Plano sequência

É o nome que se dá a uma sequência cinematográfica sem cortes, filmada toda num único movimento de câmera. Desde que foi inventado, não sei quando nem por quem, é tido como uma espécie de patamar máximo de virtuosismo cinematográfico. É só imaginar o grau de planejamento e ensaio prévio de todos os movimentos de câmera e de todas as ações e falas dos atores que precisam ser perfeitamente coreografados. Se pensarmos que, com os recursos de edição disponíveis e largamente empregados nas linguagens cinematográfica e televisiva, cada fala ou ação por parte de técnicos e atores pode ser repetida até a perfeição ou exaustão (o que acontecer primeiro), planos sequência não são pouca coisa. Nem nos distantes tempos da filmagem em película, nem tampouco agora, com as fartas possibilidades inauguradas com a gravação de imagens em movimento em HDs.

Talvez o mais célebre exercício de virtuosidade na utilização de planos sequência seja o filme Festim Diabólico (Rope), dirigido por Alfred Hitchcock em 1948, o primeiro da série de 4 colaborações do ator James Stewart com o diretor.

Festim Diabólico é uma peça teatral adaptada para o cinema cuja ação se passa em tempo real (interessante observar o cair da noite sobre Nova Iorque, que serve de fundo ao cenário, através de uma janela panorâmica) e, o que é mais importante, toda ela filmada em apenas 4 (sic!) planos sequência, habilmente editados em três momentos em que uma superfície negra (invariavelmente as costas do paletó de um dos atores) é enquadrada na íntegra. Tais “pontos de edição” se devem ao fato de que, com a tecnologia da época, era impossível se rodar um filme inteiro num único plano sequência, já que interrupções eram necessárias para recarregar a câmera com novos rolos de filme. Hitchcock entrou, então, para a história ao filmar um longa-metragem com o mínimo de interrupções necessárias entre cada plano sequência e o seguinte.

* * *

Outra obra, bem mais recente, que esbanja na utilização de planos sequência é o filme independente norte-americano A Subida (The Climb, 2019), de Michael Angelo Covino, do qual já falei no link acima.

* * *

P.S.: Juliano Dupont, que acabo de conhecer, me enviou a seguinte correção:

“Festim Diabólico tem 10 cortes, não apenas 4, unindo 11 planos-sequência. Na época, as bobinas tinham um limite de 10m de filme para rodar.”

Muito obrigado, Juliano, pela leitura atenta e informação precisa !

Desapego

Estamos, Astrid e eu, num processo de desapego. Antevendo a velhice, decidimos nos mudar para um espaço menor enquanto ainda temos energia para tanto. Isto implica em se desfazer de uma grande quantidade de coisas que, muitas vezes sem mal saber por que, acabamos acumulando ao longo da vida.

Coisas são memórias. De nossos pais e de parentes que não tiveram filhos. Coisas marcantes de tempos remotos, mais alegres, quando tínhamos menos experiência e, portanto, menos pensamentos profundos, que deles nos trazem mais recordações. Umas felizes; outras nem tanto. Como tão bem retrata, por exemplo, o magistral Fanny & Alexander, de Ingmar Bergman, através do contraste entre ambientes – um vibrante, colorido e cheio de vida; o outro, estéril, com paredes nuas, recendendo a morte. Nenhum outro filme deixa tão claro como o universo material, povoado (ou não) de objetos, pode trazer uma sensação de aconchego e acolhimento ou, ao invés, de franco desamparo. Daí a dificuldade em se desfazer, quando necessário por mudanças no modus vivendi, de tantos objetos que nos ligam a épocas da vida cuja felicidade, só percebida a posteriori, a todo custo queremos resgatar. É como se quiséssemos guardar pedacinhos dos que já se foram através de objetos que lhes pertenceram.

Objetos que, na maioria das vezes, carecem de qualquer sentido quando deslocados de seus contextos originais ou, ainda, na quantidade em que os acumulamos. Por exemplo, louças, copos e talheres. Há uns 50 anos atrás, era comum que famílias tivessem jogos de mesa numerosos, capazes de servir, num único evento, muitos convidados. Com o tempo, tais eventos foram se tornando cada vez mais raros a ponto de, hoje, uma família trocar facilmente uma coleção de xícaras e pires, mais difíceis de serem limpos e armazenados, por um punhado de canecas personalizadas (coffee mugs) que esfriam o líquido mais lentamente e são mais fáceis de serem levadas de um cômodo a outro do que xícaras equilibradas sobre pires. Repararam como cada vez menos nos sentamos à mesa em família, como nossos pais insistiam talvez sem sequer saber por que ?

