Slow cooking (iv): Yakisoba

A disponibilidade universal da comida japonesa é um dos efeitos mais emblemáticos da globalização culinária. Em minha infância, tanto o sushi como a ideia de comer peixe cru eram tidos como excentricidades. Sabíamos de sua existência em confins remotos, mas como hábitos alimentares, gozavam do mesmo status que comer insetos ou vermes desfrutam, entre nós, ainda hoje.

Aí vieram os restaurantes japoneses e, quase imediatamente, a comida japonesa de tele entrega. Sucumbimos ao charme irresistível do sushi. Assim como a outras “novidades” – como, por exemplo, o salmão fresco ou os tomates secos. Até nos fartarmos. Educamos nossos filhos de modo a acharem naturais estes sabores globalizados. Nativos digitais apreenderam a apreciar peixe cru praticamente ao mesmo tempo em que apreenderam a falar. Então, quando capitulamos à insistência dos pequenos, resta, frequentemente, como supremo ato de rebeldia, a lacônica página de pratos quentes do cardápio japonês. É lá que encontramos seu carro chefe – o indefectível yakisoba, um engolobado de macarrão, legumes e carnes que podem variar do gado ao frango, passando pelos frutos do mar.

Já comi yakisobas interessantes em restaurantes. Confesso, no entanto, que me sinto um pouco idiota ao ordenar o clássico diante de uma miríade de opções exóticas ou mais elaboradas. O sushiman tem razões de sobra para ficar ofendido com comedores de yakisoba. ” – E a minha arte, onde fica ?”, diria ele.

Já yakisobas de tele entrega são um capítulo à parte. Como, aliás, qualquer comida entregue à domicílio. Muito ainda há que ser estudado sobre a metamorfose inexorável sofrida por toda comida feita nos melhores restaurantes até chegar, sobre duas rodas, aos os endereços em que serão consumidas. Foi ciente desta limitação que me lancei a uma cruzada em busca do yakisoba perfeito. Já que, como bem disse meu filho Arthur, ” – Feito em casa é sempre melhor. ”

O périplo começou diante das prateleiras do supermercado – onde encontrei, junto a tantas outras variedades de shoyu (molho de soja), frascos rotulados como “molho para yakisoba” em cujo interior havia um xarope viscoso. A gororoba me lembrou de pronto aquele coloide gelatinoso que envolvia todo yakisoba que já me foi entregue por um motoqueiro, lembrando shoyu apenas pela cor e causando imediata repulsa aos comensais. Foi naquele instante que decidi jamais adquirir algo descrito como “molho para yakisoba”, me encarregando eu mesmo de temperar o prato com shoyu convencional. Após três tentativas, ainda não me arrependi da decisão.

Se existe uma razão para não se aventurar na cozinha no preparo de um yakisoba, esta razão é, sem dúvida alguma, a sujeira resultante. Pois a operação exige, no mínimo, o emprego de três panelas – as quais, somadas aos demais utensílios utilizados no preparo e para servir, são responsáveis por um considerável acréscimo de trabalho na pia depois da parte mais divertida.

Nunca li uma receita de yakisoba. O instinto culinário, no entanto, sugere que seus ingredientes implicam em três modos de cozimento diferentes. Daí as três panelas. O macarrão (do tipo lámen ou, como dizem os gringos, noodles) deve ser cozido em água; os legumes ficam mais saborosos e corados se cozidos no vapor; já a cebola e os cogumelos devem ser refogados em óleo quente.

Para o cozimento no vapor, o ideal é uma daquelas panelas com duas partes (além da tampa); a superior com furos no fundo, como um escorredor de massas; nela, a água fervente na parte inferior não tocará os ingredientes dispostos na parte superior, furada. Já para o refogado, assim como para a maioria das receitas orientais, deve ser utilizado um wok (panela em forma de hemisfério, multifuncional, que pode ser usada tanto para frituras como para refogados ou cozimentos).

Ainda sobre o cozimento: cuide para não cozinhar demais o macarrão, como se fosse para ser consumido diretamente. Não esqueça que ele deve ser separado e ligeiramente cozido novamente quando finalmente entrar na receita. Quanto aos legumes (brócolis, couve-flor e rodelas de cenoura), devem ser cozidos em vapor até ficarem al dente; um bom teste para o ponto é quando as cenouras estiverem suficientemente macias para serem ingeridas.

Deixei o refogado por último devido a um detalhe técnico. É claro que cebolas (cortadas em quatro partes) e cogumelos devem ser refogados longamente, até dourar. O processo se diferencia com a entrada da carne. Enquanto nacos de carne bovina ou de frango suportam um refogado mais demorado, camarões devem ser apenas ligeiramente submetidos ao calor, praticamente quando a cebola e os cogumelos já estiverem prontos – sob pena de, se cozidos em demasia, ficarem rijos. Esta regra vale para qualquer receita com camarões.

