância da voz sobre outros instrumentos, em razão da proeminência absoluta de um texto sobre categorias estritamente musicais tais como melodia, harmonia ou ritmo. Ou, noutras palavras, que o termo jazz, bem como seus festivais e demais espaços, fosse reservado exclusivamente à música instrumental. Ah, que polêmica deliciosa…)

E Paro por aí. Pois sei ainda menos sobre as dinastias do hip-hop e do pagode. O que quero dizer é que a indústria da música é um lugar francamente hostil às bandas, e assim que alguma delas esboça qualquer sinal de sucesso, não falta um produtor a sussurrar no ouvido de seu crooner as enormes vantagens da carreira solo – dentre as quais a principal é, sem dúvida, não ter que dividir entre tantas partes os frutos da colheita.

Ainda respeitando as exceções, eu diria se tratar praticamente de uma premissa da indústria e, quando isto não acontece, é só por que não houve tempo suficiente. Como, por exemplo, nas carreiras trágica e precocemente interrompidas de Curt Cobain ou de Dinho, dos Mamonas Assassinas.

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PS, ainda sobre bandas e artistas com carreira solo que saltam de banda em banda. Se tantos artistas abandonam ou trocam (como Paul McCartney ou, mais aqui perto, Artur de Faria) suas bandas, isto não se dá exclusivamente por razões econômicas, como o texto acima pode, numa leitura rápida, dar a entender, mas por uma distinção mais sutil – a saber, a de que bandas são bem menos “produzíveis” do que artistas avulsos.

Explico. É que bandas são muito mais “lacradas” no próprio conceito do que artistas isolados, aos quais produtores podem imprimir a pegada e a imagem que bem entenderem. A formação instrumental de uma banda é largamente responsável por isto, já que a impressão digital sonora de um grupo é fortemente determinada pelos instrumentos que o compõem. Com isto, bandas repousam sobre um delicado equilíbrio, no qual o menor passo em falso numa direção inadvertida pode esfacelá-las.

Já artistas avulsos, não. Num dia (ou álbum), podem ser um gângster e, no seguinte, uma drag queen, a seu bel prazer (ou de seus produtores). Senão, vejam o caso de Madonna. Conseguem imaginá-la esses anos todos à frente de uma banda ? Nem eu. Se não me engano, esta faceta camaleônica foi até explorada recentemente num comercial de TV – junto com, pasmem, Fernanda Montenegro…

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O que pretendo com estas linhas ? Acabar com os megashows ? Bem que gostaria, mas sei que meu texto não tem todo esse alcance. Se servir, no entanto, para que alguns leitores passem a encarar este tipo de evento sob uma nova perspectiva, não terá sido em vão.

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Reality shows: anatomia de um desgaste

Depois de mais de duas décadas de hegemonia nas grades de programação da TV aberta, os reality shows finalmente apresentam (viva !) inegáveis sinais de desgaste. Não que não estivessem presentes antes. É que, agora, talvez pela primeira vez, os próprios realizadores se vem forçados a tomar providências para tentar garantir alguma sobrevida ao formato.

Fatos como a adoção, depois de mais de vinte anos (!), de um voto único, associado ao CPF, em cada votação ou, ainda, o telefone através do qual espectadores podem veicular críticas à produção do Big Brother são sintomas inquestionáveis disto. Tais sinais sugerem que emissoras estejam reagindo a audiências minguantes, numa tentativa de perpetuar uma fórmula até então bem sucedida que, todavia, começa a não mais convencer.

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Por mais que realizadores de realities apregoem, como no caso do telefone cujas ligações o próprio apresentador do programa estaria sempre pronto a atender (que belo golpe publicitário !…), é razoável supor que as demandas do público sejam editadas. Voltaremos a isto. Por hora, vejam, por exemplo, demandas, até certo ponto fáceis de atender, como:

que aconteçam mais provas de inteligência do que de resistência; ou

que a famosa xepa seja mais restritiva, como, por exemplo, um regime de pão e água;

e por aí afora. Até aí, tudo bem. Mas imaginem se espectadores começassem a reivindicar coisas como

opinar no processo de seleção dos participantes – numa tentativa, talvez, de quebrar o padrão de corpos jovens e esbeltos, que impera no programa, em favor de mais conteúdo mental. Tipo menos músculos, bundas e peitos e mais cérebro. Ou ainda

a supressão de publicidade dos patrocinadores nos cenários das provas. Já notaram como as marcas e as cores dos anunciantes nas arenas de provas demoradas dominam por muito mais tempo do que em comerciais de 30 segundos ? Vejam ainda o destaque dado no próprio programa ao carro ganho pelo vencedor do The Voice. Perto disto, o clássico merchandising de uma garrafa de Coca-Cola “casualmente” deixada sobre uma mesa de refeição em uma telenovela é uma perversão não mais do que tímida.

Não sei o que vocês acham, mas quero acreditar que emissoras jamais dariam ciência de demandas de telespectadores como as acima, que dirá atendê-las. Donde inferimos que o poder de edição dos realizadores sobre o desejo do público é a última coisa da qual estariam dispostos a abrir mão.

Eis o principal fator de distinção entre os broadcasting media – que, como o próprio nome já diz, concentra um enorme poder na definição de conteúdos nas mãos de seus proprietários – e as mídias sociais – nas quais, ao menos em tese, há uma certa isonomia na possibilidade de externar opiniões, doam a quem doer ou, até mesmo, quando não passam de asneira.

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A TV aberta vive de fofoca. Seus donos sabem disto e se aproveitam do fato. Realilies são o melhor exemplo disto. Não é por menos que a maioria deles seja sobre canto e culinária, matérias nas quais qualquer leigo se sente autorizado a opinar. Com o povo sarado do Big Brother (só eu acho que aquilo parece uma academia de ginástica ?), não é diferente. Por vezes, parece que, quanto mais raso, melhor. Maior o “engajamento” (adoro essa palavra !) popular. Tudo isto no único intuito de maximizar o alcance da mensagem publicitária. Imaginem, agora, se a competição fosse sobre astrofísica. Ou física quântica. Vislumbram algum possível engajamento ?