Com copos é a mesma coisa. Se antes era preciso ter, para cada pessoa sentada a uma mesa, copos diferentes para cerveja; sucos, água e refrigerantes; vinhos (em tamanhos diferentes para brancos e tintos); espumantes; licores; destilados e coquetéis (long & short drinks), hoje podemos nos considerar razoavelmente bem servidos com cálices genéricos para todos os tipos de vinho, taças para espumantes (flutes em vez daquelas bojudas, ainda utilizadas para sobremesas) e copos altos para líquidos não alcoólicos. Ok, pequenos cálices de licor também são bem-vindos.

Ocorre que, inventariando só serviços de mesa, herdados, ganhados ou comprados, me deparo com, no mínimo, uns 4 jogos de cafezinho, centenas de copos e 8 (sic!) faqueiros, além de vários jogos de louça, alguns com, imaginem só, bules e sopeiras. Lembram da última vez que chegaram a usar os dois últimos objetos ? Mas não é só isto. Há também 4 rechauds e 3 champanheiras, objetos tão anacrônicos que merecem comentários à parte.

Rechauds, que via de regra queimam ou secam a comida que fica na parte do prato mais próxima à chama, foram rendidos totalmente obsoletos (exceto, talvez, em serviços de buffet (mas, neste caso, há uma camada d’água a isolar a chama da cuba com o alimento)) depois que inventaram o forno de micro-ondas. Por outro lado, pensem num jeito melhor de esquentar uma bebida que se quer manter gelada do que mergulhando-a numa bacia em que boiam pedras de gelo derretendo na água. Ora, é bem mais fácil e eficiente manter bebidas em temperatura adequada para consumo em geladeiras ou congeladores do que nestas bacias que, por sua vez, precisam ser constantemente abastecidas com gelo, estrategicamente mantido em tanques (coberto por jornais, outra coisa em extinção) ou caixas de isopor. Então: o que é mais ergonômico e econômico ?

Antiquários são cemitérios tradicionais destes tipos de objeto, que lá repousam até que alguém afluente ou um decorador os resgate a fim de compor um ambiente mais refinado. Aristocrático, até. Só que antiquários compram seu estoque por lotes. Então, diante da opção aviltante de torrar as coisas de nossos antepassados por uma pequena fração de seu valor provável de aquisição ou, mais importante, de seu valor afetivo, acabamos acumulando os mesmos (o que requer muito espaço), na esperança mágica de um dia voltar a vê-los brilhar numa cena impossível, já que as pessoas que a compunham – e é isto que custamos a entender – já não mais se encontram entre nós.

Outro filme, mais recente do que o de Bergman, é o alemão 100 Coisas, no qual dois amigos, publicitários, que vivem em espaços despojados (lofts), apostam qual dos dois conseguiria viver mais tempo com menos objetos. É uma comédia hilariante, que começa como um documentário, arrolando com quantos objetos em média viviam, respectivamente, nossos bisavós, avós e pais, até chegar a nós mesmos. O resultado, uma curva que cresce exponencialmente, é, por si só, uma crítica irrefutável ao consumismo. Os dois amigos se apaixonam por uma mulher que esconde, num depósito, um vasto closet, do tamanho uma loja, com uma quantidade enorme de roupas. Ao final (não resisto a dar um spoiler !), o trio dispõe sobre a capota de um carro 100 objetos (daí o nome do filme), como escovas de dentes, sem os quais não conseguiriam viver. Dentre os mesmo, um dos protagonistas incluiu um bonequinho, absolutamente decorativo, inútil e, logo, supérfluo, mas que o fazia lembrar de sua avó.

Por que prefiro filmes a séries

Minha má vontade em relação a séries televisivas não é nenhuma novidade. Neste post, tentarei esclarecer, ao menos em parte, minha aversão a narrativas fragmentadas em episódios autônomos, i.e., que possam ser plenamente apreciados sem quaisquer prejuízos advindos da ignorância daqueles anteriores ou posteriores.

Grandes romances não costumam admitir qualquer continuidade depois de seus desfechos. Séries, ao contrário, estão sempre abertas a novas aventuras dos mesmos personagens.

Quando um autor desenvolve uma série, seu foco não está, ao contrário de em romances ou o filmes, na transformação irreversível de seus personagens pela experiência. Protagonistas de narrativas seriadas são condenados a priori à mesma abordagem de situações repetidas, percorrendo sempre o mesmo caminho. Se começamos, por exemplo, a ver um episódio desconhecido de Columbo ou Sherlock Holmes, podemos antecipar com precisão o que teremos pela frente – a saber, o desvendamento de um crime ao modo, já conhecido, peculiar a cada detetive.

