O Intelectual – o poder positivo do pensamento negativo (2005), de Steve Fuller; ou Confissões de um leitor incompetente

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

Steve Fuller, em O Intelectual

Estamos aqui claramente diante de mais uma não resenha – ou, se preferirem, anti-resenha. Explico. Dentre os livros que nos caem nas mãos, há uma categoria que reúne todos aqueles que se afiguram como demasiado complexos para nossa compreensão. Como, por exemplo, Austeridade – A História de uma Ideia Perigosa (2013), de Mark Blyth, cujo argumento fascinante não foi, todavia, suficiente para que eu, abatido pela flagrante insuficiência de conhecimento econômico, persistisse em sua leitura.

O Intelectual (2005), do filósofo Steve Fuller, claramente pertence a este grupo de obras que desafiam nossa compreensão, desta vez por uma virtuosa combinação de pressupostos filosóficos (vai dos gregos aos dias de hoje) com uma linguagem compacta, com altos índices de síntese e densidade lógica. Só que, desta vez, não me deixei intimidar pela incompreensão inicial de muitas passagens (a bem dizer, a maioria delas), chegando diligentemente ao final tão somente para reiniciar imediatamente a leitura, desta vez mais pausada e sublinhando muita coisa importante que, na pressa da primeira leitura, acabara deixando para trás.

Grandes obras são assim, abertas, revelando novas nuances a cada releitura, principalmente de acordo com o amadurecimento do leitor. Não envelhecem com o passar das décadas mas, ao contrário, se resignificam e, com isto, enriquecem. Querem um exemplo ? 2001, de Kubrick, que vi pela primeira vez na adolescência, quando foi lançado, e que até hoje me fascina e intriga.

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Devo confessar, inicialmente, que o que me atraiu em O Intelectual foi seu singular subtítulo, “o poder positivo do pensamento negativo”, que de imediato me soou como a antítese de uma manual de autoajuda. Espécie de Paulo Coelho (de quem só conheço a reputação, pois nunca li) às avessas ou, no mínimo, um elogio à rabujice. Caí na cilada. Isto por que tal locução – provavelmente a interferência de algum editor na tentativa de conferir glamour a uma obra outrossim hermética, destinada a especialistas – sequer pertence ao título original. É bem verdade que o título poderia ser, como é comum em textos filosóficos, O Elogio do Intelectual –  mas devemos reconhecer que, neste caso, seria bem menos apelativo. Façamos, pois, esta pequena concessão ao marketing.

Sou assim. Me encanto facilmente com promessas, por vezes elusivas, contidas em nomes de livros. Às vezes me dou bem, cavocando tesouros como Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber, ou The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, de Berg & Seeber. Noutras, nem tanto, como no supracitado Austeridade. No presente caso, deve ser dito, em favor do criativo e atraente subtítulo aposto à edição brasileira de O Intelectual, que a expressão, mais do que uma nota de orelha rabiscada às pressas, ao menos denota a impressão de que só pode ter sido imaginado após uma leitura extensiva e dedicada dos argumentos de Fuller.

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A primeira coisa que o autor declara, na introdução, é que “O Intectual segue de certa forma a estrutura de O Príncipe, de Maquiavel, o famoso livro de conselhos do século 16 sobre a arte de governar”. De fato, o tom aforístico (“o príncipe/intelectual deve…”) é o mesmo. Mas termina aí qualquer semelhança. Pois, enquanto o livro de Maquiavel, em que pese a ácida perspicácia do autor, tem uma linguagem direta e unívoca, capaz de ser entendida por qualquer escolar (sem dúvida um atributo invejável em textos de teor filosófico),  já O Intelectual, não. Nele, frases longas, com argumentos complexos ricamente detalhados, são uma constante – de tal modo que é praticamente impossível alcançar uma compreensão mínima do que recém foi lido sem retroceder frequentemente ao início de cada frase ou parágrafo. Não se deixem, portanto, enganar pela aparência: se trata de um livro curto (ca. 150 páginas), mas de leitura demorada.

Provavelmente o melhor modo de transmitir uma visão global d’O Intelectual seja através de seu sumário. Não riam – pois, porquanto a frase anterior possa parecer francamente tautológica, índices são amiúde elusivos. Tal não é o caso, no entanto, n’O Intelectual, onde cada tópico representa da forma mais clara possível o que encontraremos em cada seção. Ao sumário, então.

