Mais sobre o fim da imprensa e por que a matriz tributária é socialmente injusta

Recapitulando. No post anterior, examinamos dois grandes mitos acerca do jornalismo corporativo, a saber,

que a imprensa detém uma espécie de monopólio sobre a capacidade e a vontade de verificar a veracidade dos fatos; e

que a imprensa é isenta de interesses próprios ao reportar fatos.

Estes dois mitos são os principais argumentos levantados em favor da auto alegação da imprensa de que a mesma desfrutaria, a priori, de mais credibilidade do que a internet. Esperamos ter deixado isto claro até aqui.

No presente texto, o foco é na diferença entre a natureza da composição de esforços empreendidos por pequenos e grandes negócios, dentre os quais os jornalísticos, em prol da conquista e manutenção de posições privilegiadas entre competidores; bem como na possibilidade ou não de que pequenos e grandes coexistam num mesmo ecossistema desregulado. À natureza dos esforços, então.

Enquanto pequenos negócios, naturalmente melhor ajustados a seus nichos de atuação (demandas locais mais específicas e conhecidas) podem se concentrar melhor em suas atividades fim, de produção, gigantes de qualquer ramo – tendo que, necessariamente, atender a demandas mais genéricas e dispersas – precisam investir proporcionalmente muito mais em iniciativas de dominação de mercado, tais como publicidade e logística de distribuição, que, por sua vez, pouco ou nada tem a ver com suas atividades fim.

Para tornar a equação ainda mais complexa, pequenos negócios, enquanto locais, enfrentam muito menos concorrência, muitas vezes inexistente em seus territórios de atuação, do que grandes empresas, as quais precisam lidar habitualmente com outras, congêneres, cujas regiões de abrangência se sobrepõem.

Combinados, tais custos adicionais de distribuição, promoção e posicionamento vantajoso em relação à concorrência (os dois últimos se confundem) tornam, para as grandes corporações, bem mais oneroso produzir os mesmos bens e serviços que os pequenos negócios. Devo esclarecer que esta é uma visão um tanto quanto exótica, na contramão do que afirma a economia tradicional, que apregoa vantagens da produção em grande escala na redução de custos. Até que ponto a economia com custos de distribuição e publicidade compensaria as supostas vantagens da produção em larga escala é uma pergunta a ser respondida por economistas.

Pode ser que, sob um escrutínio minucioso, a produção em escala se revele, num balanço frio de custos e ganhos, financeiramente mais em conta do que a de uma rede de micro produtores. Ainda assim, no entanto, tal arranjo das forças produtivas não seria necessariamente melhor para a sociedade, principalmente por causa de dois fatores:

grandes negócios geram mais concentração e, consequentemente, mais desigualdade; e

quanto mais global for um negócio, maiores serão os custos, ambientais e financeiros, para que seus produtos cheguem às praças de consumo.

Razões suficientes, em nosso entender (noves fora a praga da publicidade), para incentivar os pequenos negócios em detrimento dos grandes.

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No post anterior, insinuamos certa ambivalência da Globo ao incentivar pequenos negócios ao mesmo tempo em que abriga em sua matriz de anunciantes exclusivamente grandes corporações. O que leva, inevitavelmente, à seguinte pergunta: pode ou não um governo ou agentes privados estimularem ao mesmo tempo grandes e pequenos ?

A menos que o resultado desejável seja uma guerra predatória, a resposta é não. Pois, ainda que, via de regra, pequenos negócios almejem crescer (abrir filiais, ter mais funcionários ou, se quiserem, “colaboradores”), todo grande negócio tende a absorver sua própria concorrência. Já me referi anteriormente ao “efeito espuma” na economia, segundo o qual um sistema composto de um número enorme de bolhas minúsculas tende, se deixado em repouso (i.e., sem a intervenção de agitação ou qualquer outra força externa, em economia geralmente sob as formas de regulamentação e tributação), a se transformar noutro com um número menor de bolhas maiores. A criação, anos atrás, da Ambev (espantosamente tolerada pela regulamentação anti-truste), é um claro exemplo disto. Outro é a absorção pela Coca-Cola de  inúmeras marcas locais de bebidas não alcoólicas, tanto de refrigerantes como de chás e águas minerais.

Então, não dá para ser ao mesmo tempo a favor de grandes e pequenos, por que uma atitude ou outra implica em ações diferentes, muitas vezes antagônicas. Como, por exemplo, a taxação.

