Blues eleitoral

Às vésperas das eleições municipais, o desânimo se abate sobre mim. Sorrio, resignado, sempre que ouço o batidíssimo bordão da grande “festa da democracia”, da qual só percebo lixo nas ruas e na mídia – pasmem, até nas sociais ! A sensação é a de já ter visto este filme antes. Muitas vezes.

Não falo, evidentemente, do sistema eleitoral, que vem se aperfeiçoando a cada pleito. Prevenindo fraudes e facilitando a vida do eleitor. Sem sombra de dúvida, a Justiça Eleitoral brasileira faz um ótimo trabalho. Minha descrença é no sistema político em si. Por mais convincente que seja o discurso de alguns candidatos, uma vez eleitos se encastelam em palácios de governo e câmaras legislativas, aceitando privilégios e se distanciando cada vez mais dos reais anseios daqueles que os elegem. Na retórica de campanha, o eleitor é deus. Depois, quem manda são os lobistas, cujas “verbas de persuasão” extrapolam, por vezes, os já polpudos vencimentos parlamentares.

Façam um exercício simples. Imaginem se a tão apregoada Reforma Política fosse realizada exclusivamente por emendas populares. Ou até uma constituinte exclusiva. Sem entrar em detalhes, é possível supor que a “carta” resultante seria bem diferente do que hora é proposto por deputados e senadores.

Mas é claro que só este ranço não resolve nada. Antes, porém, de dizer algo mais “propositivo” (lá vem ele de novo com aquela conversa de democracia direta…), não há como não falar de algumas impressões de campanha que, de um modo ou de outro, contribuem para meu desânimo.

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Em meio à sujeira dos espaços públicos (visual e sonora) e invasão do privado, talvez no maior orçamento publicitário que se conheça, certos signos se destacam. A fotografia dos candidatos, por exemplo. Não há como não rir dos esforços de artistas gráficos que tentam, em vão, acomodar numa mesma imagem fotos de duplas (candidatos e seus vices) tiradas em circunstâncias diferentes, como a emular as raras aparições simultâneas dos mesmos em eventos de campanha, como comícios (ainda existem ?) e afins. Nestes caso, sequer se dão ao trabalho de utilizar a mesma câmera com a mesma regulagem nem as mesmas condições de iluminação.

Falei disto há muitos anos, a propósito da foto oficial da chapa de Dilma e Temer, na qual a cor, o brilho e o contraste eram radicalmente diferente nas fotos dos dois candidatos. Desde lá, pouco mudou. Para falar só de candidatos vencedores, observem a imagem de Manuela com Rossetto menor em segundo plano. Como um papagaio de pirata ao ombro (um clássico da iconografia eleitoral, a sublinhar a hierarquia entre os dois). Tudo bem. As fotos dos dois são mais parecidas entre si do que na imagem de Dilma e Temer, na qual a foto da primeira é mais difusa do que a do último. Mas e a luz ? Em que raio de estúdio estavam para serem iluminados um pela esquerda e o outro pela direita ? Tal resultado seria difícil, senão impossível, mesmo para os melhores diretores de fotografia. Ok, deve ser dito, a bem da verdade, que tal resultado seria possível com com a utilização de fachos mais estreitos de uma luz mais “dura”, como no teatro. Só que a suavidade dos rostos, obtida através de uma luz mais difusa, publicitária, acaba denunciando a montagem. Coisas assim alimentam a suposição de que candidatos de coligações raramente, se é que alguma vez, se encontram antes dos pleitos. Como em casamentos arranjados onde os noivos só se conhecem na noite de núpcias.

Também se popularizaram nesta campanha os estandartes verticais com um dos cantos superiores em curva, ou wind banners, montados sobre uma vara vergada que mantém a bandeira esticada (e, portanto, legível) mesmo sob condições de vento adversas.

