A declaração desastrada e infeliz, conquanto reveladora, de Eduardo Leite

Este é um texto confessional. Nos primeiros dias da enchente, sem eletricidade nem internet e com água racionada, comecei a escrever um diário, que logo interrompi e desisti de publicar. Nele, vinha intercalando observações rápidas sobre o impacto da tragédia nas rotinas diárias com incursões mais demoradas sobre os mais diversos temas, mais ou menos como faço aqui no blog. Parei por sentir vergonha.

Menos por estar seco, em casa e confortavelmente escrevendo do que, propriamente, por alguns pensamentos que registrara. Mais especificamente, sobre certos indícios de oportunismo que eu há muito já vinha percebendo em crises humanitárias como a de agora. Com isto, o texto foi prá lixeira. Mas não a ideia.

Tão somente, no entanto, até saber da polêmica fala do governador sobre doações excessivas que poderiam prejudicar o comércio local. Exultei. Não por concordar com a asneira proferida, é claro, mas por entender que ela deixava transparecer claramente, a seu modo um tanto impensado e estabanado, uma verdade inconveniente e, portanto, oculta. Falas como aquela, conquanto possam revelar interesses publicamente inomináveis de nichos mais ricos e minoritários de poder, são frutos típicos da mania que políticos tem (talvez por, sei lá, se acharem carismáticos) de falar de improviso – sem, portanto, o escrutínio atento de suas assessorias de comunicação.

Devemos, então, antes de censurar Eduardo Leite pela lambança, lhe agradecer por ter dito algo que, por mais abominável que seja, permitiu à opinião pública um ligeiro vislumbre de reais interesses aos quais ele empresta sua figura de fachada.

É quase como se, fugindo involuntariamente (por vaidade, talvez) ao controle dos editores de seu discurso, estivesse a dizer: – Não se deixem enganar – pois, por trás da “nova política”, tão bem encarnada num certo bom mocismo que represento, ainda está a conhecidíssima “velha política”.

* * *

Mas o que, afinal, teria esta revelação involuntária pelas palavras do governador a ver com o texto que eu purgara ? Nem sei direito. De início, não passava de um sentimento vago, um certo mal-estar, uma impressão desconfortável que eu tinha mas desistira de publicar principalmente por não dispor de evidências comprobatórias de meu ponto de vista – o qual, por sua vez, poderia ser facilmente desqualificado e execrado.

Mas chega de citações misteriosas. Para melhor entenderem do que falo, nada melhor do que reproduzir, abaixo, uma das partes mais sensíveis do texto, que me fizeram deixar de querer de publicá-lo:

Ao passo que todo novo normal é transitório, o futuro é sempre igual ao velho normal. Ao menos no que depender da índole do capitalismo e do enorme ímpeto auto-regenerativo da economia de mercado.

Ultimamente, ouço com frequência a expressão “quando voltarmos ao normal”. As grandes crises tem em comum o fato de fazerem sonhar com um mundo melhor depois da tempestade. Foi assim na pandemia e é assim agora. O que varia é que, enquanto alguns desejam o retorno do que havia antes, outros (como eu) sonham com uma nova ordem das coisas. Por exemplo. Depois da devastação global pela Covid 19, muitos esperaram a instauração de um mundo mais justo, local e solidário. Afeito ao princípio do decrescimento. Mas não. O mercado foi mais forte, se regenerando depois de uma catástrofe que, conquanto pudesse ter sido de algum modo disruptiva, não foi mais do que uma interrupção inconveniente do antigo normal.

Agora, as chances de emergência, quando as águas baixarem, de uma nova consciência social e econômica são ainda menores. Por que, ao contrário da pandemia, que foi uma crise global, a anomalia climática que atravessamos é, por mais dramática que seja, um evento eminentemente local. Ou seja, por mais que pessoas e organizações, daqui e de outros lugares, louvável e sinceramente se solidarizem no resgate e auxílio das vítimas, há no mundo corporativo uma velada inquietação no sentido de restaurar um equilíbrio que implica na existência de um mercado, hora em colapso, não apenas produtor mas, principalmente, consumidor.

