Sobre Compar LPs usados, Gravações ao vivo ou Para ouvir Bill Evans (iii)

Garimpar discos usados, como eu já disse aqui, é uma tarefa inglória, já que a taxa de êxito costuma ser baixa posto que não é comum alguém se desfazer de seus melhores discos. Minhas incursões periódicas aos comerciantes de usados não fazem mais do que confirmar esta regra. Depois de mapear os briques de discos do centro de Porto Alegre e percorrê-los uma única vez sob um sol escaldante, adquiri o cômodo habito de visitá-los quando, uma vez ao mês, expõem seu acervo no Mercado Público. Para quem procura coisas específicas como eu, é uma experiência frustrante. Nunca achei, por exemplo, nada de Oliver Nelson ou Eric Dolphy. Já paguei um tremendo mico ao levar para casa um disco de Ron Carter, a quem sou indiferente, mas que trazia um saxofonista chamado Bill Evans (sic !), homônimo do pianista genial com o qual o confundira, Podem imaginar o tamanho de minha decepção e de meu senso de ridículo ao constatar o equívoco.

Sem ter aprendido a lição (viciados são assim), repeti a dose dias atrás, quando exultei ao encontrar uma gravação ao vivo, no Festival de Jazz de Montreaux (Suiça), de um duo que produziu um dos melhores discos que já ouvi: Bill Evans com o contrabaixista Eddie Gomez.

Não ouvi o achado imediatamente. Antes, me cerquei do ritual apropriado à ocasião. Botei o disco para tocar enquanto cozinhava, depois de lavar os legumes e cessar definitivamente o barulho da torneira. Nova decepção: o disco recém adquirido sequer chegava aos pés daquele pelo qual sou apaixonado desde a juventude, do qual falarei em breve.Afeito às racionalizações, me pus de imediato a teorizar sobre tamanha discrepância. Primeiro pensei se tratar de um problema da gravação ao vivo. A qualidade do som é curiosa: começa péssima, como se não houvesse passagem de som prévia (o que pode acontecer em festivais com muitas atrações) e o som vai pouco a pouco se endireitando de tal modo que a equalização e a mixagem das últimas faixas é primorosa. Descartei, no entanto, a hipótese, pois assim como há gravações ao vivo artisticamente sublimes, como as do próprio Evans em Tóquio (1973), Paris (1972) e no Village Vanguard de Nova Iorque (1961 e1980), outras são sofríveis.Especulei então se tratar de uma apresentação em que uma formação temporária (a dupla só produziu três discos) explorava repertório ainda não visitado com vistas a um futuro trabalho mais “autoral”. A cronologia das gravações, no entanto, mascarada pelas sequência de datas de lançamento, logo derrubou minha teoria, já que a gravação ao vivo em Montreaux é, na verdade, posterior às do impecável álbum de estúdio Intuition.Por que então o álbum de uma provável tourné é tão pior do que o disco que lhe teria dado origem ? Não sei se isto acontece sempre, mas é bem plausível. Quando um músico consagrado entra num estúdio, está em busca de um novo conceito que defina o álbum a ser produzido como algo novo e indispensável. Para tanto, deixa na porta toda sua celebridade anterior. É como se, a cada novo disco, tivesse que se superar (às vezes me parece que esta fome de renovação se perdeu um pouco na indústria da música).Contribui para este fim a possibilidade de ilimitados takes alternativos e, em alguns gêneros, a de edição. Sim, é verdade que as tomadas alternativas também acontecem em algumas gravações ao vivo, mas só naquelas em apresentações consecutivas num mesmo teatro, clube ou excursão – já que, via de regra, não se toca de novo as mesmas músicas diante de um mesmo público.

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Bill Evans e Eddie Gomez (contrabaixista de uma formação duradoura do célebre trio), gravaram em duo apenas três vezes: numa transmissão de TV (ou rádio) na Holanda, em 13 de dezembro de 1973; nos estúdios Fantasy (Berkeley, Califórnia), de 7 a 10 de novembro de 1974; e no festival de jazz de Montreaux (Suiça), em 20 de julho de 1975. Da segunda ocasião resultou o icônico álbum Intuition.

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A corroborar minha teoria conspiratória de que, enquanto o álbum de estúdio Intuition foi uma realização cuidadosamente planejada, já o ao vivo em Montreaux não mais do que aproveitamento de material de arquivo, estão as fotos das capas dos dois LPs. As fotos das contracapas contam a mesma história.

Ilustram o disco de Montreaux fotos casuais, quase jornalísticas ou até mesmo turísticas, dando a impressão de que os dois músicos estavam em férias (dá para se inferir muito mais do contraste gritante entre a introspecção de um e a alegria de outro, mas aí já é psicologizar demais…), super granuladas e de baixa resolução, talvez por isto mesmo glamourizadas pelo artista gráfico com uma tonalidade sépia.

Já a capa de Intuition traz os artistas numa cuidadosa composição em que os dois posam junto às silhuetas das grandes curvas características de seus instrumentos, tudo cuidadosamente iluminado, pelo grande mestre dos retratos em negativos gigantes novaiorquino Arnold Newman. Sim, o mesmo dos inesquecíveis retratos de Picasso e Stravinsky, entre outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

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