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Terminamos de assistir a mais uma temporada do The Voice (dizem que a última !), por sorte curta. Neste programa, o foco é muito mais no júri do que nos calouros. O sorrisão do Teló. Parece o gato de Alice. E já viram algum dos jurados falar algo desabonador sobre algum candidato ? E os perdedores, que sistematicamente escondem sentimentos de frustração por trás de um discurso de gratidão ? É só love. Hipocrisia pouca é bobagem. O mais irônico de tudo é que, em poucos anos, os jurados continuarão célebres enquanto que a maioria dos calouros, esquecida.

Se disponibilizassem um telefone do The Voice, nos moldes do telefone do Tadeu no Big Brother, as duas coisas que eu mais gostaria de ver reivindicarem seriam

participação popular na escolha das vozes selecionadas para aparecer no programa; e

disponibilização da íntegra da interação, entre um programa e outro (já que não são ao vivo) entre cada “técnico” e seu “time”. Pois desconfio de que pouco do que vemos e ouvimos possa ser atribuído à interferência dos técnicos.

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(notas rabiscadas às pressas depois da última edição do The Voice e antes da próxima do Big Brother)

Celulares

Como já sabe quem me acompanha no facebook, ontem me revoltei ante a obrigatoriedade de baixar um aplicativo em meu celular só para participar de um sorteio mediante a troca de notas fiscais de supermercado por cautelas para concorrer. Desisti na hora e desabafei na rede social. Para meu espanto (ou nem tanto), um coro de solidariedade reverberou minha irritação, senão com a onipresença de celulares, da qual nem vale a pena falar, pelo menos com a enxurrada de aplicativos que disputam a memória de nossos aparelhos. Com isto, o que era prá ser um insight fugaz acabou virando um post. Aguentem.

Até algum tempo atrás, se podia afirmar que todo indivíduo era univocamente identificado por seu CPF ou equivalente – como, por exemplo, o social security number nos EUA. Hoje, arrisco supor que celulares sejam mais universalmente populares do que números de cadastro governamentais. Com efeito, os celulares, conquanto provavelmente mais numerosos do que CPFs, só ainda não substituíram os últimos como meio de identificação unívoca por vários motivos, dentre os quais se destacam os fatos de que um indivíduo pode possuir mais de um celular e que celulares trocam de mãos muito facilmente, sejam eles vendidos ou roubados. Tudo bem, vá lá: CPFs também podem ser roubados.

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Meu primeiro celular, há mais de vinte anos, era um lingote com 2 cm de espessura, teclas mecânicas e um visor monocromático de quartzo líquido de 2 X 3 cms. Servia exclusivamente para originar e receber chamadas de voz e mensagens de texto. Ou seja, era aquilo que outrora chamávamos de telefone, com a inegável vantagem de ser móvel. Na ciranda das marcas que vem e vão, o mercado era dominado pela Nokia.

Algo bem diferente dos atuais smartphones (ou, como diz um amigo, espertofones). O mercado se esfacelou. Quem tem mais dinheiro – e quer gastar numa coisa dessas – tem um da Apple. Se, no entanto, entender o objeto como não mais do que um descartável, ficará com os da Samsung, best buy da hora. Marcas minoritárias como Motorola subsistem para dar suporte ao mito da virtude da livre concorrência.

Verdadeira maravilha tecnológica, ápice da miniaturização, um smartphone nada mais é do que um computador de bolso. O que era um mainframe virou um desktop que virou um laptop que virou um notebook que virou um tablet que, finalmente, virou um smartphone. Logo estaremos no próximo nível. Tenho um amigo que chama os celulares de próteses. Irônico, sem dúvida, mas também visionário, pois não está de todo errado ao preconizar (sei lá se ele pensou nisso) que, num futuro não muito distante, dispositivos computacionais e de comunicação entre indivíduos serão implantes cerebrais.

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Os celulares já atingiram tamanho poder computacional que as únicas razões remanescentes para alguém preferir uma plataforma fisicamente maior do que um smartphone é a dificuldade em 1) digitar textos maiores (outra coisa em extinção) num minúsculo tecladinho virtual (nunca aprendi a digitar só com os dedões); 2) visualizar planilhas amplas ou 3) armazenar volumes de dados maiores do que o usualmente necessário no cotidiano (um problema transitório, face à inexorável miniaturização das memórias digitais).

O ser humano é, por natureza, adaptativo, mas há limites. Nunca usei, por exemplo, um aplicativo bancário; prefiro sempre o homebanking. Infelizmente, muitos bancos vem deixando de oferecer opções nessa modalidade, exigindo, nestes casos, alguma ação a ser realizada exclusivamente em aplicativos – me obrigando, com isto, a baixá-los e instalá-los.

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Celulares e lifecasting. Não resta dúvida de que a possibilidade de fotografar e publicar imediatamente com celulares tornou o lifecasting muito mais fácil. Publicizar a própria vida é bem mais fácil hoje, tanto para diletantes como para ditos “influencers”, graças à sensibilidade dos projetistas destes aparelhos. Postar o que comemos, aonde vamos, o que vemos, lemos ou ouvimos ou até mesmo o que pensamos (!) é questão de cliques.

Sua majestade a experiência. Quem ainda não se sentiu incomodado por braços erguidos com celulares em shows, com milhares de pessoas diante de um palco onde as atrações só podem ser vistas em telões ? Com efeito, vi, esses dias, num grupo de WhatsApp, uma postagem de uma imagem do Macca num telão no Maracanã, ao fundo de uma formiguinha num palco que, presumo, fosse o próprio.

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Agora, a parte chata. Aquela menos objetiva, que diz de um mal-estar que sinto (e outros também), mas que ainda não consigo explicar, que dirá descrever. Mal-estar este que tem a ver com coisas que vamos deixando para trás em nome de inegáveis vantagens de avanços tecnológicos. Saudosismo ? Acho que não. O que pode haver de bom no abandono progressivo do aqui e do agora em favor de uma conectividade quase universal ? Dispor de engenhos de busca ? É bom. Criptomoedas ? Deve ser (ainda prezo cédulas na carteira). Dados na nuvem ? Idem. Mas se, depois de um tempo, isto for tudo o que restar ?

