Homo Deus, o segundo livro de Yuval Noah Harari, é uma recompilação de ideias já expostas, anos antes, em seu primeiro livro, Sapiens (resenhado aqui). O que não deve, no entanto, se constituir em nenhuma surpresa para quem prestar atenção nos subtítulos dos dois volumes, a saber, Uma breve história da humanidade e Uma breve história do amanhã, respectivamente. Assim, o que no primeiro era exaustivamente examinado como resultado de um cuidadoso encadeamento histórico, no segundo se apresenta como um estado de coisas a apontar para um elenco de alternativas futuras – fato suficiente, a nosso ver, para alimentar especulações quanto a sobre o que versará, se e quando vier, seu terceiro livro.
A matéria da qual trata nos dois, a que chama de realidades imaginadas, é a principal razão, ao mesmo tempo, da enorme verossimilhança de tudo o que afirma no primeiro, na maioria das vezes contrariando o senso comum, e do ceticismo despertado em muitos leitores pelo segundo. Talvez por isto seja mais conveniente distinguir as realidades imaginadas enumeradas no primeiro – as quais, por existirem ou terem existido no presente ou no passado, são mais palpáveis à maioria dos leitores – daqueles cenários hipotéticos projetados por Harari para um futuro imediato ou distante – mais insondáveis, portanto, ao senso comum – e que, por isto mesmo, seriam melhor designados pela expressão realidades imaginárias. Teríamos, assim, o termos imaginadas para designar aquelas criadas e compartilhadas por milhões de humanos e imaginárias para se referir a formulações até então inexistentes a não ser na fértil mente de Harari. Esta convenção ajuda a situar ambas as obras nos devidos planos.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre suas antevisões, um tanto quanto distópicas, vale a pena contemplarmos o nó histórico em que nos encontramos. Num passado marcado por fome, pestes e guerras, se pode afirmar que o que a humanidade mais almejou até aqui tenha sido prosperidade, saúde e harmonia. Num argumento que pode parecer a muitos um tanto chocante, Harari considera estes três problemas solucionados – já que, hoje, num contexto global, as pestes estão controladas, a fome é política e as guerras, localizadas – e que, portanto, a humanidade nunca desfrutou de tanta prosperidade, saúde e harmonia como agora.
Sendo assim, ante a necessidade de estabelecer uma agenda para o futuro, o gênero humano se volta hoje para a obtenção de imortalidade, felicidade e divindade. É sobre a conquista destas três qualidades e suas implicações que versam as quase 400 páginas de Homo Deus (mais umas 40 de notas e referências para quem ache o estilo do autor dominado por frases de efeito sem muito fundamento).
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No decorrer de sua fascinante jornada especulativa, Harari alude a algumas ideias perturbadoras, contrárias ao que a maioria das religiões conhecidas (lembrem-se que, para ele, comunismo, capitalismo e humanismo são, enquanto realidades imaginadas, as religiões mais hegemônicas da atualidade) sustenta, dentre as quais destacamos
que, ao contrário do que ocorre com a inteligência, não existe até hoje nada que prove cientificamente a existência de entidades como a mente ou a alma – pilar central de todos nossos sistemas político, jurídico e econômico;
que animais não humanos também são dotados de emoções e necessidades subjetivas e que, portanto, também padecem de sofrimento;
que a espécie humana não é necessariamente o ápice da evolução;
em Homo Deus, Harari retoma e desenvolve a ideia, já formulada em Sapiens, de que a hegemonia da espécie se deve não ao uso de ferramentas e inteligência, como sempre se acreditou, mas à habilidade adquirida de cooperar em larga escala e com flexibilidade a partir da crença em mitos compartilhados por milhões de humanos;
que o espectro mental humano é apenas uma pequena fração de todos os estados mentais possíveis, refletindo, quando muito, na maioria dos estudos em publicações especializadas, os resultados de experimentos realizados sobre populações WEIRD (Western, Educated, Indutrialized, Rich & Democratic) – já que a maior parte da pesquisa psicológica é realizada, por conveniência, tendo alunos dos próprios pesquisadores como sujeitos;
que o livre arbítrio só existe em histórias imaginárias inventadas por humanos;
para explicar a emergência, aqui e ali, de noções românticas como a do livre arbítrio, Harari discorre longamente sobre a coexistência conflitante de duas entidades às quais chama, respectivamente, de eu da experiência e eu da narrativa. Segundo esta dicotomia, o eu da narrativa altera qualquer realidade vivida pelo eu da experiência de modo a melhor acomodá-la à história de vida na qual cada um de nós prefere acreditar. Então, isto é, por si só, suficiente para desqualificar como verdade factual qualquer percepção filtrada pelo eu da narrativa;
a felicidade é bioquímica, tendo pouco ou nada a ver com a satisfação de desejos.
