O que é um panóptico

Publicado em 1º de fevereiro de 2013, quando se completam 778 dias de prisão de Julian Assange – sem que qualquer acusação legal tenha sido feita até a presente data – e após 228 anos da idealização do panóptico por Jeremy Bentham, este livro foi composto em Adobe Garamond, 11/13,2, e impresso em papel Pólen Soft 80g/m2 na Yangraf para a Boitempo Editorial, em janeiro de 2013, com tiragem de 10 mil exemplares

Este é o prolixo colofão (texto diminuto, impresso ao pé da última página de um livro, contendo informações sobre o mesmo enquanto objeto físico, independentemente de seu conteúdo) aposto à edição brasileira de Cypherpunks – liberdade e o futuro da internet. Nunca tinha visto nada similar, nem de longe, que agregasse, assim anonimamente, naquele espaço outrossim meramente técnico, tanto significado ao conteúdo de uma obra.

De pronto me pus a imaginar quem, numa cadeia editorial, dispondo de tantos espaços autorais (como orelhas, contracapa, prefácio, apêndices e afins), ousaria perverter tanto aquele lugar normalmente dedicado a informações gráficas neutras, de ordem exclusivamente técnica. Divagação, todavia, inútil. De modo que, em seguida, tratei de descobrir do que se trata, afinal, um panóptico.

Em poucas palavras, panóptico é um modelo arquitetônico prisional, idealizado pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1785, no qual todas as celas podem ser permanentemente observadas a partir de uma torre localizada no eixo central de um prédio cilíndrico, atendendo ao princípio de máxima vigilância com esforço mínimo.

Um detalhe importante do panóptico de Bentham é que, devido a persianas ou venezianas que revestem as janelas da torre de vigilância, não é possível a cada preso, ainda que podendo ser permanentemente vigiado, saber efetivamente quando o está sendo. A autocensura decorrente desta condição é tida como o principal efeito disciplinador do panóptico.

Por razões que não vem ao caso, o modelo não se popularizou. O único panóptico que já foi construído nos EUA está em ruínas – e a ideia estaria definitivamente sepultada não fosse sua apropriação por Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), para descrever a sociedade disciplinar. Desde então, muitos a vem adotando, particularmente teóricos das novas tecnologias, como Pierre Lévy e Howard Rheingold (e, inclusive, o próprio Assange) como metáfora perfeita para a vigilância invisível da internet por seus controladores.

Por uma web semântica

Hoje, ao abrir o facebook, me deparei com duas postagens independentes, por pessoas que talvez nem se conheçam entre si, mas que propagavam, essencialmente, uma mesma mensagem. Foram elas

e

postadas, respectivamente, por Elena Romanov e Manuelai Camargo. Ambas expressam uma realidade, conquanto sutil, bem importante e atual – o que me levou, de pronto, a ponderar sobre o quão benéfico seria, para a aglutinação e posterior discussão de ideias, um modo automático de detecção de conteúdos relacionados, capaz de aproximar estranhos entre si que partilhem preocupações comuns.

Tal objetivo é perseguido pelo filósofo e cientista da informação (os rótulos são meus) Pierre Lévy, professor da Universidade de Paris 8, nascido na Tunísia. Sem conhecer detalhadamente o estado atual de seu grupo de pesquisa, sei apenas que almeja uma internet inteligente, capaz de operar automaticamente com significados sem intervenção humana. Sem sombra de dúvida um importante passo a ser dado em relação à inteligência artificial.

Os mais céticos e/ou argutos hão de dizer: ” Ora, mas isto já existe ! “, alegando que os hashtags (#) apostos a enunciações – utilizados, primordialmente, para medir trending topics – dão conta desta tarefa. Só que esta constatação apressada não leva em conta que hashtags são atribuídos por humanos pretendendo incluir seus pitacos num todo maior. E mesmo que usuários de redes sociais se abstivessem de rotular suas falas, deixando aos próprios algoritmos a tarefa de caçar palavras comuns capazes de relacionar o que cada um diz a uma “conversa” maior, tal expediente seria ainda muito limitado em relação à utopia vislumbrada por Lévy. Vejam, por exemplo, os dois “memes” acima, obviamente relacionados.

Neles, ainda que se esteja falando da mesma coisa, não há qualquer palavra comum a ambos capaz de relacioná-los automaticamente. Pois notem que, enquanto o primeiro menciona uma expressão calabouço, plenisignificante – a saber, anti-intelectualismo – o segundo a caracteriza perfeitamente por meio de uma série de exemplos sem, no entanto, recorrer a mesma sequer uma vez.

Então, até que uma verdadeira ferramenta algorítmica esteja disponível, preocupações importantes como esta caminharão paralelamente por um longo tempo, sem que seus portadores se conectem, até que, por obra do acaso ou alguém que a priorize, se torne um movimento que venha a realizar alguma ação concreta contra esta tendência tão nefasta.

* * *

Pierre Lévy já esteve no Brasil várias vezes, tendo, inclusive, participado do Fronteiras do Pensamento e sido entrevistado no programa Roda Viva. Há uma miríade de vídeos disponíveis com suas falas – razão pela qual eleger um, para fins ilustrativos, constituiria não mais do que um recorte arbitrário e reducionista. Por isto, deixo o grau de aprofundamento em seu pensamento a critério da vossa curiosidade – sugerindo apenas que pesquisem, além de seu nome, o conceito de web semântica que lhe é tão caro.

Os blogs estão morrendo ?

Hossein Derakshan

Semana passada, Idelber Avelar, que dispensa apresentações, compartilhou um post de um blogueiro iraniano, Hossein Derakshan, que permaneceu ca. 6 anos preso pelo regime de seu país. Conversando com Milton Ribeiro, vim a saber se tratar de um post clássico.  Conferi. Lá pelo rodapé, se informava que sua tradução para o português fora publicada por uma revista mineira em 2015.

Nele, Derakshan lamenta a transformação sofrida pela internet durante o tempo em que permaneceu na prisão. Por volta do início dos anos 2000, a rede mundial se apresentava como um ecossistema de blogs, conectados e dialogando entre si por meio de uma malha de hyperlinks – imunes, deste modo, a qualquer controle por parte de alguma força ou poder central. O que encontrou, no entanto, ao sair da prisão, foram redes sociais de propriedade de grandes players tecnológicos dedicadas a prover seus usuários com feeds ou timelines sequenciais, determinadas por algoritmos especializados em auscultar e satisfazer as supostas preferências de cada usuário de modo a induzi-los a permanecer cada vez mais tempo nestas plataformas ao invés de, como antes, saltarem livremente de blog em blog.

Deste modo, seu célebre post, intitulado “Salve a Internet”, bem poderia se chamar “A morte da blogosfera” ou, mais genericamente, “A morte do hyperlink“. Numa de suas conclusões mais desoladas, Derakshan chega a equiparar  o  facebook à televisão.

Logo que passei rapidamente os olhos pelo texto, me deparei com algo que me pareceu, inicialmente, uma vulnerabilidade do argumento. Repetidas leituras não tardaram a me convencer, entretanto, de que o autor estava, na maior parte do tempo, coberto de razão. Posto ser inegável que a internet, inicialmente uma promessa de libertação da dominação imposta pelos broadcasting media, pouco a pouco se tornou um lugar onde poucos e gigantescos players formatam a informação que a maioria consome. De sorte que, temporariamente, abandonei o propósito de examinar um pouco mais de perto premissas que, de início, me pareceram superficiais ou apressadas. Ao mesmo tempo, me tornei um fã de Derakshan e, de imediato, um combatente em sua cruzada por uma internet mais democrática.