Quando aldeias se tornam cidades, o fato é saudado como um louvável aumento da proximidade entre pessoas e da fricção social. Em minha mania de imaginar cenários distópicos, percebo a conectividade quase universal (exceto, é claro, em recantos “excluídos” da África ou do Oriente) como um caminho acelerado para cenários de degradação civilizatória como em Blade Runner, Elysium ou Wall-E. Ou em Matrix.

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Não pretendia falar do fenômeno contemporâneo, cada vez mais comum, de grupos de pessoas fisicamente próximas, só que cada uma delas imersa na tela de seu celular. Casais em restaurantes, estudantes no intervalo entre aulas (ou mesmo durante as mesmas), pessoas no transporte público, etc. Só que uma situação recente me chamou a atenção, se revestindo de uma enorme carga simbólica.

Festa de Natal. Familiares e amigos que não se encontram há muito tempo reunidos, ao menos em tese, para rir, brindar e confraternizar. Súbito, me deparo com a seguinte cena: acomodadas em sofás dispostos diante de uma TV ligada, vejo quatro pessoas mergulhadas em seus celulares.

Ergonomia

Já notaram como pessoas altas tendem a sofrer de dores nas costas com mais frequência do que as outras ? Quero acreditar que isto seja verdade mas, para ter certeza absoluta, só com um estudo controlado de correlação entre a altura dos indivíduos e seus relatos de mal-estares lombares e cervicais – algo que nunca vou empreender, primeiro por que me falta competência para tanto mas, principalmente, por que o comprometimento de tempo e energia com a tarefa seria, para mim, totalmente anti-ergonômico e anti-ecológico, com uma péssima (elevada) taxa de custo/benefício entre esforço e resultado.

Fica, no entanto, a dica para quem tenha que realizar trabalhos científicos. Sim, pois há uma pressão explícita sobre a comunidade acadêmica para a publicação de trabalhos, sejam eles teses ou artigos. Como se, pelo simples fato de publicar, estivéssemos aprendendo ou revelando alguma coisa importante. Mas é claro que, antes de se configurar como uma maldade, tal situação tem outra razão de ser, a saber: ante a dificuldade ou mesmo impossibilidade de se quantificar a qualidade das ideias (academicometristas adoram quantificar), se opta por mensurar quantas vezes ideias são enunciadas. Só que toda essa conversa pertence a um campo sobre o qual adoraria me alongar mas que foge, no entanto, ao âmbito deste texto. Que fique apenas registrado, então, que tal estudo ocuparia de pronto uma posição de destaque na categoria dos textos úteis, com aplicação imediata, por exemplo, na vida cotidiana e na arquitetura.

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Varrendo folhas no pátio (algo que não costumo fazer), me dei conta de como cabos de vassoura são curtos demais para pessoas altas, intensificando as dores lombares resultantes do esforço repetitivo de torcer a coluna durante uma varrição prolongada. Tenho a mesma bronca com armários de chão que, em minha opinião, nem deveriam existir, mas que, para arquitetos e demais planejadores de ambientes, são uma necessidade em se tratando de acomodar muitos objetos em pouco espaço (que inveja daquelas cozinhas enormes, com ilha central, dos filmes americanos e novelas da Globo…). Pois o maravilhoso ato de cozinhar seria muito mais prazeroso se, prá começo de conversa, todos os utensílios estivessem dispostos entre as linhas da cintura e dos olhos. Mas é claro que isto é quase utópico exceto em imóveis muito caros. Até por que o padrão (ah, maldito padrão !) é que, numa habitação normal (outra palavra que não deveria existir salvo estritamente em seu sentido literal, matemático), cozinhas, nas quais pessoas passam grande parte do tempo, costumam ser muito menores do que as ditas áreas sociais, onde visitas são recebidas só de vez em quando.

A cozinha é por excelência território de hábitos anti-ergonômicos. Como, por exemplo, secar a louça. Prá que, cara pálida ? Se bastam algumas horas para que a mesma louça, estrategicamente disposta num secador, fique livre de qualquer resíduo de umidade por puro efeito da gravidade e da evaporação ? E, ainda por cima, sem ter que, depois da tarefa, se estender para secar ou até mesmo lavar um ou mais panos de prato.

Outra coisa. Prá que utilizar detergente de pia para lavar objetos não engordurados ? Ou, ainda, prá que lavar uma tigela que será imediatamente reutilizada com ingredientes que acabarão por se misturar, no preparo, ao que antes nela havia ? Pensar nessas coisas pode fazer a diferença em se tratando de considerar o ato de cozinhar um deleite ou um suplício.

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Mas voltemos à varrição e às vassouras. Desde que cabos de vassoura passaram a ser comercializados separados das partes com cerdas, o que custaria aos fabricantes disponibilizá-los em vários tamanhos ? Mais. A própria ideia de ergonomia está intimamente ligada ao conceito do suficientemente bom. Por exemplo. Ao varrer folhas num pátio que já secou depois de chover, haverá fatalmente aquelas que ainda estarão molhadas e, portanto, grudadas no chão. É claro que você pode remover cada uma mediante uma esfregação mais vigorosa somente naquela região, mas a que custo ? Ao final do processo, você estará bem mais cansado e o pátio, mais limpo não mais do que por um efêmero instante, pois logo estará repleto de outras folhas derrubadas das árvores pelo vento enquanto você varria. O que quero dizer é que, ao varrer um pátio recém seco após a chuva, mais vale deixar aquelas folhas ainda grudadas, teimosamente resistentes à vassoura, para a próxima varrição, tão certa como o sol vai se por ao fim do dia.

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Assim como fabricantes de cabos de vassoura poderiam oferecê-los em tamanhos variados, consoles de cozinha mais altos, do tipo que pessoas mais altas possam usar sem ter que manter o corpo ligeiramente flexionado para a frente, também podem ser negociados com arquitetos. Mas a que custo ! Nas duas vezes em que contratei arquitetos, só depois de empregar muita retórica (e ouvir repetidamente que o que eu queria fugia do padrão), logrei que projetassem balcões mais altos. E na reforma que empreendi sem arquiteto, foi o próprio pedreiro, ele mesmo de baixa estatura, que, contrariamente a minhas instruções, se encarregou de erguer a pia que eu utilizaria numa altura que fosse conveniente para ele usar. Mudar uma cultura requer, na maioria das vezes, bem mais do que boa vontade. Fazer o que ?