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Talvez a projeção (prefiro evitar, como o autor, a palavra previsão por se tratarem, suas antevisões, muito mais de possibilidades alternativas do que de consequências inevitáveis) mais espetacular de Harari em Homo Deus seja a corrida em busca da imortalidade. Pois a pesquisa genética vem avançando muito no que tange ao retardamento do envelhecimento, permitindo a vários magnatas do Vale do Silício já lidarem com a hipótese da imortalidade. O tema até já inspirou o cinema de ficção científica, numa das sequelas da série X-Men.
A ideia não é tão futurista quanto parece. No livro, Harari lembra que Angelina Jolie extirpou os próprios seios não em razão de um diagnóstico de câncer já existente mas, tão somente, devido a uma alta probabilidade, revelada através de testes genéticos, de vir a desenvolver a doença. Ao mesmo tempo, uma empresa chamada 23andMe, fundada por Anne Wojcicki, ex-mulher de um dos fundadores do Google, e cujo nome alude aos 23 pares de cromossomos que nosso genoma contém, oferece, por módicos 99 dólares, a possibilidade de você cuspir num tubo de ensaio, enviar a amostra de saliva a Mountain View, na California, e receber online uma análise de seu DNA contendo sua predisposição genética para mais de 90 características e condições, incluindo da calvície até a cegueira.
Nesta progressão, é fácil imaginar terapias de aprimoramento genético e facilidades para a instalação de próteses cyborg (inorgânicas) muito mais poderosas e versáteis do que os órgãos que vierem a substituir. É claro que tais aperfeiçoamentos custarão muito caro, atingindo valores inimagináveis para a maioria dos humanos. Com isto, o cenário imaginado por Harari prevê a coexistência, num futuro não muito distante, de humanos mortais com super-humanos imortais. As implicações éticas de tal coexistência são sombrias, remontando ao desprezo de humanos por outras espécies, sobreviventes ou extintas, com as quais dividem ou já dividiram o ambiente. Parte delas é perfeitamente resumida na seguinte citação:
“O que acontecerá quando se constatar que esses super-humanos tem experiências fundamentalmente diferentes das dos Sapiens ? E se super-humanos se entediarem com romances que contam as experiências de Sapiens ladrões inferiores, enquanto para os humanos ordinários as novelas sobre casos de amor entre super-humanos forem ininteligíveis ?” (p.352)
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Uma das principais ideias examinadas em Sapiens que retornam em Homo Deus é a noção de que o capitalismo é fundado sobre a possibilidade de crescimento ilimitado. No primeiro livro, Harari é mais didático, exemplificando com um ciclo vicioso (mas que se pretende virtuoso) onde um mesmo dinheiro (uma realidade imaginária) é sucessivamente emprestado à dona de uma padaria, que contrata um construtor para expandir suas instalações, que por sua vez deposita o dinheiro cobrado à padeira no mesmo banco ao qual ela o tomou emprestado – o qual passa a contar com um capital só aparentemente crescente (primeiro 1 milhão, depois 2 e assim sucessivamente). É por isto que, se todos os que depositaram alguma coisa em bancos retirassem ao mesmo tempo seus depósitos, os bancos quebrariam. Então, todo o sistema capitalista depende da confiança num crescimento constante (impossível, como veremos a seguir) no qual governos liberais se empenham em nos fazer acreditar.
Em Homo Deus, Harari avança neste tema ao comparar as noções medieval de riquezas limitadas e contemporânea de crescimento constante, alertando para seus limites. Antes da Revolução Científica, um proprietário de terras sabia o máximo que seus campos poderiam produzir e só concebia a ideia de acumular mais se subtraísse a outros. Capitalistas modernos, no entanto, já não reconhecem o esgotamento da capacidade produtiva. O que facilita esta ilusão é que, enquanto fontes de matérias-primas e energia são limitadas e esgotáveis, o conhecimento não está sujeito aos mesmos limites.
