Textos sombrios (i): sobre competição X colaboração

” Esta guerra só terminará quando restar apenas um homem. “

(livre adaptação de uma frase proferida pela personagem vivida por Bennedict Cumberbatch no filme 1917)

Tenho andado meio prá baixo. Tanto que o nome deste texto bem poderia ser “vem, meteoro”. Mas não quero incomodar eventuais leitores com queixumes da vida ou cansaço e apatia típicos da idade que avança. Antes, prefiro examinar o contexto profundo, bem abaixo do manto de reveses casuais, efêmeros, que por vezes oculta condições muito mais pervasivas e permanentes capazes de abalar nossa confiança na civilização em que estamos imersos. Falo, é claro, do paradigma entre competição e colaboração no qual pode ser enquadrada qualquer dinâmica comportamental coletiva.

Sempre que alguém, indivíduo ou instituição, deseja enaltecer o caráter benigno de um grupo, se refere à natureza colaborativa do mesmo. A batidíssima metáfora de engrenagens trabalhando em prol de um bem maior, utilizada indiscriminadamente para descrever o funcionamento de empresas, universidades, clubes, órgãos públicos e agremiações de toda sorte. Exploradores do trabalho alheio se referem eufemisticamente a seus subordinados como “colaboradores”. Coaches gostam de comparar o funcionamento de empresas saudáveis ao de uma orquestra. O próprio Harari afirma que a espécie humana se distingue de outros hominídeos pela capacidade de colaborar em larga escala.

As meias verdades. Pois por trás de toda iniciativa elogiada como colaborativa existe, conquanto nem sempre aparente, uma hierarquia competitiva – bastando, geralmente, para vê-la, olhar um pouco mais de perto.

Embora a colaboração domine o discurso politicamente correto, é a competição que regula virtualmente tudo do que participamos. Se por vezes não a reconhecemos, é por estarmos demasiado acostumados a ela. A competição está perfeitamente naturalizada em nossa cultura. Mal apreendemos a falar e já somos deixados, por vários anos, à mercê de uma escolarização que preza, acima de tudo e por mais que alguns assim não o admitam, um sistema de notas e conceitos que premia os melhor adaptados e detecta qualquer desvio. Tal sistema se propaga pela educação superior, tornando-se mais complexo (currículos, head hunters e “bancos de talentos”), estreitando o funil e culminando nos concursos públicos (cada vez menos) e demais processos seletivos. Uma realidade global da qual é impossível fugir.

A competição é saudada pelos mais jovens como um poderoso fator de progresso individual. Por meio dela – e só por meio dela ! – se pode chegar a lugares melhores do que aqueles em que estão os outros. Ora, é claro que ninguém quer que os outros se danem, desejando para eles, ao menos, um estado de bem estar social. Saúde, segurança, educação, moradia e comida na mesa. Com todos acima da linha de miséria, não há problemas de consciência capazes de inibir quaisquer sonhos de grandeza por parte dos mais ambiciosos. A grande fantasia meritocrática capitalista que, todavia, num mundo de recursos finitos, simplesmente não existe. Ou seja, para que uns sejam mais ricos e poderosos, é preciso, necessariamente, que a maioria dos demais seja mais pobre e submissa. Simples assim.

Redistribuição pressupõe colaboração ao invés de competição. Só que, para tal troca de paradigma, não bastaria nascermos de novo. Seria necessário que, antes, a própria espécie se enxergasse diferente. O amor parental, por exemplo. Por mais “de esquerda” que um pai seja, inevitavelmente reconhecerá o mundo como um lugar cruel, desejando para seus filhos posições privilegiadas –  isentas, na medida do possível, do sofrimento impingido à maioria, não medindo esforços ou tendo o sono tranquilo até atingir tal objetivo. São compatíveis com esta visão formulações filosóficas ultra radicais como o antinatalismo e o Movimento pela Extinção Humana Voluntária (VHEMT), que preconizam o fim da humanidade por meio da renúncia à procriação, a partir da constatação histórica de que o mundo, apesar de todo progresso tecnológico, vem se tornando um lugar cada vez mais hostil à vida. Embora o VHEMT seja, originariamente, de índole ambientalista, seu discurso se aplica perfeitamente à constatação da falta generalizada de empatia entre os homens (salvo, é claro, no caso muito particular da empatia entre semelhantes).

A caridade, por exemplo. Na maioria das vezes, se gasta muito mais para ostentar publicamente uma atitude de compaixão pelos mais necessitados do que, propriamente, ajudando os últimos. É só comparar todos os custos (do salão de beleza às vestimentas, à alimentação, à segurança, aos equipamentos, à publicidade, à energia, às emissões de carbono…) envolvidos na realização de eventos tais como banquetes filantrópicos ou shows beneficientes com os valores efetivamente arrecadados nos mesmos para ajuda humanitária. Quanto mais poderia ser direcionado para as causas contempladas simplesmente não se realizando tais eventos ?

Por aqui termina a parte “vem, meteoro” deste texto. A seguir, observações e especulações sobre a naturalização da competição em nosso imaginário e o que torna uma espécie eminentemente competitiva ou, ao invés, colaborativa. A irresistível busca de um modelo matemático (esta mania tão cara aos economistas).

