Por que o jazz é a música do futuro

Com o avanço exponencialmente mais rápido a cada dia da inteligência artificial (leia-se: cada vez mais ocupações até hoje desempenhadas exclusiva ou predominantemente por humanos vem sendo total ou parcialmente automatizadas), todas as profissões conhecidas tendem a desaparecer. Umas antes, outras depois (o famoso estudo de Oxford). É só uma questão de tempo. E com a morte das profissões, está decretado o fim do trabalho. Podemos até duvidar que isto aconteça durante nossas vidas. Mas, queiramos ou não, testemunhemos ou não, se trata de um desfecho histórico inevitável.

Por exemplo. Ainda que a fotografia já tenha sido uma profissão com nichos bem específicos de atuação profissional (jornalismo, publicidade, perícia, etc.), é difícil acreditar que hoje, com todas as facilidades embutidas em telefones celulares, seja mais do que uma ocupação recreativa ou, no máximo, artística. Mas a própria figura do artista profissional, que comercializa o que produz para o consumo de meros espectadores, tende a desaparecer com a universalização da criação artística, hoje privilégio de alguns, doravante ao alcance de toda a população.

Este quadro é demasiado sombrio ? Soo pessimista ? Não acho. Primeiro, por que já está acontecendo. Se já é difícil, senão impossível, se viver de fotografia, o mesmo acontece com a música. Como evitar o encolhimento das profissões musicais quando fica cada vez mais fácil a qualquer um criar e produzir sua própria música ? Isto sem falar no enorme manancial de música do passado que pode ser garimpada a qualquer instante a um custo que tende ao zero. E a produção textual, antes um privilégio de indivíduos mais instruídos, emprega cada vez menos gente, como vimos no post anterior.

Não me entendam mal: falo do fim das profissões, e não das ocupações ! É claro que as últimas continuarão (oxalá !) existindo; só não poderemos mais contar com elas para garantir a subsistência.

O futuro é lúdico. Ao menos se a economia se transformar radicalmente e uma revolução moral permitir que a humanidade deixe de culpar a si própria (e aos outros) pelo ócio. Mas voltemos à música, objeto deste texto.

Por mais abomináveis que possam ser, rótulos também são bem úteis por nos ajudarem a categorizar. Aí incluídos os gêneros musicais. Se a música erudita ambiciona a posteridade, para além da morte do compositor, o pop visa o lucro imediato, desfrutável ainda em vida. Sei, são generalizações um tanto apressadas. É claro que o melhor pop, graças ao culto dos fãs, sobrevive a seus criadores. E a indústria bem que tentou fazer da música clássica um produto. Mas, via de regra, pop é coisa de gente viva e música clássica, de gente morta. E não me venham, por favor, com exceções, que existem, e muitas. Por que minha generalização, por mais tosca que seja, se aplica a uma amostra estatisticamente neutra, a saber, o que mais se ouve no rádio e em concertos.

Mas e o jazz ? Parece correr em banda própria, paralelamente à música conforme vista pela indústria. É como se, nela, a música, pop ou erudita, fosse, de certo modo, domesticada. O jazz, não: permanece uma manifestação selvagem. A maior prova disto é que seus produtores, ao invés de tentar ajustar a música a demandas de mercado, na maior parte das vezes se limitam a capturá-la (uma amostra, como veremos adiante).

Sim, bem que a indústria tentou domar o jazz e, por um breve instante, até conseguiu. Kind of Blue foi um campeão de vendas tão expressivo como um hit pop. Mas já estou, aqui, a falar da exceção. Todo jazzófilo sabe que, por mais discos de músicos icônicos que tenha colecionado, o jazz enquanto risco (a alma de toda improvisação, alicerce do jazz) só acontece em apresentações ao vivo, quase sempre para audiências minúsculas.

Não toco jazz. Tenho profunda inveja de quem sabe e se atreve a improvisar. Mas posso ter ideia da estranheza com que um músico de jazz deve perceber um produtor de gravações do gênero. Ora, todo disco de jazz é não mais do que uma pálida amostra de toda a gama de possibilidades que uma performance poderia ter assumido. É justo isto que o torna tão interessante.

Continuo, mesmo assim, com a ideia de que o produtor de discos de jazz é um profissional condenado ao fracasso por tentar, repetidamente (fez, na verdade, disto uma profissão), capturar num meio reproduzível algo que jamais acontecerá do mesmo jeito no tempo. Por isto mesmo, sou enormemente grato aos bons produtores de gravações de jazz, por quem nutro profundo respeito.

Mas por que o jazz é, afinal, a música do futuro ? Elementar, meu caro Watson: por que é a música do aqui e do agora. Enquanto toca, um improvisador exponencial não está preocupado com a remuneração que poderá auferir da performance, nem tampouco com o que legará à posteridade. Naquele momento, só está preocupado em superar a si próprio, ao que entregou na gig anterior. Neste sentido, é a música mais honesta que conheço. Remuneração e legado interessam, é claro, mas são meramente circunstanciais.

Mitos literários (ii): da superioridade dos relatos fantasiosos sobre aqueles baseados em fatos reais, autobiográficos ou não

Desde muito cedo me acostumei com a ideia de que só se conhece um grande escritor a partir de seu segundo livro, depois que transcende o relato autobiográfico. Noves fora o fato de um autor poder muito bem criar histórias a partir da própria fantasia antes de cometer seu primeiro texto confessional, entendo hoje que tal crença não passa de um mito. Noutras palavras: a qualidade de um texto não depende de sua inspiração ter saído da fantasia do autor ou de sua própria experiência pessoal ou de outros fatos reais.

Ao pensar em obras magistrais baseadas em experiências pessoais de seus autores, me veio imediatamente à mente os contos de Lucia Berlin, publicados postumamente, ou os 6 volumes (apenas 4 deles traduzidos para o português) da saga A Minha Luta, de Karl Ove Knausgard. Outros textos aportados como autobiográficos por Maria de Abreu, Luciana Etchegaray e Marcelo Borba, são, respectivamente, O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche.

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É claro que as duas categorias (fantasia X realidade (autobiográfica ou não)) não são mutuamente excludentes, i.e., provavelmente na maioria dos casos o texto resultante é um amálgama de criações fantasiosas mescladas com pitacos de experiência pessoal do autor ou de outrem.

A componente real de cada obra de ficção é, no entanto, geralmente difícil de ser identificada, posto que advinda de episódios da vida privada de cada autor ou de terceiros nem sempre explicitados em biografias de domínio público. Até por isto, constituem uma espécie de eixo temático preferencial em textos críticos especulativos. Ou seja, são objeto favorito de teses e resenhas.

São comuns, por exemplo, histórias que partem de fabulações sobre a vida e/ou a obra de personalidades históricas. De certo modo como os docudramas e algumas cinebiografias mais licenciosas. Há, nesta categoria, uma obra prima que se ergue sobre a maioria das outras: Doutor Fausto, de Thomas Mann, cuja trama alude a inovações musicais introduzidas por Arnold Schoenberg. Só que o livro é, sob muitos aspectos, maior do que o argumento de partida que Mann tomou emprestado. Bem maior. Pertence ainda a esta região híbrida, entre a realidade e a ficção, a novela O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, inspirada na vida de Shostakovich.