* * *

Uma partícula de seu texto permaneceu, no entanto, reverberando em minha mente. Mais exatamente, quando diz, em tom de espanto, que, ao retomar, num surto de entusiasmo, à atividade blogueira ao sair da prisão em 2014, tudo o que sua super motivada escrita angariou, ao ser divulgada no facebook, foram três curtidas. O que o levou a concluir que, comparativamente a índices anteriores a seu encarceramento em 2008, sua audiência teria minguado drasticamente. Em seguida, culpa as redes sociais em geral e o facebook em particular pelo suposto declínio, em razão de uma suposta seletividade maligna de seu algoritmo.

Notem que, no parágrafo acima, uso o adjetivo suposto(a) duas vezes: primeiro em conexão com o declínio de audiência presumido pelo número de curtidas; depois, associado a alguma seletividade ideológica do algoritmo do facebook. Vejamos, então, por partes.

Ora, qualquer exame rápido das estatísticas de visitação de um blog é capaz de mostrar que o número de visualizações de um post supera em muito o número de curtidas da divulgação do mesmo em redes sociais. Deve ter a ver com a velocidade do feed, que faz com que muitas vezes não tenhamos tempo de curtir o compartilhamento por outrem de páginas que abrimos e lemos, na íntegra ou, na maioria das vezes, em parte.

Sobre a tal seletividade maligna do algoritmo. Ok, acredito em fantasmas e também em muitas teorias conspiratórias. Mas daí para se dizer que o facebook ou congêneres censuram deliberadamente os conteúdos que mostram em razão de posições políticas implícitas nos mesmos, menos. Bem menos. É claro que isto corresponderia ao ideal de muitos vilões de distopias da ficção científica.  Acredito, sim, que algoritmos possam identificar com alguma precisão a índole ideológica de textos compartilhados. Só que dificilmente isto se daria por algum tipo de análise semântica residente em alguma inteligência artificial. Não, ao menos, antes da implementação prática da web semântica sonhada por Pierre Lévy.

Então, é muito mais provável que o caráter ideológico de cada postagem seja determinado não pela leitura e interpretação automáticas de cada texto (imaginem o tempo e a capacidade de processamento que isto consumiria !) e sim pela mera quantificação aritmética de quem curte ou repudia cada publicação. Sabendo-se a inclinação política de cada usuário (o que não deve ser nada difícil), fica igualmente fácil, então, atribuir um rótulo ideológico àquilo que cada um curtiu ou execrou. Mais uma teoria conspiracionista ? Pode até ser. Só que bem mais verossímil, no entanto, do que robôs super inteligentes interpretando o que dizemos.

Postas estas ressalvas, cabe admitir que, conforme acredita Darekshan, seus posts escritos de 2014 em diante podem, de fato, estarem sendo lidos por um número significativamente menor de pessoas do que aqueles escritos antes de 2008. Nem tanto, todavia, em razão da recente centralização da internet em torno das plataformas de redes sociais (que ainda discutiremos neste post) mas, simplesmente, pelo crescimento exponencial da quantidade de blogs existentes desde seu surgimento até os dias que correm.

Até o momento, não obtive nenhum retorno de minha solicitação, pelo facebook, de um gráfico que desse conta deste crescimento. Mas as informações contidas na wikipedia falam bem alto. Quando surgiram, por volta de 1999, havia ca. 50 blogs; no final de 2000, já chegavam a poucos milhares; menos de três anos depois, saltaram para algo entre 2,5 e 4 milhões; hoje estima-se que existam em torno de 112 milhões e que 120 mil seja criados diariamente. Como eu disse, são números eloquentes.

Pensem agora na disputa entre todos estes sites na economia da atenção. Nos primeiros anos da blogosfera, todo autor era uma espécie de celebridade, representando posições independentes e/ou dissidentes em relação aos broadcasting media. Darekshan deixa isto bem claro ao afirmar que “Blogs valiam ouro e blogueiros eram como estrelas de rock quando eu fui preso em 2008.” Ora, é perfeitamente natural, então, que, com a pulverização do número de blogs de lá para cá, quando todo internauta se tornou um blogueiro em potencial, a audiência de cada blog tenha ficado restrita, salvo raras exceções (os tais blogueiros que são como pop stars), a um número progressivamente menor de leitores.

Meu amigo Milton Ribeiro costuma dizer, acho que como consolo a blogueiros neófitos, que a audiência espantosamente mais numerosa de seus blogs se deve fundamentalmente ao fato de já estarem no ar há bastante tempo; ouso duvidar disto, afirmando que seus blogs desfrutam de uma base privilegiada de leitores principalmente em razão dele ter começado quando ainda havia menos, muito menos blogs disputando a atenção de leitores. Quem tem razão ? O futuro dirá. Se daqui a dez ou vinte anos blogs que começaram hoje tiverem a audiência da qual Milton desfruta agora, ele terá razão. Se, no entanto, ostentarem números bem mais modestos, terei eu. Tanto faz, pois nem sei se haverá blogs até lá.

Não acho, no entanto, que o declínio assombroso da audiência dos blogs reflita alguma espécie de caduquice do meio mas, antes, uma irrefutável comprovação da realização de seu ideal – que é, ao menos segundo o que acredito, a possibilidade utópica de que todo e qualquer indivíduo tenha seu próprio lugar de expressão independente e omniacessível, para muito além dos limites de seu círculo pessoal. Já que, a rigor, qualquer um no domínio da linguagem e de alguma habilidade tecnológica (o primeiro é bem mais difícil do que o segundo) pode ter, a custos irrisórios ou inexistentes, seu próprio cantinho no ciberespaço. Outrossim, o anacrônico desejo, explícito ou não, de se tornar uma voz que se erga sobre as demais é, em 2017, absolutamente demodé.

Aqui, devemos falar sobre a incompreensível mania, que não obstante alimenta os sonhos de muitos, de tornar a atividade blogueira algo rentável ou até uma profissão em si. O que é tão óbvio e mesmo ridículo para qualquer um que entenda minimamente a economia da atenção num contexto saturado como o ecossistema de blogs em crescimento exponencial, não parece ser, no entanto, para alguns visionários ou, simplesmente, oportunistas. Por isto, me divirto todos os dias com as dicas monetizadoras de um site chamado Viver de blog, cujo nome é autoexplicativo. Tenho ganas de conhecê-lo. Seus cases de sucesso, ao menos. Só ainda não tive paciência.

Teimoso que sou, continuo achando que quem quer ser um broadcaster e investe num blog está apostando suas fichas no lugar errado. Pois blog são, idealmente e antes de mais nada, células expandidas e interconectadas pertencentes a uma rede neural – cujo poder (no caso, o conhecimento armazenado) reside, antes, distribuído na extensão da rede do que em quaisquer de suas células em particular. Se a proeminência de algumas delas sobre as demais se exacerbar, enfraquecem as conexões, morre a rede e, com isto, todo o conhecimento nela armazenado.

* * *

Como sugeri acima, não acredito que redes sociais sequenciais como o facebook estejam matando na internet sistemas distribuídos como a blogosfera. Tampouco acredito que o facebook conspire contra a ecologia dos blogs ao não facilitar, em suas postagens, a inclusão de hyperlinks. Ao contrário, não apenas o facebook se constitui na mais poderosa ferramenta que conheço para a difusão de publicações em blogs, como facilita tremendamente a inserção de hyperlinks. Como ? – devem estar a me perguntar. A resposta é simples: nos comentários. Então, fica a dica. Se vocês estiverem se sentindo muito limitados por não poderem incluir em cada postagem no facebook mais do que um único hyperlink (o qual será generosamente destacado pelo algoritmo, inclusive com a possibilidade de seleção de uma imagem ilustrativa), basta incluir quaisquer outros no thread de comentários sob a postagem, à razão de um comentário para cada hyperlink que você queira destacar, que o facebook se encarregará do resto, mais facilmente do que em qualquer editor de blog.