A Tirania do Mérito (2020), de Michael Sandel

Muitas vezes escolho livros por causa de seus títulos e subtítulos. Gosto de nomes provocativos, que contrariem o senso comum, como, por exemplo, Bullshit Jobs – A Theory, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, ou O Intelectual – a Força Positiva do Pensamento Negativo. No último caso, comprovadamente um subtítulo que não fazia parte do original mas que foi agregado à tradução por um editor com um senso apurado de marketing.

Com A Tirania do Mérito, não foi diferente. Afinal, o que poderia haver de errado com a meritocracia, a qual nos acostumamos a saudar como um dos baluartes das sociedades mais justas, tanto reais como utópicas ? Admito que custei um pouco a concordar com o ponto de vista do autor, praticamente só depois da conclusão da leitura de quase todo o texto – sem dúvida uma virtude do mesmo, pois não há nada mais decepcionante numa argumentação do que percebermos muito cedo onde seu autor quer chegar com ela.

Michael Sandel é fisósofo, professor de Harvard, onde ministra o curso Justiça, que também é o nome de seu livro mais conhecido. Em A Tirania do Mérito, disseca a trajetória triunfante da meritocracia na sociedade e na política norte-americanas, década por década, até a desilusão das classes trabalhadoras com aquilo que chama de credencialismo (ao que voltaremos adiante), que culminou com a retórica populista que elegeu Donald Trump.

O livro é repleto de referências a outros autores e fartos dados numéricos, invariavelmente com atribuição de autoria. Como um bom texto acadêmico, só que de leitura convidativa (reader friendly, eu diria), cada página levando naturalmente à seguinte. Um dos tipos de estudo a que Sandel mais recorre é a analise de discursos presidenciais, se valendo da contagem de palavras (tipo Obama disse, em todos os seus discursos, n vezes isto ou aquilo) para delas depreender ênfases da retórica de cada mandatário.

(como advogado do diabo, eu poderia objetar tal tipo de evidência alegando que um uso maior desta ou daquela palavra poderia estar mais ligado ao nível de redundância ou, ao contrário, de síntese de cada discurso. Mas a própria redundância é em si um traço da linguagem publicitária e todo discurso político é, por excelência, propaganda. Além disso, textos sucintos não costumam ser os mais persuasivos. Por tudo isto, entendo que Sandel esteja plenamente investido de correção metodológica)

Antes de se debruçar sobre a história recente da nação mais poderosa do mundo, o autor regride alguns séculos para auscultar a virtude do mérito em teólogos como Martinho Lutero ou Tomás de Aquino. É aqui que formula, ou melhor, menciona, um dos mais interessantes paradoxos. A polêmica diz respeito à promessa de salvação. Mais exatamente, sobre o que podemos ou não fazer em vida para garanti-la.

Por um lado, há quem acredite que a salvação seja aleatória, i.e., que ela pode se estender a quem não a mereça enquanto quem pratica o bem e vive segundo o cânone cristão é condenado à danação eterna por um simples capricho divino (isto, inclusive, oferece uma explicação teologicamente satisfatória para catástrofes naturais e outros eventos trágicos duros de aceitar sob o domínio da infinita bondade de deus).

Já, por outro lado, há também quem pense que o ser humano pode investir em sua futura salvação praticando o bem durante sua existência terrena. Só que esta “versão” enfraquece a onipotência divina, já que, ao “comprar” um lugar no céu por meio de atos aqui na terra, o homem estaria usurpando a deus o controle sobre seu destino.

(já notaram como os debates teológicos são sempre os mais interessantes ? Não é à toa que Richard Dawkins, guru mor dos ateus, dedica grande parte de seu livro Deus, Um Delírio à análise das provas da existência e da não existência de deus. Então, não dá prá simplesmente se descartar a priori qualquer debate teológico como carente de qualquer sentido. Tenho para mim que toda argumentação deste tipo pode ser validada (ou não) com a simples definição prévia de deus como uma entidade imaginária (ou, como diz Dawkins, sobrenatural). Mais ou menos como a formulação de um número, variável ou partícula sem comprovação experimental possível que ajude a resolver problemas e equações nos campos da matemática ou da física)

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Sandel considera o clima meritocrático que se tornou hegemônico a partir dos anos 50 e 60 algo bem recente na educação superior norte-americana. Antes, as três grandes da Ivy League (Harvard, Princeton e Yale) não mais do que perpetuavam uma elite hereditária que praticamente excluía mulheres, negros e judeus. Foi James Bryant Connant, reitor de Harvard que, a partir da década de 40, inspirou e contribuiu para implementar um sistema de acesso que garantisse a todos a igualdade de oportunidade – sistema, este, designado por Sandel como máquina de triagem.

Antes, porém, de narrar a ascensão do mérito com principal vetor de validação nos mundos norte-americano e global, Sandel se detém longamente no estudo do acesso à educação superior. Faz isto para clarear o significado de credencialismo, que é como chama a primazia de credenciais educacionais na hora de atribuir aos vencedores os melhores empregos e salários. Segundo ele, é a falta de credenciais universitárias que permite ao sistema econômico vigente dizer às massas trabalhadoras que não merecem estar no topo por não terem perseguido a melhor educação possível. Ou, noutras palavras, uma forma fácil de lideranças lavarem suas mãos em relação à crescente desigualdade. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois, retornando, por hora, à questão universitária e deixando a arrogância e o ressentimento decorrentes do mérito para mais adiante.

Talvez em nenhum outro lugar como nos EUA a hierarquia entre instituições de ensino superior seja tão exacerbada. A expressão Ivy League, originalmente usada para designar agremiações desportivas de oito universidades, passou também a ser usada para se referir ao grupo de universidades cujos diplomas valem mais do que outros em se tratando de obter uma boa posição no mercado de trabalho. As grandes estrelas da Ivy League são as universidades de Harvard, Yale, Princeton. E, ainda que não pertençam, formalmente, a esta elite, a Universidade de Stanford e o MIT gozam do mesmo status.

