A neutralidade da(s) rede(s)

A neutralidade da rede é um princípio que norteia o protocolo da internet, garantindo que qualquer conteúdo nela trafegue com a mesma velocidade, de acordo com a ordem de chegada, independentemente de quanto está sendo pago e por quem para que a informação nela viaje. Como numa fila única de transplantes.

Como todo princípio isonômico, há quem a ele se oponha. Os argumentos contra a neutralidade variam. Desde os mais comerciais, como garantir a quem pague mais o direito de suas informações circularem mais rápido e/ou eficientemente, como no caso de aplicações que demandam maior largura de banda, tais como plataformas de streaming; até aqueles supostamente mais “altruístas”, como o de que a neutralidade seria um obstáculo à inovação tecnológica.

Uma das propostas mais criativas é a existência não de uma rede única, neutra, mas de várias redes concomitantemente: uma neutra, universalmente acessível, para emails, blogs e sites menos acessados, e tantas outras quanto forem necessárias com facilidades para grandes usuários com necessidades mais específicas.

Assim, tendo surgido como uma condição praticamente utópica, que igualava grandes e pequenos no que tange ao tratamento recebido pela rede, a neutralidade logo se tornou objeto de debate. Tanto que possui nuances diferenciadas em cada país. No Brasil, a internet é neutra, regulamentada pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

Para um entendimento mais abrangente e detalhado da neutralidade da rede, vale a pena consultar a Wikipedia – a qual, ainda que por vezes seja bem sumária, ao menos sobre este assunto é altamente informativa. E neutra.

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Mas não é sobre isto que vim falar. Perto de tudo o que encontrei facilmente sobre o tema, discorrer mais seria como chover no molhado.

Com certeza notaram a licença poética, por assim dizer, do título do post, com os “(s)” depois das duas últimas palavras. A ambiguidade se deve à referência tanto à internet como um todo, com seu controverso ideal isonômico, como, ao mesmo tempo, às redes sociais que nelas residem – as quais, por sua vez, de neutras não tem nada. Ou, ao menos, é nisto que, do alto de minha teoria conspiratória, acredito. Como tento deixar claro adiante.

Redes sociais residem em plataformas (sites) que residem na internet. Como todo site, tem seus proprietários. E, salvo notáveis exceções de sites colaborativos (wikis) não lucrativos que atendem a interesses públicos – como, por exemplo, a wikipedia ou a IMSLP (maior repositório online de partituras musicais), plataformas de redes sociais são, via de regra, startups que deram certo, com alto valor de mercado e que remuneram seus proprietários, sejam eles indivíduos ou acionistas, com polpudos lucros advindos da exibição de publicidade (mais comumente) ou venda de assinaturas para versões ad free.

Até aí tudo bem. Já banalizamos a ideia de que o mercado está aí para quem dele saiba tirar proveito. Todo o problema começa com o algoritmo de distribuição – o qual, numa rede, seleciona quais postagens são (e, o que mais nos interessa, não são) mostradas a cada usuário. Num mundo perfeito, algoritmos seriam transparentes (como, sei lá, a programação em código aberto), configuráveis às necessidades e preferências de cada um. Mas não. Funcionam como caixas pretas, sobre cuja ação podemos não mais do que tecer suposições. Teorias conspiratórias inclusive, como aquela adiante.

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Antes, porém, de prosseguir, cabe um esclarecimento: minha experiência primária se restringe a uma única rede social, a saber, o facebook (não consigo acessar com a devida frequência (que dirá nela interagir) mais do que uma). Não descarto, portanto, a existência de outras redes mais transparentes no tratamento da informação que nelas circula.

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Algoritmos de distribuição existem por que o grande volume de informação (acho que o nome disso é metadados) torna proibitiva a análise por humanos de todos os conteúdos que circulam em redes sociais. Tecnologias de inteligência artificial para reconhecimento de imagem já permitem, no entanto, atribuir automaticamente um viés moral ou ideológico a cada postagem ilustrada. Amigos já tomaram ganchos por postarem imagens com seios, bundas ou genitálias. Pouco importa se forem “nús artisticos”. Experimentem, por exemplo, postar uma reprodução de A Origem do Mundo (BRINCADEIRA, NÃO FAÇAM ISTO !).

Também é fácil para um algoritmo identificar e, conforme o caso, impulsionar ou ocultar imagens contendo símbolos tais como, por exemplo, uma estrela de Davi ou uma bandeira palestina. Com texto, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada. É difícil apontar o matiz ideológico de algo escrito exclusivamente pelas simples presença ou contagem de palavras. Da seguinte maneira. Mesmo que vocábulos como capitalismo ou Marx apareçam uma ou mais vezes num texto, nada podemos afirmar sobre o viés ideológico do que foi escrito, i.e., se o texto é apologético ou condenatório em relação aos mesmos.

Ou, ao menos, assim eu supunha até poucos dias atrás. Quando manifestei meu ceticismo sobre o estado da arte da interpretação automática de textos, um de meus filhos simplesmente perguntou “– Conheces o ChatGPT ?” Talvez ele tenha razão. Se uma IA já consegue criar um texto convincente a ponto de passar por uma formulação humana, o caminho reverso (i.e., entender algo escrito por um humano) não deve ser, afinal, tão difícil. E, neste caso, vale atualizar a proposta por Harari, em The Economist, de uma legislação que obrigue aplicações que utilizem IA a informarem seus usuários sobre isto; para outra que também obrigue plataformas de redes sociais que utilizem algoritmos de distribuição seletivos que informem seus usuários sobre o funcionamento dos mesmos. Talvez como seu código fonte, ainda não compilado, comentado para inteligibilidade universal. Sonhar não custa nada.

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Desde lá de cima, venho prometendo relatar a experiência, involuntária, que funcionou como um sinal de alerta para o fato de redes sociais não serem tão neutras como era de se esperar. Não sou ingênuo, é claro. Sempre suspeitei. Até sabia. Mas os fatos abaixo narrados só aguçaram minha percepção da coisa.

Até poucos anos atrás, sempre era informado pelo facebook de novas postagens pelos perfis de Evonomics (Holanda) e The Guardian (Inglaterra), duas publicações que prezo sobremaneira. Por vezes até traduzi matérias suas neste blog. Só que, ultimamente, notei que há muito não vinho sendo informado pelo face de atualizações destes perfis. Cheguei até a pensar que Evonomics tivesse saído do ar (The Guardian não, por ser um jornal londrino bem tradicional). Preocupado, verifiquei que os bravos holandeses continuam firmes e fortes, tanto no site como no facebook.

Comentando com meu amigo Fábio o ocorrido, ele teceu a hipótese de que, se eu curtisse as postagens dos dois, o face voltaria a me mostrá-las. Entrei, então, em ambos os perfis e curti por atacado. Esperei. Nada. Aprendi, com isto, que, doravante, teria que visitar os perfis (ou os próprios sites) se quisesse saber de novas atualizações, não mais podendo contar com o facebook para tanto. Problema resolvido. A curiosidade, todavia, persistiu.

De início, pensei que o face estivesse ocultando postagens de grandes publicações. Afinal, já tinha ouvido falar que o site “não gosta” de postagens com links que direcionem a navegação para fora da plataforma. Faria sentido. Só que não: continuo a receber normalmente atualizações de The Economist e The New Yorker, entre outros.