É como se, ao final de um filme bem roteirizado, com um ou mais plot twists, pudéssemos dizer “Eureka ! Agora entendi.”; ao passo que, ao início de cada episódio de uma série, o espectador entediado pense quase sempre “Ok, sei o que ver por aí mas, ainda assim, assistirei.” (as razões da entrega voluntária e repetida a este tipo de sequestro de atenção, porquanto intrigantes, fogem ao objetivo deste texto)

Como, por exemplo, no clássico argumento, tão caro à ficção científica, das viagens no tempo. Em filmes, como 2001 ou O Exterminador do Futuro, acontecem apenas uma vez, adquirindo, por isto, enorme relevância, Já em séries, como Dark, perdemos a conta de quantas vezes personagens vem e vão, através de um portal, de uma época para outra. Enquanto roteiristas habilidosos mantém, como uma chama piloto (tênue, mas permanentemente acesa), um mistério a ser desvendado, nos distraímos com heróis que excursionam à vontade entre o passado e o futuro. Francamente, tenho pouca paciência para isto.

* * *

Para deixar mais clara minha objeção a este vício dos gêneros seriados, imaginemos, numa operação de redução ao absurdo, como seria uma narrativa clássica unidirecional se transformada em série.

Taxi Driver. Numa sequência precisa, tomamos contato com a apresentação do personagem; sua frustração; sua atitude e, finalmente sua gratificação. Do início ao fim da saga, ele permanece um motorista de taxi no magnífico retrato, por Scorcese, do submundo de uma Nova Iorque totalmente não glamorosa como em outros filmes. Só que, tão somente por meio do gênio interpretativo de De Niro e sem o recurso a falas (como atores que “pensam em voz alta” em telenovelas) e vozes narrativas elucidativas, percebemos claramente a transformação de Travis de bobalhão insignificante em herói reconhecido – e, o que é mais impressionante, sem qualquer alteração (como já dissemos), de seu status ocupacional.

Agora imaginem se alguém tivesse a infeliz ideia de converter Taxi Driver numa série, com Travis protagonizando, a cada novo episódio, uma carnificina digna dum Tarantino em nome da correção, pelas próprias mãos, de alguma injustiça sistêmica.

* * *

Sei. Séries são hoje bem populares. Praticamente hegemônicas. Assim, não há quem não tenha uma favorita. Todos detestam séries por definição (deve ser chique, sei lá…) e, ainda assim, dizem “Ah, mas esta é diferente.” Então, fiel à vocação polêmica deste blog, quero conhecer contraditórios – que são, nestes casos, defesas de sua séries prediletas.

A Subida (EUA, 2019)

Gosto de filmes não ortodoxos. A Subida (The Climb), de Michael Angelo Covino, é um destes.

Por mais diverso que seja o cinema, com todas as opções (por exemplo, de narrativa, fotografia ou montagem) que oferece a cada realizador, todo cinéfilo experiente acaba intuindo a existência de esquemas redundantes, tais como clichês de gênero, plot twists ou uso dramático da trilha sonora, o que acaba limitando a um repertório de fórmulas conhecidas os modos que mesmo cineastas mais criativos encontram para contar histórias. Quando conseguem fazer diferente, acabam ganhando prêmios.

Lançado às vésperas da pandemia, A Subida chega à TV sem passar pelas salas de exibição mas com uma respeitável coleção de seleções e premiações em prestigiosos festivais como Cannes, Deauville, Teluride, Toronto, Rio, Sundance e SXWX.

Peguei o filme pela metade. O que, na TV, pouco importa: como os filmes ficam muito tempo em cartaz, podemos ver depois o que faltou, integrando aos poucos as partes ao todo. Além disso, dado o fato de que filmes bons são raros em canais a cabo, acompanhar exibições repetidas quando topamos com algo bom não chega a ser exatamente um problema.

Num projeto que chega a parecer uma brincadeira entre amigos, o diretor estreante Michael Angelo Covino divide o roteiro, a produção e a atuação com seu grande amigo Kyle Marvin para contar uma história envolvente sobre grandes amizades que acaba se tornando, por isto, uma ode à não especialização. É divertido ver seus nomes se repetirem nos créditos. Bem que poderiam aparecer só uma vez, seguidos pelo rol de funções acumuladas por cada um: isto só realçaria seus talentos como homens-banda. Os personagens vividos no filme pelos dois amigos, Mike e Kyle, tem os mesmos nomes dos atores na vida real.

Se há um recurso cinematográfico dominante em A Subida, se trata indiscutivelmente do plano-sequência (tomada longa sem cortes), utilizado em quase todas as cenas. Tudo bem que hoje, com o registro de imagens em meios regraváveis, como discos rígidos, esteja de certa forma abolida a pressão para que atores e técnicos não errem durante longas cenas exaustivamente ensaiadas – como no tempo do Festim Diabólico (1948) de Alfred Hitchcock, filmado com um número mínimo de cortes, apenas suficientes para a troca dos rolos de filme. Neste contexto, chega a ser estranho que cineastas não abusem deste recurso, que é, desde a obra-prima de Hitchcock, praticamente um sinônimo de virtuosismo cinematográfico.