Assim, a história insiste em nos provar que, aos esgotarmos os recursos naturais necessários à produção de um bem, inauguramos um novo ciclo de prosperidade mediante a simples descoberta de novas tecnologias. Um bom exemplo disto é o domínio dos meios para a exploração de petróleo no pré-sal. Outro, já realizado, é a produção de energia por fissão nuclear, que ampliou enormemente o potencial de energia que poderia ser gerada uma vez esgotados todos recursos hídricos e as reservas de carvão e petróleo conhecidos. Outro, apenas projetado e por isto mesmo objeto de intensa pesquisa, é a produção de energia por meio da fusão nuclear.
A naturalização da ideia de um crescimento ilimitado é bem representada pelos jogos. Se em velhos jogos de tabuleiro havia uma noção implícita de degradação do patrimônio (numa partida de xadrez, por exemplo, sempre terminamos com menos peças do que começamos – e mesmo que uns raros peões sejam promovidos a damas, há um número limitado de peões a serem promovidos ou, mais provavelmente, sacrificados); já em jogos recentes de computador como Minecraft ou Civilização os participantes são incentivados a construir, a partir do nada, casas, aldeias, cidades e impérios. Deste modo, os jogos que jogamos refletem perfeitamente aquilo em que acreditamos.
Por isto, logo no início do livro Harari pergunta, retoricamente, quem vai pisar no freio. É claro que ninguém. Pois o mito do crescimento ilimitado é crucial não só para o capitalismo como também para a cruzada em busca da felicidade na qual a humanidade está hoje empenhada. A despeito dos índices alarmantes de aquecimento global, há décadas os EUA vem se recusando a assinar os protocolos de limitação de emissão de gases causadores do efeito estufa, primeiro no Rio, depois em Kyoto e recentemente em Paris, tão somente para não interromper o ciclo de prosperidade e felicidade crescente de seus cidadãos. Além disto, os pobres (sempre os mais atingidos) teriam uma enorme dificuldade em aceitar uma desaceleração do crescimento, por ficar mais difícil acreditar na história do bolo que precisa crescer antes de ser repartido.
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Uma das mais instigantes formulações presentes em Homo Deus é a ideia de que a felicidade seja, antes de uma percepção subjetiva, tão somente resultante de reações químicas que variam no metabolismo de cada indivíduo. Segundo esta crença, indivíduos felizes o são tão somente em razão de um estado de equilíbrio bioquímico e independentemente de quaisquer estímulos externos, ao passo que os deprimidos o serão apesar de quaisquer gratificações que a vida lhes trouxer. Sendo assim, a felicidade é apenas uma questão de manutenção, em cada organismo, de níveis de substâncias estimulantes ou depressoras.
Soma-se a esta questão o fato de que o apetite humano por obter sempre mais felicidade e acumular mais riquezas materiais é, até onde se pode perceber, insaciável.
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De todas as projeções contidas em Homo Deus, aquela da qual Harari mais se ocupa é a de que, cedo ou tarde, todas as profissões humanas hoje conhecidas serão substituídas com vantagem por algoritmos inorgânicos.
Em The Future of Employment (Oxford, 2013), Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne investigam a probabilidade de diferentes profissões serem assumidas por algoritmos de computador nos próximos 20 anos. Segundo eles, 47% dos empregos hoje existentes nos EUA correm alto risco. Em seguida, enumeram, em ordem decrescente, a probabilidade que cada profissão tem de ser totalmente substituída por algoritmos:
operadores de telemarketing e corretores de seguro – 99%; árbitros de modalidades esportivas – 98%; caixas – 97%; chefs – 96%; garçons e assistentes jurídicos – 94%; guias de turismo – 91%; padeiros e motoristas de ônibus – 89%; operários na construção civil – 88%; assistentes de veterinária – 86%; seguranças – 84%; marinheiros – 83%; bartenders – 77%; arquivistas – 76%; carpinteiros – 72%; salva-vidas – 67%; e assim sucessivamente.
É claro que, segundo Frey e Osborne, em 2033 ainda haverá empregos seguros. Por exemplo: a probabilidade de que, até lá, se desempreguem arqueólogos é de apenas 0,7%.