Interessantíssimo, também, o experimento literário A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Nele, o autor cria um relato totalmente fictício emulando o estilo de uma obra de não ficção, a saber, uma antologia de biografias, só que de personagens totalmente imaginários. Uma obra singular que tenta, de algum modo, borrar, ainda que artisticamente, a outrossim rígida fronteira entre as categorias mutuamente excludentes da ficção e da não ficção.

Tão bom é o exercício estilístico de Bolaño, supracitado, que um leitor desavisado bem poderia “arquivá-lo” numa estante junto a obras de não ficção. Aqui me assola um pensamento aleatório, descomprometido, passível de desenvolvimento posterior: já se deram conta de como o ato de posicionar um livro numa coleção equivale, de certa forma, a domesticá-lo ? Fecha parêntesis.

A possibilidade, a que aludo no parágrafo anterior, de que uma obra seja inadvertidamente classificada junto a outras que não tenham nada a ver com seu teor me traz de imediato à memória um fato divertido, ao qual devo meu primeiro contato sério, porquanto primário, com a obra de Richard Dawkins, guru mor dos ateus. Estava eu fazendo hora num shopping quando avistei, na vitrine de uma livraria religiosa, o livro Deus, um Delírio, de Dawkins, de quem, até então, somente tinha ouvido falar. Ora, era evidente que a obra estava ali por acidente, pois era totalmente alienígena em relação ao restante do acervo da livraria. Provavelmente, o livreiro, induzido pela ambiguidade do título (lembram da igreja Brasas – louvor e adoração ?), o tomara por um texto apologético. É claro que resgatei imediatamente o pobre volume daquele contexto hostil à sua essência, o comprando e devorando em tempo recorde. Os argumentos de Dawkins são avassaladores. Mas já estou falando de não ficção. Melhor deixar para depois. Fecha outro parêntesis.

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Este é um mito complicado de ser reconhecido, principalmente por que as narrativas oriundas da fantasia de seus autores (total ou parcialmente, como vimos acima) são mais numerosas do que as predominantemente autobiográficas ou inspiradas por fatos reais. Muito mais. Passando os olhos pelas lombadas dos livros na estante, há mais obras de ficção criadas a partir da fantasia de seus autores do que derivadas de suas experiências pessoais ou de outrem. Vários fatores contribuem para este estado de coisas.

Inicialmente, o fato de que toda escrita profissional, enquanto atividade que se estende por grande parte da vida de um autor, por vezes durante toda ela, implica numa produção continuada. Ora, isto é incompatível com a utilização sistemática e exclusiva de experiências vividas como ponto de partida – por que, afinal, biografia, por mais rica que seja, cada um só tem uma. Face a este impasse, a fantasia se constitui como um recurso inesgotável e, portanto, irresistível.

Contribui também para a hegemonia esmagadora de histórias fantasiosas, total ou predominantemente, o fato de ser impossível a qualquer autor se referir a coisas como, por exemplo, pessoas que voam, animais que falam ou consciência pós morte sem recorrer à imaginação.

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Há um gênero de ficção exclusivamente composto de narrativas fantásticas, a saber, a ficção científica, com todos os seus subgêneros (obrigado, Nikellen: sem você eu jamais saberia que existe algo chamado steampunk !).

A dicotomia entre o real e o imaginário (categorias, como vimos, por vezes superpostas) não se aplica, evidentemente, à literatura de não ficção, exclusivamente devotada ao universo experimental. Senão, estaria incorrendo, voluntariamente ou não, num certo tipo de falsidade ideológica. Como frequentemente ocorre em textos proselitistas tais como, por exemplo, os publicitários e panfletários.

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Falando assim, pode parecer que eu não reconheça valor em narrativas exclusiva ou predominantemente advindas da imaginação. Longe disso. A fantasia sempre foi, é e sempre será um valioso recurso disponível para escritores tecerem suas histórias. O que se torna problemático é quando a imaginação por si só se torna um indicador de qualidade literária valorizado de forma exacerbada, muito mais do que outros igualmente importantes. O mito a que me refiro é, portanto, o de que histórias baseadas primordialmente em dados de realidade, sejam elas derivadas da própria experiência pessoal de seus autores ou não, são, por definição, inferiores àquelas onde a fantasia corre solta. Noutras palavras, o que quero dizer é que importa menos se os ingredientes são reais ou fantásticos do que, propriamente, aquilo que um autor faz com eles.

Mitos literários (i): da superioridade do grande romance

Desde muito cedo (nem lembro quando) acreditei em duas “cláusulas pétreas” sobre as quais julgava que se erguia toda grande literatura. Uma diz respeito à forma, mais precisamente à extensão da mesma, e a outra, ao conteúdo. Hoje as reputo como não mais do que mitos. São eles:

  1. o romance é um formato literário superior aos outros, mais curtos; e
  2. escritores cuja fantasia transcende o relato autobiográfico são melhores do que aqueles que tecem sua obra exclusivamente a partir experiências por eles vividas.

A eles, então.

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O primeiro mito, sobre a superioridade do romance sobre formas mais curtas, esbarra, de saída, no problema de que superlativos, conquanto toda análise comparativa possa deitar alguma luz sobre a singularidade de obras específicas, tendem a obscurecer, num manto de mediocridade, tudo aquilo que é considerado menos elevado. Mas não é só isso.

Para melhor se entender como o grande romance acabou por adquirir seu status de tour de force literário, há que levar em conta determinantes históricos, comerciais e tecnológicos. Tratemos, pois, inicialmente, do aspecto comercial. Até por que fatores históricos e tecnológicos são melhor analisados como uma coisa só.

Devemos tratar a atividade editorial, em que pesem suas nuances, antes de tudo como uma indústria. E para qualquer indústria, o problema da escala de produção é crucial, por que tem implicações diretas no custo. Do seguinte modo. É mais barato produzir, anunciar e distribuir uma quantidade maior de cópias de um número menor de itens. Daí que a industrialização anda de mãos dadas com a padronização.

Mas o último parágrafo pode ter ficado um pouco nebuloso, porquanto teórico e, logo, abstrato. Tratemos, pois, de ilustrar. Pensem numa estante onde caibam uns 30 romanções ou uma centena de volumes menores. Qual preenchimento da estante (com livrões ou livrinhos) terá o menor custo para toda a cadeia produtiva, da gráfica à livraria, passando pela resenha crítica ?

Menos, Augusto, bem menos. É claro que, dentre as nuances, a que aludi acima, de toda indústria denominada “cultural” (é mais honesto chamá-la de “indústria do entretenimento”), possui especial destaque a demanda, por parte de leitores, ouvintes e espectadores (ou, em que pese soe cruel, consumidores) pela maximização da diversidade. Que se traduz em linhas de produção, campanhas publicitárias e estoques mais onerosos. A administração deste conflito entre, de um lado, padronização e escala e, de outro, diversificação é a alma do gerenciamento da indústria [você escolhe: cultural ou do entretenimento]. Para o negócio, é uma questão de vida ou morte.

