Como os Candlelight Concerts prestam um desserviço à causa de revitalizar o hábito de frequentar concertos

Foi com divertida curiosidade que saí para fazer algo que já há algum tempo vinha querendo, a saber, assistir a um dos celebrados, inovadores e polêmicos (como verão) concertos à luz de velas, mais conhecidos como Candlelight Concerts. Mal começada a apresentação, percebi de pronto que a experiência, que pretendia indolor, se revestia de uma profunda tristeza. Vou direto ao ponto, pois só assim conseguirei dizer o que penso. É que subiram ao palco músicos excelentes, algum deles dentre os melhores que conheço. A pergunta que imediatamente me veio é por que fariam parte de um tipo de espetáculo, pior do que ruim, tão tóxico (como tento demonstrar adiante). A resposta, óbvia, é que não devem ter tido escolha diante de uma proposta irrecusável que, por decoro, me abstive de querer conhecer. Deste modo, os músicos participantes não podem ser culpabilizados pela existência do espetáculo, como se estivessem, através de sua participação, o chancelando. Até por que sei que muitos deles lideram e/ou participam de iniciativas artísticas e educativas de grande valor, muito mais interessantes, mas com pouco valor de mercado e que, consequentemente, não ajudam muito na hora de pagar as contas.

Antes, ainda, de explicar por que tais concertos prestam um desserviço à causa que alegadamente defendem, convém descrever, para quem nunca os frequentou, no que consistem. Já que mais de um amigo que comentou meu spoiler no facebook aludiu à chama ou ao cheiro de velas de verdade. A estes, me apresso em esclarecer que as tais velas são imitações plásticas, alimentadas por pilhas, que simulam a chama trêmula dos objetos de cera que conhecemos. Até aí tudo bem, pois seria no mínimo temerário cobrir o palco (há centenas, talvez milhares, destas velas falsas espalhadas pelo mesmo) com tantos objetos incandescentes, facilmente combustíveis. Toda esta iluminação, com a temperatura de cor idêntica à de velas de verdade, confere ao cenário uma atmosfera “de época”, com os músicos na penumbra durante a maior parte do tempo. Com efeito, foi só no final, com a luz de serviço ligada, que consegui identificar alguns deles.

* * *

E chegamos, finalmente, à explicação de por que este tipo de espetáculo funciona como um tiro no pé. É que, ao emular, mesmo que alegoricamente, a ambientação de como a música era apresentada num passado que nos parece remoto, anterior à luz elétrica, tais apresentações reforçam a falsa e perigosa premissa de que concertos pertencem irremediavelmente ao passado. E se for para evocar uma atmosfera anacrônica, André Rieu se sai bem melhor.

Bem, é preciso reconhecer que a música ouvida no concerto de ontem é bem mais recente do que a dos eventos a que aludem. Não se trata de música antiga em instrumentos de época. O cardápio servido era uma antologia de pop e de rock, com “clássicos” dos Beatles, Queen, Led Zeppelin, Pink Floyd e outros, todos imediatamente reconhecíveis, em arranjos abreviados que mais lembravam aquelas versões curtas das músicas no reality show The Voice.

O conjunto, híbrido, merece um parágrafo à parte. Nele havia um grupo pop bem completo (guitarra, teclado, baixo e bateria), apoiado por naipes reduzidos de metais e cordas. Perdida no meio disto tudo, como único representante dos instrumentos da família das madeiras, uma flauta, cujo som, tão rico e característico, não foi proeminentemente ouvido em nenhum momento. O som das cordas também foi digno de nota. Sim, havia 4 violinos, 2 violas e 2 violoncelos. Mas nada que soasse como naipes de cordas. Não por culpa dos músicos, todos eles excelentes, como disse acima, mas por causa da amplificação. Mais especificamente, da captação. Que achatava a resposta de frequência, praticamente anulando os harmônicos agudos responsáveis pela riqueza do som destes instrumentos quando executados em contextos acústicos. Sei. É complicado misturar, num mesmo palco, o som de violinos com o de uma bateria e um contrabaixo elétrico. Mas possível, como pudemos ouvir nos recentes espetáculos da OSPA com música de cinema e do Pink Floyd.

Contei, ao todo, 17 músicos. Forças instrumentais suficientes, portanto, para levar ao palco uma big band. Ou uma orquestra de câmara. Tentar apresentar algo do tipo “o melhor de dois mundos” bem que mereceria uma atenção especial com o som por parte de uma produção daquele porte. Se não mereceu, é por que a qualidade sonora não importava. Ou importava menos. Mais importante, no caso, eram os violinos, dispostos em maior evidência, como signo inequívoco da música de uma época distante, que era tocada à luz de velas.

