Relativismo moral: o álcool no Big Brother e na novela das 9

Telenovelas como a das 9 e reality shows como o Big Brother me causam profundo incômodo, até irritação. São reações instintivas, na maioria das vezes sem qualquer justificativa racional. Noutras, mais raras, sou acometido por insights capazes de explicar tamanha aversão. É só por causa de uma destas constatações que invado a esfera intelectual de meus leitores, via de regra avessos a tais baixarias que povoam o horário da Globo entre seus dois telejornais noturnos. Se me detenho, aqui, em certos detalhes deste tipo de lixo televisivo, é tão somente para poupá-los da entediante exposição a estes programas para entender do que estou falando.

Na atual novela das 9, um personagem alcoólatra – uma cantora de meia idade, mãe de um adulto, que se apresenta em bares às próprias expensas, sem êxito para fazer sua carreira decolar e que aparentemente não compreende a dinâmica do circo de celebridades – é retratado como alguém fraco e raso. Um fracassado que não faz nada por si próprio e que sabota a si mesmo. Num contexto maniqueísta e altamente roteirizado como o das telenovelas, está nitidamente mais para lado dos maus do que dos bons.

Noutro contexto, o do Big Brother, o consumo descontrolado de álcool é não somente tolerado como incentivado, em festas semanais, como um expediente para provocar maior desinibição e espontaneidade por parte dos participantes.

Então, temos que, em programas distintos, ainda que em janelas adjacentes na grade de horários da emissora, o consumo de álcool é mocinho e bandido ao mesmo tempo. Se isto não é relatividade moral, então não sei mais o que é.

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Tais pesos e medidas diversos para diferentes programas campeões de audiência de uma empresa de mídia que deveria, supostamente, aderir a uma linha editorial é, no mínimo, intrigante, levando, de pronto, a algumas considerações.

A primeira, mais óbvia, é que, em se tratando de canais de mídia, de pouco importa qualquer posição editorial. O que existe é, de fato, um vale-tudo em se tratando de maximizar a audiência.

Já ao examinarmos mais de perto os dois formatos, a principal diferença que salta à vista é que, enquanto a telenovela é, como já dissemos, um gênero altamente roteirizado, i.e., em que autores predeterminam minuciosamente o comportamento, a trajetória e mesmo a aprovação ou reprovação popular de cada personagem; reality shows são como tubos de ensaio nos quais substâncias variadas são misturadas para se descobrir como reagem. Como num laboratório, os reagentes podem ser estimulados a reagir mas rápido ou facilmente por catalisadores como, por exemplo, pressão (competições) ou calor (álcool).

(tudo bem, o Big Brother não é tão imprevisível e descontrolado como nos querem fazer acreditar. A indução de resultados começa na própria seleção dos participantes, na qual produtores se esmeram para escolher candidatos que mais provavelmente produziriam os resultados esperados (confesso que eu até assistiria, por curiosidade e diversão, a uma edição do Big Brother que tivesse, entre seus participantes, alguém que não desse a mínima para o programa, com aversão ao formato, ficando na casa tão somente para desfrutar de suas benesses e, é claro, com uma cláusula de imunidade capaz de impedir que fosse eliminado de pronto por outros participantes ou pelo público em razão de sua recusa explícita em “jogar o jogo”. Mas já tirei meu cavalo da chuva, pois um improvável candidato assim seria o primeiro a ser descartado pelos diligentes recrutadores). Além disto, abundam teorias conspiratórias sobre a manipulação de resultados por realizadores do programa)

Deste modo, uma emissora pode “deitar moral” num programa, dizendo como cada um deve ser e, no seguinte, mostrar que “não adianta, o ser humano é assim”. E se quisermos, podemos ainda entender, por trás da contradição representada por esta dicotomia aparentemente irreconciliável, um possível discurso subjacente à justaposição da mortal roteirizada com a baixaria espontânea que diria “este é o povo que queremos educar/consertar”. Mas será que a emissora pensou nisto ? Acho difícil. O vale-tudo pela audiência deve falar mais alto. Mas e se tivesse pensado, seria um ponto a favor da emissora ou contra ela ? Para responder isto, só mesmo um Huxley (Admirável Mundo Novo), Orwell (1984) ou, mais recentemente (mas nem tanto), Neil Postman (Amusing Ourselves to Death).

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