O livro é dividido em 3 partes de aproximadamente 50 páginas cada uma. Na primeira, são apresentadas quatro teses sobre intelectuais, a saber, (1) que intelectuais nasceram de pé atrás; (2) que  intelectuais sofrem de ligeira paranoia; (3) que intelectuais carecem de uma plano de negócios e (4) que intelectuais procuram a verdade total. A segunda consiste num longo diálogo entre o intelectual e o filósofo. Na terceira, são respondidas perguntas usuais sobre intelectuais como, por exemplo, “Como o intelectual adquire credibilidade ?”, “O que leva o intelectual a escolher uma causa para defender ?” ou “Por que os intelectuais parecem prosperar no conflito ?”. Esta parte inclui, também, uma tipologia dos intelectuais e seções francamente aforísticas sobre “Como intelectuais devem se relacionar [respectivamente] com políticos, acadêmicos, cientistas e filósofos”. É nestas últimas que Fuller melhor estabelece, em contraste com as supracitadas categorias de pensadores (aqui entendidos não no sentido restrito de filósofos mas mais abertamente, como homens de ideias), uma definição por aproximação do que vem a ser, afinal, um intelectual.

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Como já disse, a leitura de O Intelectual pressupõe o conhecimento prévio, ou pelo menos uma visão abrangente, da história da filosofia, de Sócrates e Platão às escolas contemporâneas, passando pela Idade Média, pelo Iluminismo e pelos idealistas alemães, até chegar à ruptura do bloco socialista, ao neoliberalismo e ao terrorismo – conceitos e categorias aos quais Fuller, em sua linguagem compacta, se refere constantemente sem, no entanto, explicar a não ser por definições ultra sintéticas, de difícil compreensão para não portadores, como eu, de uma formação filosófica ampla e detalhada.  Reflexões sobre o espírito da ciência de cada época também são uma constante no texto.

Dentre as passagens mais significativas com que me deparei na primeira parte, destaco:

o esforço de reabilitação dos sofistas, opositores clássicos de Sócrates, cuja dimensão podemos depreender de passagens como

“O sinal mais evidente de que os juízos históricos dificilmente voltam atrás é o destino de grupos específicos que dão nome a vícios e deficiências da humanidade em geral: “hunos” e “vândalos”, “anarquistas” e “fascistas” são alguns deles. Para o intelectual, o mais relevante grupo dessa categoria é constituído pelos “sofistas”, os grandes reivindicadores da razão nos tempos da antiga Atenas.”

ou

“[…] reabilitar os sofistas atualmente está fadado a se tornar uma luta inglória.”

Não obstante, é precisamente o que Fuller faz ao longo de mais de dez páginas, que incluem pérolas como

“No mundo de hoje, os sofistas estariam à vontade em seminários de treinamento de gerência de negócios e escrevendo livros de autoajuda. Um Sócrates moderno teria rotulado tais indivíduos como “gurus” e reclamado por suas obras estarem pressionando por mais espaço nos currículos universitários e nas seções de “filosofia” das livrarias.”

Ainda na linha das reabilitações, o autor dedica especial atenção às teorias conspiratórias, as quais chega mesmo a considerar – em especial na tese de que os intelectuais sofrem de ligeira paranoia – como ferramentas essenciais a seu trabalho.

Além da paranoia estrutural, inerente a todo intelectual, Fuller também discute, na primeira parte, questões como

o ceticismo, em

“Enquanto a razão for exercida de forma desigual pela humanidade, o intelectual se oporá a tudo em que acredita a maioria das pessoas, provavelmente sob o jugo de um poder dominante.”

a responsabilidade negativa (i.e., a responsabilidade por aquilo que não se fez, mas que deveria ter sido feito), emblemática do julgamento do nazista Adolf Eichmann;

a obsolescência planejada de Henry Ford a Bill Gates, Steve Jobs e o mercado editorial;

o direito autoral;

a distinção semântica entre “toda a verdade” (posição mais liberal, assumida por intelectuais, que admite a dúvida e, consequentemente, a possibilidade de erro) e “só a verdade” (posição mais conservadora, equivalente a “nada além da verdade”, que exclui qualquer dúvida) arraigada à história do pensamento ocidental e, principalmente, à cultura jurídica;

a imaginação enquanto instrumento de revelação da verdade e

o mito da infalibilidade científica.

