A pobreza da TV e do streaming; documentários que se salvam

Nunca gostei muito de ver TV. Com a quarentena, todavia, passei a prestar mais atenção nela – tão somente para confirmar o que sempre ouvira dizer, a saber, que a programação é um desastre. Indistintamente na aberta, na por assinatura (que, por lógica, deveria ser ligeiramente melhor) e, mais recentemente, nas plataformas de streaming.

O problema maior consiste na falta de memória em relação ao cinema. Inútil procurar grandes filmes europeus dos anos 70 ou mesmo coisas mais recentes. Por exemplo. Quando quis mostrar a meus filhos clássicos protagonizados pelo grande Michel Piccoli ou Fargo, dos irmãos Coen (quase deste milênio), nada encontrei.

É claro que alguns canais estão mais imunes a thrillers, séries e lançamentos mais recentes do cinemão americano. Como o Telecine Cult, com uma curadoria um pouco mais atemporal, ou o HBO Mundi, pródigo em filmes europeus e argentinos. Ainda assim, a desproporção é grande, pois praticamente tudo que não foi produzido nos últimos anos em um único país fica concentrado em uns poucos canais – a cuja grade de programação devemos nos adaptar se quisermos escolher minimamente ao que assistir.

Já o streaming – que, ao menos em tese, veio para resolver o problema da customização do horário de exibição – deixa totalmente a desejar na palheta de opções disponíveis. Não é de hoje que constataram ser impossível impossível encontrar algum Hitchcock (qualquer um) no Netflix. Neste quesito, até o Cult, que reprisa Psicose, Janela Indiscreta ou Os Pássaros de tempos em tempos, desempenha melhor.

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Num mundo perfeito, com uma verdadeira política inclusiva, serviços digitais por assinatura deveriam, assim como saúde, educação ou segurança, ser gratuitos. Custeados por impostos e providos pelo estado. Acabando, com isto, com o pote de ouro do segmento ponto com – uma assimetria econômica (empresas que lucram barbaramente controlando o tráfego de informações) que precisa ser corrigida. Não acho, no entanto, que venha a viver suficiente para testemunhar isto.

De minha parte, resisto o que posso (romanticamente, dirão) assinando o mínimo de serviços que consigo. Consoante a isto, não tenho Spotify. Sei, por outro lado, por meio de amigos, que a base de conteúdo na popular plataforma de streaming de áudio é enormemente mais ampla e isonômica (em relação a épocas e lugares de produção) do que as análogas (Now e Netflix) dedicadas a conteúdos visuais.

Tenho uma hipótese (ou, se quiserem, teoria conspiratória) a este respeito. Tem a ver com o custo de armazenamento. Por que arquivos de áudio são muito mais curtos e menos densos do que os de imagem, são necessários muito mais bytes de memória para armazenar um trecho de imagem em movimento do que o mesmo tempo de som gravado. Além disso, uma música dura, em média, muito menos do que um filme. Combinados estes dois fatores, temos que a proporção entre as quantidades de servidores necessárias para armazenar filmes e músicas cresce, com o aumento da oferta de conteúdo, não numa relação linear, mas exponencial. Com o que plataformas de streaming de conteúdo visual sofrem, então, uma pressão econômica muito maior para “limar” conteúdos menos acessados do que suas análogas sonoras.

Tal realidade só aguça a tragédia da extinção das cinematecas e video-locadoras.

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Outra honrosa exceção à mesmice da programação da TV por assinatura são os documentários. No último fim de semana, assisti por acaso (teria visto mais se houvesse me programado) a três excelentes. No primeiro deles, Varda por Agnès (2019), em forma de entrevista, tomei conhecimento da obra visual da instigante cineasta e fotógrafa belga, radicada na França.

A Arma Perfeita e A Guerra dos Consoles, ambos de 2020, se inserem na mesma tradição de O Dilema das Redes, na qual os realizadores procuram explicar, por meio de entrevistas com insiders (analistas, executivos e projetistas), estratégias políticas e corporativas, nem sempre explícitas, que resultaram em fatos e produtos que definem o mundo em que vivemos mas cuja compreensão histórica ainda é um tanto nebulosa em razão de ser tudo muito recente.

A Guerra dos Consoles, baseado no livro homônimo de Blake Harris, é sobre a competição predatória entre a Sega e a Nintendo pelo voraz mercado de videogames nos EUA nos anos 90. Não vi até o fim (tive que sair antes disso), mas fiquei querendo que a narrativa se estendesse até as plataformas da Sony e aos jogos online. A Arma Perfeita versa sobre a ação de “hackers de estado” russos e chineses minando ainda mais a credibilidade do já claudicante sistema eleitoral norte-americano. Tanto um como o outro são excelentes aulas de história recente – ou, para quem não concordar com os fatos apresentados ou com a correlação estabelecida entre os mesmos, ao menos ótimas teorias conspiratórias. Mas, afinal, o que não é, desde o mais singelo silogismo categórico, uma teoria conspiratória ?

(mais sobre teorias conspiratórias e sua reabilitação num próximo post, pois este já se alongou que chega)

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