Conquanto planos-sequência representassem um desafio maior para atores e técnicos no tempo de Hitchcock, quando seus erros custavam mais caro, Covino vai além. Em muitas cenas, aparecem numa mesma tomada cenários internos e externos – um feito notável mesmo para os melhores diretores de fotografia. Um dos mais criativos destes planos-sequência ocorre numa cena de casamento, quando a câmera recua de um ponto atrás dos noivos pelo corredor central da igreja até sair da mesma, parando no estacionamento onde nada acontece até a chegada estabanada do amigo do noivo e acompanhando, então, num movimento inverso, a entrada intempestiva do mesmo na igreja. Ainda na mesma tomada, com a câmera circulando ao redor dos protagonistas, todo o imbroglio que se segue. Se isto não é virtuosismo cinematográfico, então não sei o que é.

Outro expediente favorito do diretor: sons inesperados que antecipam eventos a cujas imagens só temos acesso depois. Como, por exemplo, na supracitada cena de casamento. Antes de vermos a chegada do amigo, tomamos ciência não só de sua aproximação mas também de seu jeito desastrado de dirigir tão somente pelo ruído do veículo que se aproxima. Ou então noutro hábil plano-sequência, que começa no interior de uma casa e termina na rua, alternando entre os dois ambientes, quando o barulho de pratos quebrados anuncia a queda de uma caixa que só aparecerá nas imagens seguintes. O melhor de tudo: tal atraso entre som e imagem não é gratuito, servindo a uma função específica – que é, neste caso, mostrar a indiferença a um estrondoso desastre doméstico por parte de uma personagem que, depois de proferir um entediado “my god”, prossegue inabalada no que vinha fazendo.

Sei. Não há nada de novo nisto. Tiros e sirenes de polícia, bombeiros ou ambulâncias que se aproximam são um clichê que se perde no tempo – desde (já que falamos do filme) Festim Diabólico ou mesmo antes. Mas o uso do recurso denota, no mínimo, bom domínio da economia da linguagem.

Paisagens geladas também desempenham um papel importante. Superfícies cobertas de neve que se estendem até onde os olhos podem alcançar realçam o foco nos atores em cenas como a subida de teleférico ou a despedida de solteiro com uma pescaria no gelo. A pescaria no gelo. Cinco amigos apertados numa minúscula cabana vermelha sobre um imenso lago congelado, pescando através de um buraquinho. De repente, surge do nada um comentário divertido sobre despedidas de solteiro não serem despedidas de solteiro se não tiverem stripers. Então, dois deles saem a caminhar no gelo numa animada DR, tão inusitada porquanto sincera. No mais, só o tipo de coisa que acontece em passeios sobre lagos gelados. Mas chega de spoilers.

Outra característica de filmes não ortodoxos são atores que parecem pessoas normais. Nem bonitos nem feios. Só normais. Por que o cinemão nos acostumou com papéis vividos por beldades. A grande praga dos profissionais de casting deve ser ter que, na hora de montar elencos, lançar mão de uma Júlia Roberts ou de um Leonardo di Caprio. Ou atores que precisam ser, antes de tudo, modelos. Filmes com beldades parecem mais falsos no caso de cinebiografias que, ao final, mostram as pessoas reais vividas pelos atores, naqueles retratos em molduras pretas que já se tornaram um clichê. Assim, nada menos do que hilário conhecer ou lembrar, por exemplo, o rosto da cidadã comum vivida por Keyra Knightley em Segredos Oficiais (2019).

A Subida não padece deste problema. A barriguinha de Kyle Marvin ou o queixão e o nariz batatudo de Gayle Rankin contribuem para que vejamos na tela pessoas normais como a maioria das que nos rodeiam, conferindo mais verossimilhança à história.

Não vejo a hora de ver o início e rever o resto de A Subida, para conhecer a parte que perdi e melhor saborear a que ja vi.

Fake Famous – uma experiência surreal nas redes (EUA, 2021)

Chegou ao HBO um novo documentário de denúncia sobre bastidores das redes sociais, mais ou menos na linha de O Dilema das Redes. Só que, enquanto o último se debruçava sobre algoritmos de distribuição visando a maximização do vínculo de plataformas com usuários e a coleta não consentida de dados sobre consumidores para comercialização, o tema de Fake Famous – uma experiência surreal nas redes é a fabricação de perfis falsos de influenciadores digitais bombados por milhares de seguidores inexistentes.

O documentário é uma realização do diretor estreante e jornalista veterano Nick Bilton, que recrutou em Los Angeles três voluntários sem quaisquer habilidades artísticas para produzir perfis falsos em redes sociais por meio de fotos glamorosas denotando estilos de vida que não tinham e inflados por milhares seguidores comprados (bots (robôs) que não correspondem a pessoas reais). Em poucos meses, tais perfis, alimentados por fotos assíduas curtidas e comentadas por bots, passam a receber gratuitamente produtos de marcas em troca de fotos ostentando os mesmos postadas no Instagram.

