Blues eleitoral (ii): por que derrotas da esquerda nas urnas me entristecem tanto

Por que tenho filhos. Para entender melhor esta afirmação, tão lacônica, é preciso, antes, embarcar numa regressão ao passado. Não a um passado distante. Basta, para tanto, retrocedermos uns 50 anos, ao tempo de minha infância e juventude.

Quando eu era criança, brincava na rua. Jogava bola e taco com amigos em terrenos baldios. Quando jovem, explorava a cidade, a pé ou de ônibus, sem grandes riscos. Hoje, vivemos um crescente processo de condominização. Nossas crianças brincam em espaços protegidos, cercados por grades de ferro e cercas elétricas e vigiados por câmeras de segurança, e estudam em escolas particulares cujo acesso é guardado por leões de chácara. O comércio de rua é cada vez mais substituído por shoppings, protegidos por forte aparato de segurança, onde se pode comprar tranquilamente sem ser importunado, longe da vista de excluídos que, por sua vez, são banidos para fora de nosso campo visual nesses ambientes assépticos, segregados. Dos cinemas de rua, então, nem é preciso falar.

Com todos esses indicadores, só não vê quem não quer que, na última metade de século, a fratura social só aumentou. E se hoje ainda é possível se viver dentro da bolha de inclusão, é só por que a moral religiosa (a recompensa pós-morte) e as forças da lei, seja por meio de uma polícia cada vez mais capenga ou de empresas de segurança e milícias privadas cada vez mais fortes, ainda funcionam como um fator repressivo de dissuasão em relação a anseios insurgentes.

Mas toda conformidade tem um limite. E chegará o dia, no qual a desigualdade atinja um nível inaceitável para a maioria, em que aqueles fora do cinturão de miséria hão de se rebelar. Será o Grande Levante. Nesse dia, não adiantará você dizer que, mesmo tendo carro, casa própria e comida para sua família, você não pertence a uma elite abastada e gananciosa. A fúria popular se estenderá igualmente a quem quer que ostente qualquer coisa que seja interpretada como um sinal de riqueza, com as massas miseráveis submetendo a todos a uma justiça sumária, sem direito a contraditórios ou ampla defesa. Será o colapso de todas as instituições que hoje sustentam, ainda que precariamente, os privilégios de alguns.

Meritocracia ? Bullshit. Se galgamos, no mundo, posições de vantagem, tais se devem, primordialmente, a diferenças nas condições iniciais, tais como heranças ou acesso ao topo da pirâmide educacional. Sei. Sempre há o caso do miserável que logrou, a muito custo, estudar e ser alguém na vida. Mas isto, longe de ser a regra, é uma exceção que, sempre que descoberta, é glamourizada. A TV adora essas coisas. É a célebre história, vivida por Juliana Paes, da boleira de rua que vira dona de uma rede de confeitarias. Não que histórias assim não existam. Mas não é absolutamente o caso da imensa maioria, que não pode ser acusada de falta de criatividade nem tampouco de força de vontade. É a grande falácia do empreendedorismo ao alcance de todos.

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Sempre que eleições se aproximam, começam nas redes sociais debates acalorados sobre quais candidatos mentem mais ou alicerçam suas candidaturas sobre falsas promessas. Numa dessas trocas de farpas, alguém disse, muito apropriadamente, que políticos em campanha são, antes de tudo, atores representando a si mesmos como personagens. Tal é a mais pura verdade, independentemente de viés ideológico.

Concordei de pronto e acrescentei que, por isto, numa eleição presto pouca ou nenhuma atenção a promessas e programas de cada candidato, me atendo, antes, em identificar qual deles se afina mais com ideais tais como, de um lado, o lucro, o crescimento, a desregulamentação e o estado mínimo ou, de outro, o combate à desigualdade. Ou seja, a velha dicotomia entre direita e esquerda que, ainda que muitos queiram ultrapassada, nunca foi tão atual. A partir disto, e exclusivamente disto, escolho meus candidatos.

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Se eu não tivesse filhos nem tampouco ligasse para o futuro da humanidade, pensando bem pragmaticamente poderia até escolher políticos que defendessem um matriz ideológica que mantivesse, pelas poucas décadas de vida que me restam, privilégios amealhados até aqui. Mas depois que a gente tem filhos, a busca de um mundo melhor para eles ou para seus filhos se torna um imperativo, quase uma obsessão. Espero com todas as minhas forças que eles nunca tenham que passar pelo Grande Levante. Consoante a isto, voto sempre o mais à esquerda que me é possível.

Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Sobre mitos trazidos à baila na atual campanha eleitoral (ii): a ideia de que devemos confiar na direita por que ela representa, ao contrário da esquerda, o que já foi testado e deu certo

Hoje, postei no facebook o seguinte:

Conforme anunciado ontem, sigo, até o segundo turno, esmiuçando mitos que sustentam a candidatura mais à direita. Tenho especial apreço pela lógica e, consoante a isto, o que gostaria de sublinhar hoje é a natureza falaciosa de um argumento frequentemente empregado contra ideais igualitários e em prol do liberalismo – a saber, o de que, enquanto a direita representa o que já foi testado e deu certo, a esquerda propõe ideias que, na melhor das hipóteses, jamais foram testadas, ou, na pior, foram historicamente implementadas e rejeitadas.