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Ao contrário do pensamento “de esquerda”, que brota espontaneamente e de forma independente de incontáveis autores, o ideário “de direita” sempre foi uma construção fomentada por think tanks tais como a Atlas Foundation ou a Mount Pèlerin Society, mantidas, por sua vez, o mais anonimamente possível por bilionários com a finalidade de influenciar governos e mercados e, em última instância, fazer a cabeça de gente como Kim Kataguiri ou Fernando Holiday.

Dentre os argumentos mais caros ao campo de pensamento acima está a ideia de que a suprema eficácia da mão invisível do mercado se baseia em processos competitivos presentes na natureza, da sobrevivência dos melhores espécimes ao aperfeiçoamento genético. Jogada sem dúvida astuta, já que a simples invocação do nome de Darwin em apoio a qualquer argumento é por si só capaz de intimidar os contraditórios mais ousados – os quais são, por sua vez, relegados, ante os menos atentos, a uma posição francamente anti acadêmica, quase terraplanista. E assim, muito embora economia nada tenha a ver com biologia, está feita a mistura de alhos com bugalhos, cuspida aos sete cantos pelos mais pobres de espírito.

Mas voltemos ao binômio competição X colaboração na natureza. Embora elementos da duas possam ser concomitantemente reconhecidos na vida de muitas espécies, a colaboração é mais comumente associada às colônias de insetos enquanto a competição, aos grandes predadores. Tanto entre espécies (a aniquilação das presas) como intra espécie (a primazia ou, em última instância, sobrevivência do mais apto (o melhor caçador, no caso)).

Temos, então, ao menos duas variáveis determinantes do caráter mais competitivo ou colaborativo de uma espécie – a saber, número e tamanho. Pois insetos que colaboram em colônias são pequenos e numerosos enquanto predadores, grandes e, via de regra, solitários. Salvo, é claro, os pequenos bandos. É só comparar a vasta área de domínio de felinos numa savana com a enorme densidade demográfica de minúsculos formigueiros ou colmeias.

Deste modo, se pode afirmar com bastante segurança que quanto maior o indivíduo de uma espécie, maior a probabilidade de se tratar de um predador; e que, inversamente, quanto menor, mais chance de pertencer a um coletivo colaborativo. A esta altura, não faltará quem se lembre de inofensivos elefantes, bovinos, girafas ou baleias – mas, ora bolas, o que seria de qualquer regra não fossem as exceções ? Tratemos, pois, de refinar a equação: talvez o pequeno tamanho de uma espécie seja mais determinante de seu caráter colaborativo do que o grande porte de um comportamento competitivo. Ou, noutras palavras, que, em se tratando de determinar um comportamento colaborativo, o tamanho do bando seja muito mais importante do que o do indivíduo.

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Sem chegar, assim, a nada muito conclusivo (pensando bem, é melhor deixar a modelagem matemática para os economistas), esqueçamos um pouco o binômio competição X colaboração no reino animal para nos debruçarmos sobre o aparente paradoxo da espécie humana, de comportamento colaborativo (pelo menos assim quer Harari, ao nos distinguir de outras espécies, inclusive humanoides, pela capacidade única de colaboração em larga escala), não obstante seu porte avantajado, de um grande macaco, típico de predadores.

Além disso, a relação do homem com as outras espécies, já que a mera criação e/ou exploração de outros animais, seja para abate, produção em vida de outros alimentos e commodities (leite, ovos, mel, lã, etc.) ou tração, se configura, ainda que nem sempre em predação, em inquestionável dominação.

Nos ocupemos, pois, apenas da relação do homem com outros homens. Conquanto a tradição humanista prefira pensar no homem como essencialmente colaborativo em relação a seus pares, toda sociedade humana é hierarquizada, premiando com posições de maior remuneração, liderança ou prestígio aqueles indivíduos reconhecidos, mediante sofisticados instrumentos antropométricos, como melhores ou mais aptos. Isto vale tanto para as democracias liberais, onde empreendedores mais ousados triunfam e políticos mais astutos são eleitos, como para as sociedades mais igualitárias, nas quais todavia persiste a  distinção entre líderes e classes trabalhadoras.

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Tornando à instigante frase que serve de epígrafe a este post, entendemos que a humanidade somente escapará da auto aniquilação quando conseguir abrir mão de sua índole competitiva. Antes disso, porém, é preciso que cada indivíduo se posicione em relação a reconhecer a competição como um fato biológico, inerente à condição humana, como querem os adeptos à economia de mercado; ou se, antes, se trata de uma construção exclusivamente ideológica, invocada para agregar naturalidade e ares de “respaldo científico” à ideia de exploração do homem pelo homem.

2 comentários em “Textos sombrios (i): sobre competição X colaboração

  1. Excelente texto! Creio que somos construídos desde o nascimento, para a ideologia da competitividade, sim. E hoje mesmo, lendo o evangelho sobre o Filho Pródigo, me percebo com ranços da competição. É algo que, para ser mudado, precisa de novas maneiras de educar. Não ê fácil, mas sempre é possível.

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  2. Talvez, Augusto, ainda estejamos a caminho de criar e assumir modelos econômicos e sociais mais horizontais e colaborativos…
    Espero que não seja necessário ‘cair o meteoro’ pra isso…
    De qualquer forma, nos vemos diante do vão do abismo e tomar uma atitude seja imprescindível!!!!

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