Bandeiras são um signo eleitoral que remonta aos grandes comícios e à existência de uma militância. Mesmo que tremulassem ao vento, era possível identificar à distância a “maré vermelha” do PT. Como nas torcidas de um grenal, nas quais sempre reconhecemos o time pela cor hegemônica. Hoje, candidatos não tem qualquer vergonha de chamar de militantes os trabalhadores temporários que contratam para distribuir santinhos e agitar bandeiras em cruzamentos mais movimentados. Alguém acredita quando falam em “nossa militância” ? Ou escolhe candidatos em razão deste tipo de publicidade ?

Não creio. Apenas sei que, na horda de bandeiras multicoloridas que tremulam nos semáforos, não consigo identificar os candidatos, cujos nome se tornam ilegíveis em razão da ação do vento, que conspira contra as campanhas políticas em nosso estado nesta época do ano. Tal fato é, sem dúvida, o principal responsável pela enorme proliferação dos wind banners mencionados logo acima.

Outro signo recorrente destas eleições é que candidatos, em sua publicidade visual, frequentemente omitem (ou mencionam apenas em letras miúdas) as legendas partidárias pelas quais concorrem. Estariam tentando descolar suas imagens do descrédito que se abateu sobre os partidos como um todo ? Talvez. E, neste caso, isto é bom. Pois, se quisermos mudar o sistema político, é preciso atacar seu flanco mais vulnerável – que são, hoje, os partidos.

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Neste ano me aconteceu algo inédito. Fui procurado numa rede social por um candidato a vereador que me solicitou um número de WhatsApp pelo qual pudesse me enviar projetos (leia-se material de campanha). Caí na asneira de assentir. Desde então, recebo repetidos convites para participar de assembleias populares, a fim de elencar prioridades a serem defendidas em seu pretendido mandato legislativo. Até aí tudo bem: suas ideias são boas, principalmente a de um “mandato popular”. Só que, já tendo um candidato de minha preferência, lhe enviei o link para minha mais recente diatribe contra a representação parlamentar. Algo que, supunha, seria capaz de dissuadir qualquer um de qualquer aspiração a cooptar meu voto. Só que, pasmem, ele continuou, num ritmo frenético e automático, a me enviar sua propaganda. O que só me leva a acreditar que sequer leu o que escrevi.

Que lição tiro disso ? Simples. Por melhor que sejam as intenções de qualquer candidato, é humanamente impossível a qualquer um conhecer, que dirá representar, o interesse uma maioria anônima. Se eleitos, ainda que continuem, por algum tempo, virtuosos e incorruptíveis, fatalmente sucumbirão ao assédio daqueles que frequentam corredores de câmaras legislativas em busca de uma oportunidade para influenciar quem delibera sobre nossos desígnios. Assim é o sistema: ainda que candidatos precisem de eleitores para chegar lá, o que prevalece, ao fim, é a vontade dos lobbies.

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Sempre sonhando, consigo, no entanto, perceber uma tênue luz no fim do túnel. Neste pleito, em razão da peste, a justiça eleitoral finalmente começa a testar um protocolo para votação online, com gigantes da indústria da informação concorrendo para oferecer o melhor sistema. Há muito preconizado por defensores da democracia direta, tal expediente ainda é, no campo das coisas práticas, testadas e aprovadas, algo inédito. E há razões para isto, principalmente no que tange à segurança.

Ora, se confiamos na internet para realizar compras, efetuar operações bancárias ou mesmo nos comunicarmos com alguma privacidade, por que santo raio eleições não poderiam se beneficiar das mesmas tecnologias ? Então, se a coisa ainda não deslanchou, é evidente que tal fato não se deve tanto a reservas quanto a questões de segurança mas, ao invés, muito mais à falta de vontade política. Ou seja: há muito que já podemos, mas alguns ainda não querem.

Campanhas publicitárias dependem de bons slogans. Como, por exemplo, a proposição anti-lobby de Lawrence Lessig, chamada Fix Congress Now. No caso da democracia direta, a maioria concorda com suas vantagens mas ainda hesita diante de argumentos dos que hoje se beneficiam da representação, os quais, por sua vez, não defendem a necessidade (indefensável) da própria existência mas, ao contrário, atacam possíveis falhas de propostas promissoras que sequer foram testadas. De tal modo que toda campanha em prol da democracia direta deveria se abrigar sob o guarda-chuva do slogan “Por que não ?” ou, simplesmente (não é de hoje que me acusam de anglicismo – mas o que fazer se o idioma do norte é, na maioria das vezes, adoravelmente mais compacto ?), “Why not ?”.