Ouvi pela primeira vez esta definição furada dos campos de esquerda e direita formulada por Olavo de Carvalho (prefiro a de Gilles Deleuze, mas isto não vem ao caso agora; nos comentários, talvez…)

Percebem a circularidade do argumento ? Segundo o mesmo, só o que já foi posto à prova pode funcionar; mas não devemos por à prova o que pode não funcionar. Ora, pela mesma “lógica”, o homem jamais teria ido à lua, nem tampouco realizado viagens de circum-navegação.

Então, ao menos em nome da razão, descartem a ideia de alguma superioridade da direita sobre a esquerda exclusivamente com base em seus históricos de implementação. Até por que grandes forças escusas (já ouviram falar, por exemplo, na Atlas Foundation ?) contribuíram e continuam contribuindo decididamente para o aparente êxito de alguns regimes de direita, invariavelmente mantidos pela força e cercados por cinturões de miséria. Mas isto já é assunto para outra postagem. Fiquem, então, por hora, nos comentários abaixo, com as definições dos dois campos por Carvalho e Deleuze.

Então, nos comentários logo abaixo da postagem, postei os seguintes videos, que falam por si só:

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Pouco depois, ainda conclamei amigos à não agressão verbal de adversários políticos (tendência que, felizmente, tenho constatado cada vez mais em redes sociais (ao menos no campo da esquerda)):

Peço, encarecidamente, que se abstenham de xingar ou ridicularizar publicamente bolsonaristas, tanto em minha timeline como em qualquer outra, pois isto não levará a nada em termos de conquistar seus votos (muito antes o contrário). Então, se todos morderem a língua quando tiverem vontade de empregar termos pejorativos, por mais engraçados que pareçam, aumentam as chances de trazê-los à razão. Valorizem o intelecto de seus adversários. Abracem um eleitor de Bolsonaro por dia até o segundo turno !

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Completando o dia de campanha, compartilhei, finalmente, uma postagem, altamente didática, do Idelber Avelar sobre o valor, para a conquista de votos, de se infiltrar no campo adversário. Idelber falou, especificamente, de grupos bolsonaristas no Whatsapp. Vale a pena, também aqui, a citação por extenso de sua postagem:

Relato de experiências em grupos bolsonaristas de Whatsapp

Passei as duas últimas semanas da campanha do 1˚ turno infiltrado em grupos bolsonaristas de Whatsapp, tentando roubar-lhe votos, sempre em conversas privadas, fora do grupo, iniciadas com eleitores que me pareciam mais suscetíveis à dúvida. Não sei quanto sucesso tive, mas acredito ter lhe tirado, sim, algumas poucas dezenas de votos. Relatar essa experiência, a quem interessar possa, é o objetivo das linhas que seguem.

1. A primeira convicção que se instalou em mim, cristalina, é que era necessário despir-se um pouco da arrogância de quem acha que já entendeu tudo. O bolsonarismo é uma articulação inédita da extrema-direita, que não se parece com nada que conhecíamos antes. Sabemos que ele é extremista, autoritário e violento o suficiente para ser perigoso, mas ele é também uma série de outras coisas para muita gente. Não tenho nenhum problema em caracterizar Bolso como fascista, mas essa palavra, com um eleitor, não vai lhe ajudar em nada.

2. As conversas em que creio ter tido mais sucesso foram aquelas em que falei menos. Ouvir, ouvir, ouvir foi sempre o melhor caminho. Essa escuta me mostrou que os epítetos com que os eleitores de Bolso são rotulados (racistas, machistas, homofóbicos etc.) cumprem um papel bem pequeno na motivação do voto. As preocupações com segurança pública, sim, aparecem com frequência. O horror ao sistema político também tem destaque. A pauta anti-corrupção é constante. E, em primeiríssimo lugar, disparado, o anti-petismo. Esses me parecem ser os motivadores principais do voto em Bolso. As declarações misóginas, racistas e homofóbicas me parecem funcionar muito mais como uma espécie de “grito de torcida”, que energizam a base e a mantêm acesa. Isso não as torna menos graves, é óbvio. Apenas tornam-as menos relevantes na hora da persuasão.

3. Muitos já notaram uma obviedade: o Brasil não tem 49 milhões de fascistas. Mas o Brasil tem, sim, 49 milhões de anti-petistas. Esse fenômeno para você é odioso, inexplicável, inaceitável, coisa de gente burra? Anti-petismo para você é sinônimo de fascismo? É melhor você parar por aqui e desistir de ganhar voto, porque você não vai persuadir ninguém. O anti-petismo é um fenômeno real, enraizado na sociedade, com razões que se remontam ao próprio petismo. “Ah, mas o PT governou sem ameaçar as instituições democráticas! Os bancos ganharam tanto! Empresa nenhuma foi estatizada!” Sim, concordo, mas você não entenderá o anti-petismo olhando apenas a forma como o PT governou. Você terá que olhar também a forma como o PT falou, tagarelou, rotulou, discursou, fez campanha eleitoral como se fosse um partido bolchevique, etiquetando até Marina Silva como “direita fascista”. Essa dinâmica entre atos de governo e atos de fala é a necessária para se entender o anti-petismo, porque o jogo duplo começou a cobrar seu preço: as pessoas não são burras e sacaram a contradição entre governar como se fosse Sarney e tagarelar como se fosse Lênin. Em suma: ou Haddad será um candidato supra-partidário, de uma frente democrática, ou não há a menor chance.