Foi então que me dei conta: os dois perfis que sumiam de meu feed são notórios por um viés que, se não escancaradamente de esquerda, não pode de modo algum ser definido como de direita. Ok, The Guardian pode ser classificado como de esquerda. Mas Evonomics publica textos que, de alguma forma, vislumbram possibilidades para “consertar” a iniquidade inerente ao capitalismo.

Já disse, acima, que acho difícil (mas não improvável) que um algoritmo identifique o teor ideológico de um texto para, com base nisto, decidir por sua evidência ou ocultação. Bem mais provável é que publicações maciçamente visualizadas sejam marcadas (talvez até por humanos) como desejáveis ou não no feed de usuários de redes sociais, segundo a matriz ideológica de seus proprietários.

Pouco importa, então, se postagens (ou, mais provavelmente, perfis) são impulsionados ou ocultos com base em julgamento humano ou exclusivamente algorítmico. O que fica patente é que, como já foi dito, de neutro o facebook (e provavelmente outras redes) não tem nada. CQD.

Por que odeio mensagens de áudio

Não é nenhum segredo para quem me lê (obrigado, caros leitores !) que tenho o maior pavor de mensagens de áudio – as quais considero, antes de tudo, verdadeiros sequestros de atenção. Principalmente por que, apesar do recurso de acelerar sua audição, não é possível fazer leitura dinâmica das mesmas. Assim, se precisamos recuperar alguma informação essencial, temos que ouvi-las na íntegra. Isto toma tempo. Muito tempo, É como se o emissor dissesse: “agora, o infeliz vai ter que me ouvir”. Neste sentido, podem até ser consideradas como afirmações ostensivas de poder. Minha reação default ? Simplesmente não as ouço. A menos, é claro, que esteja esperando alguma informação essencial de seu emitente.

Dizem seus apologistas que poupa tempo e, logo, é um recurso legítimo da comunicação contemporânea. Até por que, se o emitente não espera uma reação imediata do destinatário, preserva o respeito à privacidade do mesmo, i.e., ele só as lê quando quiser (no meu caso, SE quiser)). Mas será que é mesmo assim ? Há, por exemplo, quem grave uma sucessão de mensagens e só as envia depois de auditá-las uma a uma, recebendo, então, respostas imediatas – mais ou menos como naqueles diálogos por rádio cujo protocolo (ou condição técnica, sei lá) impede que dois falem ao mesmo tempo e exigem, portanto, que o final de cada fala seja pontuado pela interjeição “câmbio”. Mas se  o assunto é assim tão importante ou urgente, não seria o caso de se resolver tudo mais rápido num simples telefonema ?

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Considerando, no entanto, tanto as vantagens (maior rapidez (?)) como as desvantagens (menor rastreabilidade), creio que há outro fator em ação, muito menos óbvio, a saber, o controle sobre as interrupções do discurso.

Não é novidade para ninguém a tendência histórica, tanto em meios de comunicação (broadcasting) como em redes sociais (narrowcasting), de atomização progressiva do discurso humano num número cada vez maior de falas cada vez mais curtas. A tal ponto de, para a melhor enunciação de ideias e/ou argumentos, tais interrupções aleatórias (i.e., fora do controle de quem está com a palavra) acabarem por se tornar francamente indesejáveis. Neste sentido, as mensagens assíncronas, tanto de áudio como de texto, se constituem numa espécie de reação contra esta tendência de atomização do discurso. É como se estivesse implícito em cada mensagem o subtexto “agora você vai ter que me ouvir”. Mais, até, em mensagens de áudio do que nas de texto, nas quais é possível simplesmente “passar os olhos”. Tipo “lá vem aquele chato outra vez”.

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Por que tudo isto ? Por que, hoje, enviei minha primeira mensagem de áudio (algo que havia prometido para mim mesmo jamais fazer). Sucumbi à praticidade. Se tivesse internet, teria, é claro, digitado e enviado a resposta ao que me foi demandado. Mas acontece que a resposta era longa e simplesmente não consigo digitar mais do que duas ou três palavras no tecladinho virtual do smartphone (com dedos grossos, erro a tecla a cada dois ou três toques. Com isto, o envio de uma frase não maior do que uma linha acaba se tornando um verdadeiro suplício).

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PS: Comentando com minha massagista, após ter escrito o texto acima, minha aversão por mensagens de áudio, ouvi dela um contraditório bem interessante, a saber,

  • que o problema não são as mensagens de áudio, mas as pessoas que não sabem usá-las, se valendo de rodeios e preâmbulos, como numa conversação social, antes de ir logo à informação essencial; e
  • (o que é mais interessante, por expressar um ponto de vista oposto ao meu) que, ao contrário das mensagens de texto, que nos obrigam a ficar “parados” concentrados em sua leitura, as de áudio, por mais longas que sejam, podem ser escutadas enquanto fazemos outras coisas. Tenho minhas reservas quanto a isto, por acreditar que o multitasking não passa de um mito e que o mesmo se aplica igualmente à atenção. Então, das duas uma: ou não se ouve direito a mensagem, ou não se faz direito o que se está fazendo ao mesmo tempo. Assim penso. Mas é claro que nem todo mundo é igual. Viva, então, a diversidade humana !

A hiperconexão ou o insuportável temor de se estar perdendo alguma coisa

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Raul Seixas

Me desconectei por completo. Não por alguma resolução consciente, voluntária, mas pela completa perda de interesse. Quando visito o Facebook menos de uma vez por semana, não consigo ficar muito tempo lá. Entrei no WhatsApp por necessidade de trabalho (quadros de avisos) e nunca leio o único grupo mais populoso do qual faço parte, no qual entrei por insistência de amigos e para não ter que dar explicações. Quando passei, agora há pouco, por meu blog gratuito, só prá ver se ele ainda existia ou já havia sido deletado pela WordPress, constatei que não escrevi nada nos últimos três meses.

Não que eu não tenha sentido, neste intervalo, nenhuma necessidade de escrever. Ao contrário. É um vício. Todos os dias, me surpreendo compondo mentalmente posts sobre os mais diversos temas para, logo em seguida, me perguntar: para que ? Primeiro, por que tudo o que eu disser já terá sido dito com mais propriedade algures por outrem e, segundo, por que, se ainda não tiver sido dito por ninguém, afinal, qual a importância, exceto para mim mesmo, do que eu teria a dizer ?

Vivemos numa era de excesso, camuflado em escassez apenas para valorizar artificialmente coisas comercializáveis. Excesso de informação, de produção de alimentos e outros bens e, o que mais nos interessa aqui, excesso de autoria. E neste excesso, o que não é produzido constantemente ou frequentemente atualizado, desaparece.

O fenômeno é bem conhecido. Já falamos aqui de clássicos do cinema menos visitados que, com o fim das locadoras e o alto preço da manutenção de conteúdos em servidores, se tornam indisponíveis e, portanto, invisíveis ou inexistentes. Há poucos dias falava com um amigo, compositor criativo, outrora presente nas redes através de seus CDs então recém lançados, que, ao googlar seu nome, descobriu que não mais existia no espaço virtual, já que não publicara nada nos últimos anos.

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Mas voltemos às redes. Quando as descobri, já tinha passado a febre do Orkut. Entrei no Twitter e logo migrei para o Facebook. Nunca tive a menor curiosidade pelo Instagram, pelo SnapShot ou pelo TikTok e, como já disse, só entrei no WhattsApp, que passo dias sem olhar, por necessidade de trabalho. Por isto, vejo com um misto de surpresa e curiosidade como tantas pessoas parecem ocupar, hoje, todo seu tempo disponível e mais um pouco com o feed de suas redes sociais. Nem acho mais preocupante, como já achei, que tais plataformas funcionem como sequestradores de atenção – pois, afinal, a mesma crítica pode ser feita a quaisquer outros meios e mensagens que favoritamos como, por exemplo, músicas, livros ou filmes.

