Mais a propósito da peste: uma visão auspiciosa sobre o futuro da economia

Quando decretaram a quarentena, os primeiros textos que surgiram – fora o mantra do capitalismo agonizante a incitar que todos voltassem ao trabalho – denotavam uma preocupação crescente sobre como manter a sanidade mental durante o período de isolamento.

Quando se tornou mais evidente que a quarentena deveria se prolongar por muito mais tempo do que uns poucos meses, começaram a aparecer aqueles de índole mais filosófica, sobre a impossibilidade de um dia retornarmos à normalidade como a conhecíamos – já que, depois do vírus, o mundo seria necessariamente outro.

Cientistas procuram uma cura para a covid-19. Humanistas imaginam possíveis cenários para depois da pandemia. É da natureza da mente humana. Destas projeções, que oscilam entre a catástrofe iminente e a luz no fim do túnel, é natural que muitas se constituam como especulações sobre o futuro da economia. Pois nunca, nem quando das primeiras grandes navegações ou da industrialização, que foram fenômenos graduais, nos deparamos com uma realidade ao mesmo tempo tão repentina e disruptiva das relações de trabalho e econômicas. Neste contexto, é compreensível o clamor desesperado pela manutenção da ordem vigente por parte daqueles que tentam preservar o que já acumularam e, por outro lado, não conhecem nenhum outro meio de acumulação. Não é disto, no entanto, que trataremos aqui, até por que já estamos saturados destas informações, tanto em fontes centralizadas, como governo e mídia, como, principalmente, das dispersas em redes sociais.

Assumimos, então, que a economia como existia até o surgimento do vírus já era. A globalização das marcas, por exemplo. Se hoje consumimos bens produzidos em confins longínquos, escolhidos apenas em razão de custos de produção (leia-se trabalhistas) mais vantajosos para os proprietários de marcas e levados desde onde foram produzidos até onde serão consumidos às custas de petróleo que suja os mares e a atmosfera; todo o sistema cai por terra devido ao colapso das redes de abastecimento, as quais pressupõem, por sua vez, circulação maciça, hora proibitiva. Sem marcas, cai a indústria da publicidade. Tudo como num castelo de cartas.

Isto no plano global X regional. Vejamos, agora, um pouco mais de perto. Mais especificamente, no plano urbano X rural. No ponto em que estamos da pandemia, já começam a se abater as primeiras restrições ao funcionamento de supermercados, até então preservados como serviços essenciais. Algumas voluntárias, por parte de clientes que preferem comprar em estabelecimentos menores (i.e., com menor circulação); outras de grandes lojas que começam a impor restrições à circulação dos clientes. Ora, supermercados são uma forma de varejo extremamente concentradora, para conveniência e alegria de seus (grandes) proprietários, já que oferecem, num espaço relativamente pequeno operado por muitos empregados, muitos produtos a muitos clientes. Como tais, se constituem como um duplo vetor de contaminação. Falo, é claro, da promiscuidade de muitos clientes compartilhando o mesmo espaço restrito com muitos empregados.

O pequeno comércio, tido por hora como alternativa, tampouco terá, se mantida por muito tempo a quarentena e o crescimento da curva de contaminação, uma maior sobrevida. Com efeito, não tardará o dia em que as próprias tele-entregas serão vistas com tendo um elevado potencial de contaminação.

Paro por aqui. Poderia me deter sobre a crise de qualquer profissão liberal que dependa, em maior ou menor grau, de alguma fricção social. Pois é difícil imaginar algum trabalho majoritário que não envolva encontros presenciais.

Cabe, aqui, um parêntesis para lembrar que o colapso das profissões, formulado por Frey e Osborne (Oxford, 2013) e citado por Harari e tantos outros, veio subitamente, por conta de um vírus, bem mais cedo do que o previsto e não gradualmente, como se esperava, ao longo dos próximos 20 ou 30, em razão da crescente automação.