No extenso diálogo em que o intelectual é sabatinado pelo filósofo, o primeiro, entre outras coisas,

explica por que

“[…] o único meio confiável para se chegar à verdade é a crítica”;

categoriza os filósofos contemporâneos como “continentais” (franceses e alemães), que reciclam o pensamento de mestres do passado, e “analíticos”, que se expressam primordialmente em língua inglesa;

justifica sua restrição ao “texto difícil”;

manifesta sua preferência incondicional pela abrangência em relação à profundidade em passagens como

“Um intelectual genuíno suspeita da ideia de que exista somente um caminho ou pelo menos um número limitado de rotas para uma verdade supostamente de importância universal.”

e

“Qualquer coisa que valha a pena ser dita pode ser dita em outras palavras.”

Além disso, fala da universidade, das ciências sociais e da redundância inerente à pesquisa científica (fenômeno identificado e batizado como “conhecimento público não descoberto” por Don Swanson, bibliotecário da Universidade de Chicago, que demonstrou que

“[…] o problema principal da pesquisa médica pode ser localizado, ou até mesmo resolvido, através de uma leitura sistemática da literatura científica. Entregue a si mesma, a pesquisa científica tende a se tornar cada vez mais especializada e abstraída dos problemas do mundo real que a motivaram e para os quais continua a ter importância. Isso sugere que tal questão pode ser resolvida efetivamente não contratando ainda mais pesquisas, mas assumindo que parte ou toda a solução já se encontra em várias publicações científicas, à espera de alguém querendo ler através das diferentes especialidades.”

Este ponto me é especialmente caro, já tendo me debruçado sobre o mesmo, ainda  que indiretamente, aqui (no sexto parágrafo) e aqui.

A terceira parte é aquela cuja leitura flui melhor. É nas quatro seções dedicadas ao modo como o intelectual deve se relacionar com, respectivamente, políticos, acadêmicos, filósofos e cientistas que Fuller melhor descreve o ressentimento mútuo nutrido entre intelectuais e cada uma das categorias de pensadores acima, em relação às quais chega a ser, por vezes, particularmente sarcástico. Como, por exemplo, em

“[…] os políticos se vêm tentados a descartar ou a adiar decisões de modo a permitir-lhes escapar a potenciais colapsos.”;

“[acadêmicos e intelectuais] se vêm com mútua suspeita. Cada um trata o outro como um atravessador que inunda o mercado com produtos inferiores. [Os acadêmicos] consideram intelectuais impressionistas em suas observações, tendenciosos em seus julgamentos, descuidados em suas pesquisas e parasitas do trabalho dos outros – esses outros, naturalmente, outros acadêmicos. […] Os acadêmicos parecem preocupados com pelo menos três coisas: receber o crédito devido a seu trabalho, proteger seu trabalho contra desvalorização e, mais sutilmente, justificar a própria necessidade do trabalho. Esta última preocupação admite a possibilidade de que intelectuais possam reduzir argumentos acadêmicos complexos a pontos-chave e criar um contexto que lhes atribui uma significância capaz de atrair uma audiência bem maior do que a que os acadêmicos conseguem reunir.”;

“Os textos acadêmicos são muito mais interessantes graças às notas de rodapé do que pelo argumento principal – isto é, mais pelo que consomem do que pelo que produzem.”;

“Os cientistas são os adversários mais falaciosos a ser enfrentados em público. […] são tidos como especialistas nas áreas que pretendem dominar e mesmo em outras mais. Todas estas características, que depõem a favor da credibilidade “prima facie” dos cientistas, colocam o intelectual em verdadeira desvantagem.”;

“De modo geral, os filósofos asseguram sua autoridade intelectual transformando cada disputa substantiva em outra logicamente anterior sobre o significado de alguma palavra-chave avaliativa, tal como ‘verdadeiro’ ou ‘bom’.”