Se há algo de surreal nisto tudo é que nem as plataformas nem tampouco as marcas nelas promovidas, mesmo podendo identificar a proporção entre bots e pessoas reais na base de seguidores de influenciadores digitais, parecem se importar com o fato que que a maioria destes seguidores inexiste no mundo real. Pois o que importa, afinal, são os números e, é claro, que o dinheiro circule.

(aqui termina a resenha do filme;

* * *

a seguir, algumas reflexões por ele suscitadas)

Tal desequilíbrio ecológico entre o que é investido neste tipo de publicidade e o que é efetivamente convertido em vendas não é, no entanto, nenhum privilégio da propaganda em redes sociais, já existindo desde os tempos dos anúncios em meios de broadcasting impressos e eletrônicos (rádio, TV, revistas e jornais). É, no máximo, uma tentativa de adaptação da prática bem antiga de bombardear, a altos custos, uma população indistinta na expectativa de que uns poucos indivíduos – quanto mais melhor – respondam favoravelmente a mensagem. Como pulverizar uma lavoura com pesticidas ou jogar panfletos de um avião para que apenas uma pequena parte dos mesmos atinja leitores interessados. Quem paga por tudo isto, incorporado ao valor dos produtos, são, é claro, os consumidores finais.

E chegamos, por fim, a esta figura emblemática do broadcasting que não faz, no entanto, qualquer sentido no contexto descentralizado (ou assim deveria ser) da internet, a saber, a celebridade.

A mídia tradicional, com seu número bem mais limitado de canais, depende da escolha, por vezes arbitrária (vide reality shows), de um número também limitado de celebridades suficientes para lhes prover conteúdo – celebridades, estas, modeladas por produtores por critérios de aceitação a fim de maximizar índices de audiência, principal atrativo dos canais de mídia para anunciantes que os sustentam.

Só que, na internet utópica, que promete uma comunicação bi-direcional e mais horizontal entre usuários, a ideia de celebridade não faz qualquer sentido. Redes sociais são regidas pelo número de Dunbar, que estima em 150 a quantidade de pessoas que a mente humana pode, em média, conhecer. Se isto for correto, então milhares de seguidores são, no mínimo, suspeitos enquanto milhões dos mesmos são, evidentemente, uma fabricação.

O documentário de Bilton foi ensejado pelo fato de que, no Instagram, 40 milhões de perfis possuem mais de um milhão de seguidores.

O Diário de um Maquinista (Sérvia, 2016)

A sinopse de O Diário de um Maquinista (Dnevnik Masinovode, Sérvia, 2016), de Milos Radovic, começa, de um jeito um tanto inusitado, informando que, durante sua carreira, todo operador ferroviário em atividade mata, sem querer, de 15 a 20 pessoas. Ainda que este fato seja irrelevante em países, como o nosso, com uma malha ferroviária sucateada, o problema assume proporções preocupantes onde esta modalidade de transporte é mais importante – tal como, por exemplo, na Sérvia, palco da narrativa.

As mortes assumem predominantemente a forma de suicidas vagando pelos trilhos ou do abalroamento de veículos encurralados, imprudentemente ou não, na trajetória de locomotivas. Atropelamentos e abalroamentos são tão corriqueiros que ferrovias empregam psicólogos especialmente para atender maquinistas traumatizados por tais acidentes. A cena, logo no início do filme, em que psicólogos entrevistam o protagonista depois do abalroamento de uma van é hilária. Sem, no entanto, mais spoilers por aqui

A familiaridade com a morte não é exclusiva dos ferroviários. Forças militares e profissionais de saúde convivem, em maior ou menor grau, de acordo com o contexto (guerras, crimes, acidentes, epidemias e doenças terminais), com fatalidades. O termo inglês casualties dá uma boa ideia da banalização profilática da morte em nome da saúde mental dos que exercem certas ocupações.

É sempre refrescante travar contato com cinematografias estranhas. Neste filme, a novidade é o tratamento dado à morte – a qual, sempre que ocorre, toma nas telas um lugar de evento principal. Se houver um culpado, como no caso de assassinatos, será um filme policial, provavelmente um whodunit. Se for acidental ou por doença terminal, será um drama. Tais rótulos são de extrema relevância para a classificação em gêneros cinematográficos que domina os cardápios em canais de streamming.

Certamente Milos Radovic, ao roteirizar e dirigir sua história, não pensou em como o produto final deveria ser classificado. Tal dúvida, todavia, uma vez detectada e não dirimida, parece essencial para o Google ou para o canal de streamming Now, os quais classificaram o filme, respectivamente, como drama/comédia e drama/tragicomédia. Para o espectador, tais rótulos levam a priori a uma única certeza: a de se tratar de uma peça de humor negro.