Parêntesis. Alguns textos curtos, como os de Poe, adquirem vida própria e terminam por conquistar certa autonomia. Foi o que sucedeu com Bartleby, o escrivão, de Herman Mellvile (autor de Moby Dick). O conto, genial, cabe em 44 páginas. Como justificar sua edição autônoma ? A solução encontrada pela Ubu, uma editora de livros bonitos (como a extinta Cosacnaify (o que dá margem à indagação sobre se este modelo de negócio (i.e., a publicação de livros bonitos) é ou não sustentável)) foi a publicação, como antigamente, de um livro costurado, com páginas que devem ser abertas com uma espátula. Um livro fetiche. Do tipo que temos receio de riscar. Certamente o mais caro (R$/nº de páginas) que já comprei.

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A questão histórico-tecnológica. Não vou, aqui, tornar a um tema que já esmiucei bastante em textos anteriores que é a fragmentação progressiva do discurso (que encantaria Bakhtin) desde a palavra impressa que se lia a luz de velas até o que temos em redes sociais e na internet em geral. Ao longo desta evolução (reparem que não utilizo o termo progresso), narrativas mais longas foram dando lugar a formas mais compactas. As quais, por sua vez, passaram a demandar maiores esforços de concisão por parte de quem escreve, tanto para adequar os textos aos meios que habitam quanto à expectativa dos leitores. A própria expectativa da audiência é condicionada pelo meio em que reside o conteúdo.

Mas voltemos, por um instante, ao romanção enquanto absoluto tour de force literário, i.e., no qual o autor eleva a patamares extremos sua maestria em sustentar o interesse do leitor ao longo de narrativas prolixas. Ora, por que razão devo supor que a habilidade e a criatividade de quem tece um relato enorme são de alguma forma superiores às de quem empreende esforços de concisão para acomodar ideias a contextos de publicação de dimensões mais restritas ?

Como se uma sinfonia fosse, necessariamente, uma realização mais significativa do que um lied (canção) tão somente por que ocupa toda a duração de um disco ou quase toda a de um concerto, enquanto lieder costumam ser agrupados para justificar a ida a um recital ou a compra de um produto fonográfico.

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A conspirar contra meu propósito, declarado no kaput, de me debruçar, aqui, sobre dois mitos literários, está o fato deste texto ter já assumido proporções temerárias para um post, suficientes, ao menos, para desencorajar sua leitura na plataforma onde reside. Some-se a isto o fato de, no decorrer da escrita, eu ter me lembrado de um terceiro mito. Querem um spoiler ? Trata-se da noção, já incorporada ao senso comum, de que qualquer texto publicado num meio de broadcasting seja, por isto mesmo, de algum modo superior a coisas escritas para uma circulação (só teoricamente) mais restrita através do narrowcasting. Instigante, não ? Por hora, mais não digo.

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PS: de uns tempos prá cá, adquiri o hábito de minerar no facebook informações visando ampliar a base de conhecimento sobre a qual escrevo. Pois, como não deve ser novidade para quem me lê, falo muito sobre o pouco que sei. Pelos cotovelos. Ainda não achei a razão ideal entre os volumes de escrita e de leitura. Na última consulta, sobre grandes autores que escreveram mais textos curtos do que longos, amigos a quem sou grato me trouxeram a seguinte nominata: Bioy Casares, Isaac Bashevis Singer, Ivan Bunin, Raymond Carver, Luigi Pirandello, Flannery O’Connors, O. Henry, Julio Cortázar, Leonid Andreiev, Lucia Berlin, Milton Ribeiro, Machado de Assis, Juan Rulfo, Ghassan Kanafani, Katherine Mansfield, Alice Munro e Ernest Hemingway. Não é pouca gente. Isto que é apenas uma amostra, i.e., a lista seria bem maior se a consulta permanecesse ativa por mais tempo. O que me leva a concluir, talvez apressadamente mas não sem uma ponta de indisfarçável triunfo, que minha “tese” sobre a valoração exacerbada do romanção em relação ao conto ou à crônica pode ter, afinal, algum fundamento.

Roger Scruton

Decidi escrever sobre Scruton depois de ler uma instrutiva postagem sobre o mesmo por meu amigo Zeca Azevedo (obrigado, Zeca !). Após perceber que meu comentário seria demasiado longo, muito mais do que a postagem que o ensejou, vim ao editor do blog – este espaço mais reservado, onde só entra quem quer, mais afeito à contemplação e à reflexão do que ao fluxo vertiginoso das redes sociais. Para usar de uma imagem: ler um blog é como (ou, ao menos, quero que seja) viajar por uma estrada vicinal, esburacada e com curvas mal (ou não) planejadas, que nos dá tempo de desfrutar da paisagem ao redor; ao contrário de ir por uma via expressa, indiferente a tudo o que há entre os pontos de partida e chegada. Obrigado, Robert Pirsig !

Zeca começa sua postagem/diatribe sobre Scruton se desculpando pelo trocadilho Scruton/escroto. Ora, não é preciso se desculpar, pois a simples menção ao nome do controverso esteta inglês provoca inevitavelmente entre alunos risinhos disseminados, isto quando um deles não chega a sublinhar explicitamente a semelhança entre as duas palavras.

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Roger Scruton (1944-2020) é uma unanimidade. Odiado, por suas opiniões radicais, por praticamente todos que nutrem alguma forma de apreço ou curiosidade pela arte criada a partir do início do século 20. No ano anterior a sua morte, proferiu uma conferência no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre.

Não vou, aqui, desfiar sua biografia, que está na wikipedia prá quem quiser conhecer. Para nossos propósitos, basta saber que ele dedicou sua vida a atacar toda arte que propunha uma rejeição explícita de cânones válidos para períodos artísticos anteriores. Ao mesmo tempo, defendia, em nome de salvar a arte do futuro, um retorno deliberado a práticas tradicionais mais afeitas a um gosto moldado pelo passado. Seus alvos prediletos: a música serial e a arte visual “moderna”, a qual afirmava ser indistinguível daquela produzida por uma criança (voltaremos a isto). Sua auto-confiança (que detratores talvez prefiram chamar de arrogância) era tamanha que chegou a fundar The Future Symphony Institute, dedicado à restauração de valores musicais tradicionais – o qual, providencialmente mantido no ar após sua morte, ainda oferece acesso instantâneo a muitos de seus polêmicos textos sobre estética e educação.

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Mesmo com todos os óbices levantados em relação a suas posições, mais do que reacionárias, até obtusas (sim, pois, por vezes, chegamos a duvidar que Scruton de fato alcançasse todas as implicações, num sentido mais amplo, de tudo o que ele desqualificava), suas convicções – a saber, sobre a natureza decadente de tantas formas de arte recentes e disruptivas, conquanto sua relevância histórica – são importantes por representarem exemplarmente segmentos numerosos do pensamento atual.