Para o leitor, fica claro que o intelectual, um irremediável intruso em qualquer destes grupos, não nutre, todavia, qualquer ressentimento por sua exclusão. Entende sua crítica independente como necessária ao aperfeiçoamento social e não se importa em ser amiúde e francamente atacado. Isto fica perfeitamente claro em

“[…] os intelectuais são inerentemente autodestrutíveis: ajudam a criar a competição contra eles mesmos, quando advogam educação em massa, leitura de jornais e debate público. Num determinado sentido, encorajam outros a seguirem seus atos, não suas palavras: melhor criticarem o que digo do que repetirem o que digo sem crítica. Talvez isto explique por que os intelectuais se distinguem dos acadêmicos, dos empresários e dos políticos. Eles não se importam quando lhes apontam um erro, desde que lhes reconheçam o direito de errar no presente e no futuro. Essa é a melhor forma de entender a máxima muitas vezes atribuída cinicamente aos intelectuais: ‘Não há nada pior do que a publicidade; porém, ser ignorado é o mesmo que a morte.'”

Mais sobre a hostilidade frequentemente dirigida a intelectuais:

“A crítica raramente é bem recebida, principalmente se vier de intelectuais. Eles procuram atingir não simples ideias ou proposições, mas blocos inteiros de pensamento, que, no calor da discussão, são confundidos com seus defensores. Por isso, a crítica de um intelectual é muitas vezes vista como um ataque pessoal. Como revanche, eles se tornam os mensageiros que são mortos por conta de suas mensagens. Você não é formalmente repudiado – é apenas “reapropriado”. Na verdade, você fica sabendo que é um intelectual quando é denunciado em discursos ou plagiado nos escritos.”

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Se fosse para apontar uma única deficiência em O Intelectual, ao menos em sua edição brasileira (Relume, 2006), seria esta, indiscutivelmente, a falta de um índice onomástico. Se trata, muito mais do que uma falha autoral, de uma de seus editores. Pois, numa obra em cuja leitura, conquanto breve, desfilam diante de nossos olhos centenas de nomes, desde aqueles pivotais na história do pensamento, como Platão, Galileu, Voltaire, Newton e afins (que comparecem repetidamente no texto, ainda que de modo não cronológico) até autores “colaterais” (como, por exemplo, Christopher Hitchens, o célebre desmistificador de Madre Teresa de Calcutá, que aparece uma única vez), uma indexação que permita uma referência rápida a qualquer um deles se faz mais do que necessária. Sorte que, habituado a esta má prática editorial, costumo, já na primeira leitura, sublinhar e anotar furiosamente nas margens quaisquer referências importantes que possa vir a querer recuperar rapidamente depois.

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O livro termina brilhantemente com a seguinte frase, impressa em itálicos, que serve de epígrafe a este post mas que repetimos em nome da ênfase:

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

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O que subtituirá o pensamento econômico obsoleto de esquerda e direita ? O paradigma dos “commons”.

Commons são sistemas sociais auto-organizados para gerir riquezas compartilhadas.

Tradução de um artigo de David Bollier publicado em Evonomics

em 30 de setembro de 2017

A ascensão no mundo de tantos movimentos nacionalistas de direita – Brexit, Donald Trump, os neo-nazistas em Charlottesville (Virginia), protestos contra imigrantes em toda a Europa – certamente tem origens e contextos particulares. Mas conjuntamente, evidenciam as minguantes opções realistas que as culturas políticas capitalistas estão dispostas a considerar. O que naturalmente leva à questão: por que as alternativas mais completas são tão raras e tão raramente confiáveis ?

Elites políticas e suas irmãs corporativas estão ficando sem ideias para conciliar as profundas contradições do “capitalismo democrático” como existe hoje. Mesmo social-democratas e liberais, inimigos tradicionais do dogma do livre mercado, parecem presos a uma visão de mundo arcaica e a um conjunto de estratégias políticas que fazem seus argumentos parecerem pífios. Sua habitual narrativa de progresso – de que o crescimento econômico, aumentado por intervenções governamentais e redistribuição, pode de fato funcionar e tornar a sociedade mais estável e justa – não mais é convincente.

Abaixo, argumento que o paradigma dos commons oferece um ótica nova e prática para a reimaginação da política, da governança e da lei. Em poucas palavras, os commons são sistemas sociais auto-organizados para gerir riquezas compartilhadas. Longe se ser uma “tragédia” (1), os commons como sistema para dividir responsabilidades e benefícios é altamente generativo. Ele pode ser constatado na exitosa autogestão de florestas, fazendas e água, bem como em comunidades de software de código aberto, publicações científicas de acesso aberto e em sistemas “cósmico-locais” de design e fabricação.