O humor negro flerta com o politicamente incorreto, pois se trata, quase sempre, de brincar com aquilo que não se brinca. No caso, a morte – situação frente à qual devemos show some respect (tento, em vão, me lembrar de um filme no qual a expressão em itálico é uma fala importante). Em seu filme, Radovic não brinca, propriamente, com a morte mas, antes, com as reações dos personagens à mesma, em diversos graus de banalização ou não, tais como na supracitada psicoterapia pós-traumática; na estufa onde o protagonistas cuidadosamente cultiva flores brancas para homenagear suas vítimas acidentais ou na ansiedade de um novato que, em seis meses de profissão, ainda não havia atropelado ninguém.

É comum, em cinematografias alternativas, termos que tolerar uma fotografia que, por vezes em razão da escassez de recursos, deixe algo a desejar em relação a um padrão de excelência ao qual o cinemão já nos acostumou. Neste caso, não. Cores vivas e altos contrastes, principalmente na iluminação de problemáticos interiores, chegam a lembrar os áureos tempos do Technicolor.

O Diário de um Maquinista é um filme delicioso – diferente, provavelmente, de tudo o que você já viu.

Coisas

Na introdução do filme 100 Coisas (Alemanha, 2018), ficamos sabendo que, enquanto nossos bisavós viviam com 70 coisas e nossos avós com 250, nossos pais tinham 900 e nós, cerca de 10.000. Aqui, os números são meramente hipotéticos – pois, infelizmente, não consegui encontrar o filme no YouTube para uma citação mais precisa (o velho problema da escassez de boas opções no streamming…). Mas as ordens de grandeza e as relações entre elas correspondem ao original – estando, portanto, preservada a essência da ideia, que pode ser resumida como: na era do hiperconsumismo, nos cercamos de um número cada vez maior de objetos. Mais: a quantidade de coisas que indivíduos de diferentes gerações juntam ao longo de suas vidas cresce de modo exponencial em relação ao tempo.

Não falo aqui de itens colecionáveis como discos e livros mas, principalmente, de peças de vestuário e objetos de uso cotidiano como utensílios culinários. De modo que é bem razoável supor, por exemplo, que nossos avós cozinhavam com muito menos panelas e ferramentas do que os variados gadgets hoje encontrados em qualquer cozinha minimamente equipada. Coisas que povoam nossos armários, gavetas e prateleiras, garimpadas em bazares de encher os olhos e, na maioria das vezes, raramente usadas.

Como chegamos a isto ? Por que esse apego, tão típico de nossa civilização, a mais coisas do que podemos usar ? Há duas razões que, ainda que estanques entre si, merecem ser examinadas separadamente.

É sabido que, com o envelhecimento (ok, soa melhor se eu disser amadurecimento), cresce em importância a memória na mesma medida em que decai a taxa de atividade. Jovens, super ocupados no êstase de experiências sempre renovadas, não tem tempo para relembrar como os mais velhos. Ciente disto, toda economia tenta sugar ao máximo a força produtiva dos mais jovens. Já os mais velhos, progressivamente alijados do mundo da produção, valorizam cada vez mais suas memórias de juventude. Sonhos dizem muito disto.

Então, num impulso inconsciente, os mais idosos se apegam a objetos deixados por entes queridos e/ou de outras épocas, como se a mera posse dos mesmos pudesse reter memórias de experiências remotas que se desvanecem.

Por outro lado, a indústria da publicidade (contraparte obrigatória do hiperconsumismo numa economia de excedentes) se esforça por vincular a posse de objetos novos, ainda que nunca definitivos, a uma ideia de felicidade. Assim é a indústria da moda, queredo que troquemos de guarda-roupa a cada nova estação, ou a indústria automndobilística, que provoca os mais abastados com novos lançamentos a cada dois anos. Mas não só elas. Tudo o que consumimos tem um período de turnover bem curto, a ponto de fazer valer conceitos polêmicos como a obsolescência programada.

* * *

Deste modo, somos todos acumuladores. A única diferença entre um acumulador patológico e outro mais… “adaptado” é que o último é mais organizado do que o primeiro. Assim, enquanto a casa de um acumulador típico, daqueles de livro, mais se parece com uma montanha de lixo; na do acumulador socialmente aceito todas as coleções de objetos inúteis estão obsessivamente classificadas, limpas e armazenadas. Como num museu.