O que mais me chama a atenção, nestes casos, são quais os mecanismos aditivos que levam usuários de plataformas sociais a querer saber, após cada conteúdo visitado, o que lhes reserva o feed em seguida. Não nos interessam, aqui, as razões financeiras que levam cada plataforma a “fidelizar” usuários desta forma, a nosso ver, doentia. O que me intriga é, na verdade, o que leva tantas pessoas a passarem tanto tempo grudadas num dispositivo a dedicar atenção a tantos conteúdos aleatórios um depois do outro.

Meio século atrás, a televisão já sofria esta crítica. Então, o que mudou foi a mídia, mas não o comportamento. Se este comportamento é, de algum modo, patológico, eu não sei. “Normalidade” e “adequação” são conceitos bem voláteis, que se amoldam ao espírito dos tempos. O que penso hoje é que, talvez, esta adição aos fluxos incessantes de informação estejam relacionados a uma noção do homem contemporâneo atualizado como aquele que tem ciência absoluta de tudo o que acontece a seu redor, dos círculos mais íntimos aos mais distantes, com um entendimento ou uma explicação satisfatória para tudo. Neste sentido, a assistência a fluxos intermináveis de informações contribuiria para atenuar a inquietante sensação de estarmos perdendo alguma coisa. Fora disto, seríamos não mais do que irremediáveis alienados. Só que, num mundo super conectado de informações abundantes, tal ideal é impossível ou, então, francamente patológico. Com a palavra os especialistas.

Net blues; ou O desencanto das redes

Há quase dois meses não escrevo neste blog. Acesso o facebook a cada dois ou três dias só para manter o hábito de felicitar uns poucos aniversariantes que conheço pessoalmente ou com quem já troquei ideias. Venho limpando as caixas de grupos de whatsapp dos quais participo mas não leio, usando o aplicativo somente para conversas bilaterais ou com pequenos grupos de trabalho, mais ou menos do modo como usava emails antes deles se tornarem um repositório generoso de mensagens “circulares” (i.e., genéricas, com mais de um destinatário).

A que se deve este, por assim dizer, cansaço ? Tenho, sem muito êxito, procurando respostas. Por muito tempo, redes sociais acalentaram a promessa de amplificar nossos contatos. As maravilhas do mundo conectado. A facilidade inédita de encontrar, muito mais do que entre nossos contatos presenciais, outros com os quais compartilharíamos afinidades, preferências, angústias ou indignação.

Contra esta miragem utópica, há o célebre número de Dunbar. Formulado pelo antropólogo Robin Dunbar, da Universidade de Oxford, na década de 90, estima entre 1 e 230, com uma média em torno de 150, a quantidade de indivíduos que um ser humano pode, de fato, não apenas conhecer mas, também, saber como se relacionam com os demais membros do grupo. Vale notar que este costuma ser o tamanho de pequenas comunidades, como tribos, aldeias ou pessoas com interesses comuns.

Ora, redes sociais, talvez no intuito de potencializar interações, costumam admitir comunidades bem mais numerosas. O próprio facebook permite que alguém tenha até 5000 “amigos” antes de obrigar o dono de um perfil que atingiu este limite a converter sua página numa fan page. Não é preciso ser nenhum especialista em redes para saber que a diferença entre um perfil comum (com menos de 5000 amigos) e uma fan page (com mais de 5000) diz respeito, principalmente, à interatividade – pois, enquanto qualquer amigo de um perfil pode se dirigir ao mesmo, é vedado (ou, pelo menos, dificultado) aos seguidores de fan pages se dirigir aos donos das mesmas. Deste modo, enquanto perfis comuns podem se relacionar isonomicamente, de uma forma bilateral por default, fan pages são mais afeitas a celebridades – ou, num jargão mais moderno, influenciadores – voluntariamente blindadas ao feedback de seguidores. Por tais razões, postagens em perfis comuns podem ser consideradas como narrowcasting enquanto aquelas em fan pages, broadcasting.

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O que mudou: o facebook ou minha percepção sobre o mesmo ? Tampouco sei. Gostava de pensar que estava lá por causa de recomendações qualificadas, chegando mesmo a considerar meu feed na plataforma como minha rede pessoal de aprendizagem (ou PLN, para personal learning network). Só que cada vez menos encontro ali links interessantes ou linhas de navegação que eu tenha vontade de seguir. Será que minhas fontes secaram, ou é o algoritmo que anda me mostrando as fontes erradas ? Difícil responder.

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Faz pouco tempo que o documentário O dilema das redes adquiriu merecida notoriedade ao denunciar algo do que muitos já sabiam, a saber, que redes sociais, além de alimentar algoritmos cada vez mais sofisticados que servem à publicidade dirigida, também ampliam, para além do tamanho de grupos inofensivos, porquanto limitados pelo número de Dunbar, a fratura entre defensores de ideologias opostas, a qual pode, por sua vez, facilmente se converter em ódio. Pois, como disse uma vez um amigo, de forma apenas aparentemente simplória, “o ser humano, quando em grupo, é sempre mais idiota”.

Não estamos falando aqui, no entanto, deste perigo embutido nas redes, tão bem retratado no filme, mas, antes, de um tédio experimentado no uso das mesmas face à constatação de sua limitação em entregar o prometido e substituir, com isto, as redes presenciais.

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Para muitos, redes sociais trazem a sedutora promessa da publicidade dirigida. A democratização da propaganda, não mais limitada àqueles que podiam arcar com os altos custos da mesma junto a meios de broadcasting. A redenção dos pequenos negócios, que viram no network marketing a miragem de, finalmente, prescindirem de uma propaganda mais robusta e onerosa (e, a bem da verdade, anti-ecológica – pois quem, em sã consciência, ainda presta alguma atenção, depois do Google, em anúncios intercalados em páginas de impressos ou programas de rádio e TV ? Francamente, não entendo a sobrevida da publicidade, que ainda existe muito mais por teimosia de quem a faz do que por interesse de quem a consome…).

Mas não por muito tempo. É difícil não cansar de perfis pessoais dedicados a constantemente veicular mensagens comerciais. Por exemplo. Lá se vão já uns dez anos que uma blogueira que eu seguia no twitter declarou que estava deixando de seguir músicos, pois os mesmos só faziam anunciar shows dos quais participariam. Não sou totalmente contra o expediente – que deve, no entanto, ser usado muito parcimoniosamente, de tal modo que o network marketing jamais iguale ou supere, em número de postagens, o mindcasting. Ou mesmo, vá lá, o lifecasting.

Avatares

Dá gosto ver quando os arquitetos do facebook tentam algo que não emplaca. Não foi preciso navegar muito para descobrir, no início desta semana, a tentativa desengonçada de incentivar, por meio de uma nova facilidade, usuários da plataforma a substituírem seus avatares por graciosos bonequinhos padronizados.

Confesso que não tive a menor curiosidade de conhecer o brinquedo, mas deu prá entender que se trata, como naqueles kits usados por policiais para compor retratos falados, de uma ampla palheta de cores de pele e cabelo, penteados, formatos de rosto, barbas e bigodes, óculos, narizes, peças de vestuário e, mais importante que tudo, sorrisos e olhares simpáticos. Ora, bem disse Luiz Fernando Verissimo, numa crônica sobre o E.T., que “olhos de bambi não vale.” Pois, com eles, podemos nos encantar com qualquer monstrengo intergaláctico. Com os avatares do facebook não é diferente: todos são simpatissíssimos.

