Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Contra o empreendedorismo

Empreendedorismo está na moda. Em economias liberais, é superestimado. Empreendedores assumem riscos movidos pela perspectiva da obtenção de lucro. Num cenário isonômico, tal perspectiva deveria ser, por si só, suficiente para lançar tais indivíduos em busca de seus objetivos. Só que não. Pois qualquer aspirante a empresário pode recorrer a agências de fomento, incubadoras empresariais e linhas de crédito dedicadas. Todo este aparato governamental, acadêmico e financeiro à disposição do dito espírito empreendedor equivaleriam a um incentivo a apostadores em um cassino.

Por razões além do interesse deste texto, cassinos são, em nosso país, ilegais. E mesmo que fossem legais, seria difícil imaginar governo, universidades e bancos proporcionando as condições necessárias a todo apostador em potencial (bem, há, é claro, as loterias oficiais, mas as deixemos, por hora, de fora desta argumentação). Num cassino, a regra é simples: aposta quem tem, não aposta quem não tem. Sem choradeira. Cada um compra as fichas antes de jogar.

Com o empreendedorismo, não é diferente. Espírito empreendedor ? Bullshit. Ainda que a ideologia liberal insista em exaltar o empreendedor como o visionário que aceita empreender riscos, a grande verdade oculta é que só empreende quem tem cacife para apostar, i.e., dispõe de vastos recursos, geralmente herdados ou oriundos do lucro de empreendimentos anteriores bem sucedidos, dos quais pode perfeitamente prescindir se tudo der errado. Também se sabe que grande parte dos empreendedores só obtiveram sucesso depois de várias tentativas; até lá, tão somente perderam recursos investidos.

Por outro lado, alguém já viu um assalariado que luta para pagar suas contas no fim do mês se lançar com êxito em algum empreendimento ? Ok, isto às vezes acontece – e, nestes casos, faz a alegria dos produtores de televisão. Mas, via de regra, trabalhadores são cautelosos com seus gastos – o que exclui, na maioria das vezes, qualquer possibilidade de empreender. Como, por exemplo, na abertura de franquias, que costuma exigir um pesado investimento inicial.

Outra verdade oculta é a alta taxa de mortalidade empresarial, i.e., de empresas que encerram atividades poucos anos depois de abertas, seja por expectativas demasiado otimistas de seus fundadores, seja pela concorrência predatória tão exaltada como a “mão invisível do mercado”. Assim, está longe de ser uma resposta satisfatória para o problema da desigualdade um sistema no qual ao sucesso de um corresponde necessariamente o fracasso de muitos.

Sucesso e fracasso. Costuma-se dizer de todo empreendedor bem sucedido que ele venceu por reunir mais méritos do que os que fracassaram. Estamos aqui claramente diante de uma meia verdade. Pois, ainda que não possamos negar a competência de qualquer empreendedor bem sucedido, certamente nem todos os concorrentes que não lograram o mesmo êxito são desprovidos de tais méritos. Muito já se falou da desigualdade das condições iniciais como principal vulnerabilidade da meritocracia. É, pois, aqui, suficiente dizer que muitos empreendimentos que não emplacam devem seu fracasso à escassez de capital de risco, falhas de mercado ou, simplesmente, sorte.

Falhas de mercado. Na utopia capitalista, todos os competidores iniciam o jogo nas mesmas condições. Como exércitos isonomicamente distribuídos no início de uma partida de War (jogo de tabuleiro mais chato que conheço, metáfora perfeita do sistema capitalista, em que sempre ganha a [longa] partida quem vence as primeiras rodadas). Só que, na prática, jamais encontramos esse cenário perfeitamente controlado. A começar pela sorte que, em qualquer competição, sorri para alguns em detrimento de outros. E para complicar as coisas, surgem as chamadas falhas de mercado, das quais as mais conhecidas são o protecionismo e as informações privilegiadas.  Alíquotas tributárias e taxas de juros diferenciadas, bem como isenções fiscais, aplicadas a diferentes categorias, constituem os exemplos mais conhecidos de protecionismo. Já as informações privilegiadas se referem ao conhecimento prévio e exclusivo, por parte de um ou mais competidores, de dados sensíveis tais como, por exemplo, oscilações futuras no valor de ativos e comodities.

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Já falamos de mortalidade empresarial. Falemos, agora, do que esperar de qualquer empreendimento bem sucedido.  Num sistema que valoriza, acima de tudo, o crescimento (já foi dito que a salvação do planeta, para as próximas gerações, depende principalmente das nações abrirem mão da expectativa de crescimento que move a economia), todo novo empreendimento só pode almejar, realisticamente a 1) se tornar suficientemente interessante a ponto de ser adquirido por uma empresa maior; ou 2) crescer o suficiente para comprar os concorrentes mais sérios.

Notem que apenas pequenos estabelecimentos, como mercadinhos, padarias, oficinas mecânicas, borracharias, bares, restaurantes e afins parecem imunes a esta regra.  De resto, farmácias, supermercados, franquias e grandes lojas tendem a constituir redes cada vez maiores. Sem ser economista, avento uma possível especulação para tal estado de coisas. É que, enquanto os negócios do primeiro grupo limitam seu porte à capacidade produtiva de quem neles trabalha, já os do segundo almejam à constante expansão do capital.

