Anotações religiosas (i): o dia (ou melhor, a noite) em que me tornei ateu

Devia ter por volta de uns quatorze anos, não lembro bem ao certo. Muito provavelmente devido à minha educação católica (toda ela em um colégio de padres – pois, por sorte, jamais tivemos qualquer cobrança religiosa em nossa família), costumava rezar todas as noites, antes de dormir.

Cabe aqui um breve desvio narrativo para acrescentar que meu pai, um comerciante estabelecido e convicto, se considerava quites com deus depois de assistir missas diárias (e cantar nas mesmas !) durante seus vários anos de internato e, com isto, não fez nenhuma questão de que tivéssemos qualquer tipo de vida religiosa.

Dizem que, em educação, o exemplo arrasta. Comigo, pois, não poderia ter sido diferente. Tendo há muito abandonado a mera recitação de preces pré-formatadas, como Pai Nosso, Ave Maria e afins, minhas orações, tão fervorosas quanto burocráticas, consistiam, invariavelmente, no agradecimento por um rol de graças alcançadas, materiais e emocionais, seguido por uma sucessão de pedidos pela manutenção do bem-estar de todos os que me eram mais queridos, i.e., amigos, parentes e familiares. A coisa tinha, portanto, mais ou menos o formato de um balanço contábil, com palavras de gratidão numa coluna e demandas na outra.  Por alguma razão, sempre achei de bom tom agradecer antes de pedir.

Até o dia em que ouvi de um dos padres mais ortodoxos da escola onde estudava que de modo algum deveríamos praticar a religião segundo nossos modos particulares, individuais de entendê-la – mas, exclusivamente, segundo os preceitos da santa igreja católica, que incluíam ir à missa frequentemente e receber os demais sacramentos nos momentos apropriados. Uma espécie de tudo ou nada na qual só poderíamos adquirir o pacote completo. Aquilo calou fundo em minha mente de modo que, com a autoexaltação das faculdades racionais e do livre arbítrio peculiar à juventude, decidi naquela mesma noite que não precisava mais daquilo e, consoante a isto, doravante não mais rezaria antes de dormir.

Devo confessar que tive medo. Muito medo. De que, ao acordar, o mundo tivesse acabado ou, mais provavelmente, algum tipo de desgraça houvesse se abatido sobre todos os que me eram caros (até por que, até então, minhas preces jamais foram tão altruístas a ponto de incluir o bem de toda a humanidade). Nesse estado de profunda dúvida filosófica que jamais houvera experimentado antes, peguei no sono. Infelizmente, não me lembro do que sonhei naquela noite.

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Ao acordar na manhã seguinte, sorrateiramente espreitei o quarto de meus pais, que ainda dormiam o sono dos justos. Minhas irmãs também estavam bem. Concluí, com isto, que ao menos minha família não tinha sido fulminada pela ira divina. Não me dando, ainda assim, por satisfeito, fui para a escola imerso num estado de apreensão, para só então verificar que meus amigos mais próximos gozavam da saúde e da alegria de sempre. Bingo ! O experimento funcionara. Dali em diante, jamais tornei a rezar antes de dormir.

Para a decepção de meus muitos amigos ateus, não descarto a hipótese de que, se chegar à velhice e pressentindo o fim de meus dias, torne a acreditar, por conforto e conveniência diante de uma condição mais frágil, em algum tipo de salvação e/ou vida pós morte. Pois o que são, afinal, as religiões senão realidades virtuais imaginadas compartilhadas por milhões de humanos com a finalidade de lograr a colaboração em grande escala por estranhos entre si em torno de objetivos comuns ?

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PS (novembro de 2020): podem tributar a última frase do texto acima à minha profunda simpatia pelas ideias de Harari, desde aquela época até hoje.

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