Praticamente junto com o lançamento do aplicativo veio a teoria, conspiratória ou não, de que a coisa não passava de mais uma tacada dos donos das redes para se apossar de dados de usuários. Bem no clima dos excelentes documentários, tão em voga, The Social Dilemma e The Great Hack (respectivamente, no Brasil, O Dilema das Redes e Privacidade Hackeada) – ao que alguns, mais atentos, retrucaram que, de qualquer maneira, as redes já tinham esses dados, independentemente de quaisquer avatares fofinhos.

Então, só para não chover no molhado, prefiro me concentrar, ao invés de numa suposta intenção maliciosa, oculta por trás do novo brinquedinho, por parte de seus inventores, antes na motivação, talvez inconsciente, que tem levado tantos, até mesmo os mais inteligentes, a flertar com a novidade.

Antes, porém, de auscultar o fascínio exercido pelos bonequinhos sobre usuários, vale notar ao menos um aspecto técnico que tem escapado às teorias conspiratórias mais criativas, a saber, a economia de servidores. Isto por que, por mais variadas que sejam as combinações possíveis dos elementos disponibilizados na palheta para confecção de avatares – de tal modo que, embora até possam existir avatares iguais, é improvável que existam dois avatares idênticos na rede de qualquer usuário – ainda é mais econômico armazenar digitalmente (i.e., ocupa menos bytes) cada variável que compõe um determinado avatar do que os pixels que seriam necessários para uma imagem de perfil. Ok, dirão que tal economia é muito pouca perto dos zilhões de bytes necessários para guardar o interminável stream de memes postados por cada perfil – mas, enfim, se trata, aqui, de apenas mais uma teoria conspiratória.

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O que, então, leva tanta gente a, ao menos a título de experiência, compartilhar seu avatar com amigos do facebook ? Aqui, deve ser dito que, embora muitos tenham experimentado criar seu próprio bonequinho, tenho visto poucos adotarem sua versão cartunizada como imagem de perfil – daí minha alusão, no início deste post, ao divertido fracasso da iniciativa. Entre as carinhas sorridentes a nos acenar, encontramos amiúde comentários irônicos (o melhor que vi foi “meu avatar, minhas regras”) e fotos de macacos, Smeegle e beldades vintage como Liz Taylor ou Sophia Loren.

As razões para a adoção das fofurinhas se resumem em dois de seus atributos: simpatia e juventude. Prá começo de conversa, tem os “olhos de bambi” (confesso, adoro a expressão, plenisignificante, proposta por LFV). Depois, as peles lisinhas, como em desenhos animados seriados (nos quais não há tempo hábil nem tampouco técnicos em número suficiente para aplicar texturas customizadas em superfícies), não têm acne, rugas, pés de galinha ou linhas de expressão (em suma, marcas de vida) a denotar a idade e/ou o passado dos proprietários de cada perfil.

Conquanto a palheta de opções (que, repito, desconheço) contemple satisfatoriamente a diversidade étnica ou a obesidade (o facebook é sempre politicamente correto), imagino o quanto deve ser difícil compor um avatar que pareça feio, sujo ou pobre. Pelo menos, até agora não vi nenhum assim.

Então, no mundo perfeito dos avatares do facebook, todos são simpáticos, saudáveis e limpinhos. Não há excluídos – o que é perfeitamente lógico numa plataforma onde, sabemos, todo usuário está na mira como um consumidor em potencial. Ok, dirão, mas, muito antes dos bonequinhos fofinhos do facebook, todo mundo já se auto-glamourizava em redes sociais. Concordo. O facebook não inventou (será ?) o fato de que, nas redes, todos são legais. Isto é uma aspiração dos usuários. O que a plataforma, no entanto, inegavelmente passou a oferecer é uma valiosa ferramenta para sua realização.

De como grupos de WhatsApp perdem por ser seriais ao invés de paralelos

Já disse aqui ter ouvido de alguém, ao saber que eu ainda não usava WhatsApp, a exclamação “Bem que fazes !”. Depois, quando me rendi, por razões práticas, ao aplicativo, me disseram que “O importante é ficar longe dos grupos.” Hoje, tendo sido encontrado por dois grupos de ex-colegas, entendo melhor a segunda ressalva.

Grupos de mensagem trazem na origem o seguinte dilema. Quando criados, desejamos que se tornem, de algum modo, ativos (ou morrerão de inanição). Acontece que, tão logo sediam alguma discussão que valha a pena (quase sempre sobre política, religião, gênero ou futebol, sistematicamente banidas por moderadores mais incisivos), passam rapidamente de ativos a hiperativos, o que torna sua leitura proibitiva, por vezes até incompatível com outras atividades. Já havia observado esta peculiaridade em pessoas que me são queridas, mas só entendi mesmo o processo quando entrei, eu mesmo, na brincadeira.

A meu ver, o grande problema dos grupos de mensagens é o design serial das plataformas, que publica tudo o que é dito num único stream que não distingue (ou o faz apenas precariamente) um tema dos demais que competem pela atenção em cada grupo. Desta forma, a prolixidade, outrossim tão desejada por mentores de grupos “sociais”, logo se torna a principal dificuldade em sua leitura, pois não há como, num fluxo contínuo e desordenado, visualizar locuções relacionadas – a menos, é claro, que diferentes threads viessem classificados (por tags ou categorias, por exemplo) e fossem exibidos em colunas separadas; mas isto seria francamente hostil ao design ostensivamente simplificado das plataformas de grupos de mensagens.

O design da internet e, de certo modo, dos blogs é, ao contrários, paralelo, i.e., neles, é possível rastrear facilmente qualquer quantum de informação buscada em meio a uma enorme quantidade de conteúdos simultaneamente disponíveis.

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O problema da redundância. Que inflaciona à exaustão a leitura por meio de falas repetitivas, conquanto elegantes. Aqui, há também um fator psicológico em ação. Qualquer um pensaria duas vezes antes de redigir, revisar e publicar algo situando um problema num contexto maior, o analisando e, quem sabe, até propondo alguma solução. Já num grupo, em que todo contexto já foi clara e redundantemente explicitado em locuções anteriores, não hesitamos em agregar nossas posições. Só que, ao fazermos, raramente nos limitamos a expressões lacônicas como “concordo” ou “discordo”, recorrendo, ao invés, ao fútil exercício de dizer a mesma coisa com outras palavras, quase sempre rebuscadas. Isto é exatamente o contrário da prática comum em plataformas colaborativas, como a wikipedia, em que só se edita aquilo que ainda não foi dito (um ideal para a escrita acadêmica que espero ainda viver para ver).

In short: lugar de textão é em blog. Lê quem quer; ignora quem não quer ler. Sem atrapalhar quem busca no stream dos grupos de discussão alguma informação útil ou nova – ou mesmo uma interação digna do nome (quase sempre de discordância). Posso ser um sonhador, mas acredito que, um dia, a internet será assim. Talvez depois que tenham, finalmente, implementado a web semântica.