A crise financeira de 2008 abalou muitos mitos consensuais que sustentaram a narrativa do capitalismo neoliberal. Revelou que crescimento não é algo que possa ser ampla e igualmente compartilhado. Uma maré ascendente não eleva todos os barcos por que os pobres da classe trabalhadora, e mesmo a classe média, não partilham dos mesmos ganhos de produtividade, isenções fiscais e apreciação patrimonial que os ricos. A crescente concentração de riqueza está criando uma nova plutocracia global, cujos membros estão usando suas fortunas para dominar e corromper processos democráticos ao mesmo tempo em que se isolam dos males que afligem todos os demais. Não é de espantar que o sistema mercado/estado e a ideia de democracia liberal esteja experimentando um crise legítima.

Feita esta crítica geral, acredito que o mais urgente desafio de nosso tempo seja desenvolver um novo imaginário sócio-político que vá além dos atualmente oferecidos pela esquerda ou direita. Precisamos imaginar novos tipos de governança e providenciar arranjos que possam transformar, domar ou substituir mercados predatórios e o capitalismo. Nos últimos 50 anos, o estado regulatório falhou em diminuir a implacável inundação de “externalidades” anti-ecológicas, anti-consumidores e anti-sociais geradas pelo capitalismo, principalmente por que o poder do capital eclipsou o da nação-estado e a soberania do cidadão. Ainda assim a esquerda tradicional continua acreditando, equivocadamente, que um Keynesianismo requentado, redistribuição de riqueza e programas sociais sejam politicamente viáveis e possam se tornar efetivos.

O crítico cultural Douglas Rushkoff disse: “Desisti de consertar a economia, por que a economia não está estragada. Ela é simplesmente injusta.” Noutras palavras, a economia está funcionando mais ou menos como seus superintendentes capitalistas querem. Cidadãos frequentemente se desesperam por que a luta por mudanças dentro da política democrática convencional é muitas vezes fútil – e não apenas por que processos democráticos são corruptos. Burocracias estatais e mesmo mercados competitivos são estruturalmente incapazes de enfrentar muitos problemas. Os limites do que O Sistema pode oferecer – em mudanças climáticas, desigualdade, infraestrutura e responsabilidade democrática – são escancaradamente expostos todos os dias. Ao mesmo tempo em que a desconfiança no estado cresce, uma questão bem pertinente é para onde a soberania e a legitimidade política migrarão no futuro.

O problema fundamental em desenvolver uma nova visão é, entretanto, que velhos debates ideológicos continuam a dominar o discurso público. A política está reeditando indefinidamente muitas das mesmas discórdias, deixando de reconhecer que profundas mudanças estruturais são necessárias. Há pouco espaço de incubação para novas ideias e projetos. Novas visões precisam de espaço para respirar e evoluir sua lógica soberana e sua ética para escapar do beco sem saída do melhorismo reformista.

Conforme expliquei num artigo recente para a revista The Nation, narrativas e projetos insurgentes não faltam. Movimentos centrados na justiça climática, cooperativas, cidades tradicionais, sistemas locais de alimentação, finanças alternativas, moedas digitais, produção por pares e design e fabricação abertos, entre outros, estão inaugurando modelos pós-capitalistas de governança e provimento por pares. Ainda que fragmentados e diversos, estes movimentos tendem a enfatizar a temática dos commons: produção e consumo para atender necessidades individuais, sem gerar lucro; tomada de decisões de baixo para cima e administração de riquezas compartilhadas a longo prazo. Todos estes valores estão na essência dos commons.

Por enquanto, estes movimentos tendem a funcionar na margem da cultura, mais ou menos ignorados pela grande mídia e pelos partidos políticos. Mas isto é precisamente o que permitiu que eles evoluíssem com integridade e substância. Só aqui, na periferia, estes movimentos puderam escapar dos pesados preconceitos e das prioridades auto-beneficiantes dos partidos políticos, agências governamentais, meios comerciais, filantropia, academia e complexo industrial não lucrativo entrincheirado.

Por que a imaginação pública para mudanças tranformativas é tão atrofiada ? Em parte por que instituições mais estabelecidas estão mais focadas no manejo da reputação de suas marcas e franquias organizacionais. Assumir riscos e desenvolver novas iniciativas e ideias sólidas não é o que elas geralmente fazem. Enquanto isto, movimentos de mudança de sistema são geralmente considerados sem importância por serem de escala muito pequena, triviais ou apolíticos. Eles também permanecem obscuros por que tendem a confiar em redes baseadas na internet para construir novos tipos de poder, rendimentos (capacidade estrutural para agenciamento individual) e autoridade moral que atores convencionais não entendem ou respeitam. Exemplos incluem a ascensão do grupo de fazendeiros e pastores La Via Campesina, a colaboração transnacional entre povos indígenas, plataformas cooperativas que promovem alternativas compartilhadas como Uber e Airbnb e o System for Rice Intensification (um tipo de agricultura de código aberto desenvolvido pelos próprios fazendeiros).