Por isto mesmo, costumo recomendar seus escritos, sem dúvida reacionários, a meus alunos, em oposição a, num outro extremo, o célebre manifesto de Milton Babbitt Who cares if you listen, de 1958, que postula exatamente o contrário, i.e., que o compositor deve prescindir de qualquer apreciação e aprovação por um hipotético público. Babbitt vai mais longe, postulando a universidade como o locus ideal, portanto, para o ofício do compositor.

Costumo lançar os textos de Scruton e o manifesto de Babbit como uma provocação. Munição para debate. A síntese que espero ? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem 8, nem 80. Penso que o dilema entre uma arte totalmente acessível e outra totalmente hermética é o paradoxo crucial a que todo artista está sujeito: comunicação X expressão. Neste contexto, toda a retórica (e eloquência) de Scruton em favor de uma maximização da comunicação na arte é o que de melhor encontrei, até hoje, apesar de seus óbvios calcanhares de Aquiles, sobre a mesma. Todos concordam que arte é sobre expressão. Mas até que ponto a comunicação (e, portanto, a existência de um público) é essencial ? Aí começa o debate.

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Para concluir, dois fatos bizarros sobre Scruton.

Em 2016, ele proferiu, no Festival de Donaueschingen (depois de Darmstadt, o maior “templo” universal das vanguardas musicais), uma palestra sintetizando sua posição conservadora, presumivelmente abominada pela audiência. Tiro o chapéu. Até agora estou em dúvida sobre qual foi o gesto mais corajoso: se o dele ao aceitar falar diante da plateia de Donaueschingen ou o dos organizadores do festival ao convidá-lo (pois é rara e louvável tamanha disposição para ouvir contraditórios !).

A arte contemporânea é indistinguível daquela produzida por uma criança. Sim, é verdade. Mas e daí ? A resposta passa inevitavelmente pela definição de arte, se é que existe uma. Museus e salas de concerto nos ensinam que a arte do passado é caracterizada (mas não definida !) por uma maestria exacerbada do métier. A tal da alta cultura, primeiramente reconhecida pelo domínio do pincel, do cinzel, da harmonia ou do contraponto. Mas será que é só isto ?

A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

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Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

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A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

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O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

* * *

O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

* * *

PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”

Pianometria

Querelas entre fãs de artistas que atuam ou atuaram num mesmo domínio – como, por exemplo, um mesmo instrumento ou um mesmo gênero musical – são inócuas porquanto intermináveis. Ainda assim, valem a pena por revelarem, como nenhum outro meio, os principais atributos de cada artista defendido. Deveriam, quem sabe, até ser produzidas como reality shows, nos quais competidores aficcionados defenderiam com unhas e dentes as obras, acabadas ou não, de seus ídolos. Seria bem mais divertido, pelo menos, do que dramas de tribunal ou coisas como The Voice.

O primeiro título que me ocorreu para este post foi Explicando (sem, no entanto, justificar) meu gosto musical. Só que, ao sentar para escrevê-lo, achei que pianometria seria mais apelativo. Para ajudar a entender, um pouco de contexto.

Dia desses, provoquei e (toma !) me vi no meio de uma acalorada discussão em rede social sobre quem seria o maior pianista de jazz que já existiu. Ouvidos experimentados e vozes ponderadas por todos os lados. Os pivôs da disputa: Bill Evans e Keith Jarrett. Herbie Hancock também compareceu, e sentimos a falta de admiradores de Brad Mehldau e Chick Corea. A conversa resultante, cheia de piadas e provocações apimentadas, se constitui num ótimo guia auditivo, espécie de mapeamento de campo, para não iniciados – muito embora eu não acredite que existam novatos nessa área.

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É quase sempre mentira quando dizemos que ouvimos algo repetidamente em busca de conhecimento, como se cada nova audição trouxesse uma nova revelação. Ouvimos reiteradamente em busca de prazer. Salvo, é claro, críticos profissionais, que tem que se pronunciar, por força do ofício, sobre um grande volume de música que lhes é, a princípio, estranha. Se escolhemos ouvir de novo sempre a mesma coisa, é por que ela apela para uma parte insondável, posto que inconsciente, de nossa sensibilidade.

Este post é uma tentativa de explicar, para mim mesmo mais do que para qualquer outra pessoa, por que, ao longo da vida, sempre privilegiei ouvir, dentre tantos pianistas de jazz brilhantes, discos de Bill Evans, que desde cedo colecionei, juntamente com alguns de Chick Corea, relegando ao esquecimento obras não menos interessantes como, por exemplo, a de Keith Jarrett, que só agora me dou ao prazer de descobrir. Por força, devo dizer, de recomendações confiáveis de amigos. Também estou fazendo algo que afirmei jamais fazer, a saber, ouvir música enquanto escrevo. Tenho que reconhecer que é bem estimulante.

* * *

As formas em que o jazz se apresenta derivam daquelas praticadas na tradição musical ocidental. No ensaio O jazz do rag ao rock (Editora Perspectiva/Série Debates, 1975), Joachin Berendt aponta que as formas paradigmáticas do blues (12 compassos) e da balada (32 compassos) derivam, tanto na estrutura métrica como no plano tonal, respectivamente, da ária da capo e da forma sonata.

Prefiro, no entanto (até para poder incluir na amostra formas mais, digamos, relaxadas), reconhecer o jazz como incorporando conceitos mais genéricos da tradição erudita, tais como exposição, reexposição, desenvolvimento, variação, contraponto e harmonia – os quais são muito úteis quando se trata de entender sua(s) forma(s). Aqui, um adendo se faz necessário: nunca entendi por que, em currículos musicais, contraponto e harmonia são ensinados em disciplinas diferentes, como se fossem entidades autônomas, independentes entre si. Mas isso é outra história.

A tradição da improvisação, presente na música ocidental até o barroco e que praticamente desapareceu no classicismo e no romantismo em razão da expansão exacerbada das formas musicais, as quais passaram a exigir muito mais controle composicional, foi restaurada no século 20 como principal atributo definidor do jazz.

Durante todo o período da história da música conhecido como de “prática comum” – que vai do barroco ao romantismo, passando pelo classicismo, e que teve importantes representantes durante todo o século 20 (salvo a segunda “escola” de Viena e a de Darmstadt) e, em alguns casos, até hoje – compositores trabalharam com formas largamente pré-fixadas, métrica e tonalmente, de modo a poder jogar com a expectativa (ou frustração da mesma) do ouvinte em relação ao que ouvirá em seguida. De maneira que, tanto em gêneros clássicos como na maioria do jazz que se ouve, sempre é possível se ter uma ideia de onde nos encontramos no percurso que vai do início ao fim de uma música.

Mas isto não permaneceu sempre assim. Tanto na música improvisada como na pré-composta, houve importantes experimentos no sentido de driblar a expectativa do ouvinte, tento pela ampliação do leque de possibilidades como pela total obliteração de qualquer senso de posição, num dado instante, em relação à forma total de uma obra. Isto quer dizer que, enquanto para a melhor fruição de uma peça clássica ou de jazz tradicional é crucial que o ouvinte saiba a cada momento onde está, para todos aqueles compositores que se rebelaram contra a ditadura da forma, não.

