Como a peste acelera a agonia do broadcasting

Não é de hoje que a televisão aberta vem dando claros sinais de esgotamento frente a outros meios mais interativos ou, no mínimo, customizáveis. Quando perguntei, tempos atrás, a um de meus filhos qual o sentido dele navegar na web enquanto permanecia diante da TV ligada indiferente à mesma, sua resposta foi rápida e categórica: “é que aqui (no celular) tenho mais opções e maior controle sobre o que quero assistir”.

A grade de programação da TV comercial aberta se consolidou, grosso modo, como um mix de noticiários, telenovelas, reality shows, programas de entrevistas e variedades (geralmente com auditórios), filmes e seriados – estes últimos anteriormente referidos como “enlatados”. Com a pandemia, toda a rede de produção, pelas emissoras, das quatro primeiras categorias  acima colapsou.

Os auditórios foram os primeiros a desaparecer. Cada vez mais passamos a ver repórteres com máscaras e, pouco a pouco, apresentadores e âncoras começaram a transmitir de suas casas. Entrevistas e depoimentos passaram a ser obtidos por meio de videoconferência. Mesmo que alguns telejornais, com cenários e bancadas imponentes e estúdios super povoados,  ainda resistam, o formato está com os dias contados. Comparem, por exemplo, a parafernália envolvida (e diretamente associada ao conceito dos mesmos) em telejornais de abrangência nacional com aquela de seus primos mais pobres, os noticiários locais e regionais, que já aderiram a formatos mais econômicos.

Cabe, ainda, notar que, face ao colapso das estruturas de produção, a TV mergulhou numa profusão de reprises. Não só de telenovelas mas, também, de entrevistas requentadas e, espantosamente, partidas de futebol. Nunca antes acervos televisivos foram tão importantes.

Com tudo isto, os conteúdos veiculados pela TV estão cada vez mais parecidos com o que vemos habitualmente em redes sociais. Com a significativa vantagem, cabe lembrar, de que, em redes sociais (narrowcasting), podemos, ao contrário de na TV (broadcasting), 1) melhor custumizar conteúdos e 2) interagir, se assim o quisermos, com seus transmissores. Não é pouca coisa. Assim como não tem sido pouca a capacidade de rápida reação e adaptação da TV a novos contextos desfavoráveis desde o surgimento da internet. De modo que, diante de inequívocos sinais de mudança, é impossível prever a sobrevivência ou não de grandes conglomerados televisivos

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A TV sempre funcionou, tradicionalmente, em sintonia com valores centralizados. Poucas emissoras. Grandes patrocinadores. Programas tipo “one size fits all”, capazes de captar audiências num vasto território. Neste cenário, chama muita atenção campanhas como VAE (Vamos Ativar o Empreendedorismo), uma ode ao pequeno negócio. Se vingar, uma coisa é certa: empresas individuais ou familiares incentivadas pela supracitada campanha jamais estarão em condições de comprar as caras janelas publicitárias comercializadas por redes concessionárias de TV junto a grandes grupos empresariais.

Talvez a Globo não espere, com uma boa dose de razão, que, em decorrência da provável explosão de pequenos empreendimentos incentivados pelo VAE, seus grandes patrocinadores quebrem. O que denotaria uma disposição da emissora de, na impossibilidade de prever que ventos soprarão na economia, ficar bem com todo mundo, tanto grandes quanto pequenos. Numa posição corporativa, diga-se de passagem, perfeitamente razoável. Como a de empresas que, em eleições, doam para campanhas de candidatos rivais. Mas, como ninguém é bobo, trata de diversificar as fontes de seu capital de custeio. Isto pode ser claramente observado na agressividade com que vem promovendo seriados, nacionais e enlatados, em sua plataforma de streamming (pago) Globoplay. É como se, na incerteza de poder contar, num futuro não muito distante, com seu custeio maciçamente bancado por anunciantes, busque inclinar drasticamente sua matriz de financiamento para  consumidores finais de sua programação, até então acostumados a não pagar nada pelo que assistem na TV aberta.

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Em sua agonia, a TV não esconde a relação ambivalente que mantém com sua grande rival, a internet. Ao mesmo tempo em que tenta, desajeitadamente, assimilar atributos tão afeitos à web quanto estranhos ao broadcasting (como, por exemplo, o arremedo de interatividade das “votações populares” em reality shows), reivindica para si um suposto monopólio da credibilidade, por sua vez apregoada como o calcanhar de Aquiles das mídias sociais. Como se o jornalismo tradicional, e somente ele, fosse capaz de verificar a veracidade do que é veiculado. Ora, é largamente sabido que, na infância da rede, da qual mal saímos, notícias falsas são abundantes – tanto que seu manejo pode facilmente eleger um presidente. Umberto Eco estava coberto de razão quando disse que a internet era habitada por uma legião de idiotas – declaração que lhe custou a acusação de ser um netskeptic.

A suspeição levantada acerca da credibilidade da web é, no entanto, apenas transitória. A rede veio para ficar e, diante de seu avanço inexorável, é cada vez mais necessário que seus usuários dominem uma das habilidades descritas por Howard Rheingold como dentre as competências essenciais à aprendizagem no século 21, a saber, crap detection (detecção de lixo). O exemplo clássico de Rheingold é uma biografia falsa, caluniosa, de Martin Luther King, que desponta em primeiro lugar numa consulta ao Google, plantada num site mantido pela Ku Klux Klan.

Acreditar no monopólio de empresas jornalísticas sobre a competência para a verificação de fatos é mais ou menos como defender a volta de datilógrafos ou, ainda, de revisores em salas de redação. Pois novas tecnologias implicam em novas responsabilidades (que me perdõe o Homem Aranha pela apropriação).

Mas não é só por meio de notícias falsas que se pode distorcer a realidade. Padrões de omissão e ênfase também dão conta de imprimir claramente em mensagens posições ideológicas assumidas por seus enunciantes – e, neste ponto, veículos de imprensa são tão parciais quanto quaisquer perfis proselitistas nas redes sociais das quais tanto desdenham. Vejam, por exemplo, o contraste entre, de um lado, a ampla cobertura dada pela Globo a ações filantrópicas corporativas e, de outro, seu absoluto silêncio sobre as repetidas doações de alimentos pelo MST a populações mais afetadas. A imparcialidade jornalística é um mito.

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