É claro que a propalada seletividade do facebook não é nenhum segredo – seu vestígio mais emblemático sendo a configuração default “mais importantes” no canto superior do site, em “feed de notícias” – contra cuja persistência vitupera repetidamente meu amigo Marcos Abreu, mas que pode, no entanto, ser facilmente comutada para “mais recentes”. Por meio deste singelo ajuste, nos tornamos imunes ao intrometido algoritmo que insiste em mostrar o que ele julga “mais importante”.

Mas não é só isso. Autores como Harari bravejam contra a profusão de gatinhos fofos que somos obrigados a ver, volta e meia, na timeline. A resposta a este ranço é um tanto quanto óbvia, pois se os tais gatinhos insistem em aparecer diante de nossos olhos, detemos a responsabilidade exclusiva por convidar ou aceitar amigos que os postam. Não precisaria falar mais disto, mas nunca é demais lembrar que:

1) praticamente todas as postagens em redes sociais pertencem a uma das duas seguintes categorias:

lifecasting – postagens que dão conta do cotidiano de cada um, no intuito de glamourizá-lo, mas que são quase sempre irrelevantes para os outros. Ex.: pratos de comida sem as respectivas receitas; e

mindcasting – postagens, sob a forma de textos na primeira pessoa ou links compartilhados, que trazem em si algum fato ou ideia e buscam angariar apoio, sob a forma de concordância, ou desaprovação para os mesmos.

É, portanto, por meio de postagens de mindcasting que as melhores discussões se materializam em redes sociais.

2) redes sociais podem (ia escrever “e devem” mas, pensando bem, isto fica a critério de cada um) ser configuradas por usuários como personal learning networks (PLNs) – que é uma forma de descrever aquelas redes que congregam perfis notabilizados por compartilharem conteúdo informativo ou crítico.

Ora, configurando nossas redes como PLNs, por meio da análise criteriosa de quem admitimos em nossos timelines, privilegiamos a inclusão de sujeitos mais comprometidos com o mindcasting do que com o lifecasting e asseguramos, com isto, a manutenção de um, vá lá (dando algum crédito a Derakshan), canais de TV altamente customizados, informativos e provocativos.

* * *

PS: Depois que terminei de escrever este post, Jean Scherf postou no facebook, em resposta a minha enquete, o seguinte gráfico:

Comentários anteriores e posteriores à minha diatribe contra Carmina Burana, precedidos por anotações sobre o uso que fazemos de blogs e redes sociais

carmina-burana-4

Já devo ter dito em algum lugar deste blog (até por que a ideia não é nada original) que, tivesse vivido em nosso tempo, Mikhail Bakhtin (1895-1975) teria se esbaldado analisando os tipos de discurso produzidos na web a partir dos princípios que formulou. Segundo sua teoria, todo discurso, lacônico ou prolixo, se relaciona com outros existentes por meio de nodos que representam a alternância entre falantes. As falas contidas entre um nodo e outro, produzidas por um único autor, são chamadas de discursos monológicos – o “grande romance” como seu mais típico e monumental exemplo; enquanto aqueles constituídos por falas de vários autores, em concordância ou oposição, são considerados dialógicos.

Ora, esta dicotomia cai como uma luva para classificar a algaravia da internet. De tal modo que, enquanto o que se escreve em blogs é essencialmente monológico – com um elevado grau, portanto, de controle autoral – já as plataformas de redes sociais primam por facilitar discursos mais interativos, com falas menores de um maior número de autores (nelas chamados de comentaristas), engendrando discursos dialógicos nos quais o controle do autor (raramente exercido) se limita, quando muito, à remoção de comentários considerados, por quaisquer razões, indesejáveis por quem inicia a conversa.

Desta distinção resulta que, enquanto o texto em (bons) blogs costuma ser mais linear e enxuto, com uma série de silogismos perfeitamente encadeados do início até o fim de cada post, em redes sociais o discurso tende a ser mais errático, interrompido aqui e ali por possíveis linhas de argumentação logo abandonadas, a confundir leituras mais objetivas. Tal é o estado das coisas ao menos até a implementação de uma web semântica, idealizada por Pierre Lèvy, que tratará de identificar e agrupar automaticamente enunciações pertencentes a uma mesma categoria. Até que isto aconteça, todavia, é recomendável a todo sujeito se fazer presente, com finalidades diferentes, tanto em blogs como em redes sociais, utilizando os blogs em busca de maior introspecção ou para a sedimentação de linhas argumentativas mais complexas e as redes sociais como local ideal por definição tanto para a difusão como para a colisão de ideias.

Já disse acima que blogs são mais afeitos ao que é comumente conhecido por “textão”. Com efeito, o textão constitui uma espécie de limite tácito àquilo que podemos postar numa rede sem grande risco de incomodar quem lê. O tamanho do que é considerado textão varia, é claro, de uma pessoa para outra muito em razão do tamanho daquilo com que cada um acha aceitável se deparar em sua timeline, a clamar por atenção. Recentemente, se tornou popular um tipo de disclaimer de textão, como uma tarja de advertência a quem se dispuser a clicar no botão “ler mais” que o facebook, muito convenientemente, disponibiliza logo após as primeiras linhas de qualquer texto parcialmente ocultado por seu algoritmo.

Outra grande distinção entre os blogs e as redes é que as últimas são imensamente mais interativas do que os primeiros, a julgar pela grande diferença entre o número de comentários postados nuns e noutros. Além disto, comparando-se a visitação inicial a cada novo texto postado num blog com o número de curtidas da divulgação do mesmo numa rede social, também se pode inferir que postagens em redes sejam bem mais visualizadas do que aquelas em blogs. Então, se afigura com uma estratégia bastante útil divulgar em redes sociais cada nova postagem em um blog, no intuito de atrair para o último parte do público que vê o que é postado nas primeiras.

Por fim, é preciso ressaltar que a permanência de tudo o que se escreve num blog é muito maior do que a de tudo o que é dito exclusivamente em redes sociais – que são, por natureza, voláteis, i.e., tudo o que nelas se publica tende a ser rapidamente esquecido em favor de postagens mais recentes.

Por tais razões, utilizamos os blogs, primordialmente, para

desenvolver, num discurso monológico, argumentações mais complexas; e, secundariamente,

conferir maior permanência a falas que emergem em redes sociais cujo interesse seja, no entender do blogueiro, mais duradouro. Por isto, transcrevemos, abaixo, dois threads (desculpem o anglicismo, mas não encontrei, até o momento, uma tradução suficientemente boa para a expressão) de comentários, respectivamente, anteriores e posteriores à publicação neste blog, dias atrás, de uma diatribe contra a cantata Carmina Burana, de Carl Orff (1895-1982).

* * *

Notas sobre as transcrições:

1) Em tempos distantes, quando eu frequentava o twitter e sequer conhecia o facebook, tive pela primeira vez a ideia de perpetuar num post, em meu primeiro blog, uma conversa que mantive numa rede social que achara particularmente interessante. Tão logo divulguei a postagem, uma blogueira (sic !) cujas falas na rede social eu citara em meu blog reclamou por ter se sentido indevidamente exposta ao ver o que dissera, de modo espontâneo e casual, descontextualizado e cristalizado num meio mais permanente. Algo parecido, suponho, com a distinção que alguns fazem entre a palavra falada e a escrita. Acatei e removi prontamente. Do mesmo modo, me prontifico a retirar deste post quaisquer comentários que venham a ser considerados por seus autores como indevidamente publicizados. Em ocasiões anteriores, busquei autorizações expressas de todos que pretendia citar. Só que, aqui, como os comentaristas são tantos, optei por publicar e só depois remover falas cujos autores se sintam, por qualquer razão, incomodados. Há comentaristas habituais que sei não se importarem com a ampliação da visibilidade de suas falas. Mas pode bem haver entre eles, igualmente, aqueles que talvez não considerem suas falas em redes sociais como públicas. A estes, I humbly apologize.