Estamos acostumados à ladainha de empresários, que sentem seu lucro ameaçado, de que, no Brasil, impostos são muito altos, beirando o proibitivo, tornando praticamente inviável a realização de negócios no país. O chamado Custo Brasil. Estranhamente, não fecham as portas. Mas isto é outra história. O que nos interessa, aqui, é notar que a matriz tributária brasileira está invertida – só que ao contrário do que é amplamente alardeado.

Vejam, por exemplo, o caso do imposto de renda, que taxa muito mais pessoas físicas, com alíquotas progressivas que variam entre 0 a 27,5 %, do que jurídicas, que recolhem 6 ou 15 % de seu lucro, dependendo do regime tributário a que estão submetidas, e, o que é pior, independentemente da magnitude do lucro auferido. Pois o lucro de uma empresa de médio ou grande porte costuma ser bem maior do que os vencimentos anuais dos mais bem pagos assalariados.

Reparem, ainda, que, enquanto pessoas físicas são taxadas sobre a totalidade de sua renda líquida, empresas recolhem impostos apenas sobre o lucro. Num sistema minimamente isonômico entre pessoas físicas e jurídicas, as últimas deveriam pagar imposto de renda sobre o faturamento e não sobre o lucro. Há, além disto, impostos indiretos como o ICMS (estadual, de 18 a 30 % no RS X 8,25 % em Nova Iorque), o IPI (federal) e o ISSQN (municipal), via de regra transferidos ao consumidor final, embutidos no custo de quaisquer produtos e serviços.

Diante desta discrepância de magnitudes, um sistema que de fato estimulasse os pequenos negócios deveria taxar os maiores progressivamente (o que não é feito) e ter tetos de alíquotas bem mais altos. Sei que parte significativa do argumento de que o Custo Brasil é proibitivo para empreendedores se refere à quantidade de tributos, que não é pouca. Todavia, qualquer matriz tributária que permita lucros ilimitados aos grandes às expensas do achatamento dos ganhos dos menores, sejam eles indivíduos ou pequenos negócios, é socialmente injusta, na contramão do advento de uma sociedade auto sustentável e menos desigual. Num mundo perfeito, políticas regulatórias tributárias seriam implementadas com valores de alíquotas móveis, empiricamente ajustados, até que se lograsse algum decrescimento e, consequentemente, melhor distribuição de riqueza.

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Hesitei bastante antes de escrever este libelo em prol da maior taxação dos mais ricos, pois achava que, antes de aludir à discrepância entre, de um lado, a parcimônia na taxação de grandes capitais e, de outro, a implacabilidade na das pequenas economias, deveria proceder a um estudo detalhado da totalidade dos tributos incidentes sobre cada categoria – para o qual, confesso, me faltou persistência e conhecimento econômico/contábil. Deixei, no entanto, este preciosismo de lado (e os cálculos aos economistas) ao me lembrar da recomendação de Steve Fuller, em O Intelectual, de que este deve preferir sempre a abrangência à profundidade. Assim, de pouco importa que grandes capitais paguem, como alegam, impostos demais enquanto sua riqueza continue crescendo em proporções maiores do que a dos pequenos.

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Deixando de lado os atores econômicos em geral para retornarmos ao caso da imprensa, bem como da tese de que pequenos negócios podem focar melhor em atividades fim do que os maiores, temos que, enquanto pequenos veículos (hoje os digitais) podem se voltar melhor e com custos inferiores ao conteúdo (vejam o caso dos sites de notícias); já os maiores, como jornais e revistas impressos e redes e emissoras de rádio e TV, precisam investir pesado em custos tecnológicos de produção e de distribuição. Comparem, por exemplo, os custos de manutenção de um site de notícias (tal qual o que hospeda este blog), que se vale de facilidades da internet e precisa manter, além de recursos humanos,  tão somente software e servidores, muitas vezes licenciados ou terceirizados, com os de jornais, revistas ou emissoras de rádio e TV, que precisam manter também estúdios, transmissores e parques gráficos.