Sal. Tenho muita dificuldade em estimar a quantidade de sal a ser adicionada no preparo de um prato, tendo já salgado irremediavelmente ou, ao contrário, deixado com pouco sal uma infinidade de experiências culinárias. O método mais satisfatório que encontrei para uma receita “multifásica” como o yakisoba foi temperar separadamente cada etapa do preparo. Assim, salguei normalmente a água na qual cozinhei o macarrão; aspergi um pouco de sal sobre os legumes antes de cozinhá-los no vapor e, finalmente, temperei com sal e pimenta – e shoyu ! – a cebola e os cogumelos refogados ao qual, bem ao final, adicionei os camarões. Ao fim, não precisei ajustar o tempero.

A melhor parte é, indiscutivelmente, quando misturamos tudo antes de servir. É o grande momento do cozinheiro. A hora das fotos.

Slow cooking (iii): Bananas fritas em duas versões

Sou meio indiferente em relação a bananas in natura – assim com à maioria das frutas. Por outro lado, dificilmente me furto a saborear ovos em suas infinitas realizações culinárias, tanto doces como salgadas. Papos de anjo, fios de ovos, baba de moça, maioneses, molho holandês, omeletes, cozidos ou fritos, tudo é desculpa para aumentar o índice de colesterol.

Bananas grelhadas são uma dádiva que ajuda a compor vários pratos. A bem da verdade, as à milanesa também são ótimas. Este post é dedicado às primeiras.

Para gratinar, escolha bananas não muito maduras, para que mantenham uma relativa firmeza sem se desmanchar sobre a chapa. Corte-as pela metade longitudinalmente, conforme a ilustração. Derreta manteiga numa panela de aço de fundo espesso. Teflon e outros revestimentos anti-aderentes, os quais nunca experimentei, também devem funcionar. Prefiro panelas de borda alta a frigideiras, por facilitarem a limpeza do fogão. Doure a gosto as metades das bananas na manteiga derretida e separe.

Mise en place: bananas cortadas longitudinalmente pela metade
Bananas sendo fritas em manteiga
Bananas já fritas em manteiga

Dica: ao trabalhar fritadas múltiplas em manteiga derretida, é preciso cuidar para que, entre uma carga e outra da panela, a manteiga não queime. Para tanto, de deve adicionar mais manteiga de tempos em tempos, para que o fundo da panela não seque devido à absorção da manteiga derretida por aquilo que nela é frito. Outra coisa que ajuda bastante é “pilotar” permanentemente a chama do fogão – desligando, por exemplo, a mesma enquanto retiramos o que foi frito e colocamos outra leva de ingredientes crus.

Bananas fritas são uma espécie de coringa que funciona bem como prato principal e como sobremesa. Em minha família, costumavam servi-las acompanhadas de guisado e farofa. Nesta versão, fiz o célebre “recheio de pastel” com óleo de oliva, alho, cebola, azeitonas, carne moída, sálvia e ovos cozidos.  Cuide para que os ingredientes entrem no refogado nesta ordem, atentando para que o óleo esteja quente antes da entrada do primeiro (o alho) e também para que os ovos e a sálvia só entrem no final, para que não desidratem em demasia. Tempere com sal e pimenta do reino a gosto.

Guisados são tradicionalmente temperados com manjerona. Utilizei sálvia, mais associada à carne de frango, experimentalmente e com ótimo resultado, por que a hortaliça estava bonita no canteiro.

Mise en place para o guisado: sálvia, alho, cebola e azeitonas
Alho, cebola e azeitonas sendo refogados em óleo de oliva
Guisado servido com farofa e bananas fritas

* * *

Gosto de otimizar a cozinha processando alimentos em quantidade suficiente para a realização de várias receitas. Por exemplo, sempre que dessalgo bacalhau, utilizo apenas uma parte e separo a outra, que congelo. Uma porção de bacalhau convenientemente dessalgado e congelado é de um valor inestimável para qualquer cozinheiro com tempo escasso. Com bananas, tampouco é diferente. Ou seja, não vale a pena sujar a cozinha apenas para dourar quatro ou cinco bananas. Gaste mais alguns minutos e frite logo umas quantas, bem mais do que aquelas que pretende utilizar imediatamente. Pois o esforço posterior de limpeza será o mesmo, independentemente da quantidade de bananas processadas.

No presente caso, utilizei a metade da quantidade de bananas que dourei para a confecção de um doce de forno – espécie de Chico Balanceado para estômagos fortes, se é que me entendem. Pois, em vez de um suave flan de baunilha, me vali aqui de uma rica gemada, daquelas que não se come antes de fazer exames de sangue para mostrar ao médico. Meu pai gostava de gemadas com vinho porto. Na falta do licor, usei um brandy (mais especificamente, jerez de la frontera) que comprara para outra receita (uma deliciosa roupa velha cubana, sugerida pelo Istvan Vessel, que replicarei de outra feita).