2) Logo que constatei a grande profundidade e relevância de alguns comentários para a discussão que iniciara, hesitei em relação a publicar tais threads no blog. Só, no entanto, até o Milton me pedir que o fizesse. Novo impasse: transcrever os threads na íntegra ou, ao contrário, editá-los, deles removendo a conversa mais casual e pinçando só as falas que julgasse mais relevantes ? Tão somente por não ter conseguido estabelecer um critério de corte, escolhi publicá-los na forma bruta, sem edições. Ainda não sei se foi a melhor opção.

* * *

Os comentários seguintes foram postados sob um desabafo que fiz, no facebook, em relação a estar tocando Carmina Burana. Para que os mesmos façam mais sentido, transcrevo também, inicialmente, meu desabafo – praticamente um textão – responsável por desencadear a conversação.

Augusto Maurer Carl Orff é um fenômeno totalmente supérfluo e colateral à história da música, sequer constando em alguns compêndios. Ouvi dizer que era nazista e batia na mulher. Desgraçadamente, uma de suas duas únicas composições (se é que dá prá chamar assim aquelas formas repetitivas de alguém que provavelmente jamais aprendeu a modular de uma tonalidade a outra (que se dane a desculpa de que era modal: já ouvi muita música modal bem inteligente)) caiu definitivamente no gosto popular – empatando somente com, talvez, o Bolero de Ravel. Para seus maiores entusiastas, se confunde com a própria origem do rock sinfônico.

Dito isto, dou por cumprido meu triste dever de participar que, no próximo fim de semana, a OSPA tocará, no auditório Araújo Vianna, a controversa Carmina Burana. Pois, é preciso admitir, a coisa tem seus apreciadores. Méritos ? Não sei.

Magda Sarmento A opinião de quem entende de fato, é para nos fazer pensar, Sidney.

Sidney Lima [emoticon]

Milton Ribeiro Carl Orff recusava-se a falar publicamente sobre seu passado. Era oriundo de uma família da alta burguesia bávara, muito ativa na vida militar alemã… Embora a associação de Orff com o nazismo nunca tenha sido comprovada, Carmina Burana tornou-se muito popular na Alemanha nazista depois de sua apresentação na cidade de Frankfurt, em 1937. Depois da Segunda Guerra Mundial, Orff alegou ter sido membro da resistência, mas não há evidências disso.

Fabio Zanon Uma das maiores desgraças da música do século XX é esse troço ainda permanecer no repertório.

André Luiz López Cardozo  “Não concordo com nada que dizes, mas respeito até o fim teu direito de dize-lo”

Milton Ribeiro Agora, a música é uma TREMENDA BOSTA.

André Luiz López Cardozo não confundam “juízo de gosto” com “juízo de valor”

Augusto Maurer Exatamente ! Nunca disse não gostar de Carmina Burana – e sim que, por qualquer critério técnico, ela não vale nada !

Ricardo Branco Eu acho esta música chatissima. Começa legal, a Fortuna Imperatrix Mundi, mas depois é um estupor.
Quando levei um pessoal não muito afeito à música de concerto ouvi-la e dishe-lhes depois que a desgostava, quase apanhei.

Fabio Zanon Isso acontece porque o nível de exigência auditiva só se compara a um rock de quinta categoria. Melodia modal (sempre o mesmo modo, sempre usado da mesma maneira), ritmo fácil, máximo de 3 acordes, muita repetição, bateria fazendo bastante barulho, a mesma melodia não importa a letra. Os Beatles são Bach comparando com isso.

Milton Ribeiro Perfeito !

Augusto Maurer É preciso, então, suponho, vê-la em perspectiva: comparada ao resto do repertório sinfônico, é mesmo uma bosta; mas, talvez, para quem nunca (ou quase nunca) ouça orquestras, deve impressionar.

Fabio Zanon Porque a orquestra sinfônica é um dos pináculos da criação humana. 100 pessoas tocando harmoniosamente no mesmo ritmo fica bonito até com música ruim.

Adroaldo Bauer Corrêa Bem mais recentemente ganhou letra em homenagem crítica ao provecto marido da Marcela. Prepare-se pra eventual interação de platéia incontida e pouco reverente.

Augusto Maurer Compartilha, Adroaldo Bauer Corrêa ! Em nome da ilustração do público.

Adroaldo Bauer Corrêa Fá-lo-ei, Augusto Maurer.

Augusto Maurer (mesóclise de dar inveja ao marido da Marcela…)

Ricardo Branco Eu acho que justamente a repetição, pouca variação e barulheira agrada ao público em geral.

Fabio Zanon Precisamente, igual a rock de quinta, sertanejo universitário, funk etc.

Milton Ribeiro O Sar…to…ri..! BUM!

Augusto Maurer Obrigado, amigos ! Nada como dizer algo polêmico para ter, instantaneamente, a atenção de algumas das pessoas mais inteligentes que conheço !

Augusto Maurer (notem que, quando devidamente provocados, escreveram, colaborativa e espontaneamente, o melhor anti-release que já vi. Por essas e outras estou no face…)

Gabriela Vilanova Maestro, tenho acompanhado seus artigos no jornal e que bom saber notícias suas. Foi com o senhor que fiz meu primeiro festival onde tocamos a oitava de Beethoven. Muita emoção pra quem tem 13anos!!! Eu era violinista na época. Toco na Ospa há 8 anos! Abraço

Fabio Zanon O maestro Osvaldo bem aponta que é a obra mais conhecida do autor. Ainda bem, porque as desconhecidas são ainda piores. Assisti uma vez a Der Mond e acho que preferiria ficar uma hora na cadeira do dentista.

Martin Muehle Conforme o Prof. Celso Loureiro Chaves, Carmina Burana teria similaridades questionáveis com obra As Bodas de Stravinsky composta anteriormente….

Osvaldo Colarusso é um xerox não autenticado de Les Noces

Fabio Zanon Se a gente considerar um Fiat 147 um xerox de um Camaro…

Milton Ribeiro Fabio Zanon HAHAHAHAHAHAHAHA

Angelo Metz Acho que é o unico assunto em que eu e Celso concordamos na vida. hehehehe

Ricardo Branco Olha, de fato tem algumas lembranças. Não sou músico, tampouco toco instrumento. Gosta das bodas, muito. Seria uma versão muito piora da?

Martin Muehle Ou seja, um plágio descomunal

Charlles Adriano Campos Sempre odiei Carmina Burana. Acho de uma breguice sem igual.

Carlos Sell Com certeza algo ficou em falta na minha educação musical! Eu adoro essa peça desde a infância, praticamente cresci ouvindo a interpretação do Seiji Ozawa! Mas enfim, o mundo é diverso né? Abraço!

Ricardo Branco Como leigo, eu acho que música uma arte ímpar. Às vezes, ela nos pega por algum , remete a situações que nem mais lembramos. Talvez não gostemos pelos mesmos motivos, sei lá

Paulo Paranhos Jr. gosto de ler o que meu amigo e colega Augusto Maurer escreve. Seus textos sempre me fazem ter que ler e reler pra eu ter certeza do que ele quis dizer…e isso faz meu cérebro criar mais ligações neuronais….

Paulo Paranhos Jr. e,particularmente, também acho meio chata essa música.

Damián Keller Nada como a mediocridade composicional para se transformar em referência da educação musical.

Wilfried Berk Carl Orff na wikipedia

Norberto Flach E daquelas músicas para festa com foguetório, gostas?

Omar Gianlupi Carlo Gianlupi, ler os papos cabeças.

Rodrigo Nassif Essa Carmina é de Passo Fundo , que nem eu?

Júlio César Apollo Há música para músicos e estetas e há música para as pessoas comuns do povo. Levar o povo ao concerto é algo que Orf faz com sua música brega e chata muito melhor do que Bach, Haydn ou Josquim. Que o digam o Sr. Rieu e os Lima.