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Pode-se argumentar que sites de notícias mais estruturados sejam não mais do que uma nova forma de broadcasting (i.e., comunicação unidirecional, sem um back channel facilitado) e, neste ponto, não muito diferente de veículos de imprensa tradicionais enquanto menos afeitos à publicização da “voz do leitor/ouvinte”. Até certo ponto. Pois, enquanto o menor número de veículos impressos e estações ou redes de rádio e TV favorece a manutenção de um bias ou de uma versão hegemônica, senão única, dos fatos, amplificada por um “cartel” tácito de interesses comuns (como, por exemplo, a existência de apenas um pequeno número de concessões de frequências de transmissão); a “algaravia” de um ecossistema mais capilarizado de fontes, como é o caso da enorme quantidade de sites existentes, torna muito mais fácil e, por conseguinte, frequente a enunciação de contraditórios.

O broadcasting mais se parece com produtos industrializados oferecidos nas prateleiras, com poucas marcas para cada categoria: é pegar ou largar. Seu consumo é, inquestionavelmente, mais fácil, porquanto acrítico. Narrowcasting, todavia, dá mais trabalho. Exige uma opção mais ativa em relação a um número muito maior de fontes – fragmentando, dir-se-ia, a confiança (ao contrário do que parece, isto é bom !) e responsabilizando mais os usuários por suas escolhas. Para usar da mesma analogia, se trata de produtos mais diversos e customizáveis. Claro está, portanto, na dicotomia broadcasting/narrowcasting, de que lado estamos.

 

Como a peste acelera a agonia do broadcasting

Não é de hoje que a televisão aberta vem dando claros sinais de esgotamento frente a outros meios mais interativos ou, no mínimo, customizáveis. Quando perguntei, tempos atrás, a um de meus filhos qual o sentido dele navegar na web enquanto permanecia diante da TV ligada indiferente à mesma, sua resposta foi rápida e categórica: “é que aqui (no celular) tenho mais opções e maior controle sobre o que quero assistir”.

A grade de programação da TV comercial aberta se consolidou, grosso modo, como um mix de noticiários, telenovelas, reality shows, programas de entrevistas e variedades (geralmente com auditórios), filmes e seriados – estes últimos anteriormente referidos como “enlatados”. Com a pandemia, toda a rede de produção, pelas emissoras, das quatro primeiras categorias  acima colapsou.

Os auditórios foram os primeiros a desaparecer. Cada vez mais passamos a ver repórteres com máscaras e, pouco a pouco, apresentadores e âncoras começaram a transmitir de suas casas. Entrevistas e depoimentos passaram a ser obtidos por meio de videoconferência. Mesmo que alguns telejornais, com cenários e bancadas imponentes e estúdios super povoados,  ainda resistam, o formato está com os dias contados. Comparem, por exemplo, a parafernália envolvida (e diretamente associada ao conceito dos mesmos) em telejornais de abrangência nacional com aquela de seus primos mais pobres, os noticiários locais e regionais, que já aderiram a formatos mais econômicos.

Cabe, ainda, notar que, face ao colapso das estruturas de produção, a TV mergulhou numa profusão de reprises. Não só de telenovelas mas, também, de entrevistas requentadas e, espantosamente, partidas de futebol. Nunca antes acervos televisivos foram tão importantes.

Com tudo isto, os conteúdos veiculados pela TV estão cada vez mais parecidos com o que vemos habitualmente em redes sociais. Com a significativa vantagem, cabe lembrar, de que, em redes sociais (narrowcasting), podemos, ao contrário de na TV (broadcasting), 1) melhor custumizar conteúdos e 2) interagir, se assim o quisermos, com seus transmissores. Não é pouca coisa. Assim como não tem sido pouca a capacidade de rápida reação e adaptação da TV a novos contextos desfavoráveis desde o surgimento da internet. De modo que, diante de inequívocos sinais de mudança, é impossível prever a sobrevivência ou não de grandes conglomerados televisivos

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A TV sempre funcionou, tradicionalmente, em sintonia com valores centralizados. Poucas emissoras. Grandes patrocinadores. Programas tipo “one size fits all”, capazes de captar audiências num vasto território. Neste cenário, chama muita atenção campanhas como VAE (Vamos Ativar o Empreendedorismo), uma ode ao pequeno negócio. Se vingar, uma coisa é certa: empresas individuais ou familiares incentivadas pela supracitada campanha jamais estarão em condições de comprar as caras janelas publicitárias comercializadas por redes concessionárias de TV junto a grandes grupos empresariais.