Sandel identifica três modos de acesso a universidades de prestígio (presumo que a outras também), aos quais chama de portas da frente, lateral e dos fundos. A entrada pela porta da frente se dá por meio de desempenho em exames democraticamente aplicados; a porta dos fundos é reservada aos filhos de doadores muito ricos, numa versão exemplar da popular máxima pagando bem, que mal tem ?; já a porta lateral é a grande brecha através da qual a índole meritocrática do acesso (ou por que se sabe muito, ou por que se tem muito) é francamente corrompida. Tanto que merece um parágrafo totalmente dedicado a ela.

A porta lateral. Existe um mercado muito aquecido para o acesso facilitado às grandes universidades norte-americanas. Operadores que subornam avaliadores e/ou falsificam portfólios acadêmicos e desportivos (sim, pois algumas universidades tem vagas e bolsas reservadas para atletas de elite que venham a integrar suas equipes) e, é claro, cobram muito bem por isto. Sandel cita um escândalo recente em que um desses agentes amealhou uma pequena fortuna obtendo acesso para rebentos medíocres de famílias abastadas a universidades da Ivy League. Técnicos esportivos encheram seus bolsos e um deles, de uma equipe universitária de vela, ganhou notoriedade por usar toda a propina recebida para equipar o time. Com alguma flexibilidade semântica, se pode dizer que, sem sentir vergonha alguma, utilizou a porta lateral com a mesma lógica da porta dos fundos.

Mas as falhas deste sistema supostamente meritocrático não se resumem a facilidades de acesso. Mesmo quem entra pela porta da frente pode recorrer a um exército de profissionais (conselheiros educacionais) cujos serviços ampliam as chances em exames de acesso não fraudados. E aqui, mais uma vez, quem tem mais leva vantagem. Quem tem mais dinheiro e/ou tempo para estudar. É preciso um certo cuidado ao se comparar sistemas educacionais como o norte-americano com o brasileiro, pois apresentam diferentes peculiaridades. Neste caso, no entanto, é razoável se dizer que, mesmo aqui, um estudante de classe média com tempo de sobra para estudar e pais que possam pagar um cursinho pré-vestibular (por vezes mais caro do que boas escolas particulares) costuma ter mais chances num vestibular ou ENEM do que aquele que trabalha para contribuir com a renda familiar e cursa o ensino médio no turno da noite.

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Torno aqui à pergunta inicial, que atiçou minha curiosidade pelo livro, a saber, o que poderia, afinal, haver de errado com a meritocracia ?. Pela corrupção, descrita por Sandel, nos mecanismos de acesso ao ensino superior, poderíamos inferir que o problema com a meritocracia seria meramente o de que, face a alguns obstáculos, explícitos ou não, ela raramente ou jamais se realiza plenamente.

(isto faz lembrar as célebres falhas de mercado (monopólios, informações privilegiadas, etc.), por causa das quais, para seus defensores, os mercados dificilmente realizam com perfeição sua vocação de árbitros supremos)

Só que, para Sandel, o buraco é mais embaixo. Logo no início da obra, diz que um dos principais problemas da meritocracia é o de que vencedores geralmente acreditam que chegaram ao topo por mérito próprio, desconsiderando fatores importantes como vantagens nas condições de largada ou mesmo a sorte que tiveram. Como consequência, passam a desprezar, ainda que veladamente, os perdedores, os quais consideram desprovidos de talentos e/ou que não se esforçaram suficientemente. Tão martelada é esta narrativa que, com o passar do tempo, os próprios perdedores passam a nela acreditar. É desta forma que, para Sandel, meritocracia gera arrogância e humilhação (e, logo, ressentimento). Também para ele, foi predominantemente este ressentimento contra as elites credenciadas que nutriu, entre trabalhadores, a candidatura e a eleição de Donald Trump.

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Mas basta, por hora, de análises e denúncias. Face a tudo isto, o que tem a dizer Sandel de propositivo para combater o problema que tão bem delineia ? Para começar a falar disto, devo trazer aqui uma informação que deliberadamente omiti até agora, a saber, o subtítulo (original) o que aconteceu com o bem comum ?

São várias as medidas sugeridas mas não implementadas. Uma das primeiras que aparece, para fazer frente à máquina de triagem que gera tanta arrogância e humilhação, seria a criação de uma loteria acadêmica, que distribuísse as vagas existentes exclusivamente por meio de sorteio. Imagino o que devem estar pensando. Logo que li, também fiquei chocado. Para um liberal (como adoradores do mercado gostam se ser chamados), isto soa como a abolição de toda propriedade privada. Mas pensando melhor, até que, para alguém que vê o mérito como origem de tantos vícios, faria muito sentido. Ou, pelo menos, contribuiria para restaurar um senso de gratidão (pelo que faz alguém chegar ao topo) que, segundo Sandel, foi perdido nalgum momento ao longo do caminho.

Também são sugeridas medidas de natureza fiscal. Antes de apresentá-las, é preciso dizer que Sandel reconhece a recuperação da dignidade do trabalho como uma prioridade absoluta, já que a mesma vem caindo aceleradamente, em proporção inversa ao crescimento da desigualdade. A desaceleração e inversão dessas tendências passa inevitavelmente por medidas fiscais, tanto na arrecadação como na distribuição dos recursos arrecadados.

É sabido por todos que, não só nos EUA, a taxação sobre o trabalho é muito maior do que aquela sobre o capital acumulado. A recuperação da dignidade do trabalho passa obrigatoriamente pela inversão desta matriz tributária. É aqui que entusiastas do acúmulo de capital dirão que, ora, capital investido gera emprego; outros podem até invocar a Curva de Lafer (mazela da globalização que não vou explicar aqui). Bullshit. A indústria que o capital acumulado mais movimenta é a das finanças.

Finanças. Segundo Sandel, se trata de uma das indústrias mais improdutivas, senão a mais improdutiva dentre todas. Pois capital só gera mais capital, com juros escorchantes cobrados de setores que efetivamente produzem alguma coisa.

(não tenho os dados. Mas Sandel tem. Uma das virtudes de seu livro é ser fartamente documentado, estando todas as fontes lá prá quem quiser conferir)

Então, nada mais justo do que setores improdutivos como as finanças pagarem mais impostos do que os produtivos como o trabalho. Muito mais. Numa espécie de taxação moralizante, como no caso dos “impostos sobre o vício”, de cobra mais impostos de setores como os de tabaco, bebidas alcoólicas e jogos de azar. Não é preciso ter muita informação para se supor, por exemplo, que, no Brasil, o recém descoberto filão das bets opere sob a proteção de um manto de complacência fiscal (pois, senão, não teria crescido tanto).