O fato de humanos estarem cada vez mais se profissionalizando (especializando) em muito contribui para a absorção de suas profissões por algoritmos. Os caçadores-coletores que viviam na savana durante a Revolução Cognitiva há 12 mil anos atrás possuíam um complexo de competências muito mais difícil de ser substituído por algoritmos do que, digamos, um motorista, advogado ou médico dos dias que correm.
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Deixei para me ocupar ao final desta já longa resenha com duas das formulações mais caras a Harari que são, no entanto, facilmente objetáveis. Na primeira delas, afirma que o triunfo histórico do capitalismo sobre o comunismo se deve, mais do que a quaisquer méritos do primeiro quando comparado ao segundo, tão somente ao fato de que,
enquanto no comunismo todo processo decisório (isto é, a precedência disto sobre aquilo) se baseia num processamento centralizado de dados por uma autoridade única;
já no capitalismo tal processamento de informações é realizado de modo distribuído por uma multiplicidade de agentes que competem entre si em bolsas de valores, numa homeostase dinâmica e auto-regulável que atribui a cada coisa seu devido valor sem depender, para tanto, da intervenção de nenhuma autoridade central.
Talvez esta visão funcione em conexão com a economia de mercado. Não é suficiente, no entanto, para explicar por que o poder nas ditaduras comunistas é essencialmente distinto do poder em democracias liberais. Isto por que, tanto em regimes totalitários como nos democráticos, toda autoridade é central, se propagando descendentemente nas pirâmides administrativas sempre a partir da confiança de cada superior em seus subordinados, pela nomeação de detentores de cargos em comissão, ao invés de na confiança de cada conjunto de subordinados em seus superiores.
Admito que isto deva ser melhor explicado. De qualquer modo, não aqui. Que fique, então, apenas registrado que o processamento de dados distribuído, tido por Harari como principal vantagem histórica da religião capitalista sobre a comunista, não vale tanto para a política como parece valer para a economia.
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A outra formulação na qual pode parecer a muitos leitores que Harari esteja forçando um tanto a barra em prol de sua antevisão é aquela na qual, para negar a existência do livre arbítrio, reduz toda decisão tomada por humanos apenas ao resultado de algoritmos bioquímicos. Segundo esta ótica, tudo o que somos, pensamos e fazemos não passa de um produto de uma predisposição genética, contida em nosso DNA, com uma infinidade de fatores condicionantes ao qual respondemos de modo totalmente determinístico. Harari exemplifica isto, inclusive, com o controle de movimentos de ratos de laboratório por meio de estímulos transmitidos a seus cérebros por eletrodos neles implantados.
Mais. Ao considerar toda existência humana como algoritmos orgânicos, Harari antecipa que algoritmos inorgânicos (i.e., residentes em máquinas) e, portanto, desprovidos de consciência, sejam mais confiáveis e venham, efetivamente, a substituir os humanos num futuro não muito distante, dando origem a uma população de inempregáveis. Para ele, tais algoritmos, equiparáveis aos piores pesadelos imaginados em distopias de ficção científica, já estão entre nós. Basta nos atermos, por exemplo, aos algoritmos do Google ou do Facebook, oniscientes, que sabem mais sobre mim do que eu próprio, e que são criados por uma miríade de desenvolvedores sem que qualquer um deles tenha uma compreensão privilegiada do funcionamento do algoritmo como um todo.
É aí que reside, a nosso ver, uma das principais vulnerabilidades da antevisão distópica de Harari – já que, por mais desenvolvidos que se encontrem os algoritmos auto replicantes, que apreendem sozinhos por meio de redes neurais, sua arquitetura ainda está longe de ser determinada sem intervenção humana. Mesmo que macro projetistas ignorem detalhes das partes (isto deve ser bem comum em equipes de desenvolvimento de software).
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Ainda é muito cedo para se saber se Homo Deus, escrito há apenas dois anos, nos contempla com uma visão verossímil ou, ao contrário, fantasiosa e conspiratória sobre o futuro. Com sorte, em 50 ou 100 anos seus leitores se divertirão com os temores ali expressos, mais ou menos ao modo como nos divertimos hoje com as antecipações não realizadas de Orwell em 1984 – ou, na pior das hipóteses, se tenha que recorrer ao livro em busca de pistas sobre como se chegou até ali e o que fazer para escapar de um destino tão tenebroso.
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PS: Antes desta resenha, já havia me referido aqui a dois curiosos experimentos relatados em Homo Deus, devidamente contextualizados para o atual cenário político brasileiro.