E aqui estamos, outra vez, diante de uma dicotomia entre capital e trabalho que muitos já consideram, como aquela entre esquerda e direita, ultrapassada. Não conheço, todavia, maneiras melhores de ver a economia. Consoante a isto, gosto de pensar no capitalismo, enquanto sistema competitivo ao invés de colaborativo, como uma espuma – na qual, na ausência de uma força externa de agitação (análoga aos célebres think tanks, como a Atlas Foundation ou a Mont Pèlerin Society, através dos quais o capital internacional busca explicar e justificar sua existência), tende a se dispersar num conjunto cada vez menor de bolhas cada vez maiores. Não conheço melhor metáfora para a tendência às fusões e aquisições dos negócios mais rentáveis. Ou seja: o capitalismo pode ser, como uma espuma, tudo menos auto sustentável.

O Futuro do Trabalho, Robotização e a Capacidade do Capitalismo para gerar Empregos Inúteis

O valor de seu trabalho não deveria ser medido pelo seu salário

Publicado em Evonomics por Rutger Bregman, em 17 de maio de 2017

Originalmente publicado em World Economic Forum

 

Muito já foi escrito em anos recentes sobre os perigos da automação. Com previsões de desemprego em massa, redução de salários e desigualdade crescente, obviamente devemos todos nos preocupar.

Hoje, não são mais apenas os observadores de tendências e tecnoprofetas do Vale do Silício que estão apreensivos. Em um estudo que já acumula mais de uma centena de citações, pesquisadores da Universidade de Oxford estimaram que não menos do que 47% de todos os empregos norte-americanos e 54% dos europeus correm alto risco de serem substituídos por máquinas – não em torno de cem anos, mas nos próximos vinte. “A única diferença real entre céticos e entusiastas é uma questão de tempo”, diz um professor da New York University. “Mas daqui a um século, ninguém vai mais se preocupar sobre quanto tempo levou, mas com o que aconteceu depois”.

Admito que já ouvimos isto antes. Empregados já vem se preocupando com a maré ascendente de automação por 200 anos, e por 200 anos empregadores vem dizendo que novos empregos se materializarão para substituí-los. Afinal, por volta de 1800, cerca de 74% dos norte-americanos eram fazendeiros, enquanto que em 1900 este número caiu para 31% e, em 2000, para meros 3%. Ainda assim, isto não resultou em desemprego em massa. Em 1930, o famoso economista John Maynard Keynes previa que estaríamos todos trabalhando apenas 15 horas por semana em 2030. Todavia, desde os anos 80 o trabalho vem consumindo cada vez mais nosso tempo, trazendo consigo ondas de stress e esgotamento.

Enquanto isto, o cerne da questão sequer vem sendo discutido. A grande pergunta que deveríamos fazer é: o que constitui realmente “trabalho” nos dias de hoje ?

O que é, afinal, “trabalho” ?

Em um levantamento de 2013 com 12.000 profissionais pela Harvard Business Review, a metade dos entrevistados declarou que seu trabalho não tinha “sentido e significado” e um número equivalente não se via inserido nas missões de suas empresas; enquanto outra pesquisa com 230.000 empregados em 142 países mostrou que apenas 13% dos trabalhadores realmente gostavam de seu trabalho. Uma pesquisa recente entre britânicos revelou que 37% deles tinham trabalhos que consideravam inúteis.

Eles possuem aquilo a que o antropólogo David Graeber se refere como “bullshit jobs”. No papel, tais trabalhos parecem fantásticos. Há mesmo hordas de profissionais de sucesso, com perfis de Linkedin vistosos e salários impressionantes, que no entanto voltam para casa todos os dias resmungando que seu trabalho não serve a propósito algum.

Deixemos outra coisa clara: não estou falando aqui de lixeiros, professores ou enfermeiros espalhados pelo mundo. Se estas pessoas entrassem em greve, teríamos em mãos um estado de emergência instantâneo. Não. Falo nos crescentes exércitos de consultores, banqueiros, conselheiros de impostos, gerentes e outros que ganham seu dinheiro em encontros estratégicos inter-setoriais entre pares para especular sobre valor agregado e co-criação na sociedade conectada. Ou algo no gênero.

Então, ainda haverá empregos suficientes para todos daqui a algumas décadas ? Qualquer um que tema desemprego em massa subestima a extraordinária capacidade do capitalismo de gerar bullshit jobs. Se realmente quisermos colher as recompensas pelos tremendos avanços tecnológicos das últimas décadas (incluindo a ascensão da robótica), precisamos redefinir radicalmente nossa definição de “trabalho”.

O paradoxo do progresso

Partimos de uma questão antiga: qual o sentido da vida ? Muitos dirão que o sentido da vida é tornar o mundo um pouco mais belo, mais aprazível ou mais interessante. Mas como ? Hoje, nossa principal resposta a isto é: através do trabalho.

Nossa definição de trabalho é, entretanto, incrivelmente estreita. Somente trabalho que gere dinheiro pode ser computado no PIB. Não é prá menos, então, que organizamos a educação em torno de fornecer o maior número possível de pessoas, em parcelas flexíveis, ao mercado de trabalho. Ainda assim, o que acontece quando uma proporção crescente de pessoas consideradas bem sucedidas segundo a régua de nossa economia do conhecimento diz que seu trabalho é inútil ?

Este é um dos grandes tabus de nossos tempos. Todo nosso sistema de atribuir sentido poderia de dissolver como fumaça.