Outra urgência levantada é a da redistribuição do montante arrecadado. Nos EUA, no passado recente cresceram os recursos repassados a instituições privadas de ensino superior (para custeio da máquina de triagem) enquanto caíram aqueles alocados, por exemplo, à saúde pública. Não quero encher este post de números mas, para quem quiser conhecer, estão todos no livro.

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Tenho essa mania de resenhar quase tudo o que leio. Pode ser um modo de validação de minhas escolhas ? Pode. Mas prefiro acreditar que anseio por compartilhar.

Penso igual a alguns autores que leio (estes, obviamente mais bem informados do que eu). A outros, não. A alguns, não sei: ainda é cedo para dizer. A Tirania do Mérito pertence a esta terceira categoria. Sem que considere, de imediato, um livro fascinante, é, sem dúvida, um grande livro. Bem escrito. Bem documentado. E, sobretudo, que leva a pensar. Eis o ponto: não é preciso concordar com Sandel em tudo (a tal loteria acadêmica, por exemplo, é meio forte até prá mim), desde que se perceba o quadro que ele tão bem descreve.

Celebridades

Disclaimer: se você espera deste post alguma novidade ou revelação bombástica, fuja dele como o diabo da cruz. Se, no entanto, anda atrás de subsídio para reflexão sobre uma realidade hegemônica na qual nossa cultura, queiramos ou não, está imersa, seja muito bem-vindo a estas linhas.

Havia escolhido o atrativo título Por que odeio celebridades, do qual logo desisti, por pelo menos dois motivos: por que estaria 1) de certa forma, traindo o espírito do texto, que é justamente o repúdio deliberado à busca desenfreada pela maximização da audiência (clicks & likes) e 2) ao mesmo tempo, faltando com a verdade na medida em que não odeio celebridades mas, antes, as acho profundamente intrigantes; mais exatamente, pela alta importância que exercem em todos os aspectos da vida contemporânea. Um dos principais pilares de nossa civilização, eu diria.

Pensei, então, em Celebridades, uma teoria – que logo descartei por parecer demasiado presunçoso e também por que a ideia pertence ao grande David Graeber. Daí que ficou só Celebridades mesmo.

Há anos coleciono notícias sobre celebridades pensando em, num futuro vagamente distante, vir a escrever algo que preste sobre as mesmas. Não que já me sinta pronto ou à altura da tarefa. Ao contrário, desisti de chegar a qualquer conclusão importante. Vultos amplamente conhecidos da música, da moda, do esporte e afins não fazem mais do que preencher o imenso vazio do noticiário cotidiano. Não há, aqui, como não lembrar do experimento proposto por Domenico di Masi que consiste em se abster voluntariamente de acompanhar o noticiário tão somente para constatar, depois de algum tempo, que ele é sempre o mesmo.

Quando, há muito tempo atrás, comecei a colecionar notícias sobre famosos, saudei com entusiasmo a descoberta de marcadores que permitiam, com um click, salvar para referência futura páginas de internet visitadas, associadas a etiquetas (tags) que agrupavam vários recortes (como eram chamados no tempo da mídia impressa) sob uma mesma categoria. Sempre fui e ainda sou avesso a ferramentas virtuais pagas e, quando o Delicious (site de marcadores que eu usava) foi comprado pelo Yahoo, passando a ser um serviço oferecido mediante a cobrança de uma assinatura mensal, migrei com minhas já então mais de 7000 páginas marcadas para o Tagpacker, gratuito até hoje.

Entre meus tags mais populosos estão as celebridades e a indústria fonográfica. Marcava coisas como, por exemplo, o vestido de carne de Lady Gaga. Lembro que, naquela época, cheguei a constatar fenômenos repetitivos de pouca importância, tal como a associação num mesmo single, descoberta por algum mago das gravadoras e exaustivamente replicada desde então, da voz de uma cantora com a declamação de um rapper. A indústria da música vivia, então, um momento de grande incerteza, tendo que pular fora do barco da comercialização de mídias físicas, que naufragava, para se adaptar à nova realidade do streaming e das redes sociais.

Recentemente, me decepcionei com os marcadores ao buscar, em vão, uma página que, quando conheci, atraiu muito minha atenção – a saber, um texto brilhante de Norman Lebrecht explicando a permanência de mitos como Elvis Presley e Maria Callas numa era de sucessos fugazes. Inútil. A página tinha saído do ar, meu marcador apontando somente para um frustrante page not found. Menos mal que ainda me lembro da tese defendida por Lebrecht.

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Tecnicamente, podemos definir uma celebridade como uma pessoa que conhecemos sem que sejamos por ela conhecidos. Tal conceito, ainda que correto, permanece numericamente vago. Tratemos, pois, de quantificar. Na era dos mainstream media (jornais, revistas, rádio e TV) ser célebre significava ser conhecido por milhões de pessoas. Com a democratização (apregoada mas não totalmente entregue) trazida pela internet, este limiar caiu para alguns milhares. Para sermos exatos, 5000 é o número cabalístico em relação ao qual o facebook define se as pessoas às quais nos relacionamos são amigos ou seguidores. Quem é conectado a mais de 5000 pessoas (ou perfis) é considerado uma celebridade, dono de uma fan page com seguidores. Já se tiver menos do que isso, não é uma celebridade, tendo apenas uma página pessoal povoada por amigos. Desconheço as diferenças funcionais do algoritmo do facebook no tratamento de amigos e seguidores.

Curiosamente, o número 5000, utilizado pelo face para distinguir amigos de seguidores, é largamente discrepante daquele geralmente reconhecido por antropólogos como sendo o máximo de indivíduos que alguém pode realmente conhecer a ponto de confiar, que é, pasmem, 150. Se uma plataforma social amplia tão generosamente a quantidade de amigos (não de conhecidos) que alguém pode ter, razões para tanto deve haver – as quais fogem, no entanto, do escopo deste post.

