Carta de Recomendação (ii): Perfil de Pedro Dom; ou Por que decidi apoiar o projeto de crowdfunding para o novo disco da Orquestra Livre

Quando Pedro Dom (prefiro, para uso repetitivo, este nome, mais compacto, do que o que lhe foi dado ao nascer, a saber, Pedro Schneider) apareceu pela primeira vez, como aluno de extensão, em minha classe de clarineta no Instituto de Artes da UFRGS, não levei muita fé. Por várias razões, dentre as quais:

por que ele vinha de uma sólida experiência em música popular, pela qual presumi, erroneamente, que seu interesse na clarineta como instrumento de concerto seria não mais do que passageiro;

por que sua experiência mais marcante era com um gênero musical – a saber, o rap – pelo qual eu não tinha o menor apreço (o(s) motivo(s) não vem ao caso agora), mas cujas possibilidades passei, ironicamente, a reconhecer depois de tomar pé de seu trabalho; e, last but no least,

ele não possuía qualquer experiência prévia com a clarineta.

Ainda assim, resisti a meus preconceitos, principalmente por que

em sua família, a arte esteve presente desde o berço, já que seu pai é escritor (já resenhei um livro dele aqui). Não canso de dizer que o contato precoce com a música é, para quem quer que a abrace como uma carreira, uma inegável vantagem. Ora, o mesmo deve valer para a arte em geral;

ele estudara piano desde cedo (uma competência cuja falta na maioria dos alunos costumo lastimar) e, o que é melhor, com um grande professor – a saber, Michel Dorfman, considerado por Paulo Moreira como “o nosso Bill Evans”; e

ele possuía referências musicais excelentes, tanto no jazz como na MPB, absolutamente raras em músicos de sua geração – para os quais, na maioria das vezes, só existe o passado mais recente.  Com Pedro Dom, era bem diferente. Ele tinha a devida reverência por Tom Jobim, o Kind of Blue e seus contemporâneos. Era como se ele fosse, de algum modo, imune à rasura predominante em objetos musicais de seu próprio tempo.

Com este equipamento na mochila, começamos a trabalhar. Não costumo alimentar expectativas quanto ao progresso de cada aluno, nem tampouco fazer previsões sobre suas perspectivas (até por que a vida faz cada curva…) Pedro foi surpreendente em todos os sentidos. Tratei de não o desestimular, ocultando meu ceticismo, quando quis se submeter à prova específica para admissão ao curso de graduação. Eu achava que os poucos meses que o separavam da prova eram muito pouco tempo para alguém que recém dava os primeiros passos no instrumento. Felizmente, eu estava errado. Cinco anos depois, Pedro se graduou com um ótimo recital e foi aceito para prosseguir seus estudos com Michele Zukovsky, uma lenda viva da clarineta, na Universidade da California em Azusa.

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Não há como (felizmente !) se adivinhar o que Pedro Dom estará fazendo num futuro próximo ou distante.  Principalmente por que seu envolvimento com a música é multifacetado. Além de ser proficiente em mais de um instrumento (o piano, a clarineta, o violão e a voz, pelo menos), ele nutre grandes ambições como compositor – sendo, além disto, um excelente arranjador (para que se tenha uma ideia, basta ouvir os sopros (remontando a Oliver Nelson ?) em alguns dos vídeos residentes no site de crowdfunding). Um de seus melhores trabalhos que já ouvi, infelizmente ainda inédito, é um primoroso vídeo musical, em estilo de making of e produzido por um importante estúdio, no qual alterna sua música com a de Moacir Santos (!).

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Noutra época, a única possibilidade de um artista registrar sua obra em então dispendiosos discos era tendo, por meio de festivais, programas de calouros ou por força e obra de algum produtor que também atuasse como head hunter, o acesso franqueado ao elenco de alguma grande gravadora. Hoje, gravadoras minguam, apenas distribuindo obras com cujos custos de produção arcaram os próprios artistas – que, no entanto, na maioria das vezes, dificilmente conseguem reunir os volumosos recursos necessários para pagar, entre outras coisas, horas de estúdio e a fabricação de CDs. Neste contexto, surgiu o crowdfunding, espécie de “ação entre amigos” (Pedro não concorda com esta definição, mas desconheço outra melhor), na qual um grande número de apoiadores viabiliza, por meio de pequenas doações prévias, a confecção de produtos culturais por parte de artistas nos quais acreditam.

Mais. O crowdfunding, ao contrário do patrocínio corporativo incentivado por renúncia fiscal (o qual visa, antes de tudo, o ganho de imagem da empresa apoiadora por meio da publicidade que “cola” marcas comerciais a objetos apoiados), é uma iniciativa distribuída, na qual qualquer apoio individual se dilui entre o apoio de muitos outros simpatizantes.

Mais ou menos como na ideia de Lawrence Lessig para “consertar” o congresso norte-americano, que consiste em banir o lobby por meio da limitação das contribuições de campanha a pequenos valores (algo como 100 dólares), aportados por cidadãos em vez de empresas.

Uma e outra iniciativas (i.e., tanto o crowdfunding como o Fix Congress Now (nome da proposição de Lessig (professor de Direito de Harvard e criador da licença Creative Commons))) tendem a produzir resultados em melhor sintonia com o tecido social.

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Pelas razões acima, participarei da campanha de crowdfunding para custeio do próximo disco de Pedro Dom. Por que apostar numa coisa assim no escuro ? Ora, por que ela será, por definição, muito melhor do que quaisquer similares existentes para pronta entrega. Pois bens produzidos para comercialização são desenhados para atender expectativas de mercado, sempre niveladas por baixo, enquanto que artistas com liberdade (e recursos !) para criar produzirão, necessariamente, algo muito acima de qualquer expectativa. Ou, noutras palavras, o velho conflito entre os desígnios de produtores, de um lado, e autores, de outro. Duvidam ? Paguem para ver.

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