4. Não se chegará a lugar nenhum contra Bolso sem reconhecer que o discurso do golpe foi amplamente derrotado no debate livre que ocorreu na sociedade brasileira. O exemplo perfeito aqui é a campanha de Dilma Rousseff ao Senado em Minas. Toda a sua campanha foi ancorada no discurso do golpe. Tudo o que ela disse ao longo da campanha foi que “as urnas darão uma resposta ao golpe”. De nada ela falou, a não ser de gópi gópi gópi. Tendo sido Presidente do Brasil por um mandato e um terço, ela concorreu contra Carlos Viana, jornalista com zero experiência política, Rodrigo Pacheco, do DEM, um partido há tempos inexpressivo em Minas, e Dinis Pinheiro, uma nulidade do minúsculo Solidariedade. Ficou atrás dos três, em quarto lugar, com 15% dos votos em uma eleição de duas vagas. Recebeu um dos mais claros e sonoros NÃO que um eleitorado já enfiou nas fuças de um político conhecido. Falar de gópi com o eleitor, a estas alturas, é pedir para perder.

5. O bolsonarismo se articula como um rizoma, uma rede descentralizada, um formigueiro em que indivíduos vão produzindo montagens, memes, notícias falsificadas, paródias. Algumas delas (como a falsa notícia de que Haddad teria distribuído mamadeiras em forma de pênis) viralizam para milhões de pessoas. Nesse terreno, a contra-argumentação é inútil. É preciso falar na mesma linguagem. É inacreditável, por exemplo, que até hoje não se tenha feito nada com o vídeo em que Bolso confessa ter estuprado galinhas e cabras.

6. Bolso é deputado há 28 anos e nunca fez nada que preste, mas passou a expressar a revolta contra o sistema político. Recebeu doações da JBS, está na lista de Furnas e utilizou de forma pouco ética o auxílio moradia, mas passou a simbolizar a luta contra a corrupção. Está no terceiro casamento, traiu a esposa (coisas que a mim, obviamente, não interessam em absoluto) e terminou um divórcio com ameaças de morte, mas passou a representar a postura “cristã”. Foge da briga como um covarde, mas passou a ser o emblema do eleitorado “machão”. Sempre votou em favor de um nacionalismo tosco e em defesa de corporações, mas herdou o eleitorado da centro-direita liberal privatizante. Foi explorando esses furos, essas incoerências, que acredito ter puxado alguns votos dele para Daciolo, Amoêdo, Alckmin ou Ciro, dependendo do interesse de cada eleitor.

De resto, a tarefa é inglória mesmo. Haddad é boa pessoa, mas péssimo candidato. O partido ao qual ele é filiado é detestado por metade do eleitorado. Ele tem se comportado como representante de um líder que é amado por 30% da população, mas está preso e é odiado por outros 50%. O tsunami Bolso parece uma daquelas desgraças cuja hora chegou, mas não nos está dada a possibilidade de não lutar. E o terreno é lá mesmo, no Whatsapp. Todo mundo aqui tem um parente bolsonarista. Todo bolsonarista conhece algum outro bolsonarista em um grupo de Whatsapp, que pode te pôr lá dentro em contato com eleitores volúveis. Os grupos se proliferam como coelhos, e é possível que você seja expulso de algum, mas haverá outros. É a única chance que vejo.

Como disse uma amiga, chegamos a uma inacreditável situação: o futuro de nossa democracia e dos direitos humanos no Brasil pode estar dependendo de o PT aprender a usar o Whatsapp. É o que tenho a contribuir.

Esquerdopatas, petralhas e bolsominions; ou De como não inviabilizar um debate antes mesmo de começá-lo

Sempre que me deparo com expressões como “esquerdopata” ou “petralha” tenho imediatamente a vontade de me retirar do embate (pois este tipo de confronto não é digno do nome debate), deixando o(s) interlocutor(es) falando sozinho(s). Não preciso explicar outra vez por que considero ataques ad hominem – ou, como também são conhecidos, falácias de envenenamento do poço – um dos recursos mais pobres, rasantes, a serem utilizados numa contenda verbal, e por isto mesmo só empregado pelos piores argumentadores.

Não que este tipo de desqualificação sumária do(s) adversário(s) seja um expediente de uso exclusivo dos que se situam no campo ideológico da direita, como os exemplos por mim inicialmente citados podem dar a entender. A expressão “bolsominion”, porquanto divertida, talvez pela alusão aos simpáticos vilõezinhos à procura de um líder, é tão repulsiva quanto aquela que dá nome a este post. O recurso a umas ou outras mina, pelo escárnio que encerram, qualquer possibilidade de êxito num debate político – que é, a saber, a conversão à própria causa, pelo esclarecimento, de alguém anteriormente situado num campo adversário.