A ironia é que o progresso tecnológico exacerba esta crise. Historicamente, a sociedade foi capaz de absorver mais bullshit jobs precisamente por que robôs vem se tornando melhores. À medida em que fazendas e fábricas se tornaram mais eficientes, contribuíram para o encolhimento da economia. Quanto mais produtivas a agricultura e a manufatura de tornaram, menos pessoas empregaram. Chamem a isto o paradoxo do progresso: quanto mais ricos nos tornamos, mais tempo temos para desperdiçar. Como diz Brad Pitt no Clube da Luta: “Frequentemente, trabalhamos em empregos que detestamos só para comprar aquilo de que não precisamos”.

Chegou a hora de pararmos de dar as costas ao debate e focar no problema real: como seria nossa economia se radicalmente redefiníssemos o sentido de “trabalho” ? Acredito firmemente que uma renda mínima universal seja a resposta mais eficiente ao dilema da robotização crescente. Não por que robôs assumirão todo o trabalho útil, mas por que uma renda mínima daria a cada um a oportunidade de realizar algum trabalho que tenha sentido.

Acredito num futuro em que o valor de seu trabalho não seja determidado pelo tamanho de seu salário, mas pela quantidade de felicidade que você espalhe e de sentido que você dê. Acredito num futuro em que o objetivo da educação não seja prepará-lo para mais um trabalho inútil, mas para uma vida bem vivida. Acredito num futuro em que “trabalho seja  para robôs e vida para pessoas”.

E se a renda mínima lhe soa utópica, então eu gostaria de lhe lembrar que todo marco civilizatório – do fim da escravidão à democracia e aos direitos iguais para homens e mulheres – foi um dia uma fantasia utópica. Ou, como escreveu Oscar Wilde há muito tempo: “O Progresso é a realização de Utopias”.

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Rutger Bregman é historiador e escritor, publicando na plataforma holandesa de jornalismo online The Correspondent. É autor de Utopia for Realists: How We Can Build the Ideal World, publicado por Bloomsbury na Reino Unido e por Little, Brown nos EUA. Twitter: @rcbregman

 

Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber (2018)

Raros livros me impactaram tanto, nos últimos anos, como Bullshit Jobs: a Theory (2018), do antropólogo anarquista David Graeber, atualmente lotado na London School of Economics. O tema que dá nome ao volume – a saber, aqueles trabalhos percebidos como inúteis ou até mesmo nocivos à sociedade por quem os exerce – já é, por si só, fascinante. Como se não bastasse, o livro mais recente de Graeber (autor, entre outros, de Dívida: os primeiros 5000 anos (já traduzido) e The Utopia of Rules (também inédito em português)) ostenta uma densidade lógica (conceito que formulo aqui e ao qual também me refiro aqui) excepcional. Nele, não há sequer um único parágrafo que possa ser tomado por acessório ou colateral à argumentação – o que rende, de saída, qualquer resenha, enquanto recorte, como supérflua. Bem melhor, neste caso, é ler a coisa inteira. Ainda assim, teimoso que sou e impactado que estou, prossigo.

Outra boa razão para se evitar (escrever e ler) esta resenha é que o livro ainda não foi traduzido para o português. Com isto, estas linhas servirão, no máximo, para que alguns entusiasmados se submetam à trabalhosa e demorada importação de um exemplar. Trabalho, portanto, inútil ? Não acho. Quem decidir me acompanhar além deste preâmbulo haverá de concordar.

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Bullshit Jobs: a Theory se originou a partir do ensaio On The Phenomenon of Bullshit Jobs (traduzido por mim aqui) publicado por Graeber em 2013 e reproduzido no prefácio de seu livro de 2018.  Entre uma coisa e outra, o autor realizou uma pesquisa a partir de uma ampla base de dados formada por depoimentos (anônimos por razões óbvias) em resposta a seu ensaio original e ensejados por provocações por ele lançadas através do Twitter (!) – o que, por si só, o situa como, no mínimo, um pesquisador original. Tais depoimentos, citados textualmente e costurados pela voz do autor, constituem a  base da estrutura narrativa da obra de tal forma que, nela, qualquer monotonia potencial da voz onipresente do último é temperada pela variedade e, em certos casos, até humor (pois não há nada mais divertido e verdadeiro do que a auto-ironia) das vozes emprestadas por seus muitos informantes.

É a partir desta rica casuística que Graeber deixa claro, ao longo do primeiro capítulo e por meio de sucessivas definições provisórias aproximativas, o que vem a ser um bullshit job – a saber, todo trabalho percebido com socialmente inútil ou mesmo pernicioso por quem o executa.

A expressão bullshit job traz em si um problema para o tradutor. Num primeiro impulso, somos tentados a traduzi-la simplesmente como “trabalho de merda”. Só que, já no início do livro, a coisa se complica quando o autor faz uma distinção entre um bullshit job e um shit job, demonstrando por que nem todo trabalho que pertence a uma das categorias pertence, necessariamente, também à outra. Com isto, “trabalho de merda” e “merda de trabalho” estão longe de se constituir em traduções satisfatórias por não explicitarem suficientemente a distinção entre as duas categorias.

Nos capítulos subsequentes, estabelece uma tipologia de tais trabalhos (capítulo 2); trata da violência psicológica sofrida por quem neles se vê encurralado (capítulos 3 e 4); explica por que tais trabalhos proliferam (capítulo 5) e por que não objetamos, como sociedade, à proliferação dos mesmos (capítulo 6) e, finalmente, no último capítulo, analisa os efeitos políticos dos bullshit jobs e propõe uma possível solução (no spoilers yet) para tal estado de coisas.