Para tanto, utilizaram meios os mais diversos. Não vou aqui me deter em explicar detalhadamente como tal obliteração da percepção auditiva de forma foi obtida, nem na música pré-composta, pelo recurso a fórmulas rigorosas como o serialismo (dodecafônico e integral) ou mesmo a aleatoriedade controlada; nem tampouco na música improvisada, através da liberdade formal inaugurada com o Free Jazz (1961) de Ornette Colleman – disco que até hoje tenho, confesso, muita dificuldade em ouvir.

Mas basta, por hora, de teoria. Já temos o bastante para entender por que não dá para comparar quantitativamente Evans com Jarrett. Seria como comparar, sei lá, samba com tango ou, ainda, determinar se Mozart é melhor do que Beethoven (só para citar dois epígonos que usaram as mesmas formas) ou vice-e-versa. Pois Jarrett e Evans tocam coisas bem diferentes, segundo ideais completamente distintos. Abaixo, procuro descrever a música de ou e de outro.

* * *

Ao longo de sua breve carreira, Bill Evans (1929-1980) improvisou repetidamente sobre um número assombrosamente pequeno de temas que lhe serviam de plataforma. Do mesmo modo, dir-se-ia, que um intérprete clássico dedicado a um repertório redundante no qual se especializou. Assim, suas versões dos mesmos temas, grande parte das quais registradas em apresentações ao vivo, apresentam uma sofisticação progressiva. Vale a pena comparar, por exemplo, os sets com seu lendário trio no Village Vanguard, em 1961, com aqueles derradeiros, registrados no mesmo templo novaiorquino do jazz poucos meses antes de sua morte prematura em decorrência do uso abusivo de drogas.

Enquanto sua improvisação em 1961 é desnuda, esqueletal, os takes de 1980 soam notavelmente mais elaborados. É como se, nos últimos, cada música parecesse ter sido pré-composta ao longo de sucessivas visitas aos mesmos temas.

Em todas as suas execuções, Evans se dedicou a explorar sistematicamente um número incrivelmente reduzido de baladas – formas repetidas de 32 compassos com planos tonal e métrico rigidamente pré-definidos, no esquema tradicional exposição-variações improvisadas-reexposição, onde cada variação (chorus, em terminologia jazzística) segue exatamente o mesmo desenho harmônico e métrico do tema apresentado na exposição e na reexposição. A adesão a esquemas pré-compostos em Evans é tamanha que até suas codas (epílogos) são as mesmas para cada tema revisitado.

Neste contexto de ampla adesão às estruturas rigidamente pré-determinadas, chama a atenção a escolha de uma plataforma de improvisação em que seu discurso assume um caráter aparentemente mais livre – a saber, em Nardis, de Miles Davis. Uma análise mais atenta revela, no entanto, que até Nardis, apesar de sua harmonia modal e plano modulatório restrito, é, métrica e tematicamente, uma balada. Ainda que uma balada singular (i.e., uma balada de Miles Daivis), com quatro frases de mesma duração seguindo um esquema temático AABA.

Em Nardis, não há nenhuma modulação propriamente dita, já que a ideia B (na tonalidade relativa maior, uma terça acima) surge repentinamente, sem que a repetição da ideia A (contida na tônica, menor) a ela conduza por meio de um processo modulatório. Como, se quiserem, na forma ternária ABA’ da aria da capo, matriz paradigmática do blues. Neste caso, a sensação de que Evans possa ter se afastado temporariamente de suas tão caras formas pré-estabelecidas se deve primordialmente ao fato de que, em Nardis, improvisa sem a marcação ostensiva do ritmo por seu trio, o que contribui para obliterar auditivamente a percepção formal e, com isto, sugerir que ele possa estar, excepcionalmente, explorando uma forma livre.

Em termos de expectativa por parte do ouvinte, podemos, então, afirmar que a única dúvida deixada em aberto em relação à forma do que é ouvido em suas execuções é o número de variações improvisadas (choruses) que serão executadas até que o tema seja, finalmente, reapresentado. Tal forma é uma convenção conhecida por todo ouvinte de jazz, experiente ou novato, dela dependendo a própria inteligibilidade do discurso.

Nutro uma compreensível reserva (cautela, até) em relação a transposições analógicas entre diferentes campos – como, por exemplo, entre música e artes visuais ou, ainda, entre arte e ciência. Mesmo assim, vale a pena traçar uma analogia entre o discurso de um improvisador em formas pré-fixadas com o raciocínio de um enxadrista experimentado, que “enxerga” várias jogadas à frente para melhor avaliar sua estratégia e a do adversário. Deste modo, é razoável se supor que improvisarão melhor aqueles músicos que, como os grandes enxadristas, conseguirem antecipar mais movimentos à frente.

Isto equivale a dizer que a improvisação sobre formas pré-determinadas é um exercício profundamente calculista, no qual toda espontaneidade, conquanto igualmente necessária, precisa ser equilibrada por uma noção exacerbada, a cada instante, de localização em relação ao todo. Neste contexto, faz muito sentido a inspirada constatação, por Paulo Moreira numa audição comentada, de que Evans tinha cara de professor de matemática.

Outro mestre neste tipo de improvisação foi Oliver Nelson, cujos choruses pareciam, como os de Evans, terem sido totalmente pré-compostos, tamanha a consistência do desenvolvimento motívico nos mesmos. Com o “agravante”, no caso, de que, ao saxofone (i.e, com uma só voz), isto não é pouca coisa.

* * *

Em contraste, Keith Jarrett pode ser definido como um grande improvisador que se entrega de corpo e alma a formas livres que muitas vezes escapam à consciência do ouvinte. Mais: a localização a cada instante em relação ao todo, como por meio de um GPS, é absolutamente irrelevante para a apreciação de sua arte – a qual se baseia, sobretudo, no contraponto, com cada ideia sendo explorada por um tempo indeterminado até que surjam novas ideias ou, mais raramente, modulações.

Modulações (mudanças de tonalidade) em Jarret merecem um olhar mais demorado. Se restringirmos nossa amostra exclusivamente a suas execuções em grupo (principalmente aquelas para o selo ECM, nas quais desfrutou de uma autonomia criativa sem precedentes na indústria da música popular), um ouvinte apressado poderia facilmente concluir que, em Jarrett, elas simplesmente não acontecem, já que peças inteiras ou até lados inteiros de um disco se constituem em improvisações sobre uns poucos ou mesmo um único acorde. A tal ponto que, quando acontecem (como, por exemplo, nas modulações contínuas em Sunshine Dance, última faixa do álbum duplo Nude Ants (1981), tão bem apontadas por Fernando Corona) de pronto se convertem num fato digno de nota.

Isto não quer dizer que, em seu estilo, as modulações sejam sempre raras. Em Staircase (1976), Jarrett tira grande proveito do contexto de piano solo, no qual não precisa comunicar a parceiros suas intenções modulatórias imediatas – necessidade, outrossim, inexistente quando do uso de formas harmônica e metricamente pré-determinadas compartilhadas a priori por todos os executantes.