Por que não frequento reuniões, bem como um olhar sobre a concepção de Steven Johnson sobre espaços que favorecem a criatividade

É conhecido e universalmente aceito o poder transformador de novas tecnologias sobre processos antigos. Sabe-se, também, que reuniões presenciais constituíram, por muito tempo, uma parte inalienável do cotidiano dos mais diversos coletivos, desde departamentos universitários até partidos políticos, passando por condomínios, clubes, agremiações profissionais e equipes de trabalho. Curiosamente, tais encontros tem resistido, com todos os expedientes que lhes são peculiares, como secretaria de palavra (que concede a permissão para falar) e redação de atas, aos mais variados avanços tecnológicos que em muito simplificariam  seu processo e logística.

Para ilustrar a obsolescência das reuniões presenciais, basta lembrar que, para que sejam levadas a cabo, é preciso que todos os seus participantes (que não costumam ser poucos) estejam num mesmo lugar ao mesmo tempo. Mas vamos por partes. Examinando, de início, suas funções, explícitas e subentendidas, apontando, aqui e ali, como poderiam ser melhor contempladas por meios digitais já amplamente disponíveis.

Explicitamente, reuniões servem para

comunicação de fatos do interesse da comunidade reunida. Embora tais fatos sejam do interesse de todos, isto não significa que cada um prefira tomar ciência dos mesmos no exato momento em que cada reunião ocorre. Para tanto, emails são não apenas suficientes como muito mais convenientes a cada participante, que poderá abri-los quando melhor lhe aprouver. É claro que defensores de reuniões objetarão que muita gente não abre emails – mas, afinal, que garantia existe de que todo participante de uma reunião preste a devida atenção em cada palavra proferida (especialmente na era das mensagens de texto, que podem ser silenciosamente lidas e disparadas) ?

discussão pelos participantes de questões polêmicas, i.e., nada que não possa ser feito num chat com vantagens dentre as quais, para citar apenas duas, 1) a facilidade para ler recursivamente tudo o que foi dito e 2) a facilidade para responder, se necessário, a algo que foi dito muito antes de falas imediatamente anteriores. Pois quem já não acabou esquecendo ou deixando de lado, numa reunião, alguma observação pertinente tão somente por que o secretário de palavra só lhe concedeu a mesma muito depois do assunto em questão já ter “morrido” ?

deliberação pelos participantes de posições a serem adotadas pela totalidade do grupo, que pode ser aberta, geralmente erguendo os braços, ou secreta, através de cédulas anônimas posteriormente contabilizadas. Novamente é preciso que se diga que qualquer plataforma de chat, onde os participantes são identificados por login, dá conta do recado. A bem da verdade, tais plataformas só não oferecem uma resposta satisfatória para votações secretas, para as quais assembleias ainda são necessárias. Mas sejamos realistas: quantas das últimas reuniões que vocês frequentaram tiveram votações secretas ? Ora, todas as outras poderiam ter sido mediadas virtualmente, com incontáveis vantagens para seus participantes.

Além destas funções explícitas, reuniões também podem ter por objetivo propiciar a seus “mestres de cerimônia” (chefes, síndicos, presidentes, diretores e toda sorte de líderes) uma plataforma privilegiada para que iluminem com seu verbo uma audiência silenciosa e impotente. Sei. Nem todos os chefes são assim, nem tampouco tenho como provar se isto acontece ou em que extensão. Uma teoria conspiratória, então, se quiserem. Mas nada me tira a impressão que formei, no tempo em que frequentava reuniões, de um certo gozo por parte de alguns que tinham ali seus momentos de fama.

Outra suposta vantagem das reuniões presenciais pode ser resumida em “o poder do olho no olho”, que significa que muitos podem perceber como vantagem falar encarando interlocutores. Tanto por um suposto maior poder de persuasão como por um também suposto meio de melhor avaliar se alguém está dizendo a verdade. Estamos aqui, no entanto, diante de mais percepções subjetivas e, como tais, não comprovaveis – permanecendo, portanto, no escorregadio terreno das teorias conspiratórias.

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Toda reunião presencial padece de um vício de origem maior, a saber, o estrangulamento do canal da palavra, que é tanto maior quanto maior for o número de participantes da reunião. Pois reza o protocolo desses encontros formais que, enquanto cada um fala, todos os outros devem permanecer em silêncio. Em grupos muito numerosos, tal cláusula pode se tornar uma verdadeira demonstração de poder – principalmente quando quem preside a reunião se reserva o direito de emitir réplicas para cada uma das falas que tiveram que se subordinar à secretaria de palavra.

Já numa reunião digitalmente mediada por chat, todos podem falar ao mesmo tempo. A grande vantagem deste tipo de agenciamento é que nenhuma ideia  se perde. É natural que tais debates, mais ricos por definição, sejam vistos com reservas por lideranças mais autoritárias.

Devo fazer, aqui, uma ressalva a respeito de um tipo de reunião virtual que se tornou bem popular nesta quarentena. Trata-se daquelas reuniões mediadas por aplicativos que dividem a tela do computador em tantos retângulos quanto forem os participantes, nos quais aparecem imagens dos mesmos captadas pelas câmeras de seus computadores. Entendo que tais reuniões não tiram o devido proveito do modo de agenciamento síncrono não presencial, pois, como ocorre em reuniões presenciais, enquanto cada um fala, todos os demais devem permanecer calados. Só me ponho a imaginar quão mais proveitosos estes encontros seriam se mediados por chat. Pois a aparente desordem da algaravia que se instala favorece, como veremos adiante, a criatividade – que é, por sua vez, função direta da maior colisão entre ideias.

Finalmente, reuniões por chat simplificam enormemente um processo inerente a quase toda reunião presencial, a saber, a feitura de atas, as quais não se tornam oficiais antes de serem lidas, aprovadas e firmadas, em reuniões posteriores, por cada participante da anterior à qual se refere cada ata. A redação de atas minuciosas é tão trabalhosa (podendo se estender por muito mais tempo do que as reuniões que lhes ensejaram) quanto entediante (por que nada de novo se cria neste processo), se constituindo, assim, como um enorme desperdício de tempo e energia e, como tal, num bullshit job exemplar. No caso de reuniões mantidas por chat, as atas são a simples transcrição de tudo o que foi escrito por cada um dos participantes, sem edições, omissões nem tampouco qualquer possibilidade de distorção de palavras. Simples assim.

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Alguns leitores podem ser levados a pensar que este desabafo se trata, essencialmente, de mais uma rabujice de alguém anti-social. Que não se enganem ! Pois não hesito em reconhecer o lado virtuoso de um tipo particular de reunião, informal e voluntariamente atendida, que acontece sempre que pessoas unidas por vínculos afetivos espontâneos se encontram, num café ou espaço congênere, tão somente para, por assim dizer, jogar conversa fora.

Antes que alguém se apresse em apontar que tais reuniões são, por definição, não focadas e improdutivas, me permitam dizer que Steven Johnson, no livro e palestra homônimos “De onde vêm as grandes ideias”, afirma que a ciência progride mais na conversa descontraída de um café do que, propriamente, no insight solitário de alguém que passa à posteridade como gênio. Que toda descoberta importante tem origem mais no acaso da fricção social do que na experimentação planejada e controlada por uma única mente, porquanto brilhante. Assim, sua obra consiste, noutras palavras, no elogio supremo da colaboração.