Devo confessar que eu mesmo já me vali, em mais de uma ocasião, movido pelo calor da discussão e seduzido por seu potencial cômico, de termos plenissignificantes como “bolsominion” – fato pelo qual me arrependo enormemente e doravante me policio para não repetir.

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Numa primeira análise, todos estes neologismos amplamente usados em pseudo campanhas políticas na internet visam a desqualificação prévia de adversários antes mesmo que seus argumentos sejam levados em consideração. É o que define a falácia do envenenamento do poço. Digo pseudo campanhas por que, sempre nestes casos, um lado trola o outro, sem sequer confrontar as bases de cada ideologia em questão – tudo se reduzindo, ao fim e ao cabo, a uma extravasão de ódio ao diferente. Em sua especificidade, tais termos assumem, no entanto, nuances bem distintas, as quais devemos examinar.

É difícil estabelecer a etimologia exata de uma expressão que viralizou como “esquerdopata”. Se o termo se originou num contexto raso, podemos inferir que denota um psicopata ou sociopata de esquerda. Numa versão repaginada, digamos, do clássico comunista comedor de criancinhas. Alegações recentes de apologia à pedofilia em exposições artísticas corroboram esta hipótese. Outra, mais insidiosa, sugere que o termo qualifique a priori o pensamento de esquerda como uma patologia, i.e., uma doença a ser combatida e/ou curada. Particularmente, acho a segunda hipótese muito pior do que a primeira, já que desmentir a alegação de que todo esquerdista é um assassino em potencial é muito mais fácil do que demonstrar que ele não é portador de nenhuma doença infecto-contagiosa, disseminada através de suas palavras, e que deve ser, portanto, evitado.

Já o termo “petralha” é mais francamente jocoso, por tentar mascarar o fato de existirem ladrões e oportunistas em qualquer partido político com a associação gratuita e leviana de que todo petista é ladrão. “Bolsominion” vai mais ou menos nessa mesma linha, identificando simpatizantes de Bolsonaro com um bando de malvadinhos acéfalos.

Inventariadas estas reduções pejorativas, temos que, enquanto a direita tenta desqualificar a esquerda mais com imputações de desvios de caráter, esta rebate com alegações de que militantes de direita não passam de inocentes úteis, desprovidos de inteligência e pobres de espírito. Se considerássemos apenas estes qualificativos, todo o conflito entre esquerda e direita não passaria, então, de uma disputa entre burros e malvados.

Com acusações assim de um lado e de outro, que variam do escárnio ao ódio, não é difícil entender por que o debate sobre o progresso da nação parece não evoluir nas redes sociais, mesmo quando nos dispomos a incluir entre nossos “amigos”, em prol do rompimento das bolhas discursivas, representantes fervorosos de ideais que abominamos.

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Jamais me esquecerei de um amigo dizendo, ao contemplar a passagem de um ônibus repleto de jovens ruidosos gritando bobagens pelas janelas, que “o ser humano em grupo é sempre mais idiota”. Isto já faz muitos anos. Mas lembrei ao pensar em por que nos regozijamos em trolar, por meio de memes ou tiradas engraçadinhas, adversários ideológicos no conforto da bolha dos que simpatizam com nossas ideias e atitudes.

Até que, hoje, em meio a uma daquelas longas discussões que não quis causar, depois de acusações de toda sorte e ácidas ironias, me assustei quando um dos contendores proferiu, ao se despedir, algo como “esperem para ver o que pensa o Brasil em 2018”.

Senti um calafrio. Pois, por mais que eu acredite estar do lado da razão e da justiça, tenho medo do próximo resultado das urnas. Principalmente por que, enquanto a esquerda se esfacela em busca de uma liderança que melhor a represente (qualquer escolar percebe isto), a direita tem se revelado enormemente pragmática e, o que é muito mais grave, proselitista.

Então, simplesmente não acho seguro ficar sentado sobre minhas convicções, à espera de que, no próximo pleito, a maioria ouça a voz da razão e varra de uma vez por todas os males que afligem a nação, hoje melhor traduzidos no programa da direita – do qual não tratarei aqui por fugir demasiado ao foco deste texto.

Outrossim, conclamo os que me acompanharam até aqui nesta linha de raciocínio a, ao invés de, nas próximas oportunidades em que se virem diante de adversários políticos, odiarem os mesmos ou deles escarnecerem – argumentarem, isto sim, de modo a convertê-los, ainda que parcialmente, a posições mais razoáveis e socialmente justas. Não deve ser tão difícil, dada a fragilidade intelectual da agenda da direita. Despersonalizem a discussão, os incentivando a, em vez de dar tanta atenção a palavras de quem identificam como adversários (às quais, automaticamente, pensarão em refutar), procurar se informar em fontes independentes (devidamente curadas, já que ninguém é bobo). Pois que prazer intelectual maior há do que o de seduzir, pela qualidade dos argumentos, um adversário ?