Isto tudo quer dizer que, numa execução madura de Jarrett (i.e., descartados os anos iniciais), é impossível ao ouvinte antecipar por quanto tempo ele vai se deter sobre qualquer ideia antes de avançar em direção à próxima. Nem tampouco prever, com antecedência e/ou exatidão, quando uma música vai terminar. Isto NÃO quer dizer que sua música seja, de algum modo, amorfa – já que, em retrospectiva, sempre temos uma noção clara do caminho que foi percorrido. É como embarcar numa viagem sem conhecer previamente o trajeto nem tampouco onde se vai chegar. Pois, para Jarrett, o percurso é nitidamente mais importante do que o destino.

* * *

Dito isto, fica evidente que não procede comparar as músicas de um e de outro. A desenvoltura com a qual ambos se dedicam a seus gêneros preferenciais, deceptivamente agrupados pelo enorme arcabouço semântico que é a definição de jazz, os qualifica igualmente como gênios.

Detesto teogonias. É absurdo comparar quantitativamente quaisquer realizações artísticas. Podemos, talvez, no máximo, tentar acessar a extensão da influência de cada um sobre seus contemporâneos e sucessores. Comparações qualitativas são, por outro lado, tão lícitas quanto necessárias em se tratando de compreender melhor diferentes linguagens pessoais. A ponto de podermos advogar, para o aprofundamento de nosso entendimento de quaisquer manifestações criativas, em favor da existência de uma modalidade de apreciação comparada, na qual obras avulsas ou conjuntos de obras iluminariam a singularidade de outras. Por isto, gosto de pensar em reflexões como as deste texto como exercícios em escuta comparada.

Dito isto, não vejo problema algum em reconhecer que obras de diferentes artistas podem exercer graus diversos de atração sobre cada indivíduo – os quais muitas vezes não tem, por sua vez, uma consciência exata de por que preferem isto ou aquilo. Então, esta longa digressão foi apenas uma viagem de auto-conhecimento ou, se quiserem, uma tentativa de entender por que prefiro ouvir, incondicionalmente, Bill Evans a Keith Jarrett.

Minto. Incondicionalmente não. Por que acabo de descobrir que, enquanto a direção inexorável das formas clássicas, nas quais incluo execuções como as de Evans, exigem imperiosamente minha atenção exclusiva, acabo de descobrir que música atemporal como a de Jarrett, que pode tanto permanecer harmonicamente imóvel pelo tempo que se queira como percorrer indefinidamente paisagens as mais diversas sem nada que a obrigue a chegar num ponto de repouso, é ótima para ser ouvida enquanto se faz outras coisas.

Disclaimer à guisa de epílogo: é quase desnecessário dizer que, para outros que não eu, pode se dar exatamente o oposto àquilo a que me referi no parágrafo acima, i.e, podem muito bem preferir ouvir concentradamente música errática, deixando a mais direcional para ruído de fundo enquanto executam outras tarefas tais como ler ou escrever. São opções bem pessoais – determinadas, como eu disse, por motivos insondáveis – que não desmerecem um tipo de música nem o outro. Mesmo que seja impossível não reconhecer a distinção tão gritante entre os mesmos.

O discurso artístico e o discurso sobre a arte

É razoável se supor que, para cada quantum de discurso artístico criado, seja em forma de livro, música, filme, quadro ou escultura, haverá uma quantidade bem maior de discurso sobre a obra, tanto maior quanto mais antiga e/ou consagrada ela for.  Isto por que a resenha sobre objetos artísticos, antes confinada a um seleto círculo de especialistas, acabou por se tornar o café da manhã, o almoço e o jantar de toda uma comunidade acadêmica voltada para a produção de textos analíticos sobre obras de arte em teses de pós-graduação e artigos para periódicos.

Não que todo discurso sobre a arte seja totalmente irrelevante ou supérfluo. Longe disto. Afinal, há textos secundários excelentes, geralmente de fôlego e em linguagem atraente, que iluminam a compreensão sobre um autor, grupo de autores ou mesmo todo um contexto ou uma época. Tais são os tratados de teoria literária de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre Dostoiévski e Rabelais, ou ainda os livros de Charles Rosen (1927-2012) sobre o estilo clássico e a forma sonata. São também respeitáveis as contribuições de schollars como Alan Tyson ou Robert Winter para periódicos como Beethoven Studies ou ainda as obras de Walter Frisch sobre a música de Brahms. Assim como estes, há muitos outros. Quase sempre, nestes casos, os textos analíticos secundários sobre a obra de epígonos artísticos são de interesse tão universal que acabam fatalmente publicados como livros.

Fora deste círculo de brilhantismo, no entanto, o que há – e em muito maior quantidade – é uma miríade de papers, de diferentes extensões (artigos, os mais curtos; teses, os mais longos), produzidos primordialmente para a promoção de seus autores na carreira acadêmica, que serão lidos não mais do que por aspirantes a posições mais ambiciosas no intuito de melhor rechearem seus próprios textos com citações.

Aqui se faz necessário um disclaimer (antes que comecem as inevitáveis pedradas): é claro que há teses e artigos interessantes e necessários; estes se constituem, no entanto, muito mais em exceções do que na regra.

É sobre tais textos secundários, bem escritos no máximo, ainda que de pouca relevância para a apreciação das obras examinadas, que trato nesta diatribe.

* * *

Não conheço a origem das teses e artigos científicos, nem tampouco tenho paciência para buscar tal erudição. Quer me parecer, no entanto, que a disseminação  generalizada do texto acadêmico que temos hoje seja como uma praga que fugiu ao controle.  Escrever (e publicar) já foi um privilégio exclusivo de quem (1) soubesse escrever bem e/ou  (2) tivesse algo original ou, ao menos, interessante a dizer. Só que, nalgum momento, pareceu às elites universitárias que talvez fosse uma boa ideia exigir de aspirantes a melhores posições acadêmicas que escrevessem intensamente, quase compulsivamente.

Aqui nos deparamos com um desequilíbrio fundamental, a saber, o de que existem muito mais pesquisadores (assim são chamados) do que, propriamente, objetos de estudo carentes de textos elucidativos. Isto foi suficiente para instaurar uma corrida, entre orientandos e orientadores, pela identificação de temas passíveis de uma boa tese ou de um bom artigo. E nesta busca, um lugar óbvio para o qual olharam (especialmente pesquisadores em arte) foi o imenso manancial de discurso artístico produzido em todas as épocas.

Só que tal expediente não se afigurou, na prática, tão simples, posto que campos de estudo sobre epígonos como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms ou Schoenberg (para citar uns poucos) já estavam saturados com textos consagrados do eminente círculo de schollars supracitado. A solução foi se voltar, então, para obras de artistas novos ou novíssimos menos conhecidos. E se garantiu, com isto, a perpetuação do exercício acadêmico da escrita. Para desespero dos bibliotecários – que são, em última instância, aqueles que devem lidar com o excesso textual.

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Sei. A visão acima será certamente descartada como o delírio de um outsider pela academia, a qual se perpetua sem a necessária autocrítica, ignorando por vezes mesmo contribuições valiosas de insiders argutos – como, por exemplo,  Maggie Berg e Barbara Seeber no sensacional The Slow Professor – challenging the culture of speed in the academy.