Mas aqui já estamos falando da própria motivação para a existência deste tipo de espetáculo, a qual implica no reconhecimento de pressupostos que tem origem na história da indústria da música. Então, lhes peço um pouco de paciência, me perdoando o tom didático, com um breve apanhado de fatos que, ainda que de vosso domínio, podem ser abrigados sob o manto mais genérico da economia da música.

* * *

Desde o início da gravação sonora até o advento da internet e, com ela, da pirataria e, mais recentemente, do streaming, a indústria da música se locupletou, com lucros progressivamente maiores, da produção e comercialização de música em meios físicos, tais como o LP ou o CD. Naquele período, os meios de produção, como estúdios e equipamentos, eram bem mais caros e inacessíveis do que hoje. Agora, em plena era do home studio e da auto distribuição por meios digitais, a indústria teve que, para sobreviver, migrar para outro nicho lucrativo que não a distribuição de música por meios físicos. Assim nasce a era da experiência, na qual pessoas deixam de consumir objetos para consumir vivências.

No plano musical, isto se traduz em espetáculos públicos. Só que, para a indústria, shows deste ou daquele artista representam, mais do que uma solução, um problema, já que apresentações dos mesmos intérpretes costumam ser experiências únicas (ainda que repetidas), controladas e principalmente exploradas por eles próprios ou, no máximo, por agentes que representam, for força da própria complexidade de tais eventos, não mais do que uns poucos artistas.

Faltava, portanto, à indústria um produto que pudesse ser facilmente replicado em série em diferentes lugares com gerenciamento remoto. Pois a padronização e a reprodução em larga escala são pré-requisitos básicos para a existência de qualquer indústria. Os concertos à luz de velas (uma marca registrada) atendem perfeitamente a estas exigências. Arranjos padronizados de músicas conhecidas universalmente executados por músicos proficientes recrutados localmente.

Dito isto, não vale a pena se deter mais sobre a qualidade da música oferecida. Melhor, no caso, é se debruçar sobre a reação do público. Quem foi até lá saiu de casa numa tarde fria pagando valores que variavam de 150 % do que e preciso desembolsar para assistir a um concerto da OSPA (só pare se ter uma unidade de referência) até 5 vezes (sic!) o mesmo valor. Para pessoas pouco habituadas a frequentar concertos, se trata de um montante considerável – o que denota a importância, para as mesmas, de terem tal experiência.

Ainda dentro da mesma linha de comparação, assisti a um excelente concerto da OSPA no dia anterior. Dentre os melhores, senão o melhor, do ano inteiro. Tendo presenciado as duas coisas, me é impossível deixar de notar a forma comedida como foi aplaudida a brilhante execução da 9ª Sinfonia de Shostakovich, com o público se levantando pouco a pouco depois de algum tempo, em relação à imediata ovação em pé, como se houvesse molas sob as poltronas, depois do Candlelight. Mas não se deve culpar o público por isto, já que ninguém pode ser acusado de não saber apreciar o que não conhece. Antes, é preciso tentar compreender como a música deixou de ser hegemonicamente entendida (se é que alguma vez foi) para se tornar um nicho especializado, distante do grande público, o qual, por razões complexas cuja análise não cabe aqui, tem um grau de expectativa cada vez mais rasante.

* * *

É patético ver e ouvir músicos que podem entregar experiências musicais ricas e únicas simplesmente replicando algo igual ao que é tocado em qualquer parte do mundo. Não é à toa que ficam a maior parte do tempo na penumbra, sendo difícil até a quem os conhece identificá-los antes que suas faces sejam iluminadas só no final do show. Por tudo isto, podemos dizer com boa margem de segurança que o formato dos Candlelight Concerts realiza melhor do que qualquer outra iniciativa o ideal de globalização no que tange a espetáculos musicais.

Isto é bom para os investidores ? Sim, com certeza.

É bom para o público ? Depende do ponto de vista. Se o mesmo for considerado como uma massa consumidora acrítica, inocente nesta história, tanto faz.

E para a música ? Definitivamente, não.

2 comentários em “Como os Candlelight Concerts prestam um desserviço à causa de revitalizar o hábito de frequentar concertos

  1. Felizmente, nunca vi esse troço. É claro que deveriam ser utilizadas velas de verdade para deixar o Led Zeppelin mais quente, incandescente. Mas é uma forma de quem não recebe nenhum aumento em seu salário há mais de uma década levantar uma grana. Fazer o quê?

    Curtir

  2. Também fui, achei fraquinho, mas era no Museu do Amanhã (e eu tenho desconto de idoso), daí gostei do passeio. E fui porque era Beatles & Stones, mas não ficou legal… Não vou ensinar o padre a rezar, mas aqueles concertos da Ospa na Reitoria davam mais audiência e lembro bem deles, podem reeditar sem medo.

    Curtir

Deixe um comentário