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Mesmo reconhecendo a natureza redutora de toda resenha, é impossível resistir a mencionar em detalhe certas passagens de Bullshit Jobs: a Theory. Como, por exemplo, quando nos é explicado, já nas definições aproximativas iniciais, por que não se pode dizer que um assassino da máfia tenha um bullshit job – uma vez que o mesmo, ainda que admitindo o óbvio prejuízo social inerente a seu trabalho, acredita fazer parte de uma honrada e antiga tradição com finalidades claras.

Outra parte memorável, capaz de dirimir qualquer dúvida sobre o que venha a ser um bullshit job, é a supracitada tipologia do segundo capítulo. Nele, Graeber divide tais trabalhos em cinco categorias:

Lacaios (flunkies). São aqueles postos de trabalho que existem exclusivamente para que alguém (o chefe) se sinta importante. Como exemplo mais emblemático, temos as comitivas que precedem a entrada de autoridades em qualquer recinto. Também não é nenhuma novidade que o poder de quem quer que exerça alguma atividade gerencial é medido pelo número de subordinados ao seu comando. Qualquer semelhança entre a alta incidência de lacaios em ambientes de trabalho contemporâneos e no mundo medieval não é mera coincidência, sendo tratada em profundidade nas partes dedicadas ao “feudalismo gerencial” (managerial feudalism).

Valentões (goons). Usada metaforicamente (i.e., não se referindo apenas a gangsters), a expressão serve para designar pessoas cujo trabalho envolve algum tipo de violência e existe apenas por que alguém as emprega. Exemplos clássicos incluem forças armadas (países só tem exércitos por que outros países os tem), lobistas, especialistas em relações públicas, operadores de telemarketing e advogados corporativos.

Duct tapers. De difícil tradução. Tapa-buracos, talvez. Pertencem a esta categoria todos aqueles que executam remendos ou gambiarras para resolver problemas que simplesmente não deveriam existir mas que, em existindo, emperram o bom funcionamento de um todo maior. Tais trabalhos são particularmente abundantes na indústria da informática.

Box tickers. Igualmente de difícil tradução. O nome se refere àqueles formulários que incluem quadradinhos que devem ser marcados por “tiques” (sinais em forma de “V”). Para Graeber, são todos aqueles empregados que existem exclusiva ou primordialmente para que organizações possam alegar estarem fazendo o que, na verdade, não fazem.

Taskmasters (another category likely to be lost in translation). Se dividem em dois tipos.

Pertencem ao primeiro aqueles que, encarregados de atribuir tarefas a terceiros, acreditam que as mesmas seriam desempenhadas de qualquer maneira, mesmo que não fossem por eles atribuídas. Deste modo, taskmasters do primeiro tipo (supervisores desnecessários) podem ser considerados como o exato oposto de flunkies (subordinados desnecessários).

Taskmasters do segundo tipo são aqueles que inventam tarefas desnecessárias para outros realizarem.

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A distribuição da incidência de bullshit jobs não é homogênea em relação a todos os setores da economia. Tais trabalhos parecem se concentrar mais no setor administrativo intermediário (middle management) e em empresas do setor FIRE (finance, information and real estate (financeiro, informático e imobiliário)).

Tamanha proliferação de cargos inúteis jamais poderia existir sem uma igual abundância de títulos para os mesmos. Numa das passagens mais divertidas, Graeber oferece, em seu site dedicado ao assunto, um Job Title Generator engraçado por si só que dispensa quaisquer comentários.

Um mito bem popular derrubado por Graeber é o de que bullshit jobs seriam peculiares ao setor público. Ao contrário, existem igualmente no privado. Se há uma regra para sua proliferação, parece ter a ver com a maior presença de práticas e conceitos gerenciais em qualquer indústria. São particularmente ilustrativas as análises de sua influência recente na academia e na indústria criativa, particularmente a cinematográfica.

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Forçado, em nome da concisão, a eleger para menção uma única parte dos dois riquíssimos capítulos sobre o sofrimento amargado por detentores de bullshit jobs, minha escolha recai facilmente sobre a exploração de elementos sadomasoquistas inerentes a tais trabalhos. É quando o autor faz uma distinção importantíssima entre as práticas sadomasoquistas recreativas e a ocorrência da mesma sorte de relação em ambientes de trabalho.

Não deve ser nenhuma novidade, mesmo para não adeptos destas práticas, que todo sofrimento físico consentido infligido por dominadores a dominados pode ser interrompido por uma palavra de segurança (como “laranja”). De tal modo que alguém que subitamente não suporte mais a dor de, por exemplo, ter cera quente derramada sobre o corpo pode interromper a “brincadeira” pela simples pronúncia da palavra “laranja”. Só que, em ambientes de trabalho marcados por relações sadomasoquistas, um empregado não pode interromper sem maiores consequências (como o desemprego) qualquer abuso cometido por seu chefe simplesmente dizendo “laranja” (cujo equivalente numa relação de trabalho seria “eu me demito”).