Vejamos, então, a coisa sob outro prisma: o do artista que tem a obra dissecada em textos secundários sobre a mesma. Antes, porém, algumas palavras sobre os limites da análise.

Torno a dizer que, é claro, não falo aqui dos impressionantes insights de um Rosen, Tyson ou Frisch (que, é preciso dizer, não caberiam na extensão de um artigo ou mesmo de uma tese de dimensões normais – sendo, na maioria das vezes, a investigação de uma vida inteira). Falo, sim, do tipo de achado normalmente resultante da aplicação de alguma técnica consolidada de análise musical. Pois há muitas: Schenker, Meyer, Reti, semiótica e por aí afora.

Ministrando, décadas atrás, disciplinas de análise musical a alunos de graduação, passei pelo constrangimento de ter que lhes revelar, ao fim do curso, que nenhuma técnica conhecida de análise pode nos dizer sobre uma música qualquer coisa que já não saibamos depois de ouvi-la.

Os mais céticos hão de dizer que há um certo exagero nisto, visando o efeito fácil – com o que, admito, tenho que concordar. Tomemos, então, um caso extremo: o da análise semiótica, formulada por Jean-Jacques Nattiez. Na década de 90 do século passado, Nattiez falou num congresso da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música na UFRGS. Sua concorrida conferência foi sobre uma análise em andamento da Catedral Submersa, de Claude Debussy. Disse que tinha submetido seus dados a uma especialista em computação para o processamento numérico. Desconfiado, achei aquilo tudo muito estranho. Como se quisessem descobrir algo novo sobre a célebre música através de um equipamento, sei lá, como um espectógrafo de massa (utilizado para identificar átomos de elementos constituintes da matéria). Ao final, a cereja do bolo: Nattiez informou à reverente plateia que a especialista ainda não havia lhe retornado os resultados. O que não o impediu, no entanto (pensei com meus botões), de cruzar o Atlântico, provavelmente não de graça, para nos falar daquilo. Curiosamente, não nutro hoje, mais de 20 anos depois, a menor curiosidade para saber o que descobriu sobre a maravilhosa peça de Debussy.

Fecho parênteses, voltando à questão de especular sobre a preferência de um autor entre ter sua obra minuciosamente analisada por e para um reduzido número de especialistas ou, ao contrário, ter a mesma amplamente vista, lida ou escutada por um grande público atento, ainda que leigo.

A “licença para prescindir do público” foi talvez pela primeira vez formulada e concedida, ao menos em música, no manifesto Who cares if you listen ?, de Milton Babbit (1916-2011), compositor e professor da Universidade de Princeton, publicado em 1958 pela revista High Fidelity. No célebre ensaio, Babbitt defende a tese de que a universidade se constitui no lugar ideal para o compositor criativo, uma vez que somente nela fica o mesmo livre de qualquer compromisso com a aceitação pública de sua obra.

Lasco, no entanto, o palpite de que a grande maioria dos pintores, escultores, escritores, compositores e cineastas deva preferir, inquestionavelmente, a segunda opção.

Fazendo, ainda, as vezes de advogado do diabo, caberia perguntar se a profusão de textos secundários disponíveis em teses e periódicos sobre o discurso artístico não contribuiriam de forma decisiva para o entendimento e, quando fosse o caso, realização (como na música), do mesmo. Não tenho resposta. Por isto mesmo, quero conhecer o contraditório – a saber, o valor de textos analíticos secundários para uma melhor realização e/ou compreensão de discursos artísticos.

* * *

P.S.: comecei a ler, meses atrás, o grande livro de Michael Benson sobre 2001: Uma Odisséia no Espaço. Ainda que nem todo filme mereça um livro a seu respeito, com certeza qualquer obra de Kubrick justificaria o volume. Por isto, será interessante rever mais uma vez o épico espacial do cineasta após concluída a leitura (que interrompi para ler outras coisas mas, oportunamente, devo retomar) para saber de que modo a obra secundária afetou minha apreciação da primária.

In memoriam Fernando Mattos (1963-2018)

É tradição não se falar mal dos mortos. Notem que, em obituários, é prática amplamente disseminada omitir ou, quando muito, relativizar os senões das biografias daqueles que já não estão entre nós. Só que, por mais politicamente correto tal expediente seja, é também bastante injusto – pois tende a nivelar os feitos de todos os que já se foram de tal modo que as realizações dos melhores tendem a se equiparar às dos médios ou mesmo às dos piores.

Pensei nisto enquanto imerso na atmosfera de profundo pesar pela morte precoce de um daqueles que foi dos melhores professores que o Instituto de Artes da UFRGS já teve: o compositor Fernando Mattos (1963-2018). Que não se deixe enganar, então, quem acreditar que as inúmeras e importantes homenagens recebidas, desde seu trágico falecimento em 4 de novembro último, tenham sido motivadas exclusiva ou principalmente pelo enorme vácuo afetivo deixado entre aqueles que lhe eram mais próximos. Fernando era, em todos os sentidos, um compositor e um professor excepcionais.

Falemos primeiro do professor, que é, provavelmente, como a maioria o conheceu. Não há aluno ou ex-aluno do IA que não tenha guardado ótimas recordações de sua atividade educacional. Antes do recital de ontem, alusivo à sua obra, vários outros aconteceram, dentre os quais cabe mencionar o de um de seus ex-alunos, o clarinetista Pedro Schneider, em Los Angeles, incluindo uma de suas composições e dedicado à sua memória.

Foi na atividade docente que muitos conheceram sua generosidade, humildade e amplo conhecimento. A ponto do violonista Thiago Colombo (UFPEL) dizer, num dos incontáveis obituários que pipocaram nas redes sociais, que, se soubesse de alguém que, por qualquer motivo, tivesse brigado com o Fernando, saberia, a priori, sem precisar estar a par dos detalhes, que esse alguém não prestava.

* * *

O recital de ontem à noite apresentou um recorte de sua variada e volumosa obra, começando por sua primeira composição (Poemeto, para violão solo) até provavelmente a última (Toda Noite, para coral e contrabaixo), composta entre o primeiro e o segundo turno das últimas eleições – nas quais, aliás, se engajou ativamente em favor do lado mais humano e democrático. Tudo o que foi lá executado, por colegas e alunos, e ouvido corrobora a convicção de que Fernando, além de ter amplo domínio sobre a escrita para os mais diversos instrumentos, foi fluente em muitas linguagens. Com isto, não é possível atribuir a sua música um “estilo privativo” – i.e., aquilo (como, por exemplo, uma linguagem harmônica  específica) que permite que identifiquemos prontamente um compositor ao ouvir uns poucos sons de suas obras. Demérito ? Penso o contrário: antes, total comando sobre o métier.