* * *

Por que deixei de lado, ao relacionar o acúmulo de objetos de pouco ou nenhum uso, as discotecas e bibliotecas ? É que livros e discos, quando bem curados, descortinam para seus proprietários, ao contrário da maioria dos objetos de uso cotidiano, um universo de possibilidades cognitivas outrossim inacessíveis no comércio, em bibliotecas, canais de streamming ou mesmo na web. Há mesmo uma farta literatura (Humberto Eco, Jorge Carrión, etc.) justificando a posse de bibliotecas não lidas como uma espécie de memória daquilo que quisemos ler um dia mas declinamos em razão da escassez de tempo de vida – mas que, ainda assim, pairam ali como possibilidades a serem exploradas.

* * *

Como podem ver, este é um post em aberto, no qual nada definitivo foi dito sobre o tema. É, muito mais, um convite à reflexão sobre como estamos imersos nesta situação tão absurda – ou, ainda, um apelo à busca de soluções para a mesma. Enquanto isto, assistam a 100 Coisas (no spoillers...) na primeira oportunidade que tiverem !

A pobreza da TV e do streaming; documentários que se salvam

Nunca gostei muito de ver TV. Com a quarentena, todavia, passei a prestar mais atenção nela – tão somente para confirmar o que sempre ouvira dizer, a saber, que a programação é um desastre. Indistintamente na aberta, na por assinatura (que, por lógica, deveria ser ligeiramente melhor) e, mais recentemente, nas plataformas de streaming.

O problema maior consiste na falta de memória em relação ao cinema. Inútil procurar grandes filmes europeus dos anos 70 ou mesmo coisas mais recentes. Por exemplo. Quando quis mostrar a meus filhos clássicos protagonizados pelo grande Michel Piccoli ou Fargo, dos irmãos Coen (quase deste milênio), nada encontrei.

É claro que alguns canais estão mais imunes a thrillers, séries e lançamentos mais recentes do cinemão americano. Como o Telecine Cult, com uma curadoria um pouco mais atemporal, ou o HBO Mundi, pródigo em filmes europeus e argentinos. Ainda assim, a desproporção é grande, pois praticamente tudo que não foi produzido nos últimos anos em um único país fica concentrado em uns poucos canais – a cuja grade de programação devemos nos adaptar se quisermos escolher minimamente ao que assistir.

Já o streaming – que, ao menos em tese, veio para resolver o problema da customização do horário de exibição – deixa totalmente a desejar na palheta de opções disponíveis. Não é de hoje que constataram ser impossível impossível encontrar algum Hitchcock (qualquer um) no Netflix. Neste quesito, até o Cult, que reprisa Psicose, Janela Indiscreta ou Os Pássaros de tempos em tempos, desempenha melhor.

* * *

Num mundo perfeito, com uma verdadeira política inclusiva, serviços digitais por assinatura deveriam, assim como saúde, educação ou segurança, ser gratuitos. Custeados por impostos e providos pelo estado. Acabando, com isto, com o pote de ouro do segmento ponto com – uma assimetria econômica (empresas que lucram barbaramente controlando o tráfego de informações) que precisa ser corrigida. Não acho, no entanto, que venha a viver suficiente para testemunhar isto.

De minha parte, resisto o que posso (romanticamente, dirão) assinando o mínimo de serviços que consigo. Consoante a isto, não tenho Spotify. Sei, por outro lado, por meio de amigos, que a base de conteúdo na popular plataforma de streaming de áudio é enormemente mais ampla e isonômica (em relação a épocas e lugares de produção) do que as análogas (Now e Netflix) dedicadas a conteúdos visuais.

Tenho uma hipótese (ou, se quiserem, teoria conspiratória) a este respeito. Tem a ver com o custo de armazenamento. Por que arquivos de áudio são muito mais curtos e menos densos do que os de imagem, são necessários muito mais bytes de memória para armazenar um trecho de imagem em movimento do que o mesmo tempo de som gravado. Além disso, uma música dura, em média, muito menos do que um filme. Combinados estes dois fatores, temos que a proporção entre as quantidades de servidores necessárias para armazenar filmes e músicas cresce, com o aumento da oferta de conteúdo, não numa relação linear, mas exponencial. Com o que plataformas de streaming de conteúdo visual sofrem, então, uma pressão econômica muito maior para “limar” conteúdos menos acessados do que suas análogas sonoras.

Tal realidade só aguça a tragédia da extinção das cinematecas e video-locadoras.

* * *

Outra honrosa exceção à mesmice da programação da TV por assinatura são os documentários. No último fim de semana, assisti por acaso (teria visto mais se houvesse me programado) a três excelentes. No primeiro deles, Varda por Agnès (2019), em forma de entrevista, tomei conhecimento da obra visual da instigante cineasta e fotógrafa belga, radicada na França.

A Arma Perfeita e A Guerra dos Consoles, ambos de 2020, se inserem na mesma tradição de O Dilema das Redes, na qual os realizadores procuram explicar, por meio de entrevistas com insiders (analistas, executivos e projetistas), estratégias políticas e corporativas, nem sempre explícitas, que resultaram em fatos e produtos que definem o mundo em que vivemos mas cuja compreensão histórica ainda é um tanto nebulosa em razão de ser tudo muito recente.