Por uma democracia direta (ii): de como o lobby é nocivo à democracia e sobre como podemos acabar com ele

Eleições que se aproximam: hora de tornar a remoer certas ideias. Não que, a curto prazo, adiante alguma coisa. Afinal, com os discursos afinados e as campanhas nas ruas, a sorte já está há muito lançada. A descolonização do imaginário é uma tarefa lenta, que rejeita todo imediatismo. Ainda assim, mesmo que alguém não viva para ver qualquer resultado, não deixa de valer a pena se esforços forem vistos sob uma perspectiva mais ampla, numa escala de tempo mais dilatada do que a dos breves mandatos eletivos.

Falo, aqui, da banalização ou aceitação acrítica de algumas instituições hoje defendidas por políticos e poderosos tais como, por exemplo, o lobby ou o fundo eleitoral. O cidadão comum não costuma se perguntar por que precisamos de representantes legislativos nem de que maneira o lobby, que querem até regular e legalizar, é nocivo à própria democracia. Basta que algum engravatado, provavelmente bacharel em direito, profira algo em favor do status quo, para que pareça um “entendido” em qualquer assunto, ao menos muito além do que o simples eleitor, que, portanto, passa a acreditar naquilo como uma verdade inquestionável. É a síndrome do “você sabe com quem está falando ?”, conhecida em lógica como argumento de autoridade, antítese da falácia do envenenamento do poço.

O lobby se constitui, na origem, como um desequilíbrio no jogo democrático na medida em que permite a determinados indivíduos ou grupos de interesse minoritários influenciar, quase sempre com recursos financeiros (como propinas ou doações de campanha), em decisões de legisladores (senadores, deputados ou vereadores) ou ações de executivos (presidentes, governadores, prefeitos, ministros e secretários). Por meio do lobby, interessados devidamente articulados podem facilmente “molhar o bolso” de legisladores e governantes ou seus prepostos para obter vantagens (das quais legislações protetivas, isenções fiscais e licitações fraudulentas são apenas alguns exemplos), apesar da franca oposição da maioria dos cidadãos às vantagens concedidas.

Tradicionalmente, o lobby é sorrateiro. Age às escondidas, à margem do poder. Encontros com lobistas não pertencem à agenda pública dos políticos, acontecendo, antes, dentro de sua esfera privada. Com o tempo, a figura do lobista entrou definitivamente no jargão das câmaras de representantes, onde circulam anonimamente. O bom lobista não dá entrevistas. Foge das câmeras, microfones e holofotes. Se não achar um jeito de “acessar” determinado senador ou deputado, facilmente encontrará outro. Projetos de regulamentação do lobby (a nosso ver uma contradição por si só), que visam facilitar o “trabalho” destes intermediários da corrupção, são, portanto, uma afronta à inteligência da sociedade, que assiste impotente à sua naturalização por parte de quem dele se beneficia.

Por tais razões, defensores do lobby sustentam o mito de que ele é inevitável. Felizmente, há controvérsias. Numa das mais célebres iniciativas para conter a mazela, Lawrence Lessig, professor de direito de Harvard, ativo defensor da neutralidade e da liberdade da internet, criador da licança Creative Commons, propôs o movimento “Fix Congress Now”, que limita doações de campanha a 100 dólares por cidadão – nivelando, com isto, o poder de influência de eleitores individuais com o de grandes corporações.

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Contra os lobbies, pensamos em outra vacina. Se trata da democracia direta, já defendida por aqui em textos anteriores (como aqui ou aqui) – os quais, no entanto, se concentravam tão somente na vasta economia para os cofres públicos que a abolição das obsoletas câmeras de representantes traria (compreensivelmente, tal hipótese é taxada com horror pela maioria dos senadores, deputados e vereadores como “uma grande ameaça à democracia”).