Talvez a Globo não espere, com uma boa dose de razão, que, em decorrência da provável explosão de pequenos empreendimentos incentivados pelo VAE, seus grandes patrocinadores quebrem. O que denotaria uma disposição da emissora de, na impossibilidade de prever que ventos soprarão na economia, ficar bem com todo mundo, tanto grandes quanto pequenos. Numa posição corporativa, diga-se de passagem, perfeitamente razoável. Como a de empresas que, em eleições, doam para campanhas de candidatos rivais. Mas, como ninguém é bobo, trata de diversificar as fontes de seu capital de custeio. Isto pode ser claramente observado na agressividade com que vem promovendo seriados, nacionais e enlatados, em sua plataforma de streamming (pago) Globoplay. É como se, na incerteza de poder contar, num futuro não muito distante, com seu custeio maciçamente bancado por anunciantes, busque inclinar drasticamente sua matriz de financiamento para  consumidores finais de sua programação, até então acostumados a não pagar nada pelo que assistem na TV aberta.

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Em sua agonia, a TV não esconde a relação ambivalente que mantém com sua grande rival, a internet. Ao mesmo tempo em que tenta, desajeitadamente, assimilar atributos tão afeitos à web quanto estranhos ao broadcasting (como, por exemplo, o arremedo de interatividade das “votações populares” em reality shows), reivindica para si um suposto monopólio da credibilidade, por sua vez apregoada como o calcanhar de Aquiles das mídias sociais. Como se o jornalismo tradicional, e somente ele, fosse capaz de verificar a veracidade do que é veiculado. Ora, é largamente sabido que, na infância da rede, da qual mal saímos, notícias falsas são abundantes – tanto que seu manejo pode facilmente eleger um presidente. Umberto Eco estava coberto de razão quando disse que a internet era habitada por uma legião de idiotas – declaração que lhe custou a acusação de ser um netskeptic.

A suspeição levantada acerca da credibilidade da web é, no entanto, apenas transitória. A rede veio para ficar e, diante de seu avanço inexorável, é cada vez mais necessário que seus usuários dominem uma das habilidades descritas por Howard Rheingold como dentre as competências essenciais à aprendizagem no século 21, a saber, crap detection (detecção de lixo). O exemplo clássico de Rheingold é uma biografia falsa, caluniosa, de Martin Luther King, que desponta em primeiro lugar numa consulta ao Google, plantada num site mantido pela Ku Klux Klan.

Acreditar no monopólio de empresas jornalísticas sobre a competência para a verificação de fatos é mais ou menos como defender a volta de datilógrafos ou, ainda, de revisores em salas de redação. Pois novas tecnologias implicam em novas responsabilidades (que me perdõe o Homem Aranha pela apropriação).

Mas não é só por meio de notícias falsas que se pode distorcer a realidade. Padrões de omissão e ênfase também dão conta de imprimir claramente em mensagens posições ideológicas assumidas por seus enunciantes – e, neste ponto, veículos de imprensa são tão parciais quanto quaisquer perfis proselitistas nas redes sociais das quais tanto desdenham. Vejam, por exemplo, o contraste entre, de um lado, a ampla cobertura dada pela Globo a ações filantrópicas corporativas e, de outro, seu absoluto silêncio sobre as repetidas doações de alimentos pelo MST a populações mais afetadas. A imparcialidade jornalística é um mito.

O marketing da bondade

Serei breve.

Não é nova a máxima de que é na crise que mais se lucra. Em tempos de coronavírus, não poderia ser diferente. Desde que o Jornal Nacional mudou drasticamente suas diretrizes editoriais para incluir em seu noticiário os nomes de empresas que, em última análise, fazem o que o governo deveria fazer mas não faz, grandes anunciantes passaram a desfrutar de um espaço tremendamente mais privilegiado do que os intervalos comerciais, até pouco tempo exclusivamente disponíveis, para agregar à sua imagem institucional a de grandes benfeitores públicos. As peças publicitárias que vem na esteira das notícias de doações de bilhões e milhões ao sistema de saúde são igualmente comoventes.

Neste contexto, tenho que concordar com um amigo que afirmou, dias atrás, que, face ao lucro auferido no ano passado por um grande banco – a saber, mais que 26 bilhões de reais – sua outrossim impressionante doação de 1 bilhão (que lidera o rol de grandes benfeitores da Globo) representa muito pouco. Já hoje outro amigo bem observou que as notórias e recorrentes doações de alimentos pelo MST são sistematicamente ignoradas pelo supracitado noticiário. Como se jamais tivessem existido. É claro, pois, estarmos diante de um padrão de omissão e ênfase. Dá prá acreditar que o mesmo seja obra do acaso ?