Seu exemplo matador é o de  dois pesquisadores americanos que, em 1957, conversavam na cafeteria sobre como ouvir sinais emitidos pelo recém lançado satélite soviético Sputnik. Com equipamento rudimentar, conseguiram detectar uma variação de frequência no sinal emitido pelo satélite quando de sua passagem pelo ponto mais próximo, num fenômeno conhecido como efeito Dopler, e a partir daí determinar sua posição exata. Indagados, então, por um chefe, se poderiam fazer o contrário, i.e., localizar um ponto estacionário na superfície terrestre a partir de um satélite se movimentando em órbita do planeta, acabaram inventando o GPS.

O livro de Johnson contém um impressionante apêndice com mais de 40 páginas listando, em ordem cronológica, as principais invenções e descobertas científicas entre 1400 e 2000, com seus respectivos créditos. Há versões alternativas e ampliadas de seu argumento em palestras proferidas no Google e na London School of Economics, ambas disponíveis no YouTube – bem como a sinopse abaixo, ultra didática.

 

Por que (ainda) não uso WhatsApp

” Ah, havia me esquecido que não usas WhatsApp. Sorte tua ! “

ouvido ao fim de uma consulta médica

Muito me intrigou constatar que o Facebook, num movimento inédito (ao menos no Brasil), passou a anunciar, na TV e em outdoors, seus grupos de conversação, os quais sempre estiveram ali, disponíveis sem qualquer alarde. A propaganda, agressiva, se apropria da canção Day Tripper, dos Beatles ( por cujo uso certamente pagaram bem caro), para apregoar virtudes de grupos do Messenger ao conectar pessoas com interesses comuns. Por que isto acontece justo agora ? A resposta se me afigurou um tanto óbvia, a saber, para concorrer com os grupos do WhatsApp, os quais se capilarizaram muito mais do que os do FB.

Ruminei sobre o tema por algum tempo até realizar uma rápida e necessária pesquisa quanto ao modo de custeio do WA, plataforma gratuita livre de publicidade (!) – fato para o qual há esclarecimentos satisfatórios aqui. Foi quando descobri, acidentalmente, que

o WA é, antes de ser um negócio lucrativo, um serviço deficitário (!); e que

o WA foi comprado pelo FB em 2014 por uma bagatela avaliada entre 19 e 22 bilhões de dólares.

De pronto, então, minhas principais questões norteadoras passaram a ser

por que o FB compraria um serviço do qual já dispunha – ainda por cima numa plataforma francamente reconhecida como deficitária ; e

por que o FB promoveria uma propaganda autofágica, a concorrer, em última análise, consigo próprio.

Sem ser analista econômico, avento a hipótese de que o FB comprou o WA tão somente para absorver seu único competidor sério, progressivamente assimilando a seu Messenger as melhores funcionalidades do WA e deixando o último morrer aos poucos. Ao menos a sofisticada propaganda dos grupos do FB com Day Tripper se encaixaria nesta estratégia. Ou não – caso em que esta especulação não passaria de mera teoria conspiratória.

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Ante tal imponderabilidade (pois, afinal, quem sabe dos desígnios de grandes corporações a não ser seus executivos e conselhos de acionistas ?), preferi me deter sobre a diferenciação entre as duas plataformas. Para tanto, provoquei usuários e não usuários do WA a externarem prós e contras em relação ao serviço de mensagens hoje praticamente hegemônico. Deste modo, verifiquei que há praticamente um consenso quanto ao WA ser um meio de comunicação portátil, altamente eficiente, com ótima relação custo/benefício (para a qual a gratuidade é decisiva) e, por vezes, insubstituível. Fora isto, muitos detestam seus grupos de conversação e as mensagens de áudio.

Não percamos tempo com as últimas, posto que mensagens de áudio são, assim como as de vídeo, obrigatoriamente seriais, incompatíveis com qualquer processamento paralelo. Comparem-nas, por exemplo, com textos de quaisquer extensões. Textos são recursivos, i.e., podemos facilmente avançar ou retroceder na leitura dos mesmos, seja para interpretação, referência ou  melhor compreensão, saltando por sobre grandes blocos de um mesmo texto ou até entre um texto e outro sem, com isto, comprometer necessariamente nossa percepção sobre o todo. Com áudios e vídeos, não: numa operação de fast forward sobre os mesmos (análoga, se quiserem, à leitura dinâmica), algo essencial pode facilmente nos escapar. Como ocorre, por exemplo, quando perdemos cenas cruciais de uma boa narrativa cinematográfica.

Por esta razão, áudios (e vídeos) são sequestradores de atenção por excelência  e, como tais, deveriam ser banidas pelos códigos de ética, explícitos ou tácitos, de qualquer sistema de mensagens que aspire a alguma eficiência.  Ou ainda, se quiserem outra metáfora, usar mensagens de áudio quando se dispõe das de texto é como usar máquinas de escrever depois do surgimento de editores de texto: o advento dos últimos rendeu as primeiras obsoletas. Entretanto, por diversas razões (tom mais íntimo ou pessoal, rapidez de enunciação, reivindicação de atenção absoluta, etc.), as famigeradas mensagens de áudio teimam em coexistir com as de texto.

Cabe, ainda, ressaltar que a escrita se constitui, muito mais do que a fala, no meio por excelência de transmissão de conhecimento. Com alguma licença, se pode até especular sobre com quais limitações a filosofia, a razão e a lógica esbarrariam se tivessem que se restringir ao domínio exclusivo da oralidade.

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Grupos virtuais de conversação são bem diversos e, como tais, podem ser submetidos a uma tipologia. A diferenciação mais evidente é em relação à sua permanência. Segundo este critério, há, de um lado, aqueles grupos mais duradouros, atemporais, e, de outro, os mais efêmeros. Pertencem ao primeiro tipo os grupos de índole “tribal” tais como os de família, alunos ou ex-alunos de instituições, pessoas que compartilham uma mesma ocupação, predileção ou posto de trabalho e por aí afora. Talvez o mais célebre grupo atemporal do WA seja o de procuradores da Lava Jato. A propaganda do FB com Day Tripper se refere obviamente a grupos atemporais.

Grupos efêmeros são, por outro lado, criados para a instrumentalização de eventos específicos tais como festas e reuniões de trabalho, se extinguindo imediatamente ou algum tempo após a realização dos mesmos.

Ainda que a classificação de um grupo numa ou noutra categoria possa ser nebulosa, sem regras absolutas, em geral grupos atemporais tendem a aglutinar mais participantes do que os efêmeros. Talvez por isto grupos atemporais costumam apresentar uma taxa mais elevada de mensagens potencialmente irrelevantes para alguns participantes do que os grupos efêmeros. Se pode dizer, então, que, em geral, grupos efêmeros tendem a ser mais focados que os atemporais.

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O tamanho de um grupo afeta sobremaneira o comportamento de seus participantes,  especialmente no que se refere à sensação de pertencimento. Pois num grupo pequeno se pode facilmente permanecer só “na escuta” (a postura mais eficiente, de respeito à atenção alheia, quando não se tem nada relevante a dizer) na plena convicção de que os mais falantes sintam de que os mais silenciosos estejam presentes e atentos.

O mesmo não se dá em grupos mais numerosos, onde os mais quietos tendem a ser mais facilmente esquecidos. Por isto, abundam nestes grupos as notificações de presença: mensagens de “bom dia” e “boa noite” sem qualquer outro propósito que não o de se afirmar que se está ali. Como teletubies antes de dormir.