Anotem aí. A revolução não vai se dar pelar armas, muito menos pelo bate-boca pré-eleitoral. Quando vier (espero que já em 2018), será, antes de tudo, uma revolução cognitiva.

O que subtituirá o pensamento econômico obsoleto de esquerda e direita ? O paradigma dos “commons”.

Commons são sistemas sociais auto-organizados para gerir riquezas compartilhadas.

Tradução de um artigo de David Bollier publicado em Evonomics

em 30 de setembro de 2017

A ascensão no mundo de tantos movimentos nacionalistas de direita – Brexit, Donald Trump, os neo-nazistas em Charlottesville (Virginia), protestos contra imigrantes em toda a Europa – certamente tem origens e contextos particulares. Mas conjuntamente, evidenciam as minguantes opções realistas que as culturas políticas capitalistas estão dispostas a considerar. O que naturalmente leva à questão: por que as alternativas mais completas são tão raras e tão raramente confiáveis ?

Elites políticas e suas irmãs corporativas estão ficando sem ideias para conciliar as profundas contradições do “capitalismo democrático” como existe hoje. Mesmo social-democratas e liberais, inimigos tradicionais do dogma do livre mercado, parecem presos a uma visão de mundo arcaica e a um conjunto de estratégias políticas que fazem seus argumentos parecerem pífios. Sua habitual narrativa de progresso – de que o crescimento econômico, aumentado por intervenções governamentais e redistribuição, pode de fato funcionar e tornar a sociedade mais estável e justa – não mais é convincente.

Abaixo, argumento que o paradigma dos commons oferece um ótica nova e prática para a reimaginação da política, da governança e da lei. Em poucas palavras, os commons são sistemas sociais auto-organizados para gerir riquezas compartilhadas. Longe se ser uma “tragédia” (1), os commons como sistema para dividir responsabilidades e benefícios é altamente generativo. Ele pode ser constatado na exitosa autogestão de florestas, fazendas e água, bem como em comunidades de software de código aberto, publicações científicas de acesso aberto e em sistemas “cósmico-locais” de design e fabricação.

A crise financeira de 2008 abalou muitos mitos consensuais que sustentaram a narrativa do capitalismo neoliberal. Revelou que crescimento não é algo que possa ser ampla e igualmente compartilhado. Uma maré ascendente não eleva todos os barcos por que os pobres da classe trabalhadora, e mesmo a classe média, não partilham dos mesmos ganhos de produtividade, isenções fiscais e apreciação patrimonial que os ricos. A crescente concentração de riqueza está criando uma nova plutocracia global, cujos membros estão usando suas fortunas para dominar e corromper processos democráticos ao mesmo tempo em que se isolam dos males que afligem todos os demais. Não é de espantar que o sistema mercado/estado e a ideia de democracia liberal esteja experimentando um crise legítima.

Feita esta crítica geral, acredito que o mais urgente desafio de nosso tempo seja desenvolver um novo imaginário sócio-político que vá além dos atualmente oferecidos pela esquerda ou direita. Precisamos imaginar novos tipos de governança e providenciar arranjos que possam transformar, domar ou substituir mercados predatórios e o capitalismo. Nos últimos 50 anos, o estado regulatório falhou em diminuir a implacável inundação de “externalidades” anti-ecológicas, anti-consumidores e anti-sociais geradas pelo capitalismo, principalmente por que o poder do capital eclipsou o da nação-estado e a soberania do cidadão. Ainda assim a esquerda tradicional continua acreditando, equivocadamente, que um Keynesianismo requentado, redistribuição de riqueza e programas sociais sejam politicamente viáveis e possam se tornar efetivos.

O crítico cultural Douglas Rushkoff disse: “Desisti de consertar a economia, por que a economia não está estragada. Ela é simplesmente injusta.” Noutras palavras, a economia está funcionando mais ou menos como seus superintendentes capitalistas querem. Cidadãos frequentemente se desesperam por que a luta por mudanças dentro da política democrática convencional é muitas vezes fútil – e não apenas por que processos democráticos são corruptos. Burocracias estatais e mesmo mercados competitivos são estruturalmente incapazes de enfrentar muitos problemas. Os limites do que O Sistema pode oferecer – em mudanças climáticas, desigualdade, infraestrutura e responsabilidade democrática – são escancaradamente expostos todos os dias. Ao mesmo tempo em que a desconfiança no estado cresce, uma questão bem pertinente é para onde a soberania e a legitimidade política migrarão no futuro.

O problema fundamental em desenvolver uma nova visão é, entretanto, que velhos debates ideológicos continuam a dominar o discurso público. A política está reeditando indefinidamente muitas das mesmas discórdias, deixando de reconhecer que profundas mudanças estruturais são necessárias. Há pouco espaço de incubação para novas ideias e projetos. Novas visões precisam de espaço para respirar e evoluir sua lógica soberana e sua ética para escapar do beco sem saída do melhorismo reformista.

