Mais sobre o fim da imprensa e por que a matriz tributária é socialmente injusta

Recapitulando. No post anterior, examinamos dois grandes mitos acerca do jornalismo corporativo, a saber,

que a imprensa detém uma espécie de monopólio sobre a capacidade e a vontade de verificar a veracidade dos fatos; e

que a imprensa é isenta de interesses próprios ao reportar fatos.

Estes dois mitos são os principais argumentos levantados em favor da auto alegação da imprensa de que a mesma desfrutaria, a priori, de mais credibilidade do que a internet. Esperamos ter deixado isto claro até aqui.

No presente texto, o foco é na diferença entre a natureza da composição de esforços empreendidos por pequenos e grandes negócios, dentre os quais os jornalísticos, em prol da conquista e manutenção de posições privilegiadas entre competidores; bem como na possibilidade ou não de que pequenos e grandes coexistam num mesmo ecossistema desregulado. À natureza dos esforços, então.

Enquanto pequenos negócios, naturalmente melhor ajustados a seus nichos de atuação (demandas locais mais específicas e conhecidas) podem se concentrar melhor em suas atividades fim, de produção, gigantes de qualquer ramo – tendo que, necessariamente, atender a demandas mais genéricas e dispersas – precisam investir proporcionalmente muito mais em iniciativas de dominação de mercado, tais como publicidade e logística de distribuição, que, por sua vez, pouco ou nada tem a ver com suas atividades fim.

Para tornar a equação ainda mais complexa, pequenos negócios, enquanto locais, enfrentam muito menos concorrência, muitas vezes inexistente em seus territórios de atuação, do que grandes empresas, as quais precisam lidar habitualmente com outras, congêneres, cujas regiões de abrangência se sobrepõem.

Combinados, tais custos adicionais de distribuição, promoção e posicionamento vantajoso em relação à concorrência (os dois últimos se confundem) tornam, para as grandes corporações, bem mais oneroso produzir os mesmos bens e serviços que os pequenos negócios. Devo esclarecer que esta é uma visão um tanto quanto exótica, na contramão do que afirma a economia tradicional, que apregoa vantagens da produção em grande escala na redução de custos. Até que ponto a economia com custos de distribuição e publicidade compensaria as supostas vantagens da produção em larga escala é uma pergunta a ser respondida por economistas.

Pode ser que, sob um escrutínio minucioso, a produção em escala se revele, num balanço frio de custos e ganhos, financeiramente mais em conta do que a de uma rede de micro produtores. Ainda assim, no entanto, tal arranjo das forças produtivas não seria necessariamente melhor para a sociedade, principalmente por causa de dois fatores:

grandes negócios geram mais concentração e, consequentemente, mais desigualdade; e

quanto mais global for um negócio, maiores serão os custos, ambientais e financeiros, para que seus produtos cheguem às praças de consumo.

Razões suficientes, em nosso entender (noves fora a praga da publicidade), para incentivar os pequenos negócios em detrimento dos grandes.

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No post anterior, insinuamos certa ambivalência da Globo ao incentivar pequenos negócios ao mesmo tempo em que abriga em sua matriz de anunciantes exclusivamente grandes corporações. O que leva, inevitavelmente, à seguinte pergunta: pode ou não um governo ou agentes privados estimularem ao mesmo tempo grandes e pequenos ?

A menos que o resultado desejável seja uma guerra predatória, a resposta é não. Pois, ainda que, via de regra, pequenos negócios almejem crescer (abrir filiais, ter mais funcionários ou, se quiserem, “colaboradores”), todo grande negócio tende a absorver sua própria concorrência. Já me referi anteriormente ao “efeito espuma” na economia, segundo o qual um sistema composto de um número enorme de bolhas minúsculas tende, se deixado em repouso (i.e., sem a intervenção de agitação ou qualquer outra força externa, em economia geralmente sob as formas de regulamentação e tributação), a se transformar noutro com um número menor de bolhas maiores. A criação, anos atrás, da Ambev (espantosamente tolerada pela regulamentação anti-truste), é um claro exemplo disto. Outro é a absorção pela Coca-Cola de  inúmeras marcas locais de bebidas não alcoólicas, tanto de refrigerantes como de chás e águas minerais.

Então, não dá para ser ao mesmo tempo a favor de grandes e pequenos, por que uma atitude ou outra implica em ações diferentes, muitas vezes antagônicas. Como, por exemplo, a taxação.

Estamos acostumados à ladainha de empresários, que sentem seu lucro ameaçado, de que, no Brasil, impostos são muito altos, beirando o proibitivo, tornando praticamente inviável a realização de negócios no país. O chamado Custo Brasil. Estranhamente, não fecham as portas. Mas isto é outra história. O que nos interessa, aqui, é notar que a matriz tributária brasileira está invertida – só que ao contrário do que é amplamente alardeado.