Augusto Maurer Não concordo com esta categorização da música segundo seu suposto público alvo. Até por que, em nome dele, todo o pop foi cometido. Por isso, prefiro pensar em música boa ou ruim. Segundo critérios bem objetivos e demonstráveis. Coisas como ambição formal ou amplitude harmônica. De modo que não concordo com máximas simplistas do tipo “gosto não se discute”. Se discute, sim. E quanto mais se comparar, melhor.

Fabio Zanon Tem milhares de pessoas que dedicam suas vidas à música de Bach ou Haydn. Eles têm algumas das obras que definem a cultura ocidental e são consenso entre músicos e público há 200 anos. Orff tem somente uma música que ainda é executada, que cria lá seu efeito. Bach é um universo em música. Bach vende milhões de discos e downloads. Orff não.

Júlio César Apollo Fabio Zanon, todos sabemos disso. Mas proponho um desafio, um concerto maravilhoso e digno com a Arte da Fuga e um outro com Carmina Burana. Qual venderia mais ingressos? Eu tenho dúvidas, mas suspeito qual seria o resultado. Ah, e tem pessoas que dedicam-se à Josquim também que foi um dos maiores.

Júlio César Apollo Augusto Maurer, eu também acho que gosto se discute e que qualidade é perfeitamente demonstrável. Mas basta olhar em volta e ver e ouvir a diversidade musical. Tem público para tudo. E uma grande e competente orquestra mantida com dinheiro de todos os gaúchos deve tocar para todos os gaúchos.

Augusto Maurer Se venda de ingresso e preferência do público fossem critério estético, a arte não existiria. Imaginem, por exemplo, um futuro distópico onde só houvesse gente como, sei lá, Rieux ou os Lima. Ou Romero Brito.

Fabio Zanon Júlio César Apollo, você pegou um exemplo particularmente extremo. A Arte da Fuga nem é música para se tocar em público, é de um músico para outro. Idem Josquin. Isso é música de nicho. Mas, vamos combinar, se formos pensar em música para grandes plateias, levanta-defunto, tem milhares de composições decentes de gente decente. Qualquer Abertura 1812 é um monumento à sutileza comparada a Orff. Na verdade, não vejo problema em que ela seja apresentada ocasionalmente. O negócio é o que o Colarusso falou, ela é o tipo de música que se programa tropegamente, sem ensaiar direito, para atrair artificialmente um público que não vai voltar nunca pra ouvir outra coisa. Acho até que mereceria ser encenada, da forma como Orff a concebeu (só que não tão cafona e datado quanto este vídeo):

Júlio César Apollo Conheço o vídeo, acho chato até o Hermann Prey que gosto está meio sem graça.

Júlio César Apollo Entretanto as moças com os seios nus no laguinho ficou carimbada na minha mente.

Angela Maria Bordini Nogueira Até onde sei Carmina Burana vem da Idade Média. Carl Off juntou os temas e letras. Há letras ótimas. Aquela das moças convidando os moços pra namorar, por exemplo. Minha professora ( século passado) de Português Medieval- galego português- dizia que as moças levantavam as saias e cantavam em frente às igrejas 🙂 Mas aquela língua ninguém entende bem, não ė ?

Milton Ribeiro Sim, o que cantado é de muito alto nível, o que é desmanchado pela música.

Milton Ribeiro Aquele O Fortuna tem a seguinte tradução:

Oh, sorte
És como a lua
Estado variável
Sempre crescendo
Ou decrescendo
Vida detestável
Primeiro oprime
Depois alivia
A mente só por diversão
Pobreza
Poder
Dissolvem como gelo
Destino monstruoso
E vazio
Tu, Roda da Sorte
És malevolente
Bondade em vão
Que sempre leva a nada
Obscura
E velada
Também me amaldiçoaste
Agora – por diversão
Trago o dorso nu
E entrego à tua perversidade O destino da saúde
E virtude
Agora me é contrária
Dás (afeto)
E tiras (afeto)
mantendo sempre escravizado
Então agora
Sem demora
Tange a corda vibrante
Porque a sorte
Extermina o forte
Chorais todos comigo

Milton Ribeiro Roubei a tradução na rede, tá?

Angela Maria Bordini Nogueira Depois vou procurar o encarte da gravação aqui. As traduções são boas. E quem quiser gostar que goste. Sou simples. Gosto até de alguns funks :))

Angela Maria Bordini Nogueira Hoje não tenho mais interesse em ouvir Carmina Burana. Mas já gostei.

Milton Ribeiro Angela Maria Bordini Nogueira, defina “simples”. 🙂 Acho que tu não és simples na acepção que utilizaste.

Angela Maria Bordini Nogueira Receptiva, menos crítica. Não tenho a cultura musical de vocês.

Milton Ribeiro Sim, porque literariamente tu és sofisticadíssima.

Angela Maria Bordini Nogueira Imagine, sou não.

Milton Ribeiro Ok, vamos brigar. 🙂 É SIM!

Angela Maria Bordini Nogueira Só quero agradecer o que aprendi de música clássica com você: ) Grata.

Maria de Abreu E o que dizer desta união, hein, hein???

Herta Elbern Pois não é que a “forma repetitiva” ajudou a reforçar o coro!

Júlio César Apollo Esse povo que canta fora Temer ficou sempre quietinho quando a dilma e o lula saquearam a nação.

Herta Elbern Paz e amor, bicho!

Harold Emert Sinto equal de voce Augusto tocando Wagner…mas a musica e fantastica…Waget era antes De Hitler mas tocando sua musica menos o meistersinger sinto o cheiro De Nazismo..mas os Grandes como Levine e baremboim judeus tambem nao pensam assim …

Ricardo Melo Dá-le, Augusto!

Herta Elbern Flávio Leite! Concordas?

Cristina Maria Capparelli Gerling Todo ser humano passa meses na barriga da mãe ouvindo uma percussão em altíssimo volume que regula o coração e outras funções básicas da sobrevivência, assim quando o humano nasce fica com saudade daquela barulheira toda. Só isso explica a atração por músicas como Carmina Burana, Bolero e roque pauleira desenfreado. Sim, tem seus momentos mas é barulheira destinada a nos levar ao transe coletivo.

Augusto Maurer Ótima análise, Cristina ! Nunca a tinha ouvido Carmina ou rock sob este prisma.

Cristina Maria Capparelli Gerling Veja se te interessa: “Lost in time” but still moving to the beat

Nelson Fiedler Tenho gostado bastante das novas vertentes do tech house . E principalmente das novas criacoes em cima da linha hip house . Acho q a musicalidade nesta 2a decada do 3 milenio esta a caminho de ser comparada aos anis 80 …o q acha ? Abracos neo

Nelson Fiedler Quanto ao Orff concordo com vc

André Luiz López Cardozo sentimentos e sensações atávicas, pertencentes ao coletivo, são despertadas por essa cantata, com certeza, Cristina Caparelli…

Claudia Antonini Bem, entendo o debate mas não curto o preconceito que ironicamente o permeia. Não pensem que eu não percebo perfeitamente que é uma música menos sofistica, menos complexa, que tem “empréstimos” de outros compositores, etc, não é uma caixinha de jóias. Eu também gosto de música complexa e sofisticada, mas, nem por isso, deixo de gostar de ópera, outro gênero sobre o qual abundam preconceitos. Por outro lado, também acho legal o transe coletivo de um espetáculo de som, luz e dança e entendo que a Carmina Burana permite este tipo de vivência. Me divirto assim como faria numa experiência catártica dentro de uma bateria da Escola de samba ou de um show antigo dos Titãs no qual se pulava durante 3 horas e depois se ficava surdo por 3 dias. Acho, alem disso, que como trilha ela funciona muito ou não teria sido usada em tantos filmes legais. Excalibur (1981) de John Boorman, Assassinos por natureza (1994) de Oliver Stone, Detroit Rock City (1999) de Adam Rafkin, e A Filha do General (1999) de Simon West, são alguns deles. São filmes excelentes. Também fico pensando em como ter uma experiência de potência catártica neste tipo de espetáculo sem a potência de uma orquestra de boa dimensão. Enfim, muitos mas…

Claudia Antonini Angela Maria Bordini Nogueira

Fabio Zanon Não é o problema de se valorizar somente música complexa ou sofisticada. Schubert não é sempre complexo, Verdi não é sempre sofisticado, Tchaikovsky não é sempre sutil, Liszt não é sempre de bom gosto, Villa-Lobos nem sempre é intelectualizado, música minimalista nem sempre e musical, mas é música genuína. Carmina Burana é uma música cuidadosamente planejada para ser tosca, é a única obra escrita sob o regime nazista que ainda se toca (claro, se considerarmos Richard Strauss um conservador independente). Alex Ross diz que a sua utilização em inúmeros filmes e comerciais é prova de que ela não contém nenhuma “mensagem diabólica”; o problema é que talvez ela não contenha “mensagem” alguma.