Acho que não. Da mesma forma que não acredito que a ausência, até agora, na grande mídia do já bem conhecido nas redes sociais manifesto holandês em prol do decrescimento (assunto de um próximo post, necessariamente mais longo) seja de modo algum gratuita. Pois basta lembrar que o bravo manifesto identifica a publicidade como um dos principais setores econômicos que precisam encolher radicalmente. Ora, é a mesma publicidade que sustenta o sistema vigente de mídia comercial. Por isto, nunca foi tão verdadeiro o título da canção A revolução não será televisionada, de Gil Scott-Heron, que comentava a agitação social e política nos EUA nos anos 60 e 70.

Sei que soa “do contra” e mesmo antipático levantar objeções ao aparente desapego ao lucro de empresas que desinteressadamente equipam UTIs e doam cestas básicas e equipamentos de proteção individual. É claro que, em momentos como este, toda ajuda é sempre bem-vinda. Notem, no entanto, que tais medidas paliativas (que tentam, como já disse acima, substituir o descaso governamental) seriam muito mais amplas se tais empresas simplesmente tivessem seus lucros devidamente taxados e, com isto, governos passassem a dispor de recursos suficientes para fazer sua parte.  Temos, então, que a farsa do marketing da crise não passa de bandidos fazendo pose de mocinhos.

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PS. Depois de escrever o desabafo acima e ao procurar na web uma imagem ilustrativa para o post (sempre faço isto desde que me disseram que posts com imagens tem maior audiência), formulei a seguinte a teoria conspiratória:

se (premissa 1) o quadro do JN se chama Solidariedade S/A e não (como poderia muito bem, por analogia, se chamar) Solidariedade LTDA.; e

se (premissa 2) sociedades anônimas (SAs) costumam ser bem maiores do que aquelas por cotas de responsabilidade limitada (LTDAs),

subentende-se (conclusão) que o espaço se destina, idealmente, a informes de grandes empresas – como é o caso das que  têm cacife para anunciar no horário nobre da emissora.

Por que não ouço rádio (ii)

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Nos últimos dias, esta lista pipocou em meu timeline, guarnecida por cabeçalhos que variavam do conformismo à indignação. De pronto chamou minha atenção que ela era compartilhada praticamente como um meme por pessoas que reputo como musicalmente esclarecidas. Bem esclarecidas. Especialistas, até, na maioria dos casos. Talvez por isto, não me dei ao trabalho de verificar a fonte da informação, nem de conhecer o universo amostral. Pois, dependendo da região de abrangência geográfica, da estação pesquisada ou mesmo do fato dela ser de AM ou FM, é claro que a lista seria sempre bem diferente.

Supondo, então, pela credibilidade dos compartilhadores e pelo senso comum de quem já zapeou por um dial de rádio, que os dados da lista estejam corretos, chegamos inevitavelmente ao problema de explicar por que músicas tão ruins sejam também, senão as mais escutadas, pelo menos as mais tocadas por estações de rádio. E, indiretamente, à imponderabilidade semântica da palavra popular.

Pois o “gosto popular”, no sentido daquilo que as pessoas escolhem ouvir, é largamente condicionado por aquilo que as mesmas conhecem. Ao mesmo tempo, hoje as pessoas conhecem muito mais a música que toca em meios de comunicação de massa (broadcasting) e, em contextos mais conectados, nas redes sociais; do que aquela que (quando há) é produzida ou praticada em cada lugar. Então, o rádio ainda é, principalmente entre os segmentos menos conectados, o maior vetor de conhecimento de praticamente tudo o que alguém pode querer ouvir. Pois, como disse Adorno (em defesa da música de Schoenberg), “só se gosta daquilo que se conhece.”

(lembro sempre de Bruno Kiefer dizendo, numa aula de música brasileira, se se enganavam os que tomavam por música popular aquilo que ouviam no rádio)

Percebem o ciclo vicioso ? Enquanto produtores e gravadoras dominarem, mais comumente pelo expediente do jabá, a programação do que é tocado em estações de rádio comerciais, a audiência não será mais do que massa de manobra, doutrinada para o consumo de bens que anunciantes queiram vender, aí incluídos e principalmente os produtos sonoros.