Vejam, por exemplo, o caso do imposto de renda, que taxa muito mais pessoas físicas, com alíquotas progressivas que variam entre 0 a 27,5 %, do que jurídicas, que recolhem 6 ou 15 % de seu lucro, dependendo do regime tributário a que estão submetidas, e, o que é pior, independentemente da magnitude do lucro auferido. Pois o lucro de uma empresa de médio ou grande porte costuma ser bem maior do que os vencimentos anuais dos mais bem pagos assalariados.

Reparem, ainda, que, enquanto pessoas físicas são taxadas sobre a totalidade de sua renda líquida, empresas recolhem impostos apenas sobre o lucro. Num sistema minimamente isonômico entre pessoas físicas e jurídicas, as últimas deveriam pagar imposto de renda sobre o faturamento e não sobre o lucro. Há, além disto, impostos indiretos como o ICMS (estadual, de 18 a 30 % no RS X 8,25 % em Nova Iorque), o IPI (federal) e o ISSQN (municipal), via de regra transferidos ao consumidor final, embutidos no custo de quaisquer produtos e serviços.

Diante desta discrepância de magnitudes, um sistema que de fato estimulasse os pequenos negócios deveria taxar os maiores progressivamente (o que não é feito) e ter tetos de alíquotas bem mais altos. Sei que parte significativa do argumento de que o Custo Brasil é proibitivo para empreendedores se refere à quantidade de tributos, que não é pouca. Todavia, qualquer matriz tributária que permita lucros ilimitados aos grandes às expensas do achatamento dos ganhos dos menores, sejam eles indivíduos ou pequenos negócios, é socialmente injusta, na contramão do advento de uma sociedade auto sustentável e menos desigual. Num mundo perfeito, políticas regulatórias tributárias seriam implementadas com valores de alíquotas móveis, empiricamente ajustados, até que se lograsse algum decrescimento e, consequentemente, melhor distribuição de riqueza.

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Hesitei bastante antes de escrever este libelo em prol da maior taxação dos mais ricos, pois achava que, antes de aludir à discrepância entre, de um lado, a parcimônia na taxação de grandes capitais e, de outro, a implacabilidade na das pequenas economias, deveria proceder a um estudo detalhado da totalidade dos tributos incidentes sobre cada categoria – para o qual, confesso, me faltou persistência e conhecimento econômico/contábil. Deixei, no entanto, este preciosismo de lado (e os cálculos aos economistas) ao me lembrar da recomendação de Steve Fuller, em O Intelectual, de que este deve preferir sempre a abrangência à profundidade. Assim, de pouco importa que grandes capitais paguem, como alegam, impostos demais enquanto sua riqueza continue crescendo em proporções maiores do que a dos pequenos.

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Deixando de lado os atores econômicos em geral para retornarmos ao caso da imprensa, bem como da tese de que pequenos negócios podem focar melhor em atividades fim do que os maiores, temos que, enquanto pequenos veículos (hoje os digitais) podem se voltar melhor e com custos inferiores ao conteúdo (vejam o caso dos sites de notícias); já os maiores, como jornais e revistas impressos e redes e emissoras de rádio e TV, precisam investir pesado em custos tecnológicos de produção e de distribuição. Comparem, por exemplo, os custos de manutenção de um site de notícias (tal qual o que hospeda este blog), que se vale de facilidades da internet e precisa manter, além de recursos humanos,  tão somente software e servidores, muitas vezes licenciados ou terceirizados, com os de jornais, revistas ou emissoras de rádio e TV, que precisam manter também estúdios, transmissores e parques gráficos.

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Pode-se argumentar que sites de notícias mais estruturados sejam não mais do que uma nova forma de broadcasting (i.e., comunicação unidirecional, sem um back channel facilitado) e, neste ponto, não muito diferente de veículos de imprensa tradicionais enquanto menos afeitos à publicização da “voz do leitor/ouvinte”. Até certo ponto. Pois, enquanto o menor número de veículos impressos e estações ou redes de rádio e TV favorece a manutenção de um bias ou de uma versão hegemônica, senão única, dos fatos, amplificada por um “cartel” tácito de interesses comuns (como, por exemplo, a existência de apenas um pequeno número de concessões de frequências de transmissão); a “algaravia” de um ecossistema mais capilarizado de fontes, como é o caso da enorme quantidade de sites existentes, torna muito mais fácil e, por conseguinte, frequente a enunciação de contraditórios.

O broadcasting mais se parece com produtos industrializados oferecidos nas prateleiras, com poucas marcas para cada categoria: é pegar ou largar. Seu consumo é, inquestionavelmente, mais fácil, porquanto acrítico. Narrowcasting, todavia, dá mais trabalho. Exige uma opção mais ativa em relação a um número muito maior de fontes – fragmentando, dir-se-ia, a confiança (ao contrário do que parece, isto é bom !) e responsabilizando mais os usuários por suas escolhas. Para usar da mesma analogia, se trata de produtos mais diversos e customizáveis. Claro está, portanto, na dicotomia broadcasting/narrowcasting, de que lado estamos.

 

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