Hoje, quero convidá-los a refletir sobre como grupos de interesse economicamente poderosos, ainda que minoritários, poderiam interferir em decisões políticas num contexto, utópico, em que todo e qualquer cidadão pudesse deliberar diretamente sobre o que bem lhe aprouvesse. Quero acreditar que os grupos econômicos supracitados enfrentariam bem mais dificuldades para convencer milhões de cidadãos a votarem de acordo com seus interesses do que umas poucas centenas ou dezenas de representantes legislativos. Desta forma, a democracia direta esvaziaria a instituição escandalosamente indecente do lobby de qualquer sentido.

Pensem nisto !

Por uma democracia direta (i): para que servem representantes parlamentares hoje ?

Num referendo histórico, a maioria da população italiana (estimada entre 64 e 69% de seus eleitores) aprovou ontem a redução em 1/3 de seu parlamento, que tem hoje 914 cadeiras (630 deputados e 315 senadores) e passará a ter 600 (400 deputados e 200 senadores) depois do próximo pleito, em 2023.

A decisão sinaliza claramente a insatisfação popular com dois fatos há muito percebidos mas raramente enfrentados, a saber,

  • o alto custo de manutenção de câmaras legislativas numerosas e, em última instância,
  • a obsolescência da representação parlamentar como hoje a conhecemos.

Tal sorte de reforma política, conquanto necessária, é sempre de difícil implementação, principalmente por depender, para sua aprovação, de mudanças constitucionais que devem, necessariamente, ter a anuência dos atuais representantes – os quais, via de regra, resistem a cortar a própria carne. Não vou aqui me debruçar sobre a questão do custo proibitivo do inchaço da representação parlamentar, já suficientemente difundido e esmiuçado. Prefiro, ao invés, me concentrar no problema bem menos verbalizado da obsolescência dos representantes num mundo conectado.

A principal objeção levantada contra a redução do parlamento italiano é a de que a medida prejudicaria a democracia ao facilitar a ação de lobbies (leia-se que lobistas gastarão menos tendo que forrar menos bolsos). O argumento tende a emplacar ante a ingenuidade de parte significativa da população que, persuadida pelo senso comum difundido pelo discurso oficial, tende a acreditar que representantes parlamentares são, de fato, necessários.

Trata-se, aqui, de uma grande meia-verdade. Pois a atual obsolescência da representação é talvez a mais incômoda das verdades – guardada, portanto, como um segredo por todos aqueles que se beneficiam de mandatos legislativos eletivos. Para se entender melhor como chegamos a isto, é preciso retroceder no tempo para examinar as coisas historicamente.

Representantes legislativos já foram, é claro, necessários em épocas em que os meios de comunicação entre partes distantes de territórios que constituíssem uma mesma unidade política eram precários. Não se podia, por exemplo, contar apenas com documentos impressos a viajar longas distâncias, ou mesmo com a pouca “largura de banda” das comunicações telegráficas, para dar conta da troca maciça de informação entre governantes e governados necessária para se discutir e votar leis que às quais todos deveriam se submeter. Tanto isto foi verdade que a figura do representante se naturalizou como necessária no imaginário político popular.

Hoje, com os meios tecnológicos disponíveis, já seria possível consultar cada eleitor sobre cada lei em discussão ou votação. Não estou dizendo que seria fácil; apenas que seria possível. Chamamos a isto de democracia direta. Que depende, no entanto, para sua implementação, de uma vontade política que não podemos esperar de quaisquer representantes eleitos, uma vez que terão que optar pela extinção de seus próprios cargos.

Pensem num título eleitoral eletrônico, com todas as votações parlamentares facultativamente abertas a todos os cidadãos interessados. É claro que isto implicaria numa justiça eleitoral muito mais ativa, trabalhando continuamente, e não, ao contrário de como funciona hoje, sazonalmente, se fazendo mais presente de tempos em tempos, de acordo com o calendário de pleitos. Talvez implicasse, também, num corpo técnico maior do que o atual. E por que não ? Mais técnicos eleitorais e menos representantes ? Por que isto seria, necessariamente, pior para a democracia ?