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Celebridades sempre foram reconhecidas como role models. Exceto, é claro, as negativas, como Hitler ou Calígula. As mídias sociais, com sua promessa de democratização não plenamente cumprida mencionada acima, trouxeram um novo tipo de celebridade: o influencer. Ou, se quiserem, um role model de nicho. É a celebridade ao alcance de todos.

Celebridade remunera. Celebridades da mídia hegemônica, bisbilhotadas por milhões, ganham somas generosas para anunciar produtos. O que não quer dizer, é claro, que possam viver só disso, pois, antes de venderem grandes marcas, precisam ter alguma carreira exitosa em alguma área como, por exemplo, fazendo gols ou cantando hits de sucesso. Já o influencer, em sua micro celebridade ensejada pela democratização da web, consegue, no máximo, ganhar os produtos que usa ou ter o consumo franqueado em lugares que frequenta, bastando, para tanto, postar fotos usando os produtos ou frequentando os lugares em redes sociais. É a monetização do selfie.

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Se você chegou até aqui, é provável que, como eu, também considere o estatuto da celebridade supérfluo. Perverso, até. É claro que não falo da fama em decorrência de feitos importantes nas artes, nas ciências, na filosofia ou, vá lá, até na política; mas da celebração daqueles cuja contribuição e, portanto, relevância para o mundo seja totalmente nula. Mas nisto acho que concordamos. A pergunta, então, que não quer calar é: por que celebridades existem, hoje mais do que nunca ? Será por que alguns querem ser célebres ? Não creio. Ou talvez por que o sistema econômico vigente, incluindo a publicidade, precisa delas ? Tampouco. Me inclino a acreditar que é por que precisamos delas. Ou por que, ao menos, a maioria das pessoas precisa.

Por um momento, cheguei a pensar que a cultura da celebridade fosse um fenômeno eminentemente urbano. A partir do princípio de que cidades não existem por causa da conveniência econômica, mas por causa da necessidade da proximidade entre vizinhos – a qual, por sua vez, favoreceria a fofoca, esta sim uma necessidade humana primordial. Em contraste, pensei numa vida bucólica em que acordássemos com as galinhas e fôssemos dormir depois de jantar – como se uma existência pudesse ser preenchida exclusivamente pela manutenção da subsistência e qualquer tempo eventualmente ocioso com, sei lá, meditação. Logo abandonei a ideia, por demais simplista, impossível num mundo globalizado e hegemonicamente conectado.

Sigo, ainda assim, perseguindo a fantasia, praticamente uma utopia, de um mundo sem celebridades. É possível ? Suportaríamos ? Comments welcome.

Mix de lojas

O título deste post faz referência ao que talvez seja o principal atrativo para consumidores de cada novo shopping que é inaugurado. Só que esta diversidade fomentada não dura muito tempo, como veremos abaixo.

Não é só o comércio de rua que está em crise (é só ver a quantidade de lojas que fecham as portas). Em shoppings, o grande número de tapumes onde antes havia lojas também denuncia o mesmo fenômeno. Nessas horas, face ao elevado custo da manutenção de pontos em lugares assim (mais do que em lojas de rua, suponho, onde o problema é outro – a saber, a queda no afluxo de consumidores), a vantagem inicialmente apregoada da diversidade de opções deixa de existir quando prevalece a lógica do quem dá mais. Como, por exemplo, no primeiro caso relatado abaixo.

Celulares e Vestuário

Ao centralizar minhas compras de alimentos e produtos higiênicos num supermercado que serve de loja âncora a um shopping, não tenho como não observar mudanças e tendências na distribuição de produtos e serviços oferecidos no mesmo. Neste contexto, me chocou o fato de que, onde antes havia uma loja de roupas e outra de calçados, uma na frente da outra, há hoje duas lojas de operadoras concorrentes de telefonia e dispositivos móveis (leia-se celulares), tudo isto a poucos metros de uma loja da terceira operadora. Temos, assim, Claro, Tim e Vivo a menos de 30 metros umas das outras. Tudo bem que “leis” de mercado justifiquem uma concorrência tão acirrada entre tão poucos atores (Anatel, cadê você ?). O que, no entanto, mais espanta neste caso é que, a julgar pela ciranda das empresas presentes no dito shopping, parece haver uma demanda maior por celulares do que por calçados e vestimentas.

Sabemos que as operadoras de telefonia móvel, conquanto também vendam dispositivos (altamente obsolescentes), tem sua principal razão de ser na venda de planos mensais. Um parênteses. Se, no tempo do telefone fixo, ainda que a obtenção de uma linha fosse um processo extremamente longo (talvez por causa do monopólio), cada usuário pagava pelo que usava. Hoje, se as operadoras podem oferecer planos fixos mensais para uso ilimitado, isto quer dizer que, para quem usa pouco, o serviço poderia custar muito menos. Estamos, então, diante de um filão altamente lucrativo.

Mas isto não é tudo. É facílimo contratar um novo serviço. Para tanto, há vendedores altamente treinados, sempre prontos a oferecer uma internet mais rápida e/ou com uma banda mais larga. Tentem, agora, cancelar um serviço contratado. Terão o desprazer de conhecer os famigerados procedimentos de retenção, com musiquinhas em loop e menus de opções intermináveis que tentam prever quaisquer situações, muitas vezes sem jamais chegar até um operador humano (Anatel, cadê você outra vez ?). Você acaba desistindo no cansaço e se resignando a continuar pagando por algo de que não precisa.

E tem também os detestáveis serviços de telemarketing. Xingar, além de não adiantar, é grosseiro, pois o infeliz operador de call center não tem qualquer responsabilidade pelo assédio que é encarregado de realizar por seu empregador. Aqui em casa, nosso mantra para este tipo de chamada é “não compramos nada por telefone”. Reconheço, por outro lado, como a melhor resposta aquela dada por uma de minhas irmãs, que é “vocês podem me oferecer um plano no qual eu pague menos ?”. É infalível. Desligam imediatamente.