Ao invés de gerir a si próprios como organizações hierárquicas com franquias proprietárias, reputações e sobrecarga para sustentar, ativistas se enxergam como partes de um movimento social atuando como atores flexíveis em ambientes abertos, fluidos. Seu ativismo em rede permite que se organizem mais eficientemente e coordenem atividades, atraiam participantes talentosos escolhidos por eles mesmos e implementem ciclos rápidos de interação criativa.

Movimentos de mudança de sistema tendem a evitar condutas e processos políticos convencionais – procurando, ao invés, mudança através de emergência auto-organizada. Em termos ecológicos, eles estão usando redes digitais abertas para tentar criar “áreas de captação”, que são espaços para onde muitos fluxos convergem (água, vegetação, solo, organismos, etc.) para fazer surgir uma zona independente e auto-reabastecida de energia vital. No dizer de duas alunas de teoria da complexidade e movimentos sociais, Margaret Wheatley e Deborah Frieze:

Quando esforços separados, locais, se conectam uns com os outros como redes, se fortalecendo como comunidades de práticas, repentina e surpreendentemente um novo sistema emerge numa escala muito maior. Este sistema de influência possui qualidades e capacidades até então desconhecidas para os indivíduos. Não é que elas estivessem ocultas; simplesmente não existiam antes que o sistema emergisse. São propriedades do sistema, não do indivíduo, só que uma vez lá, os indivíduos as possuem. E o sistema que emerge sempre possui mais poder e influência do que seria possível por meio de mudança incremental planejada. Emergência é como a vida cria mudança radical e faz coisas em escala.

A velha guarda da política eleitoral e da economia convencional tem dificuldade em compreender o princípio da emergência, que dirá reconhecer a necessidade de estruturas de políticas inovadoras que possam alavancar e focalizar o poder dinâmico. Ela consistentemente subestimou a inovação de baixo para cima viabilizada pelo software de código aberto; a velocidade e confiabilidade do estilo da Wikipedia de coordenação e agregação de conhecimento e o poder das mídias sociais para catalisar auto-organização viral tal como no movimento Occupy, nos Indignados e Podemos na Espanha, na Revolução do Jasmim na Tunísia e em Syriza na Grécia. Escolas convencionais de economia, política e poder não compreendem as capacidades generativas das redes descentralizadas e auto-organizadas. Elas aplicam categorias obsoletas de controle institucional e análise política, como se tentando compreender as ramificações de automóveis por meio da linguagem de “carruagens sem cavalos”.

Ao invés de aderir ao velho espectro da esquerda à direita da ideologia política – que reflete a centralidade do mercado e do estado em organizar a sociedade – precisamos empreender novas narrativas que nos permitam imaginar novos motores de governança, produção e cultura. Em meu trabalho pessoal, vejo o enorme potencial dos commons no momento em que fazendeiros e pescadores, cidadãos urbanos e usuários da internet tentam reclamar recursos compartilhados que lhes foram usurpados para alimentar a máquina capitalista – e criar suas próprias alternativas de governança. Nisto, os commons são ao mesmo tempo um paradigma, um discurso, um conjunto de práticas sociais e uma ética.

Nos últimos 5 anos ou mais, os commons serviram como uma espécie de meta-narrativa abrangente para diversos movimentos desafiarem a mercantilização e a transnacionalização de tudo, a desapropriação e privatização de recursos e a corrupção da democracia. Os commons também forneceram uma linguagem e uma ética para pensar e agir como um plebeu – colaborativo, socialmente consciente, integrado à natureza, preocupado com rendimento e longo prazo e respeitador da pluralidade que faz nosso planeta.

Se nos preocupamos com mudança efetiva de sistema, precisamos começar a nos emancipar de conceitos e vocabulários retrógrados. Precisamos instigar novos modos pós-capitalistas de pensar sobre modelos emergentes de provimento e governança por pares. Influenciar novas realidades tem menos a ver com eleger líderes e políticas diferentes do que com apreender a mudar a si próprio, orquestrar uma nova intencionalidade compartilhada e promover uma nova narrativa sobre os commons.