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Quando o ensaio de 2013 no qual Graeber cunhou a expressão bullshit jobs viralizou, uma das reações previsíveis foi um esforço acadêmico-científico para quantificar o fenômeno. Daí emergiram dados alarmantes, ainda que nem um pouco surpreendentes. Na ocasião, se constatou que no Reino Unido nada menos do que 37% dos entrevistados declararam estar aprisionados em bullshit jobs. Replicada na Holanda, a enquete revelou uma realidade ainda mais impressionante: 40% se consideraram na mesma situação. Isto quer dizer quase metade da população – ou, se quiserem, em número suficiente para eleger um presidente ou primeiro ministro numa democracia. Ainda assim, ainda há quem se recuse a ver a coisa como um problema social. A prevalência deste estado de coisas é esmiuçada nos capítulos sobre por que  bullshit jobs proliferam e por que não reagimos, como sociedade, à proliferação dos mesmos.

Aqui, uma dose moderada de spoilers não deverá afugentar potenciais leitores. Suficiente dizer que a manutenção do problema é um pré-requisito para o capitalismo. Como ? Impossível resumir. Até por que os dois capítulos supracitados são uma aula de história, traçando a origem do mito puritano de que “o sofrimento laboral forma o caráter” desde tempos medievais até os dias de hoje, passando por vários filósofos, discutindo a diferença entre “valor” e “valores” e a transição gradual da vigência da teoria do valor-trabalho (labor theory of value) para a aceitação praticamente hegemônica da lei da oferta e da procura, que serve de pilar ao capitalismo.

Tamanha densidade de informações (bibliográficas inclusive) aportadas tornam estes capítulos algo para ser lido e relido – até como mapa para outras leituras.

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Graeber tempera o tom professoral naquilo que mais poderia parecer um tratado (pelo título da obra, de seus capítulos e sub-capítulos) com tiradas engraçadas aqui e ali. Para destacar apenas duas:

Depois de anunciar, nalgum lugar no início do livro, que vê com reservas o fato de ser frequentemente tachado de anarquista (numa compreensível aversão ao aspecto reducionista dos rótulos); se auto-declara, ao fim da obra, um anarquista.

No mesmo último capítulo, depois de deixar claras suas restrições (bem razoáveis) a finalizar uma obra por meio de uma receita ou recomendação para solucionar os problemas nela apontados, preconiza com todas as letras que quaisquer bullshit jobs seriam sumariamente riscados do mapa mediante a implementação de uma renda mínima universal. Ambas as discussões (tanto o disclaimer contra as fórmulas prontas como aquela sobre os possíveis prós e contras de uma renda mínima universal) coroam o volume de uma forma deliciosa, transmitindo ao leitor a plena convicção de que nada do que nele foi lido é supérfluo ou, de algum modo, acessório.

A observação acima, sobre a obrigatoriedade de cada linha, sublinha também o fato das notas sobre o texto serem tão volumosas quanto interessantes. São 40 páginas de notas (fora a bibliografia) para 285 de texto (fora o prefácio), ensejando fatalmente a especulação sobre se o autor

escreveu as notas à guisa de complementação depois de ter o livro pronto (o que é menos provável); ou, antes,

preferiu relegá-las a um apêndice, como num hipertexto, a fim de não comprometer, com elas, seu apurado fluxo argumentativo.

De qualquer modo, quaisquer que sejam as razões que o levaram a destacar, no final da obra, observações tão interessantes – praticamente um outro livro sobre o livro, é altamente recomendável que as mesmas sejam lidas na íntegra concomitantemente ao texto principal.

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Como já deixei claro, é bem difícil eleger uma ou outra passagem do livro para destaque (dignas, digamos, de terminar uma resenha sobre o mesmo). Ainda assim, sou, como disse acima, teimoso e, como tal, arrisco afirmar que, de tudo o que li em Bullshit Jobs: a Theory, talvez o que mais tenha reverberado, no sentido de permitir uma compreensão superior do universo capitalista, é que

o mesmo é alimentado por uma complexa, sutil e insolúvel rede de ressentimentos mútuos entre classes de trabalhadores – não apenas entre aquelas mais óbvias tais como patrões X empregados ou capitalistas X trabalhadores, mas entre as próprias categorias ocupacionais; e que

o que conhecemos usualmente por economia é, antes do que uma ciência, uma doutrina, com raízes históricas claras e, por vezes, profundo cunho teológico.

Homo Deus – Uma breve história do amanhã, de Yuval Noah Harari

Homo Deus, o segundo livro de Yuval Noah Harari, é uma recompilação de ideias já expostas, anos antes, em seu primeiro livro, Sapiens (resenhado aqui). O que não deve, no entanto, se constituir em nenhuma surpresa para quem prestar atenção nos subtítulos dos dois volumes, a saber, Uma breve história da humanidade e Uma breve história do amanhã, respectivamente. Assim, o que no primeiro era exaustivamente examinado como resultado de um cuidadoso encadeamento histórico, no segundo se apresenta como um estado de coisas a apontar para um elenco de alternativas futuras – fato suficiente, a nosso ver, para alimentar especulações quanto a sobre o que versará, se e quando vier, seu terceiro livro.

A matéria da qual trata nos dois, a que chama de realidades imaginadas, é a principal razão, ao mesmo tempo, da enorme verossimilhança de tudo o que afirma no primeiro, na maioria das vezes contrariando o senso comum, e do ceticismo despertado em muitos leitores pelo segundo. Talvez por isto seja mais conveniente distinguir as realidades imaginadas enumeradas no primeiro – as quais, por existirem ou terem existido no presente ou no passado, são mais palpáveis à maioria dos leitores – daqueles cenários hipotéticos projetados por Harari para um futuro imediato ou distante – mais insondáveis, portanto, ao senso comum – e que, por isto mesmo, seriam melhor designados pela expressão realidades imaginárias. Teríamos, assim, o termos imaginadas para designar aquelas criadas e compartilhadas por milhões de humanos e imaginárias para se referir a formulações até então inexistentes a não ser na fértil mente de Harari. Esta convenção ajuda a situar ambas as obras nos devidos planos.