Deste modo, foi possível ouvir, ao longo da noite de ontem, a melhor escrita violonística contemporânea (Fernando era exímio violonista e alaudista) já em sua primeira obra e traços de madrigais renascentistas (Fernando também cultivava uma intensa relação com a música antiga, pela qual nutria especial apreço) na última. Em meio a tudo isto, penso ter ouvido, lá pelas tantas, ecos de Messiaen (alguém mais ouviu ?) – e há quem reconheça em sua música uma inegável influência de Hindemith. Provavelmente, todos estão certos. Tudo isto me fez lembrar uma alcunha que apús a outro eclético e prolífico compositor do IA, Hubertus Hofmann (1929-2011), a partir de como Millôr Fernandes se auto proclamava: ” – Enfim um compositor sem estilo ! “

Descansa em paz, Fernando !

Arlequim, de Karlheinz Stockhausen (1928-2007), por Paula Pires, clarinetista

Tive o prazer e o privilégio de assistir, na última quinta-feira, a  uma performance do Arlequim, de Karlheinz Stockhausen (1928-2007), pela clarinetista Paula Pires. Não vou me deter, aqui, em peculiaridades da obra (que são muitas) nem tampouco na contextualização de sua criação e estreia,  até por que o público alvo deste post, tão escasso quanto o que esteve presente naquela apresentação ou, de resto, o de qualquer outra obra do compositor, é presumivelmente familiarizado com sua linguagem, a qual pode ser chamada de tudo menos de convidativa (ao menos aos ouvidos da maioria).

Explico. Stockhausen foi uma das figuras centrais do movimento conhecido com Escola de Darmstadt que, a partir da metade do século 20, desafiou tudo o que era estabelecido em termos de composição musical, por isto mesmo abrindo mão da obrigatoriedade de uma comunicação fácil com o público – fortemente, esta, dependente de uma certa repetitividade que dominou toda a música anteriormente composta. Resumidamente, Stockhausen poderia ser, então, descrito, para desespero de musicólogos e ouvintes mais… “especializados”, como um compositor hermético.

Como eu já disse, o público que afluiu à raríssima execução do Arlequim, na semana passada, no Instituto Goethe de Porto Alegre, foi, pela razão acima sumariada, minúsculo. Estimo que entre 10 e 20 pessoas, na maioria participantes do Primeiro Festival Internacional de Clarinetistas de Porto Alegre, de cuja programação a performance de Paula fazia parte. Por que insisto tanto nisto – a saber, na atribuição do rótulo “música para poucos” ao Arlequim ?

Contrariamente ao que parece, não vai aí qualquer reprovação ao hábito do público médio frequentador de concertos, que teima em privilegiar a mesmice em detrimento de tudo o que lhe é estranho – deixando, com isto, numa sinuca programadores de espetáculos que precisam se justificar perante apoiadores com casas lotadas. Se enfatizo o pouco apelo da obra ao ouvinte médio é, pois, tão somente para não deixar qualquer dúvida sobre o fato de que o caráter sublime de um gesto artístico independe de seu apelo popular – estando, não raro, em franca oposição ao mesmo.

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Toco em concertos sinfônicos várias vezes ao mês. Com frequência um pouco menor (hoje bem menos do que antes), assisto a outras apresentações musicais. Mas se me perguntarem o que toquei ou ouvi ao longo dos últimos anos ou décadas, é bem provável que já tenha me esquecido de grande parte deste oceano musical (afortunadamente, muitas vezes).

Este certamente não foi o caso do que vi, ouvi e senti naquela noite no Instituto Goethe. Pois o Arlequim de Stockhausen é muito mais do que uma música  no sentido restrito, isto é, existente apenas enquanto uma partitura que, para ganhar vida, deve ser tocada por um músico ou conjunto de músicos. Sim, a partitura existe. Mas termina aí qualquer semelhança com tudo o que eu já ouvira antes.

Primeiro, é claro, por que a música do Arlequim deve ser executada em perfeita coordenação com movimentos coreográficos executados pelo clarinetista segundo especificações minuciosas do compositor. Ora, isto não é pouca coisa, uma vez que músicos são normalmente treinados para executar seus instrumentos em configurações estáticas, sentados ou em pé, ocupando um espaço limitado, como num cockpit. Depois, por que, em decorrência deste acúmulo atípico de funções (no ballet, por exemplo, músicos tocam enquanto bailarinos dançam), a complexa partitura deve ser totalmente memorizada pelo músico.

Céticos hão de dizer, aqui, que solistas de concertos estão habituados a tocar “de memória”. Me atrevo, no entanto, a supor ser muito mais fácil memorizar, de um lado, uma obra em formas tradicionais, com seções claramente delimitadas e um “texto” previamente fixado e exaustivamente ouvido, ao vivo e em gravações, do que, de outro, uma peça com espaço para improvisação controlada e sem a profusão de “ganchos” métricos e tonais peculiares ao repertório de concerto mainstream, nos quais tanto intérpretes como ouvintes invariavelmente se apoiam.

Tudo isto faz do Arlequim de Stockhausen nem música pura nem tampouco incidental. Sua concepção, por assim dizer, holística do intérprete é algo, senão único, ao menos sem precedentes (pois provavelmente já deve ter sido imitada) na história da música ocidental.

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Bom. Vim aqui para falar de uma performance e me pego traindo meu propósito inicial ao me deter em tantos pormenores da obra. É que não tive como fugir disto. Pois não há como se ter sequer uma pálida ideia da magnitude do feito de Paula ao dar vida ao Arlequim a não ser por meio da consciência de tudo o que a tarefa implica. Mas não tentarei, nesta anti-resenha, descrever a experiência em detalhes para quem não esteve lá. Principalmente por que seria inútil. Suficiente, então, sublinhar que a performance de Paula foi marcante em todos os aspectos.

Quando entrei no teatro, era cético (devo confessar) quanto ao sentido de alguém se especializar com tamanha intensidade na realização de uma obra musical a ponto de, entre tantas coisas, viajar a outro continente para estudar com quem a estreara sob a supervisão do próprio compositor; dedicar tempo e esforço enormes à memorização da mesma (tempo e esforço, estes, suficientes para se apreender um vasto repertório mais… tradicional); ou, ainda, enfrentar a árdua disciplina física necessária à sua execução.

Então, ao longo dos cerca de 40 minutos de duração da performance, sofri uma transformação. Não há como descrever o encantamento a que todos os que estavam ali foram submetidos (a julgar pela ovação ao final). Fui lá desconfiando que testemunharia algo único e, consoante a isto, portando uma câmera fotográfica para melhor ilustrar este post que, também desconfiava, acabaria escrevendo. Só que, imerso na escuridão e no silêncio tão cruciais àquilo tudo, desisti de conspurcar a atmosfera com os disparos da máquina. Felizmente, encontrei um registro em vídeo de uma performance anterior de Paula, o qual, infelizmente, pouco revela do que foi ter a atenção exclusivamente capturada pela magia daquele momento. Quando fui embora, todas as minhas dúvidas haviam se dissipado.

Hoje, passados alguns dias, sigo impactado por aqueles minutos, tendo renovado meu entendimento, ainda que intangível, impossível de ser vertido em palavras, da necessidade da arte. Acho que esta sensação não é só minha. Muito obrigado, Paula !

 

 

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

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E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

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Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

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O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

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Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

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Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

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E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

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E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.