Sei o quanto as palavras acima soam cruéis. Posso até ser execrado por elas. Mas a macroeconomia ou, mais especificamente, a tal da “mão invisível do mercado” vive disso. Também é bom lembrar que, conquanto não seja, definitivamente, de bom tom denunciar interesses escusos por trás da espetacularização de flagelados que perderam tudo resgatados por helicópteros, populações inteiras continuam sucumbindo à fome e a doenças endêmicas. A hipocrisia é, neste caso, análoga à da filantropia, na qual socialities despejam fortunas em banquetes pantagruélicos e outros eventos beneficentes para arrecadar não mais do que migalhas para os despossuídos.

A filantropia ostentação nada mais é, afinal, do que o capital assumindo um papel que deveria, antes, ser do estado, talvez em retribuição à complacência fiscal e à liberdade especulativa concedidas por este último ao primeiro. É exercida, acima de tudo, em razão de ganhos de imagem dela decorrentes. Pois não acredito em qualquer caridade que não seja anônima.

* * *

Pronto, falei. Até que nem doeu tanto (o que indica que o que estava errado era, provavelmente, o contexto circundante). Também não foi a primeira vez (nem tampouco terá sido a última) em que me refiro à filantropia ostentação praticada por grandes corporações, como podem conferir aqui.

Nem preciso dizer que as linhas em itálicos, acima dos 3 asteriscos, das quais eu simplesmente desistira face ao risco de serem apressadamente tachadas como pseudo teóricas, se revestiram de um novo significado face à desastrada declaração do governador (obrigado, outra vez, Eduardo Leite !).

Foi assim que, tomado de novo ânimo, fui em busca de evidências de grandes empresas procurando auferir ganhos de imagem a partir de parcas doações. Foi quando topei com a já clássica história dos 50 colchões da Melnick e doações tímidas de outros gigantes empresariais como Panvel ou Zaffari. É claro que, para não propagar bobagens, me lancei a uma tarefa ingrata que não deve ser novidade para nenhum jornalista digno do nome – a saber, a validação de informações. Foi quando esbarrei no seguinte obstáculo.

Já tentaram descobrir, munidos meramente de engenhos de busca na internet, se uma informação é verdadeira ou falsa ? Deve haver poucas coisas mais frustrantes. No caso da Melnick, por exemplo. Enquanto canais de esquerda, nitidamente panfletários, propagam seu vergonhoso descaso (os 50 colchões), informes da empresa e “notícias” plantadas, quase todas no grupo GZH, maximizam e enaltecem seus feitos em solidariedade aos afetados pela cheia. Noves fora que poderiam ter emprestado apartamentos desocupados ao invés de doar colchões, que conclusões podemos tirar dessa guerra de propaganda ?

Em crises humanitárias como a que atinge o RS, enquanto a esquerda minimiza o comprometimento do grande capital, o mesmo é exagerado e enaltecido em informes publicitários e notícias plantadas em canais leais à direita. Como conhecer, então, a verdade, i.e., o real tamanho da solidariedade corporativa ? Se alguém souber, por favor me conte. Até lá, sigo pensando que é impossível. E que, face a isto, o lucro corporativo deveria ser generosamente taxado, bem mais do que a “renda” de cada cidadão. Com isto, ao menos a ação do governo em situações trágicas como a de agora seria mais eficaz e anônima, com empresas, por sua vez, menos propensas a auferir lucros derivados de suas imagens de benfeitores filantrópicos.

Mais ou menos como num diálogo ideal no qual, para cada empresa que dissesse

“- Vejam como somos bonzinhos !”

um coro imediatamente respondesse

“- Pois não fazem mais do que a obrigação.”

* * *

PS: demorei bastante, por razões óbvias, a decidir publicar o texto acima. Algo que me ajudou a decidir foi descobrir que, nesta linha de pensamento, não estou sozinho, como bem ilustra o comentário, transcrito abaixo, do pai de uma aluna do colégio Americano, publicado no site de notícias Matinal. É uma nova percepção ? Será hegemônica ? Princípio, talvez, de uma nova ordem das coisas ? Calma, Augusto. É muito cedo para afirmar. Mais do mesmo num próximo post.

“A própria escola, os professores, alunos e pais se mobilizaram. Levaram cerca de 120 colchões do acantonamento das crianças [do Americano] e organizaram as doações. Até ontem [7/5], a Melnick não tinha se manifestado. Só fizeram uma reunião permitindo a utilização do espaço. Aí publicaram o comunicado. A comunidade escolar ficou indignada. É bom que a Melnick esteja se envolvendo de certa maneira, mas está utilizando mais como marketing para eles. Isso deixou os pais e alguns professores bem chateados.”

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