A instrumentação tecnológica. Um impasse ? Dificilmente. Não é preciso ser nenhum especialista em TI para inferir, por analogia, que a implementação de sondagens eleitorais frequentes e maciças não representaria nenhum desafio técnico para quem já administra, por exemplo, cartões de crédito, contas telefônicas ou, mais recentemente, redes sociais – acostumadas, estas últimas, a sondagens maciças de usuários, só que em favor de anunciantes. Talvez coubesse apenas alguma discussão sobre se a tarefa devesse ser abraçada pelo governo ou, como no caso dos cartórios, pela iniciativa privada. Pano prá manga, enfim, do instigante debate entre estado mínimo ou, de outra forma, regulador e intervencionista.

Descartados, assim, os possíveis entraves à democracia direta mais frequentemente levantados por quem não quer largar o osso – a saber, a falta de tecnologia e recursos humanos, ambos perfeitamente acessíveis uma vez reconhecidas as vantagens do novo sistema – resta apenas a resistência da classe política à ideia, a qual insistirá até o fim na propagação do mito, há muito caduco, de que a representação é essencial à democracia. Por isto, é inútil esperar pela implantação da democracia direta a partir de qualquer reforma política gestada e proposta pelo poder legislativo – sendo, portanto, necessária a mobilização popular em favor da ideia se tivermos alguma esperança de que ela venha, um dia, a vingar.

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Vale a pena, aqui, se ponderar sobre a suposta representatividade de qualquer senador, deputado ou vereador. Um mandato legislativo não é uma procuração. Isto por que, através de uma procuração, delegamos a alguém a responsabilidade de nos representar com poderes específicos mediante o compromisso ético de defender nossos interesses, o que geralmente é feito mediante uma estreita relação de confiança e prestação de contas entre outorgante e outorgado.

Outrossim, pergunto: quando um senador, deputado ou prefeito consulta seus eleitores antes de votar em seu nome ? Eu, pelo menos, nunca fui abordado por qualquer um deles. Desta forma, um mandato legislativo mais se parece com um cheque em branco que pode ser preenchido pelo portador com o valor que bem lhe aprouver ou, ainda, com uma fiança, na qual o fiador empresta sua credibilidade baseado exclusivamente na crença mágica de que sua confiança jamais será traída.

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Há muitos anos venho dizendo a mesma coisa, apenas trocando as palavras, em períodos que antecedem a realização de pleitos eleitorais. Compreensivelmente, políticos jamais se interessaram por abraçar e levar adiante qualquer debate em torno da ideia. Sempre vi a instituição do congresso com suspeição, a reputando como obsoleta e estando, portanto, acostumado a ver taxarem a ideia em si de anti-democrática. Como se um congresso de representantes eleitos fosse, naturalmente, um dos principais sustentáculos da democracia. Se confunde a ideia da extinção de um sistema caro e obsoleto com a intenção de implementar ditaduras. Cientes disto, parlamentares, preocupados com sua permanência, conspiram para sustentar o mito de sua imprescindibilidade.

Trata-se, pois, a democracia direta, assim como a renda básica universal ou o decrescimento, de uma reviravolta cultural necessária para frear o impulso auto-destrutivo das relações humanas e, com ele, do planeta. Então, se você acha que tudo ou parte do que foi dito acima faz algum sentido, discuta. Divulgue. Desafie o senso comum. A Itália acaba de dar um passo importante. Que sirva de exemplo !

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PS: comentário de Ernesto Franzen, suscitado pelo compartilhamento deste post num grupo de WhatsApp:

“O problema dessa democracia direta é que militantes políticos profissionais farão muito mais barulho do que uma maioria silenciosa que trabalha oito horas por dia e chega cansada demais em casa para se manifestar em discussões políticas. Democracia direta para mim vira briga de bugio, ganha quem grita mais.”

Por que se evita tanto falar em democracia direta ?