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Do pouquíssimo que sei de economia, consta como um dos princípios pétreos do estado liberal o de permitir (leia-se ao capital empreendedor) a exploração dos segmentos mais rentáveis da economia e assumir aqueles que, conquanto deficitários, são essenciais à preservação do tecido social. Como saúde, educação e segurança. Entusiastas de um estado mínimo já falam abertamente de um certo caráter supérfluo da cultura e até mesmo da extinção de disciplinas e redução de investimentos em educação pública. E a direita, hora empoderada, vê na cultura e mesmo em disciplinas como história, filosofia, sociologia, artes e afins pólos de geração e irradiação de pensamento de esquerda. Mas isto já é outro assunto.

O que nos interessa, neste momento, é que muitos grupos demográficos, ainda sem acesso à internet, ainda estão exclusivamente conectados (e de modo apenas unidirecional, ao contrário do que se dá na web !) ao mundo por meios de broadcasting. Então, mesmo que as frequências de rádio e os canais de televisão aberta sempre tenham sido sustentados por receitas próprias, oriundas da cessão de tempo de broadcasting a anunciantes, isto não significa que a exploração do que é veiculado (em ondas que, afinal, existem de fato num espaço público !…) no rádio e na TV deva ser concedida “naturalmente” (i.e., tendo por base exclusivamente históricos exitosos de investimentos privados no setor) à iniciativa privada. Qual o ganho público ? Quem lucra mais: produtores ou espectadores ? Se forem estes os critérios, então, o atual sistema de concessão de frequências de rádio e TV claramente não satisfazem.

Em emissoras públicas, ao contrário, a atribuição de relevância a cada conteúdo jornalístico ou artístico concorrente à grade de programação é orientada sempre pelo interesse público – que não é, como vimos acima, o gosto do público (pois o que cada um gosta de ver não é, na maioria das vezes, o que cada um gostaria de ver, fosse maior o leque de opções). Nelas também se dá o predomínio de músicas e outros conteúdos produzidos localmente e/ou por pequenos produtores e tendo em foco personalidades locais ao invés de celebridades.

Então, conquanto deva haver vários outros motivos, só as razões elencadas acima já são, por si só, suficientes para que se queira abolir, por norma constitucional, a concessão de licença para operação de prefixos de rádio e TV a entidades cuja existência não seja dedicada, por força estatutária, ao interesse público, garantido por meio de dispositivos de controle social. Como universidades, fundações culturais, museus, teatros e afins. Com programações orientadas por diversidade cultural e mérito artístico, por exemplo (algo que, por definição, não há no rádio nem tampouco na TV privados). Notem, também, que deixei igrejas fora desta lista (pois religião e interesse público não tem nada a ver um com o outro). Imaginem passear por um dial povoado por estações geridas por instituições assim.

Se esta miragem não lhes parecer por demais utópica, defendam a imediata revisão dos critérios para concessão de frequências de rádio e canais de televisão, em nome da inclusão de dispositivos que garantam o controle social sobre seu interesse público. Obrigado.

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Paneladas, telechefs e uma introdução aos reality shows culinários

Se isto fosse um texto semiótico, teria mais provavelmente como título algo como, por exemplo, Breve ensaio exploratório, praticamente um mapeamento de campo (mapa conceitual também é legal !), sobre as múltiplas interfaces entre a comida e sua imagem em mídias eletrônicas e anteriores. […] (Só não sei se, na web, alcançaria algum leitor com um nome desses…). […] Então, pelo sim, pelo não, em nome de qualquer possibilidade de interlocução com um leitor aleatório (por isso amo tanto a web !), é bom começarmos por algumas definições.

Panelada é todo aquele tipo de comida cujos ingredientes, após longo tempo de cozimento, se amalgamam de tal modo que quase não podemos distinguir uns dos outros. Pertence a esta categoria todo molho à base de carne, cebolas ou tomates, condimentado das mais diversas formas e servido acompanhado de amidos neutros como massas, polenta, arroz, batatas e afins. Talvez as paneladas mais populares sejam os ragús, tanto de nacos de carne de panela como porpetas (almôndegas) ou braciolas (bifes enrolados, mais comumente recheados de bacon, cenouras e pimentões).