Conforme expliquei num artigo recente para a revista The Nation, narrativas e projetos insurgentes não faltam. Movimentos centrados na justiça climática, cooperativas, cidades tradicionais, sistemas locais de alimentação, finanças alternativas, moedas digitais, produção por pares e design e fabricação abertos, entre outros, estão inaugurando modelos pós-capitalistas de governança e provimento por pares. Ainda que fragmentados e diversos, estes movimentos tendem a enfatizar a temática dos commons: produção e consumo para atender necessidades individuais, sem gerar lucro; tomada de decisões de baixo para cima e administração de riquezas compartilhadas a longo prazo. Todos estes valores estão na essência dos commons.

Por enquanto, estes movimentos tendem a funcionar na margem da cultura, mais ou menos ignorados pela grande mídia e pelos partidos políticos. Mas isto é precisamente o que permitiu que eles evoluíssem com integridade e substância. Só aqui, na periferia, estes movimentos puderam escapar dos pesados preconceitos e das prioridades auto-beneficiantes dos partidos políticos, agências governamentais, meios comerciais, filantropia, academia e complexo industrial não lucrativo entrincheirado.

Por que a imaginação pública para mudanças tranformativas é tão atrofiada ? Em parte por que instituições mais estabelecidas estão mais focadas no manejo da reputação de suas marcas e franquias organizacionais. Assumir riscos e desenvolver novas iniciativas e ideias sólidas não é o que elas geralmente fazem. Enquanto isto, movimentos de mudança de sistema são geralmente considerados sem importância por serem de escala muito pequena, triviais ou apolíticos. Eles também permanecem obscuros por que tendem a confiar em redes baseadas na internet para construir novos tipos de poder, rendimentos (capacidade estrutural para agenciamento individual) e autoridade moral que atores convencionais não entendem ou respeitam. Exemplos incluem a ascensão do grupo de fazendeiros e pastores La Via Campesina, a colaboração transnacional entre povos indígenas, plataformas cooperativas que promovem alternativas compartilhadas como Uber e Airbnb e o System for Rice Intensification (um tipo de agricultura de código aberto desenvolvido pelos próprios fazendeiros).

Ao invés de gerir a si próprios como organizações hierárquicas com franquias proprietárias, reputações e sobrecarga para sustentar, ativistas se enxergam como partes de um movimento social atuando como atores flexíveis em ambientes abertos, fluidos. Seu ativismo em rede permite que se organizem mais eficientemente e coordenem atividades, atraiam participantes talentosos escolhidos por eles mesmos e implementem ciclos rápidos de interação criativa.

Movimentos de mudança de sistema tendem a evitar condutas e processos políticos convencionais – procurando, ao invés, mudança através de emergência auto-organizada. Em termos ecológicos, eles estão usando redes digitais abertas para tentar criar “áreas de captação”, que são espaços para onde muitos fluxos convergem (água, vegetação, solo, organismos, etc.) para fazer surgir uma zona independente e auto-reabastecida de energia vital. No dizer de duas alunas de teoria da complexidade e movimentos sociais, Margaret Wheatley e Deborah Frieze:

Quando esforços separados, locais, se conectam uns com os outros como redes, se fortalecendo como comunidades de práticas, repentina e surpreendentemente um novo sistema emerge numa escala muito maior. Este sistema de influência possui qualidades e capacidades até então desconhecidas para os indivíduos. Não é que elas estivessem ocultas; simplesmente não existiam antes que o sistema emergisse. São propriedades do sistema, não do indivíduo, só que uma vez lá, os indivíduos as possuem. E o sistema que emerge sempre possui mais poder e influência do que seria possível por meio de mudança incremental planejada. Emergência é como a vida cria mudança radical e faz coisas em escala.

A velha guarda da política eleitoral e da economia convencional tem dificuldade em compreender o princípio da emergência, que dirá reconhecer a necessidade de estruturas de políticas inovadoras que possam alavancar e focalizar o poder dinâmico. Ela consistentemente subestimou a inovação de baixo para cima viabilizada pelo software de código aberto; a velocidade e confiabilidade do estilo da Wikipedia de coordenação e agregação de conhecimento e o poder das mídias sociais para catalisar auto-organização viral tal como no movimento Occupy, nos Indignados e Podemos na Espanha, na Revolução do Jasmim na Tunísia e em Syriza na Grécia. Escolas convencionais de economia, política e poder não compreendem as capacidades generativas das redes descentralizadas e auto-organizadas. Elas aplicam categorias obsoletas de controle institucional e análise política, como se tentando compreender as ramificações de automóveis por meio da linguagem de “carruagens sem cavalos”.

Ao invés de aderir ao velho espectro da esquerda à direita da ideologia política – que reflete a centralidade do mercado e do estado em organizar a sociedade – precisamos empreender novas narrativas que nos permitam imaginar novos motores de governança, produção e cultura. Em meu trabalho pessoal, vejo o enorme potencial dos commons no momento em que fazendeiros e pescadores, cidadãos urbanos e usuários da internet tentam reclamar recursos compartilhados que lhes foram usurpados para alimentar a máquina capitalista – e criar suas próprias alternativas de governança. Nisto, os commons são ao mesmo tempo um paradigma, um discurso, um conjunto de práticas sociais e uma ética.