Quem mais ouviu ontem, na Band News FM, o Ricardo Boechat defender a democracia direta, ainda que sem se referir a ela pelo nome ? Pois, ao pleitear que, a exemplo do que já é feito em alguns países, as cédulas eleitorais permitam aos cidadãos, além de escolher representantes, deliberar sobre decisões a serem tomadas em relação a matérias importantes, se referiu inequivocamente àquilo em que se constitui, em essência e em última análise, uma democracia direta – a saber, a voz do eleitor se fazendo valer em todas as matérias de interesse público. Isto é o contrário do que temos hoje, com representantes eleitos a quem outorgamos o direito e o poder de decidir em nosso nome.

No mesmo editorial, o âncora da Band caçoou da única e improvável possibilidade que a população tem hoje de fazer sua vontade adquirir força de lei. Pois, mesmo que alguma causa consiga angariar os milhões de assinaturas requeridas para o encaminhamento de uma emenda popular à constituição, a mesma ainda dependerá, para sua implementação, do endosso de casas legislativas numericamente muito inferiores aos signatários de cada emenda proposta – a vontade de milhões ficando, portanto, sujeita à aprovação de umas poucas centenas.

Esta questão deveria estar, portanto,  juntamente com outras tais como o fim do foro privilegiado e das aposentadorias especiais, rituais mais sumários para cassação de mandatos e criminalização de políticos corruptos ou flagrados em estelionato eleitoral (o não cumprimento do que foi prometido), redução dos salários de políticos, enxugamento de custos legislativos e tantas outras, no âmago de qualquer reforma política. Mas não. Em vez disto, políticos eleitos tentam incutir em eleitores perplexos a impressão de que estão de fato fazendo alguma coisa simplesmente tergiversando sobre a composição de distritos eleitorais. Sob esta cortina de fumaça, tratam de amealhar para suas próximas campanhas eleitorais mais um bocado colossal do orçamento nacional. Tenho, então, que concordar com Boechat quando diz que a reforma política, tal como vem sendo encaminhada, será totalmente inócua, a não ser pela concessão de mais vantagens aos políticos e aos partidos.

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Nomes importam. Muitos ainda se incomodam com a designação de “golpe” à articulação que afastou Dilma do poder por delitos bem menores do que malfeitorias perpetradas pela quadrilha hoje instalada. Pois o que são, afinal, pedaladas fiscais perto da abolição de direitos e flexibilização dos contratos trabalhistas ? Sem falar em propinas milionárias e na compra de votos de parlamentares.  Querem nos fazer acreditar, no entanto, que nos livraremos de tudo isto simplesmente com a “reforma política” que aí está. Ao mesmo tempo, se evita a qualquer custo a popularização da noção de “democracia direta” tão somente por que ela rende óbvia a obsolescência dos representantes eleitos tais como hoje os conhecemos. Esta é uma verdade inconveniente (para os políticos profissionais) protegida a sete chaves.

Daí a necessidade de uma assembleia constituinte soberana e exclusiva (i.e., sem a participação dos atuais congressistas) para a redação, após ampla discussão (que tarefa para os tribunais eleitorais !), de uma nova carta magna da qual sejam expurgadas as mazelas da representação.

Não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que isto venha a acontecer num futuro próximo nem tampouco sem alguma comoção popular, pois a blindagem contra esta ideia é fortemente sustentada pelo congresso e pela mídia, ambos controlados pelo poder econômico. Mas sonhos só possuem alguma chance de se tornar realidade se falarmos sobre eles.

Por que a linha sucessória da presidência da república é ilegítima

Qualquer um percebe que há algo profundamente errado na linha sucessória para a presidência da república do Brasil, ainda que amparada no texto constitucional. Ao longo deste post, tentaremos deixar claro, em termos quase didáticos, o por que. Se já souberem, abandonem a leitura por aqui.

As eleições diretas para a presidência da república foram um inegável avanço democrático, arduamente conquistado depois dos anos de chumbo. Só que, na prática, o problema começa na composição de uma chapa presidencial. Queiramos ou não, elegemos um mandatário para a nação apesar do candidato à sua vice-presidência – via de regra um boneco alçado à candidatura muito mais em razão de composições partidárias destinadas a garantir a governabilidade do que por qualquer outra coisa. No caso do impedimento temporário ou permanente de um mandatário legitimamente eleito, se fica à mercê de um Temer ou de um Itamar.

