O marketing da bondade

Serei breve.

Não é nova a máxima de que é na crise que mais se lucra. Em tempos de coronavírus, não poderia ser diferente. Desde que o Jornal Nacional mudou drasticamente suas diretrizes editoriais para incluir em seu noticiário os nomes de empresas que, em última análise, fazem o que o governo deveria fazer mas não faz, grandes anunciantes passaram a desfrutar de um espaço tremendamente mais privilegiado do que os intervalos comerciais, até pouco tempo exclusivamente disponíveis, para agregar à sua imagem institucional a de grandes benfeitores públicos. As peças publicitárias que vem na esteira das notícias de doações de bilhões e milhões ao sistema de saúde são igualmente comoventes.

Neste contexto, tenho que concordar com um amigo que afirmou, dias atrás, que, face ao lucro auferido no ano passado por um grande banco – a saber, mais que 26 bilhões de reais – sua outrossim impressionante doação de 1 bilhão (que lidera o rol de grandes benfeitores da Globo) representa muito pouco. Já hoje outro amigo bem observou que as notórias e recorrentes doações de alimentos pelo MST são sistematicamente ignoradas pelo supracitado noticiário. Como se jamais tivessem existido. É claro, pois, estarmos diante de um padrão de omissão e ênfase. Dá prá acreditar que o mesmo seja obra do acaso ?

Acho que não. Da mesma forma que não acredito que a ausência, até agora, na grande mídia do já bem conhecido nas redes sociais manifesto holandês em prol do decrescimento (assunto de um próximo post, necessariamente mais longo) seja de modo algum gratuita. Pois basta lembrar que o bravo manifesto identifica a publicidade como um dos principais setores econômicos que precisam encolher radicalmente. Ora, é a mesma publicidade que sustenta o sistema vigente de mídia comercial. Por isto, nunca foi tão verdadeiro o título da canção A revolução não será televisionada, de Gil Scott-Heron, que comentava a agitação social e política nos EUA nos anos 60 e 70.

Sei que soa “do contra” e mesmo antipático levantar objeções ao aparente desapego ao lucro de empresas que desinteressadamente equipam UTIs e doam cestas básicas e equipamentos de proteção individual. É claro que, em momentos como este, toda ajuda é sempre bem-vinda. Notem, no entanto, que tais medidas paliativas (que tentam, como já disse acima, substituir o descaso governamental) seriam muito mais amplas se tais empresas simplesmente tivessem seus lucros devidamente taxados e, com isto, governos passassem a dispor de recursos suficientes para fazer sua parte.  Temos, então, que a farsa do marketing da crise não passa de bandidos fazendo pose de mocinhos.

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PS. Depois de escrever o desabafo acima e ao procurar na web uma imagem ilustrativa para o post (sempre faço isto desde que me disseram que posts com imagens tem maior audiência), formulei a seguinte a teoria conspiratória:

se (premissa 1) o quadro do JN se chama Solidariedade S/A e não (como poderia muito bem, por analogia, se chamar) Solidariedade LTDA.; e

se (premissa 2) sociedades anônimas (SAs) costumam ser bem maiores do que aquelas por cotas de responsabilidade limitada (LTDAs),

subentende-se (conclusão) que o espaço se destina, idealmente, a informes de grandes empresas – como é o caso das que  têm cacife para anunciar no horário nobre da emissora.

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