Numa acepção mais ampla, incluiríamos, ainda, entre as paneladas, toda variação de ensopados e cozidos populares locais tais como, entre outros, a feijoada, o mocotó, risotos, guisados (ensopado com legumes ou como recheio (de abóboras, pimentões, escondidinhos e congêneres)), moquecas, rabadas, cassoulet, paella, puchero, kapuzta ou borscht.

Me afeiçoei ao termo panelada ao me deparar com ele numa coluna gastronômica que havia anos atrás na última página da Carta Capital. Nela, o crítico falava de uma confraria que explorava os mais obscuros recantos da cozinha paulista em busca da panelada ideal – que consistia, para alguns, num ragú servido sobre uma manta de polenta despejada numa superfície de mármore.

A comida de panelada pertence ao domínio da cozinha cotidiana familiar. Quando muito, do livro de receita. Com o advento de mídias visuais como o cinema e, especialmente, a televisão, a panelada mergulhou no ostracismo, ao nosso ver em razão de não ser, de modo algum, fotogênica. Senão, avaliem com seus próprios olhos.

chef 4
comida de chef ou designer
comida de panelada
comida de panelada

Já a expressão telechef, autoexplicativa, é aqui utilizada para designar todo cozinheiro a protagonizar programas de TV. Peguntei no facebook quais os principais. Me falaram de gente como Julia Childs (grande pioneira, vivida nas telas pela não menor Meryl Streep), brasileiros como Ofélia, Palmirinha e Chef Álvaro e gaúchos como Dona Mimi Moro, Aninha Comas e Rosaura Fraga. Adicionem à lista celebridades internacionais como Jeff Smith (1938-2004), apresentador do Frugal Gourmet na PBS (rede de TV pública norte-americana, mais ou menos nos moldes da BBC) de 1983 a 1997; nacionais como Olivier Anquier ou ainda locais como José Antônio Pinheiro Machado, mais conhecido como Anonymus Gourmet.

Dentre tudo o que rapidamente inventariei, o destaque absoluto vai para Zeloni Forno e Fogão. Sim, com ele mesmo, o ator da Família Trapo, que foi o primeiro homem a protagonizar um programa de TV culinário. No qual fazia comerciais ao vivo. Sério.

(pensando nisso, não há como não reconhecer que a qualidade da programação televisiva despencou muito com o passar do tempo…)

Talvez vários desses programas sejam para muitos de vocês, assim como para mim, absolutamente desconhecidos. Isto por que a popularidade de todo programa de TV é indissociável do grau de abrangência do meio no qual é veiculado. De modo que programas em rede nacional devem ser mais populares do que programas locais e programas de TV aberta devem ser mais vistos do que os que vão ao ar em canais por assinatura (seja ela a cabo ou por satélite). Será ? Não sei. Em tempos de canais globais e, sobretudo, de internet, não é seguro assumir qualquer premissa sobre a popularidade relativa entre quaisquer meios.

Suficiente, então, ante tais incertezas, termos em mente estarmos diante de telechefs de diferentes grandezas, em razão de por quantas pessoas são vistos ou pelas quais são conhecidos. Também é razoável supor que, dada a presença hegemônica de programas culinários em todos os meios televisivos, hoje qualquer pessoa conhece ou já ouviu falar de algum telechef. Ao ponto de podermos assumir também a premissa de que, se antes da televisão o conhecimento culinário era transmitido quase sempre na família ou por livros de receita, hoje a aquisição da habilidade com as panelas se dá predominantemente por imagens de cozinheiros em ação. E de comidas. Então, se no livro de receitas a comida aparece descrita sob a forma de uma relação de ingredientes e instruções de preparo – restando, portanto, ser imaginada pelo leitor (daí as infinitas leituras de uma mesma receita !), na tela da TV ela é plenamente materializada, nada restando para a imaginação além do que já é facultado pelos sentidos.

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Dentre os deliciosos filmes arrolados por meus interlocutores virtuais se destacam O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante; A festa de Babete; Tampopo; Os sabores do palácio; A 100 passos de um sonho; Vatel; Simplesmente Martha; Ratatouille; Volver; Julie & Julia; Lunchbox; Estômago; A comilança; Como água para chocolate; Comer, rezar, amar; Chef; Toast; Comer, beber, viver; Sem reservas; Como um chef; Pegando fogo; O sabor de uma paixão; Simplesmente Irresistível e Dieta Mediterrânea. Um talentoso chef, especializado em cine-banquetes (gênero de evento que merece tratamento à parte), diz já ter contabilizado 120 filmes sobre comida. Dentre eles, apenas um brasileiro: Estômago. Em cujo cine-banquete o dito chef ousou servir, como acepipe, coxinhas. O mesmo cozinheiro já dedicou um evento a Hannibal. No qual serviu miolos. Bovinos, é claro.