Nos últimos 5 anos ou mais, os commons serviram como uma espécie de meta-narrativa abrangente para diversos movimentos desafiarem a mercantilização e a transnacionalização de tudo, a desapropriação e privatização de recursos e a corrupção da democracia. Os commons também forneceram uma linguagem e uma ética para pensar e agir como um plebeu – colaborativo, socialmente consciente, integrado à natureza, preocupado com rendimento e longo prazo e respeitador da pluralidade que faz nosso planeta.

Se nos preocupamos com mudança efetiva de sistema, precisamos começar a nos emancipar de conceitos e vocabulários retrógrados. Precisamos instigar novos modos pós-capitalistas de pensar sobre modelos emergentes de provimento e governança por pares. Influenciar novas realidades tem menos a ver com eleger líderes e políticas diferentes do que com apreender a mudar a si próprio, orquestrar uma nova intencionalidade compartilhada e promover uma nova narrativa sobre os commons.

Publicado originalmente em global-e journal of 21st Century Global Dynamics, at UC Santa Barbara.

Publicado sob uma licença internacional Attribution-ShareAlike 2.0 Creative Commons.

1 Garrett Hardin, “The Tragedy of the Commons.” Science (Vol. 162, Issue 3859, 1968), pp. 1243-1248. Para uma crítica do modelo de Hardin, veja Ian Angus, “The Myth of the Tragedy of the Commons”:

http://climateandcapitalism.com/2008/08/25/debunking-the-tragedy-of-the-…

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David Bollier é diretor do programa Reinventing the Commons no Schumacher Center for a New Economics, autor de Think Like a Commoner e co-editor de Patterns of Commoning. Ele bloga em Bollier.org.

 

Interpretação de Texto; ou À deriva por um mar de links; ou, ainda, Sobre o que significa ser de esquerda ou direita hoje (ii)

” – Interpretação de texto até em casa, agora ! “

foi o que ouvi, com ironia, de um de meus filhos ao lhes perguntar, dia desses, se tinham lido uma matéria do Huffington Post que lhes recomendara, na semana anterior, sobre limitações sugeridas para a conectividade de jovens em diferentes faixas etárias. Foi como descobri que eles (e provavelmente a maioria de seus pares !) desdenham a modalidade pedagógica, ao menos como a conhecem. Me pergunto por que. Tratarei de descobrir quais textos são lidos em suas escolas e quem os escolhe. Quaisquer que sejam as respostas, tenho, no entanto, desde já, que pais de alunos também devam, além de professores, exercer algum tipo de curadoria sobre tudo o que nelas se lê, vê e ouve. Suponho que, na maioria das vezes, isto não aconteça

Mas por que não, afinal, interpretação de texto também em casa não é uma má ideia ?

(devo lembrar de agradecer a meu filho por ela (ainda que proposta ao contrário, i.e., como um parecer desfavorável))

Pais se responsabilizando pela escolha do que é lido, visto ou escutado por seus filhos não é nenhuma novidade. A história de David Gilmour, escritor canadense que desobrigou o filho de frequentar a escola mediante o compromisso de assistir a um filme por dia, escolhido pelo pai, é contada no livro O Clube do Filme (The Film Club, 2007).

JonasCom alguma licença poética, a ideia é uma mesma que encontramos no filme Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (1976).

(como nenhum nativo digital era vivo quando o filme foi lançado, me permito, nas próximas linhas, alguma digressão sobre o mesmo)

Esta obra-prima de Alain Tanner figura com certeza entre aqueles 100 ou 200 filmes memoráveis que cada ser maduro já viu na vida.

(curioso: 150 é também uma espécie de valor médio aceito por pesquisadores para o número de “amigos” que cada pessoa consegue, de fato, conhecer !…)

Nele, o protagonista, a espera de seu primogênito (me desculpem a cacofonia !), divaga, ao pedalar, numa paisagem bucólica suíça, todas as manhãs para o trabalho, sobre [lições/palestras/preleções/chautauquas] que pretendia dar a seu filho, quando crescesse, sobre os mais diversos assuntos, sobretudo políticos. Simplesmente inesquecível ! Me divirto até hoje ao lembrar dos irmãos Zero.

Talvez inspirado por tais exemplos, passei a colecionar, de tudo o que me vem, links para textos, vídeos, músicas e o escambau que gostaria que meus filhos viessem a conhecer nalgum futuro, próximo ou distante. Como numa cápsula de tempo. Na qual depositei o supracitado artigo do Huff Post sobre limites recomendados para a conectividade infanto-juvenil.