Angela Maria Bordini Nogueira Claudia Antonini, procurei algo mais sobre Carmina Burana. Um dos links ė do filologia. com. -com ênfase nas letras . Aqui : Carmina Burana. A cantata cênica em latim medieval

Angela Maria Bordini Nogueira O outro link ė o pqpbach : Carl Orff (1895-1982) = Carmina Burana (Osawa)

Claudia Antonini Boa essa Angela. O “Olímpo” erudito se manifesta, kkkk.

Angela Maria Bordini Nogueira Exibem tb outras análises boas em inglês. O que me incomoda um pouco é que pessoas que mal conhecem música clássica partem para avaliações no estilo : “ė brega, ė chata,” somente porque Carmina Burana é bem conhecida.

Claudia Antonini É o Olimpo do preconceito minha cara! Convivi muito com isso, sei bem do que falo.

Angela Maria Bordini Nogueira Claudia, não vou discutir Olimpo. Não sei analisar melodia.

Angela Maria Bordini Nogueira Tenho de sair agora .

Claudia Antonini Quedate tranquila, é só uma velha constatação.

Carlos Sell Claudia Antonini, colocaste em palavras aquilo que penso!

Gary Dranch Carmina Burana has to be seen in context of the self-conscious, neo-classicism medievalism “awakening” work full of theatrical pageantry. Scholars love the bawdy texts and illusions to Goliards, and choreographers go wild with antiphonal orgiastic and repetitive chanting as inspiration to wild Bacchanales. So, I would urge you to take a more wholistic look at this 20th century masterpiece. I agree, from the music “pit”, having performed it at least 4 times, it would seem that the sum of the parts is greater than the whole!

Claudia Antonini Exactly!

Fabio Zanon I agree there is nothing quite like it, whence the fascination it can exercise. I still keep the Jochum recording I got when I was 15, but frankly the perspective of hearing it again could only be contemplated if I were payed for it. If I am after orgiastic music, nowadays I’d go to Turangalila or something of the kind.

Augusto Maurer Na atual conjuntura cultural, minimalista, tenho saudade de terminar o ano sinfônico solenemente, em alto estilo, com uma oitava de Mahler ou, vá lá, nona de Beethoven. Não devo, no entanto, reclamar, pois sempre pode ficar pior do que está. Ou, pelo menos, assim dizem os mais cautelosos.

Fabio Zanon Da próxima vez que decidirem fazer um show com música de Tom Jobim lembre que poderia ser Orff de novo…

Augusto Maurer Quem dera tocar Jobim mais amiúde !

Fabio Zanon Exatamente.

Gary Dranch Or as the French say, “Vive la différence!”Norberto Flach Ah, lembrei que uma vez ouvi uma versão com a Gundula Janowitz e o Fischer-Dieskau. Com esse time, qualquer obra sobe no ranking.

Fabio Zanon É a gravação do Jochum. A Janowitz já não tinha mais agudos pra cantar Dulcissima, soa bem estrangulado para os meus ouvidos.

Norberto Flach Fabio Zanon, é a cruel mazela endocrinológica de que padecem as sopranos. Mas àquela que cantou as Vier letzte Lieder daquele jeito, tudo se perdoa e condescende.

Fabio Zanon Isso é bem verdade.

Gary Dranch Try to imagine Fischer-Dieskau singing Jobim?

Norberto Flach For his voice and way of singing, maybe Inútil Paisagem (Useless Landscape).

* * *

Os próximos comentários foram postados sob a primeira divulgação que fiz no facebook da diatribe contra Carmina Burana que publiquei neste blog.

Augusto Maurer Obrigado por contribuírem com a apaixonada discussão, Magda Sarmento, Sidney Lima, Milton Ribeiro, Fabio Zanon, André Luiz López Cardozo, Ricardo Branco, Adroaldo Bauer Corrêa, Osvaldo Colarusso, Gabriela Vilanova, Martin Muehle, Angelo Metz, Charlles Adriano Campos, Carlos Sell, Paulo Paranhos Jr., Damián Keller, Wilfried Berk, Norberto Flach, Omar Gianlupi, Rodrigo Nassif, Júlio César Apollo, Angela Maria Bordini Nogueira, Maria de Abreu, Herta Elbern, Ricardo Melo, Harold Emert, Cristina Maria Capparelli Gerling, Nelson Fiedler, Claudia Antonini e Gary Dranch !

Andy Serrano fiz o primeiro comentário 🙂
fala pro Milton aprovar lá… kkkkkkk

Augusto Maurer Obrigado por deixar teu comentário lá. Feliz aniversário atrasado !

Milton Ribeiro É o Augusto que aprova.

Augusto Maurer (não sendo fake, sempre aprovo)

Wilfried Berk Irrelevante? Discordo ! Suas óperas die Kluge e der Mond são únicas. Contudo, a sua maior contribuição se situa na área da pedagogia musical, com o Método Orff de ensino musical, baseado na percussão e no canto. Orff criou um centro de educação musical para crianças e leigos em 1925, no qual trabalhou até a data do seu falecimento. Zelação !

Augusto Maurer Ah, a educação musical, este interregno onde tudo prospera… Mas não conheço o trabalho pedagógico de Orff suficientemente bem para criticá-lo. De qualquer modo, pelo sim ou pelo não, jamais confiaria qualquer parte da educação de um filho a alguém com uma biografia como a sua – ainda que não autorizada. Obrigado por enriquecer a discussão, Wilfried !

Wilfried Berk Se informa melhor, antes de malhar o cara …

Fabio Zanon Educador musical é uma coisa, compositor é outra, e o indivíduo Carl Orff outra ainda. Villa-Lobos é um dos maiores compositores de música para criancas na história e não teve filhos. Qual o problema? O método Orff obviamente tem seu mérito. Entretanto Orff não dava muita atenção para sua própria filha. Mas o que isso tem a ver com Carmina Burana? Eu queria saber por que tanta gente se sente tão ofendida quando alguém levanta um argumento para se criticar uma obra de arte. Eu não concordo com o argumento do Augusto; não acredito na linearidade do desenvolvimento musical, pois por este argumento cada obra só poderia ser validada caso fosse igualmente ou mais complexa que todas as outras já compostas. Mas é um argumento para se justificar sua aversão por uma música que nos dá vários motivos para ter aversão, ao mesmo tempo que dá vários motivos para um vasto público se empolgar. A propósito, eu vi Der Mond and vivo e achei uma experiência ainda mais tediosa que Carmina Burana.

Augusto Maurer Belo argumento, Fabio Zanon ! Fico apenas curioso para entender o seguinte: se não for pelo retrocesso no desenvolvimento musical, o que torna a audição de Carmina Burana tão entediante para alguns ?