(não votei em Dilma principalmente devido à sua aliança eleitoral com raposas do PMDB; logo que vi Temer como papagaio de pirata durante seu discurso triunfal por ocasião da última eleição presidencial, pensei: “vai dar merda”. Não deu outra.)

Mas o problema não termina aí. A legitimidade de qualquer chapa presidencial ungida pelo voto (ainda que com o indesejável contrapeso de um vice plantado ali por conveniência partidária) termina na segunda instância caso o vice eventualmente empossado também seja deposto – como estamos prestes a assistir, pasmos e impotentes face à carta constitucional (esta mãe de todos os males).

Pois tanto a terceira quanto a quarta instância da linha sucessória, respectivamente os presidentes da câmara de deputados e do senado, jamais foram eleitos pela nação para o exercício da presidência da república. Nem tampouco o presidente do STF – neste caso alguém indicado pelo próprio presidente ou um de seus antecessores:  querem vício político maior do que este ? (oportunamente, tornarei à questão do vício inerente aos cargos de confiança).

Presidentes de casas legislativas não desfrutam da confiança majoritária do eleitorado, sua ascensão ao cargo se devendo exclusivamente à capacidade pessoal de administrar alianças e acordos escusos com os demais parlamentares. Pensem que, até pouco tempo atrás, estávamos sujeitos, na hipótese de queda dos primeiros mandatários da linha sucessória, a ser governados por criminosos notórios, ainda que políticos hábeis, como Cunha ou Renan. Ambos, no entanto, seriam demais até para a complacência bovina da população brasileira. O jeito, então, encontrado pela quadrilha para prevenir um improvável levante popular foi sacrificar Cunha em prol do golpe (aguardem sua vingança em forma de delação) e simplesmente deixar que Renan passasse da validade; elegendo para suas posições de vantagem novas caras, com biografias demasiado curtas para o acúmulo de sujeira e coroadas por exuberante cabeleiras (a propósito, Rodrigo e Eunício usam perucas ?) – a denotar, emblematicamente, a renovação de carecas prá lá de comprometidas.

O problema acima descrito persistirá até que a carta magna seja remendada a fim de garantir que todas (e não apenas a primeira e a segunda) posições da linha sucessória sejam ocupadas por sujeitos escolhidos por voto direto. Idealmente, sem a composição de chapas, para contemplar, por exemplo, os que votariam em Dilma mas jamais em Temer. Como ? Em turnos sucessivos, tantos quantas forem as posições da linha sucessória. Trabalhoso ? Para os tribunais eleitorais, talvez. Jamais, no entanto, para os eleitores assim empoderados.

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Não é de hoje que venho dizendo que a restauração da dignidade nacional (se é que já houve alguma) passa, obrigatoriamente, por uma reforma política e uma constituinte exclusiva que garantam, entre outros avanços,

a instalação de uma democracia direta;

o fim de toda representação;

o fim de todos os cargos de confiança (em qualquer esfera administrativa, a gestão deve ser conduzida por agentes escolhidos ascendentemente pela maioria administrada e jamais descendentemente nomeados por qualquer mandatário eleito majoritariamente (sempre defendi isto; esmiuçei a ideia no blog anterior e devo tornar a bater na mesma tecla)).

Sei. Nunca foi tão alardeado, como hoje, o bordão “não há política sem políticos”. Convenientemente, há quem queira naturalizá-lo como verdade. Duvido muito. Penso que a política só começará com a extinção dos políticos.  Ou, ao menos, da política como profissão. Pois, pelo andar da carruagem, não falta muito para que algum ego exacerbado com vocação ditatorial decida fechar o congresso com amplo apoio da população. Então, é imensamente preferível que a população declare, por algum meio plebiscitário, a obsolescência do congresso antes que algum oportunista o faça.

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PS: Procurando fotos de Eunício na web para ilustrar esta postagem, me ficou evidente que ele pinta o cabelo. Alguém também há de publicar um ensaio semiótico sobre o por que de candidatos serem fotografados invariavelmente em mangas de camisa e, uma vez eleitos, sempre de terno e gravata. Não deve ser só por causa do regimento parlamentar.