A Guerra dos Consoles, baseado no livro homônimo de Blake Harris, é sobre a competição predatória entre a Sega e a Nintendo pelo voraz mercado de videogames nos EUA nos anos 90. Não vi até o fim (tive que sair antes disso), mas fiquei querendo que a narrativa se estendesse até as plataformas da Sony e aos jogos online. A Arma Perfeita versa sobre a ação de “hackers de estado” russos e chineses minando ainda mais a credibilidade do já claudicante sistema eleitoral norte-americano. Tanto um como o outro são excelentes aulas de história recente – ou, para quem não concordar com os fatos apresentados ou com a correlação estabelecida entre os mesmos, ao menos ótimas teorias conspiratórias. Mas, afinal, o que não é, desde o mais singelo silogismo categórico, uma teoria conspiratória ?

(mais sobre teorias conspiratórias e sua reabilitação num próximo post, pois este já se alongou que chega)

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

* * *

E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

* * *

Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

* * *

O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

* * *

Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

* * *

Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

* * *

E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

* * *

E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.

O parênteses do filme: a era Technicolor (dos anos 30 aos 50)

Hoje, imagens capturadas por sensores eletrônicos e digitalizadas são armazenadas em discos magnéticos rígidos e mesmo memórias sólidas transitórias. Terminou, portanto, a era das imagens quimicamente gravadas em filmes translúcidos, tanto na fotografia como no cinema. Uma das mais interessantes histórias da tecnologia da cor em filmes,  antes da existência da TV, foi o processo Technicolor – que, em poucas palavras, consistiu, em seu auge, na utilização de uma pesada câmera, na qual três filmes negativos em branco e preto rodavam ao mesmo tempo, cada um registrando uma parte do espectro da luz que vinha da lente.

Imaginem o  tamanho da máquinas, das quais poucas unidades chegaram a ser produzidas entre 1933 e 1950: 35 nos Estados Unidos (das quais 29 para ação cinematográfica, 3 para animação e 3 para filmagem rápida e slow motion) e apenas 4 no Reino Unido.

Câmera Technicolor

Não eram vendidas, mas só alugadas, e seu uso pressupunha a contratação obrigatória do processo de revelação dos negativos e de uma equipe composta por vários técnicos de operação e um consultor de cores.

Equipe técnica para a operação de uma câmera Technicolor

O processo Technicolor foi hegemônico na indústria cinematográfica dos anos 30 aos 50 (mais precisamente, de 1932 a 1954), tendo sido suplantado apenas pelo Eastmancolor – cujas câmeras, mais portáteis, ofereciam a cineastas, por utilizarem apenas um rolo de filme, uma portabilidade até então inédita.

Carrinho (travelling) usado para movimentar em filmagens uma câmera Technicolor

A história da cor no cinema é, como a de tantos pioneiros norte-americanos, uma história de sagas familiares. Pois não há como se falar de um vasto período de cor no cinema sem falar nos impérios de Natalie e Herbert Kalmus e de George Eastman.

Dentre os primeiros a utilizarem o processo Technicolor destacam-se os estúdios Disney, em produções como, por exemplo, as Silly Syphonies e os desenhos do Mickey Mouse.  Abaixo, a Silly Simphony Flowers an Trees , de 1932,

e um desenho do Mickey de 1936.

* * *

Numa rápida olhada no youtube, encontrei ótimos documentários sobre o Technicolor, tais como

,

e

(de, respectivamente, três minutos e três quartos; quatro minutos e dois terços e uma hora – dependendo de sua tolerância a vídeos didáticos…). O primeiro explica o funcionamento de uma câmera Technicolor; o segundo, o processo de dye-transfer, usado para a fabricação de um único filme positivo colorido, a partir dos três negativos em branco e preto; e o último, mais prolixo, toda a história da empresa e dos empreendedores que criaram e exploraram o processo.

* * *

Hoje, sabemos que as cores capturadas em Technicolor, em três negativos convencionais em branco e preto com sais de prata, resistem muito melhor à ação do tempo do que aquelas registradas em gelatinas coloridas por meio do processo Eastmancolor.

À esquerda, imagem em Eastmancolor; à direita, a mesma imagem em Technicolor

Não se trata do único caso em que uma tecnologia mais antiga, rendida obsoleta por outra mais nova, se revela, em retrospecto, mais durável. O mesmo acontece com discos de vinil, intactos até hoje, se comparados aos primeiros CDs, fabricados na década de 80, que, dependendo das condições de armazenamento, já podem apresentar sinais de desgaste pela ação do tempo, com perda irrecuperável da informação neles contida, devido à corrosão da película metálica na qual foi gravada digitalmente.