Augusto Maurer (nunca consegui ouvir música da mesma forma depois de descobrir os primeiros movimentos da Eroica e da Espansiva. Ou qualquer primeiro movimento de Brahms. Aquele ímpeto modulatório vertiginoso, difícil de se encontrar em outras obras, e seu sofisticado uso da incerteza tonal como gerador de forma fizeram com que eu as ouvisse repetidamente, cada qual a seu tempo, a ponto de não restar espaço algum para que eu ouvisse outras coisas. Por muito tempo, não reconheci nada como tão estimulante. Questão de gosto ?)

Norberto Flach Augusto Maurer, as tuas preferências podem ter até razões biológico-evolutivas. Quem sabe? Aquela coisa de gostar de uns sons e não gostar de outros pode ser o que diferencia os entes mais evoluídos dos mais primitivos. Já eu estou entre os indecisos, que ainda não decidiram se gostam tanto assim de Webern, e se constrangem um pouco de gostar de U2.

Augusto Maurer Não conheço U2 e, talvez por ignorância, não gosto da música da segunda escola de Viena (embora reconheça sua importância “filosófica”). Quanto a ouvidos mais “primitivos ou evoluídos”, all I have to say, my dear Norberto Flach, is “bullshit”. Obrigado por participar desta lambança !

Fabio Zanon Augusto Maurer, acho que é entediante por já termos ouvido processos semelhantes utilizados de maneira muito mais rica em outros contextos. Ouvintes que têm um repertório menor se impressionam pela novidade, pela massa sonora, inegavelmente empolgante, da Carmina. Quando tinha 15 anos me empolguei, comprei o disco, vi uma vez ao vivo, mas não dá pra escutar várias vezes, porque a música não tem nada para oferecer numa segunda ou terceira audição, a menos que o ouvinte esteja interessado em reproduzir o efeito de transe irracional a que a obra induz, que é muito similar ao de um show de heavy metal. Para nós, especialmente para você, que já ouviu de tudo tocando na orquestra, essa novidade passa rapidamente. O que sobra é somente essa impressão de que tem alguém repetindo a mesma coisa 20 vezes e gritando cada vez mais alto. E isso é feito de uma maneira completamente calculada. Orff não é um compositor incapaz, que escreve assim porque não saberia escrever de outro jeito. Talvez ele conseguisse escrever uma sinfonia acadêmica sem muito problema, ou boas canções populares; certamente conhecia o métier de orquestrador, a peça é organizada de um jeito eficiente. Com um olho na aprovação por parte de um ambiente belicista e confrontacional da Alemanha prestes a invadir seus vizinhos, ele decidiu criar um efeito catártico com uma espécie de ritual medieval semi-pagão kitsch, que envolve o ouvinte pela repetição e pela pela amplidão do espaço sonoro. concordo com uma outra pessoa que disse que não existe nada parecido. Realmente não existe, não tem como fazer Carmina nº 2. Orff tentou e ficou uma paródia de si mesmo, Catulli Carmina.

Andy Serrano “que envolve o ouvinte pela repetição”. Curti. Foi exatamente esta minha tese ao comentar o post lá no blog. Dentro de minha visão empírica sobre o assunto, obviamente.

Augusto Maurer Que aula, Fabio Zanon ! Nunca li nada, ao mesmo tempo, tão verdadeiro e sucinto sobre Orff e Carmina Burana. Obrigado por aceitar a provocação !

Régis Antônio Coimbra Prefiro Brahms ou, dito de outro modo, não me imagino procurando Carmina Burana para ouvir – embora já tenha cantado (fazia parte do Coral da UFRGS que deu uma reforçada no Coro da OSPA… gostei mais do Ein Deutesches Requiem, do Brahms, que cantei no mesmo tipo de situação… regido pelo Kurt Redel). No entanto, Carmina Burana tem seu lugar…

A repetição literal pode ser entendida como uma citação às formas medievais. Pronto. E podia ser preguiça – como no caso de Rossini que, não por isso, deixo de amar de tanto ver, na infância, em desenhos do Pica-Pau (Endy Panda e outros personagens do Walter Lantz).

Robson Pereira “I know, it’s only rock and roll/ But I like it”

Augusto Maurer Também gosto de rock, mas não consigo levar Carmina Burana a sério. Muito menos como rock. A única coisa da qual gosto na obra é como ela divide opiniões. Obrigado por se manifestar ! Adorei teu texto sobre a tentação e o perigo das explicações mais simples ! http://www.sul21.com.br/…/a-magia-das-falas…/

Milton Ribeiro Parece rock sinfônico mesmo!

Augusto Maurer Ah, o crossover… Mas deixemos, por hora, de lado esta estranha paixão de alguns.

Fabio Zanon Taí, Orff está num patamar parecido ao de Rick Wakeman. Tomem isso como elogio.

Fabio Zanon Não colocaria jamais Bolero de Ravel no mesmo saco. Aquilo está num patamar de qualidade composicional completamente diferente, é um estudo de orquestração da maior perfeição. Não se julga o Bolero sem levar em conta Ravel como um todo.

Milton Ribeiro Concordo. Como leigo, ouço o Bolero como um admirável ensaio timbrístico. Na minha opinião, não há nada de primarismo ali.

Augusto Maurer Verdade. Exagerei no caso do Bolero. Obrigado por me chamarem à razão !

Norberto Flach E A Valsa? Sinto-me pronto a começar uma guerra mundial toda vez que ouço.

Milton Ribeiro Adoro La Valse….

Augusto Maurer … moi aussi !

Augusto Maurer (estranho o silêncio dos admiradores de Pollock, Rothko, Basquiat and the like…)

Fabio Zanon Sou um deles. Assim como sou de, digamos, Radulescu. Mas não existe Pollock nº 2, uma vez feito, acaba em si.

Osvaldo Colarusso Apesar de não ser um fã de Carmina Burana creio que deve haver alguma qualidade intrínseca que ainda não percebi. Mas que deve existir eu acredito que sim. Uma obra que chamou a atenção de músicos que respeito demais como James Levine, Seiji Ozawa, Herbert Kegel e Eugen Jochun deve ter sim alguma qualidade. Agora compará-la com Bolero é injusto. Bolero de Ravel é uma obra prima. Não é difícil encontrar suas inúmeras qualidades. Uma obra muito popular não tem obrigação de ser ruim.

Augusto Maurer Verdade, Osvaldo Colarusso: muitas vezes, o gosto popular está certo !

Wilfried Berk Falem mal, mas falem de Carl Orff …

Osvaldo Colarusso Karl Orff não conheço. Só conheço Carl Orff….

Wilfried Berk

Wilfried Berk Carmina Burana na wikipedia

Zeca Azevedo Texto EXCELENTE como sempre, Augusto Maurer, uma verdadeira aula. No meu caso, antes de julgar e condenar a obra mais famosa de Orff por suas limitações formais em comparação a outras peças musicais (acho que não seria capaz de realizar tal tarefa), eu rejeitei a obra pelo efeito que ela provoca ou quer provocar nos ouvintes. ”Carmina Burana”, por sua ”grandiosidade” fabricada, transforma (ou quer transformar) grupos de indivíduos em massas humanas indistintas que respondem de maneira uniforme a estímulos sonoros (como fazem os hinos). É música que não pede engajamento individual, mas sim engajamento coletivo da forma mais nociva. Não há espaço para sutileza ou para fraturas existenciais no triunfalismo de Orff, que apela para o pior tipo de humanismo, aquele que se ufana, que se orgulha de si mesmo de forma irrefletida (Sartre fala sobre esse tipo de humanismo em ”O Existencialismo é um Humanismo”). É o tipo de sentimento incentivado e manipulado pelos nazistas, a ideia de que o indivíduo tem que abandonar suas idiossincrasias em nome de ”algo maior”. Até onde posso perceber, Carmina Burana é o nazismo em forma de música.