Antes, porém, de nos debruçarmos sobre suas antevisões, um tanto quanto distópicas, vale a pena contemplarmos o nó histórico em que nos encontramos. Num passado marcado por fome, pestes e guerras, se pode afirmar que o que a humanidade mais almejou até aqui tenha sido prosperidade, saúde e harmonia. Num argumento que pode parecer a muitos um tanto chocante, Harari considera estes três problemas solucionados – já que, hoje, num contexto global, as pestes estão controladas, a fome é política e as guerras, localizadas – e que, portanto, a humanidade nunca desfrutou de tanta prosperidade, saúde e harmonia como agora.

Sendo assim, ante a necessidade de estabelecer uma agenda para o futuro, o gênero humano se volta hoje para a obtenção de imortalidade, felicidade e divindade. É sobre a conquista destas três qualidades e suas implicações que versam as quase 400 páginas de Homo Deus (mais umas 40 de notas e referências para quem ache o estilo do autor dominado por frases de efeito sem muito fundamento).

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No decorrer de sua fascinante jornada especulativa, Harari alude a algumas ideias perturbadoras, contrárias ao que a maioria das religiões conhecidas (lembrem-se que, para ele, comunismo, capitalismo e humanismo são, enquanto realidades imaginadas, as religiões mais hegemônicas da atualidade) sustenta, dentre as quais destacamos

que, ao contrário do que ocorre com a inteligência, não existe até hoje nada que prove cientificamente a existência de entidades como a mente ou a alma – pilar central de todos nossos sistemas político, jurídico e econômico;

que animais não humanos também são dotados de emoções e necessidades subjetivas e que, portanto, também padecem de sofrimento;

que a espécie humana não é necessariamente o ápice da evolução;

em Homo Deus, Harari retoma e desenvolve a ideia, já formulada em Sapiens, de que a hegemonia da espécie se deve não ao uso de ferramentas e inteligência, como sempre se acreditou, mas à habilidade adquirida de cooperar em larga escala e com flexibilidade a partir da crença em mitos compartilhados por milhões de humanos;

que o espectro mental humano é apenas uma pequena fração de todos os estados mentais possíveis, refletindo, quando muito, na maioria dos estudos em publicações especializadas, os resultados de experimentos realizados sobre populações WEIRD (Western, Educated, Indutrialized, Rich & Democratic) – já que a maior parte da pesquisa psicológica é realizada, por conveniência, tendo alunos dos próprios pesquisadores como sujeitos;

que o livre arbítrio só existe em histórias imaginárias inventadas por humanos;

para explicar a emergência, aqui e ali, de noções românticas como a do livre arbítrio, Harari discorre longamente sobre a coexistência conflitante de duas entidades às quais chama, respectivamente, de eu da experiência e eu da narrativa. Segundo esta dicotomia, o eu da narrativa altera qualquer realidade vivida pelo eu da experiência de modo a melhor acomodá-la à história de vida na qual cada um de nós prefere acreditar. Então, isto é, por si só, suficiente para desqualificar como verdade factual qualquer percepção filtrada pelo eu da narrativa;

a felicidade é bioquímica, tendo pouco ou nada a ver com a satisfação de desejos.

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Talvez a projeção (prefiro evitar, como o autor, a palavra previsão por se tratarem, suas antevisões, muito mais de possibilidades alternativas do que de consequências inevitáveis) mais espetacular de Harari em Homo Deus seja a corrida em busca da imortalidade. Pois a pesquisa genética vem avançando muito no que tange ao retardamento do envelhecimento, permitindo a vários magnatas do Vale do Silício já lidarem com a hipótese da imortalidade. O tema até já inspirou o cinema de ficção científica, numa das sequelas da série X-Men.

A ideia não é tão futurista quanto parece. No livro, Harari lembra que Angelina Jolie extirpou os próprios seios não em razão de um diagnóstico de câncer já existente mas, tão somente, devido a uma alta probabilidade, revelada através de testes genéticos, de vir a desenvolver a doença. Ao mesmo tempo, uma empresa chamada 23andMe, fundada por Anne Wojcicki, ex-mulher de um dos fundadores do Google, e cujo nome alude aos 23 pares de cromossomos que nosso genoma contém, oferece, por módicos 99 dólares, a possibilidade de você cuspir num tubo de ensaio, enviar a amostra de saliva a Mountain View, na California, e receber online uma análise de seu DNA contendo sua predisposição genética para mais de 90 características e condições, incluindo da calvície até a cegueira.