Publicado originalmente em global-e journal of 21st Century Global Dynamics, at UC Santa Barbara.

Publicado sob uma licença internacional Attribution-ShareAlike 2.0 Creative Commons.

1 Garrett Hardin, “The Tragedy of the Commons.” Science (Vol. 162, Issue 3859, 1968), pp. 1243-1248. Para uma crítica do modelo de Hardin, veja Ian Angus, “The Myth of the Tragedy of the Commons”:

http://climateandcapitalism.com/2008/08/25/debunking-the-tragedy-of-the-…

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David Bollier é diretor do programa Reinventing the Commons no Schumacher Center for a New Economics, autor de Think Like a Commoner e co-editor de Patterns of Commoning. Ele bloga em Bollier.org.

 

Por que se evita tanto falar em democracia direta ?

Quem mais ouviu ontem, na Band News FM, o Ricardo Boechat defender a democracia direta, ainda que sem se referir a ela pelo nome ? Pois, ao pleitear que, a exemplo do que já é feito em alguns países, as cédulas eleitorais permitam aos cidadãos, além de escolher representantes, deliberar sobre decisões a serem tomadas em relação a matérias importantes, se referiu inequivocamente àquilo em que se constitui, em essência e em última análise, uma democracia direta – a saber, a voz do eleitor se fazendo valer em todas as matérias de interesse público. Isto é o contrário do que temos hoje, com representantes eleitos a quem outorgamos o direito e o poder de decidir em nosso nome.

No mesmo editorial, o âncora da Band caçoou da única e improvável possibilidade que a população tem hoje de fazer sua vontade adquirir força de lei. Pois, mesmo que alguma causa consiga angariar os milhões de assinaturas requeridas para o encaminhamento de uma emenda popular à constituição, a mesma ainda dependerá, para sua implementação, do endosso de casas legislativas numericamente muito inferiores aos signatários de cada emenda proposta – a vontade de milhões ficando, portanto, sujeita à aprovação de umas poucas centenas.

Esta questão deveria estar, portanto,  juntamente com outras tais como o fim do foro privilegiado e das aposentadorias especiais, rituais mais sumários para cassação de mandatos e criminalização de políticos corruptos ou flagrados em estelionato eleitoral (o não cumprimento do que foi prometido), redução dos salários de políticos, enxugamento de custos legislativos e tantas outras, no âmago de qualquer reforma política. Mas não. Em vez disto, políticos eleitos tentam incutir em eleitores perplexos a impressão de que estão de fato fazendo alguma coisa simplesmente tergiversando sobre a composição de distritos eleitorais. Sob esta cortina de fumaça, tratam de amealhar para suas próximas campanhas eleitorais mais um bocado colossal do orçamento nacional. Tenho, então, que concordar com Boechat quando diz que a reforma política, tal como vem sendo encaminhada, será totalmente inócua, a não ser pela concessão de mais vantagens aos políticos e aos partidos.

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Nomes importam. Muitos ainda se incomodam com a designação de “golpe” à articulação que afastou Dilma do poder por delitos bem menores do que malfeitorias perpetradas pela quadrilha hoje instalada. Pois o que são, afinal, pedaladas fiscais perto da abolição de direitos e flexibilização dos contratos trabalhistas ? Sem falar em propinas milionárias e na compra de votos de parlamentares.  Querem nos fazer acreditar, no entanto, que nos livraremos de tudo isto simplesmente com a “reforma política” que aí está. Ao mesmo tempo, se evita a qualquer custo a popularização da noção de “democracia direta” tão somente por que ela rende óbvia a obsolescência dos representantes eleitos tais como hoje os conhecemos. Esta é uma verdade inconveniente (para os políticos profissionais) protegida a sete chaves.

Daí a necessidade de uma assembleia constituinte soberana e exclusiva (i.e., sem a participação dos atuais congressistas) para a redação, após ampla discussão (que tarefa para os tribunais eleitorais !), de uma nova carta magna da qual sejam expurgadas as mazelas da representação.