A montagem do prato é bem simples. A começar pelo fato de que, tendo as bananas da primeira camada sido douradas em manteiga, não é preciso untar previamente, como em outras tortas assadas, a assadeira de vidro. Então, despeje sobre a camada de bananas primeiro a gemada e depois a o merengue, ambos com bastante açúcar. Utilize um fouet para bater a gemada e batedeira (obviamente) para a merengada. Asse em forno pré-aquecido até o merengue da cobertura adquirir um aspecto ligeiramente tostado – sem, no entanto, queimar. Como os tempos de forno para a gemada e o merengue são diferentes (o merengue assa mais rápido do que a gemada) levei o prato com as bananas e a gemada ao forno enquanto batia o merengue.

Primeira camada do doce antes de ir ao forno: bananas fritas
Fouet
Segunda camada do doce antes de ir ao forno: gemada
Camada superior do doce ao sair do forno, antes de murchar e rachar: merengue

Sirva quente ou gelado.

 

Comer sozinho (i): penne Don Giovanni

Muita vezes já desabafei a amigos mais chegados, em tom jocoso, após contemplar as estatísticas mensais de visitação dos blogs do Sul 21 enviadas pelo Milton Ribeiro a seus escritores como provocação para que escrevam mais, que deixaria de elaborar textos cabeça para, doravante, me dedicar exclusivamente a posts culinários. Pois o blog gastronômico do portal supera de longe em acessos todos os outros. Exceto, é claro, os do Milton.

Hoje, pus finalmente mãos à obra. Antes, porém, da receita recém criada propriamente dita, se faz necessário um preâmbulo. Breve, prometo.

Faz quase dez anos que, em dias de semana, almoço invariavelmente sozinho. O que pode parecer àqueles mais acostumados ao aconchego doméstico uma atividade essencialmente lúdica é, na verdade, bem trabalhoso, entediante e, por vezes, frustrante. De início, tendemos a mapear na área geográfica em que vivemos aquele punhado de restaurantes com preços convidativos nos quais podemos comer ser correr riscos. Só que, com o tempo, os cardápios se tornam repetitivos. A tal ponto de, mesmo nos lugares (mais caros) onde se possa desfrutar de um menu confiance, as coisas tenderem a se repetir – no pior dos casos nos mesmos dias da semana. Então, almoçar fora ou em casa pode, muitas vezes, se traduzir na diferença entre comida e alimentação. Além disso, já ouvi que preparar a própria comida tem um inestimável valor terapêutico para os insanos. Não sei se isto se aplica a meu caso.

De sorte que, hoje, ao sair do segundo ensaio para a ópera Don Giovanni, decidi me dirigir à minha casa para improvisar rapidamente com o que tivesse na geladeira. No caminho, me diverti imaginando opções que poderia preparar com sobras e ingredientes que tivesse à mão (sobras básicas, não finalizadas, são essenciais à culinária relâmpago). Cheguei em casa com certo gozo antecipatório, saboreando mentalmente uma massa carbonara com o penne que sobrou do domingo. Parêntesis: não vale a pena cozinhar menos do que o meio quilo de massa que geralmente vem no pacote; uma massa já cozida, à espera de um molho interessante, é uma dádiva.

Para minha surpresa, não havia ovos. Mas não esmoreci. Processei uma peça de bacon magro (uma auspiciosa novidade nos supermercados), que torrei em manteiga derretida – reservando, é claro, o restante para invenções futuras (já falei, acima, da importância dos ingredientes “coringa”, prontos para o uso). Olhando, então, para a geladeira e para o rack de temperos, juntei ao bacon frito (que os americanos chamam de bacon bits) uma mistura de alho e cebola flocados (secos) com algo defumado de soja que Astrid havia comprado e alecrim fresco colhido da horta. Depois de desligar o fogo, juntei pedaços de tomates cereja que já estavam lavados e com os nós dos talos removidos (Astrid é preciosista em assuntos culinários).

Não me decepcionei. A massa, que batizei de Don Giovanni em homenagem ao ensaio que atiçara minha fome, superou em muito qualquer carbonara que já comi. Sei. É extremamente anti ético descrever receitas sem postar fotos das ditas cujas. Juro que até pensei em compor um prato fotografável, dispor sobre uma toalha, cuidar da luz e regular a câmera – mas, entre fazer tudo isso e comer a criação efêmera antes que esfriasse, preferi a segunda opção. Comi olhando, pela janela, a primeira orquídea a florescer neste ano (as estações andam malucas) e, o que é melhor, sem ouvir a conversa dos almoços de negócio em outras mesas que ocorrem em qualquer restaurante neste horário. Isto não tem preço.

Salut !