Por uma democracia direta (i): para que servem representantes parlamentares hoje ?

Num referendo histórico, a maioria da população italiana (estimada entre 64 e 69% de seus eleitores) aprovou ontem a redução em 1/3 de seu parlamento, que tem hoje 914 cadeiras (630 deputados e 315 senadores) e passará a ter 600 (400 deputados e 200 senadores) depois do próximo pleito, em 2023.

A decisão sinaliza claramente a insatisfação popular com dois fatos há muito percebidos mas raramente enfrentados, a saber,

  • o alto custo de manutenção de câmaras legislativas numerosas e, em última instância,
  • a obsolescência da representação parlamentar como hoje a conhecemos.

Tal sorte de reforma política, conquanto necessária, é sempre de difícil implementação, principalmente por depender, para sua aprovação, de mudanças constitucionais que devem, necessariamente, ter a anuência dos atuais representantes – os quais, via de regra, resistem a cortar a própria carne. Não vou aqui me debruçar sobre a questão do custo proibitivo do inchaço da representação parlamentar, já suficientemente difundido e esmiuçado. Prefiro, ao invés, me concentrar no problema bem menos verbalizado da obsolescência dos representantes num mundo conectado.

A principal objeção levantada contra a redução do parlamento italiano é a de que a medida prejudicaria a democracia ao facilitar a ação de lobbies (leia-se que lobistas gastarão menos tendo que forrar menos bolsos). O argumento tende a emplacar ante a ingenuidade de parte significativa da população que, persuadida pelo senso comum difundido pelo discurso oficial, tende a acreditar que representantes parlamentares são, de fato, necessários.

Trata-se, aqui, de uma grande meia-verdade. Pois a atual obsolescência da representação é talvez a mais incômoda das verdades – guardada, portanto, como um segredo por todos aqueles que se beneficiam de mandatos legislativos eletivos. Para se entender melhor como chegamos a isto, é preciso retroceder no tempo para examinar as coisas historicamente.

Representantes legislativos já foram, é claro, necessários em épocas em que os meios de comunicação entre partes distantes de territórios que constituíssem uma mesma unidade política eram precários. Não se podia, por exemplo, contar apenas com documentos impressos a viajar longas distâncias, ou mesmo com a pouca “largura de banda” das comunicações telegráficas, para dar conta da troca maciça de informação entre governantes e governados necessária para se discutir e votar leis que às quais todos deveriam se submeter. Tanto isto foi verdade que a figura do representante se naturalizou como necessária no imaginário político popular.

Hoje, com os meios tecnológicos disponíveis, já seria possível consultar cada eleitor sobre cada lei em discussão ou votação. Não estou dizendo que seria fácil; apenas que seria possível. Chamamos a isto de democracia direta. Que depende, no entanto, para sua implementação, de uma vontade política que não podemos esperar de quaisquer representantes eleitos, uma vez que terão que optar pela extinção de seus próprios cargos.

Pensem num título eleitoral eletrônico, com todas as votações parlamentares facultativamente abertas a todos os cidadãos interessados. É claro que isto implicaria numa justiça eleitoral muito mais ativa, trabalhando continuamente, e não, ao contrário de como funciona hoje, sazonalmente, se fazendo mais presente de tempos em tempos, de acordo com o calendário de pleitos. Talvez implicasse, também, num corpo técnico maior do que o atual. E por que não ? Mais técnicos eleitorais e menos representantes ? Por que isto seria, necessariamente, pior para a democracia ?

A instrumentação tecnológica. Um impasse ? Dificilmente. Não é preciso ser nenhum especialista em TI para inferir, por analogia, que a implementação de sondagens eleitorais frequentes e maciças não representaria nenhum desafio técnico para quem já administra, por exemplo, cartões de crédito, contas telefônicas ou, mais recentemente, redes sociais – acostumadas, estas últimas, a sondagens maciças de usuários, só que em favor de anunciantes. Talvez coubesse apenas alguma discussão sobre se a tarefa devesse ser abraçada pelo governo ou, como no caso dos cartórios, pela iniciativa privada. Pano prá manga, enfim, do instigante debate entre estado mínimo ou, de outra forma, regulador e intervencionista.

Descartados, assim, os possíveis entraves à democracia direta mais frequentemente levantados por quem não quer largar o osso – a saber, a falta de tecnologia e recursos humanos, ambos perfeitamente acessíveis uma vez reconhecidas as vantagens do novo sistema – resta apenas a resistência da classe política à ideia, a qual insistirá até o fim na propagação do mito, há muito caduco, de que a representação é essencial à democracia. Por isto, é inútil esperar pela implantação da democracia direta a partir de qualquer reforma política gestada e proposta pelo poder legislativo – sendo, portanto, necessária a mobilização popular em favor da ideia se tivermos alguma esperança de que ela venha, um dia, a vingar.

* * *

Vale a pena, aqui, se ponderar sobre a suposta representatividade de qualquer senador, deputado ou vereador. Um mandato legislativo não é uma procuração. Isto por que, através de uma procuração, delegamos a alguém a responsabilidade de nos representar com poderes específicos mediante o compromisso ético de defender nossos interesses, o que geralmente é feito mediante uma estreita relação de confiança e prestação de contas entre outorgante e outorgado.

Outrossim, pergunto: quando um senador, deputado ou prefeito consulta seus eleitores antes de votar em seu nome ? Eu, pelo menos, nunca fui abordado por qualquer um deles. Desta forma, um mandato legislativo mais se parece com um cheque em branco que pode ser preenchido pelo portador com o valor que bem lhe aprouver ou, ainda, com uma fiança, na qual o fiador empresta sua credibilidade baseado exclusivamente na crença mágica de que sua confiança jamais será traída.

* * *

Há muitos anos venho dizendo a mesma coisa, apenas trocando as palavras, em períodos que antecedem a realização de pleitos eleitorais. Compreensivelmente, políticos jamais se interessaram por abraçar e levar adiante qualquer debate em torno da ideia. Sempre vi a instituição do congresso com suspeição, a reputando como obsoleta e estando, portanto, acostumado a ver taxarem a ideia em si de anti-democrática. Como se um congresso de representantes eleitos fosse, naturalmente, um dos principais sustentáculos da democracia. Se confunde a ideia da extinção de um sistema caro e obsoleto com a intenção de implementar ditaduras. Cientes disto, parlamentares, preocupados com sua permanência, conspiram para sustentar o mito de sua imprescindibilidade.

Trata-se, pois, a democracia direta, assim como a renda básica universal ou o decrescimento, de uma reviravolta cultural necessária para frear o impulso auto-destrutivo das relações humanas e, com ele, do planeta. Então, se você acha que tudo ou parte do que foi dito acima faz algum sentido, discuta. Divulgue. Desafie o senso comum. A Itália acaba de dar um passo importante. Que sirva de exemplo !

* * *

PS: comentário de Ernesto Franzen, suscitado pelo compartilhamento deste post num grupo de WhatsApp:

“O problema dessa democracia direta é que militantes políticos profissionais farão muito mais barulho do que uma maioria silenciosa que trabalha oito horas por dia e chega cansada demais em casa para se manifestar em discussões políticas. Democracia direta para mim vira briga de bugio, ganha quem grita mais.”

Deixe um comentário