Fernando Rauber Gonçalves Vou escrever uma resposta depois com calma, mas acho que tua crítica parte de uma premissa inadequada: você julga um suposto mérito de uma composição a partir das ideias do organicismo musical germânico em uma obra que não faz parte dessa tradição. Portanto, seu texto é bullshit, teu ponto deveria ser a comparação com outras obras (neo)modais.

Augusto Maurer Concordo, Fernando Rauber Gonçalves: todo referencial comparativo é altamente ideológico, i.e., podemos enaltecer ou depreciar tremendamente qualquer coisa, dependendo daquilo com a qual a comparamos (esta é, afinal, a verdadeira razão de ser de qualquer estética comparada !). Por isto, pergunto: com o que devemos comparar Carmina Burana para fazermos justiça à obra e seu autor ?

Fernando Rauber Gonçalves Na minha opinião, a tradição germânica é guiada pela ideia do organicismo, com essa ênfase no jogo motívico e numa concepção bastante intelectualizada e elaborada. Em contraposição, temos uma tradição latina (a música francesa, italiana, portuguesa, espanhola) que dá mais ênfase ao ritmo e a melodia e entendo esses dois espectros como tradeoffs da complexidade musical, duas vertentes distintas da tradição europeia.

Fernando Rauber Gonçalves Por exemplo, qual teu posicionamento sobre a obra de Satie?

Augusto Maurer Satie foi, como Cage ou, digamos, o sujeito do Ballet Mechanique (Antheil), não mais do que um provocador. Uma influência a ser considerada mais do que o autor de uma obra relevante. Forçou os limites dos conceitos, mas não produziu nada para a posteridade equiparável aos legados de um Debussy, um Stravinsky ou, ainda, da segunda escola de Viena ou mesmo do círculo de Darmstadt.

Augusto Maurer Como Miles: um inovador, certamente, mas jamais dono de um legado como os de Evans ou Monk.

Augusto Maurer É como comparar, por exemplo, Duchamp com Dali – respectivamente, um anão e um gigante.

Fernando Rauber Gonçalves E Liszt? E sobre a ópera italiana? Estou lhe provocando com exemplos que fogem da tradição germânica 🙂

Augusto Maurer … fora de minha área de competência. Tenho, particularmente, pouca paciência com Liszt e a ópera italiana …

Fernando Rauber Gonçalves Enfim, é esse o ponto que quero escrever na minha resposta, sobre a questão dos parâmetros comparativos e sobre a multiplicidade de concepções no julgamento estético/composicional. Óbvio que Orff não é um compositor inovador ou essencial, e que Carmina é uma obra desigual, porém tem momentos suficientes de acerto que justificam sua popularidade.

Augusto Maurer … “momentos de acerto” me soam obscenamente parecidos com as “músicas de trabalho” destacadas num “álbum”, dentre todas aquelas outras faixas fadadas ao esquecimento. Acho que o Ricardo Branco já se referiu a isto ao afirmar que, depois da empolgação inicial com “Fortuna Imparatrix Mundi”, todo o resto de Carmina Burana não passa de uma colossal chatice.

Augusto Maurer … o que me remete diretamente ao lúcido comentário de Osvaldo Colarusso: será que Levine, Osawa, Kegel, Jochun e outros efetivamente optaram por gravar a cantata de Orff, ou assim foram persuadidos por seus produtores por razões mercadológicas ? Who knows ? Jamais saberemos. Por isso mesmo, o fascínio das especulações a respeito. Posso até imaginar um diálogo, de um drama metalinguístico, entre um desses maestros, ávidos por perpetuar mais uma versão de Beethoven, Brahms ou Mahler, e seu produtor, convencido da alta conveniência de se lançar, antes, mais uma versão de Carmina Burana…

Fernando Rauber Gonçalves Interessante que tu tragas a chatice, vou buscar trabalhar esse conceito na minha resposta, sob a perspectiva do ouvinte leigo e do músico treinado.

Júlio César Sosnoski Segundo o jornalista Norman Lebrecht, que teve amplo acesso ao mercado da gravação por meio de pessoas que trabalharam no mercado, e mesmo através dos próprios produtores. Era bem difícil persuadir regentes já de carreiras sólidas a gravar qualquer coisa com as quais não concordassem…

Fernando Rauber Gonçalves Do ponto de vista analítico, também existem outros referências mais pertinentes para a obra de Orff também, creio que a partir das análises estruturalistas da semiologia musical pode inclusive descobrir porque certos jogos motívico aparentemente simplórios de Orff “grudam” tão bem no ouvido.

Darian Weber Pergunto onde está convencionado que para reger essa obra, o maestro tenha que estar em um altar, tão alto que quase não dá pra ver a orquestra?

Augusto Maurer Isto não tem a ver com a obra, Darian Weber, mas com a mitologia do maestro. Outros fatores, outra discussão. Bem oportuna, sem dúvida ! Mais tarde, talvez.

Augusto Maurer … e, antes que eu me esqueça, bem-vindos a esta ilustrada conversa, Osvaldo Colarusso, Zeca Azevedo, Fernando Rauber Gonçalves e Darian Weber. Me sinto mui honrado com seus comentários !

Darian Weber Orff com esta obra e como disse o nobre amigo Fernando Rauber…teria sido um Michel Teló por ter composto uma peça tão ” grudenta”?

carmina-burana-3

Polissemia ao contrário ou da diferença inexistente entre orquestras sinfônicas e filarmônicas ou, ainda, entre choros e bachianas brasileiras de Villa-Lobos

Lévy 2
Pierre Lévy

Um dos grandes problemas enfrentados pelos cientistas comandados por Pierre Lévy rumo a seu intento de implementar uma web semântica (não sei por que essa ideia me fascina tanto) é, com certeza, o das palavras diferentes que designam uma mesma coisa, numa espécie de polissemia ao contrário ou, se preferirem, sinonimia. Mas não falo aqui de temos universalmente reconhecidos como equivalentes. Antes, me ocupo daquelas palavras que, ao designarem uma mesma coisa, sugerem coisas diferentes. Como orquestras sinfônicas e filarmônicas. Ou os Choros e as Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O caso das orquestras é auto explicativo e, portanto, dispensa comentário.

Nas peças de Villa-Lobos, há muito mais diferença entre peças agrupadas em coleções designadas por um mesmo nome (choros ou bachianas brasileiras) do que entre os conjuntos das existentes em cada coleção. Pouco importa, então, se o compositor quisesse, ao escolher um título, sublinhar a índole popular ou o contraponto de Bach encontrados em cada obra. Até por que ambos os idiomas são formadores indissociáveis de sua técnica.

Noutras palavras, as Bachianas Brasileiras e os Choros de Villa-Lobos resistem a qualquer categorização tanto quanto à instrumentação com à duração ou forma – já que encontramos, em ambas as coleções,

desde solos (Choros #1, para violão, e #5, para piano) e duetos (Choros #2, para flauta e clarineta, e Bachianas Brasileiras # 6, para flauta e fagote) até orquestras expandidas, bandas e grandes corais;

tanto miniaturas (como o Choros #2, de apenas dois minutos e meio) como obras colossais, em vários movimentos (como o Choros #11, para piano e orquestra, que leva em torno de uma hora para ser executado);

formações instrumentais exclusivas (i.e., pouquíssimo ou nada utilizadas por outros compositores) como, por exemplo, a orquestra de violoncelos utilizada nas Bachianas Brasileiras #1 e #5.

E por aí afora. A música, em suas tantas categorizações, é território dos mais férteis para confusões decorrentes dessa espécie (até o advento de termo mais adequado) de polissemia ao contrário. Pois, convenhamos, calabouços semânticos de uso disseminado tais como concerto, sonata, balada e afins não ajudam muito.

Villa 3
Heitor Villa-Lobos