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Recomenda o bom senso que eu pare por aqui. Como sou, no entanto, teimoso, avanço o sinal, falando dos dois tipos de negócio que mais crescem entre nós, a saber,

Farmácias e Igrejas

Li em algum lugar que as duas vendem curas, respectivamente, para o corpo e para a alma. Hoje, há praticamente uma farmácia em cada esquina, e tamanha saturação não parece afetar em nada um setor que chafurda em lucros exorbitantes. Também são notórias as práticas perversas deste setor que não hesita em invadir a privacidade de clientes, mais do que cativos, reféns de um sistema concebido primariamente para maximizar lucros às expensas do suprimento continuado de drogas essenciais. Isto para não falar do mercado de tráfico de dados pessoais, como atesta a seguinte reportagem:

Mas não quero me deter sobre a questão, já tão esmiuçada, da proliferação indiscriminada de farmácias. Anos atrás, ministrando um seminário presencial a alunos de um curso de EAD da UFRGS em Linhares, Espírito Santo, me chamou a atenção a quantidade enorme de templos religiosos na rua principal, na verdade estrada, que cortava a cidade. Aí já se faz necessário um esclarecimento. Se falamos de denominações religiosas cristãs tradicionais, como o catolicismo ou o protestantismo, entendemos por templo uma construção, senão monumental, pelo menos diferente, em arquitetura e porte, dos demais estabelecimentos comerciais. Recentemente, as denominações neo pentecostais não só roubaram aos protestantes, seguidores de Lutero, a denominação de evangélicos, mas estenderam a designação de templo a qualquer lugar onde fosse possível acomodar confortavelmente uma congregação de fieis para ouvir um pregador. Até aí, tudo bem.

Para todos os efeitos, sou totalmente leigo em assuntos teológicos. O que, no entanto, não me impede de observar que, enquanto a ética católica é uma de culpa e sacrifício, com resignação pelo sofrimento terreno em nome de uma recompensa numa vida futura (afinal, Jesus morreu na cruz para nos redimir), já a ideologia subjacente às novas denominações evangélicas é de que toda prosperidade nesta vida é, mais do que perfeitamente lícita, uma expressão da vontade de deus. É a teologia da empatia dando lugar a uma do mérito. Deste modo, não é à toa que tal ideologia tenha muito mais apelo do que a culpa católica numa civilização tão imediatista como a nossa, do aqui e do agora. Mas, como eu disse, são observações de um absoluto leigo em matérias teológicas e, como tais, merecedoras de toda reserva.

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(aqui havia, à guisa de ilustração do post, uma charge, deliciosamente verdadeira (já notaram como bons humoristas estão sempre entre os indivíduos mais inteligentes ?), mas que removi devido a seu viés potencialmente racista em razão da escolha infeliz de uma expressão por parte do desenhista. Jamais desejei tanto saber editar imagens)

Contra a publicidade (outra vez)

Ninguém, exceto os publicitários, gosta de propaganda. Lembram da mala direta ? Tínhamos que dedicar um tempo considerável a jogar fora o lixo publicitário que abarrotava nossas caixas de correio para filtrar a correspondência necessária, contas em sua maioria. Não me recordo da última vez em que recebi uma carta. Talvez nos anos 80, quando estava “exilado” para meu mestrado em NY e amigos dedicados me relatavam os acontecimentos mais bombásticos em minha orquestra.

Hoje, os anúncios migraram para a web, como contrapartida compulsória (é preciso pagar para não vê-los) tanto por facilidades disponíveis online, como o YouTube e tantos outros sites e plataformas, como por serviços gratuitos de email. Assim, o que era mala direta virou spam. Mais fácil, barato e, graças a inteligências artificiais, certeiro em relação ao alvo. Nos últimos dias, o Google sofisticou ainda mais o envio de anúncios, tanto na cobrança pelo serviço de anunciar como por não mais permitir o bloqueio de remetentes. Mas é sobre esta naturalização da publicidade que quero me deter.

Ouvinte assíduo de rádio no carro, sempre achei absurdo o slogan de certa emissora, sem dúvida em busca de novos anunciantes, afirmando que “propaganda é conteúdo e informação”. Não conheço mentira mais deslavada. Mas vamos por partes.

A propaganda, dentre os melhores achados da indústria (ia dizer do capitalismo, mas desisti para não afugentar improváveis leitores de direita) para desovar superavit (leia-se excesso) de produção, se naturalizou entre nós. Sentimos que devemos a ela a existência de todo veículo de comunicação, tanto eletrônica (rádio e TV abertos) como impressa (jornais e revistas).

Neste contexto, surgiu a internet que, como todo evento global potencialmente disruptivo, como a pandemia de coronavírus, prometia aos mais sonhadores uma nova ordem econômica. No caso da pandemia, muitos esperaram um colapso do capitalismo global para a instalação de uma economia mais solidária e local, que favorecesse o recrudescimento da desigualdade. Isto não ocorreu.

No caso da internet, com a nova facilidade, mediante sofisticados engenhos de busca, para a descoberta de ofertas daquilo que realmente precisamos, era de se esperar que a publicidade – a qual, por definição, se dedica à desova de excessos de produção em mercados consumidores – também fosse reconhecida como supérflua e, portanto, obsoleta. Isto também não ocorreu. Ao contrário, a publicidade tirou vantagem da maior conectividade, menor custo de envio, mais disponibilidade de dados maciços e melhores meios para processá-los – oferecendo, com isto, a anunciantes a possibilidade até então inédita de uma propaganda muito mais dirigida e, logo, eficaz.

Moral da história. O capitalismo se reinventa e regenera diante de tudo que lhe é, num primeiro momento, desfavorável. Como um vírus mutante que foge de vacinas. Ou, se quiserem, aquele ser mitológico que, ao ter cortada uma cabeça, lhe nascem duas no lugar. Então, para o progresso humano não se pode contar com avanços tecnológicos ou fatalidades sanitárias e climáticas que, porquanto indesejáveis, varram do mapa a civilização que conhecemos para dar lugar a outra, mais fraterna e igualitária. Meio milênio de capitalismo já provou sua resiliência e capacidade para se adaptar a novas realidades. Qual postulante a um governo, por exemplo, seja ele de direita ou de esquerda, defenderia uma plataforma tão radicalmente inovadora como a ideia do decrescimento (aqui, aqui, aqui e aqui) ? Para todo político, sua majestade o PIB ainda é o que mais importa, estando até mesmo atrelado a índices, supostamente progressistas, de bem estar social.

Por isso, só podemos esperar uma civilização melhor a partir de uma revolução na cabeça das pessoas. Quando passarem, oxalá, a acreditar que menos é mais.