É, além disso, razoável supor que a publicidade seja mais eficiente (ou, pelo menos, algoritmicamente mais simples) entre os participantes de grupos mais numerosos e genéricos do que entre os de grupos pequenos e dedicados – daí, muito possivelmente, a estratégia agressiva do FB para fomentar os primeiros (eu e as teorias conspiratórias…)

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De volta à questão inicial de por que o FB teria comprado o WA, é tentador se especular que o primeiro estaria primordialmente interessado nos dados dos usuários do último – hipótese, é claro, veementemente negada pelo FB. Pois, muito embora o WA tenha como ponto de honra permanecer uma plataforma livre de publicidade, os dados de seus usuários são valiosos em se tratando de lhes direcionar anúncios customizados através de outras plataformas.

O que nos leva diretamente a outra questão: podem plataformas distintas estabelecer uma correspondência unívoca entre usuários de uma e de outra ? Segundo a BBC, sim, bastando, para tanto, que o usuário do FB forneça à plataforma o número de seu telefone celular – caso em que passará a receber, no FB, publicidade dirigida e sugestões de amizade com base em suas informações do WA.

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Se o FB vai deixar o WA morrer à míngua ou, contrário, explorar a coexistência das duas plataformas é uma pergunta cuja resposta só o tempo trará. Um forte argumento em favor da última hipótese é a manutenção da identidade das duas plataformas, a qual repousa por sua vez, sobre numa diferença essencial – a saber, a índole mais pública ou privada do que se posta em cada uma delas.

Tanto o FB como o WA permitem controle absoluto sobre a visibilidade de cada postagem. Tanto num como noutro, podemos nos dirigir desde apenas a uma pessoa até a totalidade de nossos contatos, passando por grupos de tamanho variável. Feita esta ressalva, cabe notar que cada plataforma, ainda que abrangendo exceções, possui uma vocação bem definida. Pensamos no FB quando queremos publicar algo visível a todos, sem discriminar este ou aquele destinatário. Ao contrário, recorremos ao WA para enviar mensagens a indivíduos ou grupos específicos de pessoa. Assim, temos que, enquanto no FB (salvo no Messenger) exercemos um discurso predominantemente público, o WA é bem mais afeito à comunicação privada, ainda que com grupos.

(Para sermos rigorosos, temos que reconhecer que só o Twitter e os blogs são meios absolutamente públicos, posto que, para se ter acesso às postagens de uma pessoa, é preciso, antes, ter sido aceito como “amigo” pela mesma. Ainda que este requisito seja facilmente comutável mediante ajuste nas configurações de privacidade do FB, é notório que a maioria de seus usuários deixam seus perfis visíveis somente a amigos. Com isto, devemos, então, ressalvar que o FB, mesmo sem ser obrigatoriamente público, é de índole muito menos privada que o WA)

A diferença entre a forma de discurso predominantemente pública ou, ao contrário, privada constitui, a nosso ver, a distinção essencial entre o FB e o WA, a justificar sua coexistência apesar da similaridade funcional das duas plataformas no que tange a compartilhar postagens por meio de redes sociais.

O discurso público favorece a transparência: nele, todas as falas de cada um são igualmente visíveis a todos – ainda que, com isto, tal franqueza exacerbada venha necessariamente a desagradar alguns, ensejando entre os mesmos, por vezes, enunciações contraditórias. Já o discurso privado, ao permitir a seleção de ouvintes específicos, faculta a todo falante a possibilidade de sustentar simultaneamente posições diferentes, por vezes incompatíveis entre si, para audiências distintas. Com isto, constitui o ambiente por excelência (ainda que não necessariamente), para segredos, intrigas, calúnias  e manipulações. Não por acaso, grupos de WA, particularmente os de família, já foram correlacionados ao fenômeno das fake news – disseminação de informações falsas que vem assumindo cada vez mais relevância e é utilizada, principalmente por meios de broadcasting, para denegrir a internet.

A tensão entre o discurso público e o privado, determinante para definir o modo como se configura a conectividade de cada perfil, coletivo ou individual, no mundo virtual, é o tema central de Public Parts (2011), obra seminal em que o netopian Jeff Jarvis, por meio de entrevistas inclusive com os fundadores do Twitter e do FB, reconhece vantagens da substituição de um status private by default (como era mais comum antes da web) por outro, public by default (viabilizado pelo advento da rede); e como formas públicas de presença virtual ensejadas pela internet vem transformando nossas vidas. A crescente hegemonia do uso de grupos no WA em relação ao de plataformas mais públicas como o Twitter e o WA sugerem enfaticamente que esta transformação ainda está longe de se tornar irreversível.

O que é um panóptico

Publicado em 1º de fevereiro de 2013, quando se completam 778 dias de prisão de Julian Assange – sem que qualquer acusação legal tenha sido feita até a presente data – e após 228 anos da idealização do panóptico por Jeremy Bentham, este livro foi composto em Adobe Garamond, 11/13,2, e impresso em papel Pólen Soft 80g/m2 na Yangraf para a Boitempo Editorial, em janeiro de 2013, com tiragem de 10 mil exemplares

Este é o prolixo colofão (texto diminuto, impresso ao pé da última página de um livro, contendo informações sobre o mesmo enquanto objeto físico, independentemente de seu conteúdo) aposto à edição brasileira de Cypherpunks – liberdade e o futuro da internet. Nunca tinha visto nada similar, nem de longe, que agregasse, assim anonimamente, naquele espaço outrossim meramente técnico, tanto significado ao conteúdo de uma obra.

De pronto me pus a imaginar quem, numa cadeia editorial, dispondo de tantos espaços autorais (como orelhas, contracapa, prefácio, apêndices e afins), ousaria perverter tanto aquele lugar normalmente dedicado a informações gráficas neutras, de ordem exclusivamente técnica. Divagação, todavia, inútil. De modo que, em seguida, tratei de descobrir do que se trata, afinal, um panóptico.

Em poucas palavras, panóptico é um modelo arquitetônico prisional, idealizado pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1785, no qual todas as celas podem ser permanentemente observadas a partir de uma torre localizada no eixo central de um prédio cilíndrico, atendendo ao princípio de máxima vigilância com esforço mínimo.

Um detalhe importante do panóptico de Bentham é que, devido a persianas ou venezianas que revestem as janelas da torre de vigilância, não é possível a cada preso, ainda que podendo ser permanentemente vigiado, saber efetivamente quando o está sendo. A autocensura decorrente desta condição é tida como o principal efeito disciplinador do panóptico.

Por razões que não vem ao caso, o modelo não se popularizou. O único panóptico que já foi construído nos EUA está em ruínas – e a ideia estaria definitivamente sepultada não fosse sua apropriação por Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), para descrever a sociedade disciplinar. Desde então, muitos a vem adotando, particularmente teóricos das novas tecnologias, como Pierre Lévy e Howard Rheingold (e, inclusive, o próprio Assange) como metáfora perfeita para a vigilância invisível da internet por seus controladores.

Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet (2013); ou O elogio do hacker

Algumas leituras são prazerosas. Outras, necessárias. Como Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet (Boitempo, 2013). No caso, o que não ajuda é o formato do texto, a saber, a transcrição de uma conversa mantida por Julian Assange com Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jéremie Zimmermann em 20 de março de 2012 na embaixada equatoriana em Londres, na qual o primeiro tinha exílio político.