* * *

Segunda-feira. Início da semana digital. Pois me disse um amigo, especialista em informática, que, em termos de índices de visitação, a situação de um portal durante os finais de semana é de maior letargia do que nos outros dias. Eis que, recomendado num comentário de André Paz sob meu compartilhamento de um post compartilhado anteriormente por Marcos Abreu (ah, benditas PLNs !), me aparece na timeline um trecho de uma entrevista concedida por Frank Zappa sobre as principais diferenças entre a indústria fonográfica de hoje e a dos anos 60. A parte mais hilária é definitivamente quando, logo no início, afirma que velhos executivos (da turma do George Martin, suponho), que publicavam tudo o que lhes fosse mais estranho, eram bem menos conservadores do que os de agora – a saber, jovens hyppies, que anteriormente só traziam o cafezinho e distribuíam a correspondência mas que, por terem trazido o cafezinho na hora umas quatro vezes seguidas, são promovidos a executivos yuppies que passam a decidir sistematicamente não publicar nada que lhes seja estranho com base tão somente na estapafúrdia justificativa de que gente como eles próprios (!) não ouve coisas assim. Ou seja, a propagação da imbecilidade de cima para baixo e de dentro para fora. Confiram.

Com o passar do tempo, ficou cada vez mais claro que a tônica do dia seria o declínio da indústria fonográfica. Já que, horas depois, tomei contato, por meio de Artur Elias, com uma das melhores diatribes que já vi contra a música pop. Em forma de vídeo (!). Do tipo que sintetiza, de modo claro e conciso, tudo o que sempre pensei sobre o assunto. A lamentar somente a ausência de referências ou links para o mar de citações apresentadas. Compartilhei – não sem, antes, muito matutar acerca de quais frases de apresentação seriam as mais impactantes

Talvez pela primeira vez (maldita cacofonia (outra vez) !), detive minha atenção ao discurso de um youtuber. Detalhe curioso. Suprimindo-se o áudio e as legendas, o que se vê é um inflamado discurso de ódio (à música pop, no caso), digno do melhor doutrinador nazista. Nos vídeos relacionados, logo encontramos outra peça do autor – desta vez uma diatribe contra as artes visuais modernas. Os velhos argumentos sobre Pollock, Rothko, children art, mictórios and the like.

Num olhar mais atento, notamos que a peça pertence ao canal de um coletivo denominado Tradutores de Direita. De direita ? WTF ?

Campos ideológicos, tais como existem hoje, podem ser bem confusos. Se bem entendi, o sujeito explica em detalhes os mais sórdidos mecanismos da indústria cultural – até pouco tempo uma das meninas dos olhos do capitalismo corporativo transnacional. Então, como enquadrar o que é dito por ele em qualquer ideário que possa ser considerado, de algum modo vago ou longínquo, de direita ?

 

O que significa ser de direita ou de esquerda no Brasil hoje ?

esquerda x direita 2

Lancei esta pergunta faz poucos dias. Primeiro, entre amigos lá em casa. Depois, no facebook. Em casa, não tive resposta. No facebook, colhi, inclusive, dois textões, de proporções enormemente maiores do que minha provocação, um deles junto com um video de Olavo de Carvalho, cuja reputação sempre conheci mas em cujo discurso confesso jamais ter prestado antes qualquer atenção.

Nos primeiros minutos do vídeo (que, confesso, desisti de ver até o fim), Olavo mistifica, definindo, em política, a direita como a experiência, como aquilo que é conhecido, e a esquerda como o experimentalismo, para em seguida proclamar seu repúdio a todo pensamento revolucionário, inventariando em favor de sua posição uma extensa lista de genocídios e assassinatos cometidos por governos revolucionários.de esquerda. Não me dei, no entanto, por satisfeito com sua definição.

A tragédia da desilusão nacional com o PT, sentida por muitos e minimizada por outros tantos, se deve, principalmente, ao ruir do discurso de esquerda que levou o partido ao poder nas últimas décadas. Mas vejamos por partes.

Assumidamente ou não (pois a verdadeira índole de todo interesse político é por vezes velada), apoiadores de candidatos ou partidos reconhecidos como de direita sempre defenderam o direito ao poder do capital empreendedor enquanto seus opositores de esquerda reclamavam, acima de tudo, mais justiça social.

Só que, no Brasil dos governos de Lula e Dilma, se institucionalizou (ou, pelo menos, começou a ser apurada) a corrupção dos poderes pelas grandes empreiteiras. Com isto, grupos oligárquicos (acionistas majoritários) se tornam os maiores beneficiários da realização de obras de indiscutível (ou mesmo discutível) alcance social. In short, se dá aos ricos em nome dos pobres, numa espécie de complexo de Robin Hood ao contrário – a tragédia do PT sendo, neste caso, tolerar sob seu manto o mesmo tipo de comportamento corrupto que critica em seus predecessores.

Com tantos agrados de empreiteiras a agentes da pirâmide administrativa custeados com recursos surrupiados ao bem comum – é, pois, no mínimo acintoso ver políticos e governos manchados por esse tipo de escândalo de corrupção sustentar qualquer discurso em favor da justiça social, como muitos (praticamente todos) ainda insistem em fazer.

E o que é justiça social ? Distribuição de renda e igualdade de oportunidade, a meu ver. Duas condições, aliás, frequentemente atropeladas pela voracidade do capital que move os interesses de direita. Estou enganado ?

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Grata surpresa tive, durante a por vezes tediosa tarefa de procurar figuras para os posts (Milton diz que ajudam muito na divulgação), ao topar com uma charge de 2012 do querido Latuff que ilustra o que falo de modo exemplar.