(quando relatei a um amigo espirituoso que um chef já realizara um cine-banquete sobre Hannibal, não logrei suscitar o espanto desejado. Ao contrário. Meu amigo disse que um banquete sobre o canibal era “fichinha”; queria ver é alguém conseguir realizar um sobre A Comilança…)

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kitchen 1Em filmes, cozinhas são, na maioria das vezes, ambientes assépticos, com muito aço e ladrilhos brancos, por vezes com alguns tijolos à vista utilizados por cenógrafos para evocar construções mais antigas ou tradicionais. A contrastar com a economia visual  espartana da cozinha, há sempre, ao lado da mesma, o aconchego de um salão  cuidadosamente decorado.

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Enquanto cozinhas são velozes, salões são lentos. É como se cada prato, depois de percorrer velozmente uma série de bancadas de aço inox onde é preparado, montado e decorado por vários cozinheiros, passasse, a partir do instante em que atravessa a porta dupla automática (com janelas redondas, em forma de escotilha, a impedir que garçons eventualmente se choquem correndo entre a cozinha e o salão), a se movimentar lentamente. Salões também costumam ser retratados como mais silenciosos do que cozinhas.

Relações de poder são muito claras em dramas de cozinha, cujo organização, em grandes hotéis ou restaurantes, obedece invariavelmente a uma hierarquia muito clara, com muitos cozinheiros sob as ordens absolutas de um poderosíssimo chef, incensado por críticos (os deuses da gastronomia, segundo a elegante restauranteur em A 100 passos de um sonho), mantido por clientes e secundado por um leal e dedicado sous chef que deve ser, antes de tudo, também um admirador submisso do chef. Filmes como Pegando fogo, A 100 passos de um sonho e Ratatouille, entre outros, exploram a possibilidade um tanto óbvia de um par romântico entre chef e sous chef.

Além do crítico, do chef e do sous chef, outra figura essencial à toda trama culinária é a do cozinheiro invejoso, que tenha saído perdedor em algum conflito anterior com o chef em ascenção (em muitos filmes em busca de uma cobiçada nova estrela no guia Michelin) ou, por vezes, até um sabotador. Nestes casos, ratos e comida estragada plantados no restaurante são clichês.

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Muito embora os telechefs tenham se popularizado desde os primórdios da televisão, é com a expansão dos sistemas de TV por assinatura que vivem seus dias de maior glória. A ponto de haver canais exclusivamente a eles dedicados, como, por exemplo, um que existe na Argentina transmitindo programas culinários 24 horas por dia.  Aqui mesmo já há programas de fôlego. Como o especializado Que seja doce, levado ao ar diariamente (o que não é pouco !) pelo canal GNT.

Ao contrário dos chefs vividos no cinema, que cozinham em frios e assépticos ambientes profissionais, telechefs pilotam aconchegantes cozinhas decoradas de modo a conotar espaços domésticos, do tipo que qualquer cozinheiro gostaria de ter em casa.

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Cozinheiros e comilões, estariam perfeitamente bem servidos por filmes, telechefs e livros de receitas sem que precisassem ser violentamente bombardeados pela mais ignóbil e perversa mídia culinária jamais inventada, a saber, os reality shows de cozinha. Já foi dito que, neles, a comida é mero acessório. Nestes programas, narcisismo, competição predatória, autoritarismo exacerbado e bullying são moeda corrente. Os que envolvem crianças (que aparecem com o consentimento dos pais face à absoluta omissão do poder público) são particularmente indecentes. Face ao que se vê nestes programas, é perfeitamente compreensível (conquanto jamais justificável) que aconteçam coisas como, por exemplo, uma de suas protagonistas sendo alvo de ofensas pedófilas em redes sociais.

Como, no entanto, todo texto sobre comida deve permanecer, idealmente, leve (ou, com a licença da palavra, digesto…), devemos deixar os reality shows culinários provisoriamente de lado. Até por que os mesmos não podem ser vistos sem ser a luz do formato genérico a que pertencem e da patologia social a que estão associados.