Nesta progressão, é fácil imaginar terapias de aprimoramento genético e facilidades para a instalação de próteses cyborg (inorgânicas) muito mais poderosas e versáteis do que os órgãos que vierem a substituir. É claro que tais aperfeiçoamentos custarão muito caro, atingindo valores inimagináveis para a maioria dos humanos.  Com isto, o cenário imaginado por Harari prevê a coexistência, num futuro não muito distante, de humanos mortais com super-humanos imortais. As implicações éticas de tal coexistência são sombrias, remontando ao desprezo de humanos por outras espécies, sobreviventes ou extintas, com as quais dividem ou já dividiram o ambiente. Parte delas é perfeitamente resumida na seguinte citação:

“O que acontecerá quando se constatar que esses super-humanos tem experiências fundamentalmente diferentes das dos Sapiens ? E se super-humanos se entediarem com romances que contam as experiências de Sapiens ladrões inferiores, enquanto para os humanos ordinários as novelas sobre casos de amor entre super-humanos forem ininteligíveis ?” (p.352)

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Uma das principais ideias examinadas em Sapiens que retornam em Homo Deus é a noção de que o capitalismo é fundado sobre a possibilidade de crescimento ilimitado. No primeiro livro, Harari é mais didático, exemplificando com um ciclo vicioso (mas que se pretende virtuoso) onde um mesmo dinheiro (uma realidade imaginária) é sucessivamente emprestado à dona de uma padaria, que contrata um construtor para expandir suas instalações, que por sua vez deposita o dinheiro cobrado à padeira no mesmo banco ao qual ela o tomou emprestado – o qual passa a contar com um capital só aparentemente crescente (primeiro 1 milhão, depois 2 e assim sucessivamente). É por isto que, se todos os que depositaram alguma coisa em bancos retirassem ao mesmo tempo seus depósitos, os bancos quebrariam. Então, todo o sistema capitalista depende da confiança num crescimento constante (impossível, como veremos a seguir) no qual governos liberais se empenham em nos fazer acreditar.

Em Homo Deus, Harari avança neste tema ao comparar as noções medieval de riquezas limitadas e contemporânea de crescimento constante, alertando para seus limites. Antes da Revolução Científica, um proprietário de terras sabia o máximo que seus campos poderiam produzir e só concebia a ideia de acumular mais se subtraísse a outros. Capitalistas modernos, no entanto, já não reconhecem o esgotamento da capacidade produtiva. O que facilita esta ilusão é que, enquanto fontes de matérias-primas e energia são limitadas e esgotáveis, o conhecimento não está sujeito aos mesmos limites.

Assim, a história insiste em nos provar que, aos esgotarmos os recursos naturais necessários à produção de um bem, inauguramos um novo ciclo de prosperidade mediante a simples descoberta de novas tecnologias. Um bom exemplo disto é o domínio dos meios para a exploração de petróleo no pré-sal. Outro, já realizado, é a produção de energia por fissão nuclear, que ampliou enormemente o potencial de energia que poderia ser gerada uma vez esgotados todos recursos hídricos e as reservas de carvão e petróleo conhecidos.  Outro, apenas projetado e por isto mesmo objeto de intensa pesquisa, é a produção de energia por meio da fusão nuclear.

A naturalização da ideia de um crescimento ilimitado é bem representada pelos jogos. Se em velhos jogos de tabuleiro havia uma noção implícita de degradação do patrimônio (numa partida de xadrez, por exemplo, sempre terminamos com menos peças do que começamos – e mesmo que uns raros peões sejam promovidos a damas, há um número limitado de peões a serem promovidos ou, mais provavelmente, sacrificados); já em jogos recentes de computador como Minecraft ou Civilização os participantes são incentivados a construir, a partir do nada, casas, aldeias, cidades e impérios. Deste modo, os jogos que jogamos refletem perfeitamente aquilo em que acreditamos.

Por isto, logo no início do livro Harari pergunta, retoricamente, quem vai pisar no freio. É claro que ninguém. Pois o mito do crescimento ilimitado é crucial não só para o capitalismo como também para a cruzada em busca da felicidade na qual a humanidade está hoje empenhada. A despeito dos índices alarmantes de aquecimento global, há décadas os EUA vem se recusando a assinar os protocolos de limitação de emissão de gases causadores do efeito estufa, primeiro no Rio, depois em Kyoto e recentemente em Paris, tão somente para não interromper o ciclo de prosperidade e felicidade crescente de seus cidadãos. Além disto, os pobres (sempre os mais atingidos) teriam uma enorme dificuldade em aceitar uma desaceleração do crescimento, por ficar mais difícil acreditar na história do bolo que precisa crescer antes de ser repartido.

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Uma das mais instigantes formulações presentes em Homo Deus é a ideia de que a felicidade seja, antes de uma percepção subjetiva, tão somente resultante de reações químicas que variam no metabolismo de cada indivíduo. Segundo esta crença, indivíduos felizes o são tão somente em razão de um estado de equilíbrio bioquímico e independentemente de quaisquer estímulos externos, ao passo que os deprimidos o serão apesar de quaisquer gratificações que a vida lhes trouxer. Sendo assim, a felicidade é apenas uma questão de manutenção, em cada organismo, de níveis de substâncias estimulantes ou depressoras.

Soma-se a esta questão o fato de que o apetite humano por obter sempre mais felicidade e acumular mais riquezas materiais é, até onde se pode perceber, insaciável.

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De todas as projeções contidas em Homo Deus, aquela da qual Harari mais se ocupa é a de que, cedo ou tarde, todas as profissões humanas hoje conhecidas serão substituídas com vantagem por algoritmos inorgânicos.