Não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que isto venha a acontecer num futuro próximo nem tampouco sem alguma comoção popular, pois a blindagem contra esta ideia é fortemente sustentada pelo congresso e pela mídia, ambos controlados pelo poder econômico. Mas sonhos só possuem alguma chance de se tornar realidade se falarmos sobre eles.

Por que a justiça faz vista grossa ao abismo existente entre os discursos público e privado dos políticos ?

A nação está pasma. Dia após dia, os que ainda tem estômago para acompanhar noticiários tentam desesperadamente entender como uma quadrilha de ladrões e potenciais assassinos confessos permanecem, apesar dos crimes em que se envolvem, à frente do governo. Depois da última onda de prisões e solturas (que mercado para os advogados !), parece consenso que contam, inclusive, com a conivência do judiciário.

Entendo, outrossim, que a falha que permitiu chegarmos à absurda situação atual se encontra, primordialmente, na letra fria da lei. Mais especificamente, no regramento que invalida toda prova obtida por meio de microfones ocultos.

Sob o pretexto de salvaguardar a privacidade dos denunciados, tribunais superiores perdem tempo discutindo se esta ou aquela gravação incriminatória – obtida, no entanto, sem a ciência e o consentimento explícito de um criminoso confesso  – pode ou não ser utilizada como prova em processos contra o mesmo.

Vale a pena nos determos por um instante sobre os termos (tanto a forma como o conteúdo) das últimas falas reveladas do malfeitor, espécie de inimigo público número um (ou dois, vá lá, pois ele ainda não está na presidência da república, à qual é eterno candidato) Aécio Neves. Tenho certeza de que qualquer um que ouça, de um lado, as já célebres gravações reveladas na delação da JBS e, de outro, tanto a peça publicitária de alegação de inocência de Aécio quanto o discurso por ocasião de sua volta triunfal ao senado, não teria a menor dificuldade em identificar, tanto pelo linguajar quanto pelo teor, o que foi proferido pelo senador em contextos, respectivamente, públicos e privados.

Se Aécio fosse uma pessoa comum na qual precisássemos confiar, perderíamos qualquer confiança nele depois de ouvir o que disse quando julgava que suas palavras morreriam ali, sem serem jamais publicadas.

Só que a lei não funciona assim. Enquanto o abismo reconhecido por todo cidadão entre o discurso público e o privado de Aécio é suficiente para que o consideremos um mentiroso notório, a justiça só reconhece como expressão da verdade o que é dito por ele publicamente – como, por exemplo, na tribuna do senado ou em peças publicitárias (videos inclusos neste post) – ignorando, pasmem, suas falas mais comprometedoras proferidas, no entanto, sob o conveniente manto da privacidade.

Deste modo, a mensagem implícita passada pelo poder judiciário a quem quer que ingresse na carreira política pode ser mais ou menos formulada como “cometa crimes à vontade, desde que jamais os assuma publicamente”.

Mais. Tecnicamente, não há qualquer diferença entre as gravações de Joesley e aquelas produzidas diariamente pela polícia entre traficantes e seus cúmplices. Por que umas servem como provas para a condenação de criminosos e as outras não ?

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Cheguei a dizer, de certa feita, que, num mundo perfeito, deveríamos escolher governantes em reality shows nos quais todos os candidatos estariam sob vigilância pública permanente, sempre ao alcance de câmeras e, principalmente, microfones. É claro que isto foi uma piada. Pois todos os políticos de sucesso são, antes, grandes atores e, como tais, não teriam (assim como não tem) qualquer dificuldade em fingirem virtude o tempo todo. Notem, no entanto, que um Big Brother eleitoral assim dificultaria em muito qualquer maracutaia. Pois que outra razão haveria, afinal, para o Palácio do Planalto estar há vários anos sem um sistema de câmeras de segurança a documentar idas e vindas entre gabinetes ?

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Falando sério. Político algum deveria desfrutar de qualquer privacidade, com a qual a figura do “homem público” não passa de um eufemismo. Obviamente, não estou a defender que não tenham direito ao sexo ou à higiene pessoal longe de vistas alheias.  Mas sua privacidade deveria terminar aí, ou não muito longe disto. Pois enquanto a justiça fizer vista grossa às provas irrefutáveis obtidas por meio de escutas camufladas, continuaremos ouvindo protagonistas da política dizendo, com a maior cara de pau, coisas como “isto é calúnia”, “caí numa armadilha” ou “minhas campanhas sempre ocorreram rigorosamente dentro da lei”.