Conquanto o leitor possa lamentar a falta de uma voz autoral a garantir a elegância e uma certa unidade ao texto, o estilo caótico de ata de assembleia é largamente compensado pela densidade das ideias expressas e informações trazidas pelos quatro heróis da liberdade online. Numa percepção apressada, poderíamos argumentar que a recusa de Assange em escrever um livro se deva ao fato dele não ser um escritor mas, antes, um programador. Tal ideia, no entanto, rapidamente se dissipa ante a leitura de alguns blocos monológicos do ativista, particularmente o final do livro. Noutras palavras, Assange não escreveu o livro sozinho por que não quis – a presença dos outros ilustres co-autores se justificando, acima de tudo, para conferir ao relato a diversidade que tanto defende, principalmente quando manifesta, aqui e ali, como franca discórdia.

A conversa gira em torno da liberdade e do poder emancipador sem precedentes franqueados pela internet, bem como das ameaças a que estão sujeitos. São discutidas, com farta documentação, a criptografia, a militarização do ciberespaço, a vigilância, a censura, a cultura hacker e outros tantos desdobramentos temáticos. De vez em quando, despontam categorizações importantes, tais como as 3 liberdades fundamentais, a saber,

liberdade de circulação,

liberdade de comunicação e

liberdade de interação econômica;

a distinção entre

vigilância tática, que predominava antes da internet, na qual apenas um grupo de notórios suspeitos tinham suas comunicações interceptadas; e

vigilância estratégica, facultada pela web, na qual todas as comunicações são interceptadas e armazenadas, constituindo imensos bancos de dados para análise e garimpo de informações relevantes por órgãos de inteligência;

os “Quatro Cavaleiros do Info-Apocalipse”, em nome dos quais são impostas todas as legislações de exceção que envolvem quebra de privacidade individual, que são

lavagem de dinheiro,

drogas,

terrorismo e

pornografia infantil;

ou, ainda, as várias camadas da pirâmide da censura, da qual somente é visível

a ponta, pública, constituída por calúnias, assassinato de jornalistas, câmeras apreendidas por militares e assim por diante; sob a mesma, existem, invisíveis,

a autocensura;

o aliciamento econômico ou clientelista para que pessoas escrevam sobre isto ou aquilo;

a economia pura, que determina sobre o que vale a pena ou não escrever;

o preconceito dos leitores, ocasionado pelo nível de instrução limitado e que resulta numa massa fácil de manipular, tanto pela disseminação de informações falsas como pela falta de condições de entender verdades sofisticadas;

a distribuição, que consiste na falta de acesso a informações – como, por exemplo, no caso de línguas desconhecidas.

* * *

Na discussão sobre criptografia, nos inteiramos de que é precisamente aí (e não na colossal capacidade de armazenamento) que reside o grande trunfo do WikiLeaks, i.e., na garantia do anonimato conferido a cada whistleblower (denunciante). Com efeito, nem Assange conhece a identidade de quem envia documentos à organização que criou. E sobre a segurança do anonimato, deve ser dito que a identidade de Bradley Manning, responsável pelo maior vazamento de documentos militares da história, só foi revelada depois que o mesmo se referiu a seu feito num chat.

A criptografia também se provou um valioso recurso em se tratando de se esquivar à vigilância estratégica, já que, sem o software necessário, é impossível decodificar quaisquer mensagens criptografadas interceptadas.

É nos capítulos dedicados à vigilância que ficamos sabendo que, enquanto com os recursos anteriores à internet, órgãos de inteligência precisavam se limitar a interceptar as comunicações apenas entre indivíduos suspeitos, hoje é possível a qualquer estado comprar, pela bagatela de dez milhões de dólares (sem ironia: comparem este valor com a maioria dos orçamentos governamentais), sistemas capazes de interceptar e armazenar indefinidamente TODAS as comunicações, por voz ou texto, de uma cidade ou mesmo de um país.

A vigilância, inclusive sobre interações econômicas, é enormemente facilitada pela centralização de informações num pequeno número de empresas, quase todas norte-americanas. Pensem no Google, no Twitter, no Facebook ou nas poucas bandeiras dos cartões de crédito mais usados. Por exemplo. Se você comprar uma passagem aérea por meio de qualquer transação bancária, inclusive com cartão de crédito, dados sobre seu deslocamento pretendido estarão imediatamente disponíveis a órgãos de inteligência interessados antes mesmo que você saia do lugar. Tente, ao contrário, comprar uma passagem internacional em dinheiro vivo.  Neste caso, se você estiver tentando cruzar fronteiras de um país com fortes restrições migratórias, provavelmente será submetido a revistas e interrogatórios rigorosos. Paranoia ? Não creio. Isto ocorreu a um dos autores, cidadão norte-americano, ao tentar ingressar em seu país pelo Canadá.

Na visão dos autores, que defendem uma internet livre e anônima para todos, um dos maiores problemas consiste na assimetria de tratamento dado às informações, de um lado, dos mais ricos e poderosos e, de outro, dos usuários comuns – perfeitamente sintetizada no título do penúltimo capítulo: Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos.  A ética hacker  distingue claramente informações privadas daquelas que são ou deveriam ser públicas – sendo, inclusive, tal discernimento a principal razão para a lentidão na divulgação do enorme volume de mensagens comprometedoras interceptadas entre o então juiz Sérgio Moro e procuradores da operação Lava Jato.

Como contramedidas possíveis face à presente distopia de governos e atores privados cada vez mais vigilantes, os autores propõem, entre outras coisas, o domínio, por parte de usuários comuns, de recursos criptográficos; a disseminação de software livre, que pode ser compreendido e alterado por qualquer indivíduo; o uso de navegadores não rastreáveis, como o Tor; e uma arquitetura mais descentralizada para a internet.

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Talvez a maior importância da leitura desta conversa não seja a fartura de dados objetivos sobre (me desculpem a expressão) a merda em que estamos imersos. E, o que é pior, sem saber ! Pois, ao usarmos a internet, seduzidos por conveniências sem precedentes, sequer temos ideia do volume de informações que voluntariamente confiamos a quem, em última análise, quer nos controlar ou nos vender algo.

Penso, outrossim, que o maior valor do livro seja reabilitar, perante o leitor, a figura do hacker – tão vilipendiada, recentemente, pelos atores centrais ao Morogate, seus protetores e, de resto, parte significativa da mídia. De fato, para a maioria das pessoas, um hacker não passa de um criminoso, dedicado a capturar senhas e subtrair saldos de contas bancárias alheias ou, no máximo, desestabilizar governos por meio de táticas terroristas. É nisto que o discurso oficial quer que acreditemos.

Não sou ingênuo a ponto de afirmar que hackers assim, movidos primordialmente por interesses pecuniários, não existam. São, no entanto, uma minoria absolutamente irrelevante. Até por que há fraudes bem mais rentáveis ou, ainda, as populares malas de dinheiro. E não consta, até hoje, que nenhum hacker tenha sido flagrado com 51 milhões em espécie num apartamento. E quanto àquele vilão que desvia quantias milionárias para contas múltiplas em paraísos fiscais apenas conectando um pen drive a um servidor ? Se você acredita nisto, deve estar vendo muita televisão.

O hacker, tão invocado quando se trata de explicar o inexplicável, é, em sua ocorrência mais comum, um sujeito de inteligência superior e índole utópica que age altruisticamente, de modo anônimo e colaborativo, na tentativa de prover a seus semelhantes um mundo melhor. É o cara que frequenta a campus party, defende o software livre e milita contra a propriedade intelectual, quebrando sistemas fechados e se apropriando de códigos-fonte, sempre em nome do interesse da parte mais numerosa e vulnerável do mundo digital. Noutras palavras, um herói da democracia. Ainda que tantos poderosos, quando pegos de cuecas, se ponham a gritar tratar-se do bandido.