Em The Future of Employment (Oxford, 2013), Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne investigam a probabilidade de diferentes profissões serem assumidas por algoritmos de computador nos próximos 20 anos. Segundo eles, 47% dos empregos hoje existentes nos EUA correm alto risco. Em seguida, enumeram, em ordem decrescente, a probabilidade que cada profissão tem de ser totalmente substituída por algoritmos:

operadores de telemarketing e corretores de seguro – 99%; árbitros de modalidades esportivas – 98%; caixas – 97%; chefs – 96%; garçons e assistentes jurídicos – 94%; guias de turismo – 91%; padeiros e motoristas de ônibus – 89%; operários na construção civil – 88%; assistentes de veterinária – 86%; seguranças – 84%; marinheiros – 83%; bartenders – 77%; arquivistas – 76%; carpinteiros – 72%; salva-vidas – 67%; e assim sucessivamente.

É claro que, segundo Frey e Osborne, em 2033 ainda haverá empregos seguros. Por exemplo: a probabilidade de que, até lá, se desempreguem arqueólogos é de apenas 0,7%.

O fato de humanos estarem cada vez mais se profissionalizando (especializando) em muito contribui para a absorção de suas profissões por algoritmos. Os caçadores-coletores que viviam na savana durante a Revolução Cognitiva há 12 mil anos atrás possuíam um complexo de competências muito mais difícil de ser substituído por algoritmos do que, digamos, um motorista, advogado ou médico dos dias que correm.

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Deixei para me ocupar ao final desta já longa resenha com duas das formulações mais caras a Harari que são, no entanto, facilmente objetáveis. Na primeira delas, afirma que o triunfo histórico do capitalismo sobre o comunismo se deve, mais do que a quaisquer méritos do primeiro quando comparado ao segundo, tão somente ao fato de que,

enquanto no comunismo todo processo decisório (isto é, a precedência disto sobre aquilo) se baseia num processamento centralizado de dados por uma autoridade única;

já no capitalismo tal processamento de informações é realizado de modo distribuído por uma multiplicidade de agentes que competem entre si em bolsas de valores, numa homeostase dinâmica e auto-regulável que atribui a cada coisa seu devido valor sem depender, para tanto, da intervenção de nenhuma autoridade central.

Talvez esta visão funcione em conexão com a economia de mercado. Não é suficiente, no entanto, para explicar por que o poder nas ditaduras comunistas é essencialmente distinto do poder em democracias liberais. Isto por que, tanto em regimes totalitários como nos democráticos, toda autoridade é central, se propagando descendentemente nas pirâmides administrativas sempre a partir da confiança de cada superior em seus subordinados, pela nomeação de detentores de cargos em comissão, ao invés de na confiança de cada conjunto de subordinados em seus superiores.

Admito que isto deva ser melhor explicado. De qualquer modo, não aqui. Que fique, então, apenas registrado que o processamento de dados distribuído, tido por Harari como principal vantagem histórica da religião capitalista sobre a comunista, não vale tanto para a política como parece valer para a economia.

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A outra formulação na qual pode parecer a muitos leitores que Harari esteja forçando um tanto a barra em prol de sua antevisão é aquela na qual, para negar a existência do livre arbítrio, reduz toda decisão tomada por humanos apenas ao resultado de algoritmos bioquímicos. Segundo esta ótica, tudo o que somos, pensamos e fazemos não passa de um produto de uma predisposição genética, contida em nosso DNA, com uma infinidade de fatores condicionantes ao qual respondemos de modo totalmente determinístico. Harari exemplifica isto, inclusive, com o controle de movimentos de ratos de laboratório por meio de estímulos transmitidos a seus cérebros por eletrodos neles implantados.

Mais. Ao considerar toda existência humana como algoritmos orgânicos, Harari antecipa que algoritmos inorgânicos (i.e., residentes em máquinas) e, portanto, desprovidos de consciência, sejam mais confiáveis e venham, efetivamente, a substituir os humanos num futuro não muito distante, dando origem a uma população de inempregáveis. Para ele, tais algoritmos, equiparáveis aos piores pesadelos imaginados em distopias de ficção científica, já estão entre nós. Basta nos atermos, por exemplo, aos algoritmos do Google ou do Facebook, oniscientes, que sabem mais sobre mim do que eu próprio, e que são criados por uma miríade de desenvolvedores sem que qualquer um deles tenha uma compreensão privilegiada do funcionamento do algoritmo como um todo.

É aí que reside, a nosso ver, uma das principais vulnerabilidades da antevisão distópica de Harari – já que, por mais desenvolvidos que se encontrem os algoritmos auto replicantes, que apreendem sozinhos por meio de redes neurais, sua arquitetura ainda está longe de ser determinada sem intervenção humana. Mesmo que macro projetistas ignorem detalhes das partes (isto deve ser bem comum em equipes de desenvolvimento de software).

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Ainda é muito cedo para se saber se Homo Deus, escrito há apenas dois anos, nos contempla com uma visão verossímil ou, ao contrário, fantasiosa e conspiratória sobre o futuro. Com sorte, em 50 ou 100 anos seus leitores se divertirão com os temores ali expressos, mais ou menos ao modo como nos divertimos hoje com as antecipações não realizadas de Orwell em 1984 – ou, na pior das hipóteses, se tenha que recorrer ao livro em busca de pistas sobre como se chegou até ali e o que fazer para escapar de um destino tão tenebroso.

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PS: Antes desta resenha, já havia me referido aqui a dois curiosos experimentos relatados em Homo Deus, devidamente contextualizados para o atual cenário político brasileiro.