* * *

Um dos aspectos mais cruéis do vírus é sua seletividade em relação ao poder econômico, i.e., acabará matando mais pobres do que ricos. Pois os últimos podem se proteger e os primeiros, não. Tal fato, super comentado e óbvio demais para que o expliquemos aqui, é mesmo saudado pela extrema-direita como promotor de um “realinhamento” há muito tido como necessário (mais aqui). Mesmo a esquerda se refere ao que chama de genocídio dos mais pobres como uma consequência inevitável da doença.

É aqui que me permito discordar. Sem negar a exploração e expropriação da população dos cinturões de miséria ao redor de toda grande cidade por uma elite gananciosa, que é real, avento a hipótese de que, ao menos, o perigo iminente de uma proximidade social exacerbada (sem falar das condições de saneamento precárias) simplesmente não existiria se tais populações estivessem a produzir no campo, de onde foram empurradas para a periferia urbana pelo avanço do latifúndio. Sim, estou a falar de reforma agrária. Que foi empurrada com a barriga, como um problema vago, para o futuro, mas que responderia muito mais satisfatoriamente a esta crise do que medidas emergenciais e assistenciais.

Notem que uma reforma agrária proveria não apenas uma resposta agressiva para o problema do isolamento em regiões densamente povoadas, mas, além de representar uma inquestionável melhora na qualidade de vida (principalmente em tempos de conexão digital universal) de quem hoje habita o inabitável e vive de esperança de uma inclusão que nunca chega, aponta alternativas para o colapso da economia global que hoje experimentamos.

É fácil entender. Se hoje consumimos bens produzidos globalmente – desde grãos cujas safras são negociadas em bolsas transnacionais até acessórios esportivos supérfluos (o fenômeno de como a ideia de bem-estar “colou” em marcas desportivas, como Adidas ou Nike, é bem interessante e merece, por si só, um olhar mais demorado) – é por que a globalização determina, mais cedo ou mais tarde, deliberadamente ou não, o colapso de redes de produção e abastecimento locais. Talvez a chave do problema seja comprarmos de muito longe o que é mais barato, ainda que supérfluo,  ao invés de buscarmos mais perto tão somente o que é necessário.

Antes de finalizar, preciso aludir a dois casos didáticos que me ocorrem, um de longe, macro, e outro bem de perto. Pensem no embargo comercial a Cuba. Se a pequena ilha realmente precisasse de algo que o poderoso cerco norte-americano insistiu por décadas em lhe negar acesso, há muito teria sucumbido, não tendo hoje um dos melhores sistemas de saúde do mundo nem oferecendo generosamente ajuda a países hora dedicados (bem, ao menos um deles) à pilhagem de máscaras de proteção.

E antes que me acusem de uma visão naive, que a macro economia não é bem assim, que o mercado e as finanças internacionais tem seus meandros complexos, acessíveis apenas a iniciados, etc. e tal, me permitam relatar um descobrimento singelo, por ocasião do início da quarentena, quando as tele-entregas ainda não eram a regra. Preocupado com a manutenção do abastecimento de víveres, perguntei numa rede social que mercadinhos entregavam listas de compras em Porto Alegre. Foi quando dois amigos (obrigado, Marta e Fábio !) me falaram, imediata e simultaneamente, de um agricultor de Nova Santa Rita (município próximo a POA), que, uma vez por semana, entregava cestas orgânicas na cidade.

Sou um sonhador. Imagino um mundo sem publicidade e sem intermediários. Pressionados pelo vírus, já estamos fazendo o downgrade do supermercado para o mercadinho da esquina. Mas a descoberta da Família Argolo, de Nova Santa Rita, que faz chegar legumes e verduras diretamente de onde são produzidos até a porta de minha casa, me ajuda a sonhar que um mundo melhor é possível.

Um comentário em “Mais a propósito da peste: uma visão auspiciosa sobre o futuro da economia

  1. Excelente reflexão! Dá, sim, pra cultivar algum otimismo. E naïve é a vó de quem te acusar disso! Sobre a impossibilidade de voltarmos “ao mundo como era antes”, isto soa altamente exagerado, não? Serão apenas alguns meses de “anormalidade”… I hope so!

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