Déficit literário

Disclaimer: depois de ter declarado, dias atrás, não ter tempo para ler ficção, confessei, ontem, meu projeto de recuperação de meu déficit literário (i.e., o que já deveria ter lido mas ainda não li). Como assim, Brutus ? Quanto a esta volubilidade, noves fora o fato de eu ser geminiano, só tenho a dizer o seguinte. Na inocência da juventude, ao ser interpelado por amigos sobre alguma opinião mutante, respondi “- Não me cobrem coerência !”. Difícil descrever o impacto, misto de riso e espanto, da frase sobre os que a ouviram pela primeira vez. Desde então, a uso com frequência para justificar esta metamorfose ambulante.

A estas alturas, nem que eu quisesse conseguiria ler tudo o que gostaria. Então, meu plano é simples, a saber, ler pelo menos uma obra de cada grande autor até agora negligenciado (o que não é pouco !). Para tanto, confio em minha rede de recomendantes. Não há como fugir, por exemplo, da unanimidade acerca de Brás Cubas, assim como o bom senso manda que não me aventure com o Finnegan’s Wake antes de ler Ulysses.

De todas as obras aleatoriamente mencionadas em rede social, como (bem-sucedida) provocação, a que mais reações causou foi, de longe, Crime e Castigo. Mais precisamente, minha confissão de ter abandonado a leitura do livro por achá-lo chato. Devo, portanto, uma explicação. Ou, ao menos, uma tentativa. Mas não sem, antes, agradecer pela ótima recomendação de Charlles Campos sobre a “forma correta” de se ler Dostoiévski, a saber, de uma sentada só. A qual, por sua vez, roça a razão de minha desistência (ou, pelo menos, minha hipótese sobre a mesma), na página 248.

Acontece que, desde a época dos romanções russos (tudo bem: também escreveram e ainda escrevem grandes romances em outros lugares), o tempo de atenção médio dedicado a um único texto despencou. De tal modo que Bakhtin teria se deliciado ao submeter a extrema fragmentação do discurso contemporâneo à sua teoria sobre as interrupções das falas. A comunicação humana (e, portanto, a literatura) é hoje muito mais dominada pelo tweet, pelo post, pela crônica ou, vá lá, pelo conto (nesta ordem) do que, propriamente, pela novela e pelo romance. O cinema, a televisão e, mais recentemente, as conexões virtuais são, com sua eficácia, objetividade e imediatismo, responsáveis por isto.

Posso muito bem, no entanto, estar não mais do que racionalizando minha desistência. O abandono pode ter sido mero esquecimento. Ou, até mesmo, por eu ter achado a coisa chata. Como assim ? Aquelas descrições quilométricas, de várias páginas, cada vez que um novo personagem entra em cena. Não contente em descrever o personagem, o autor recita a história de sua vida. É o estilo, dirão. Me reservo, todavia, o direito de, face a uma objetividade quase cartesiana a que o cinema nos acostumou, sofrer de baixa tolerância em relação a objetos mais prolixos. Minha predileção é por formas de linguagem mais compactas. Questão de gosto.

Gosto ? Sai, Satanás ! Pois quem vos escreve é o mesmo que afirmou categoricamente, esses dias, que, ao contrário do que reza o senso comum, gosto, assim como política e religião, se discute, sim. Tributem, então, esse deslize a meu credo, exposto no kaput, de rejeição consciente e explícita à coerência.

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A predileção pela retórica compacta deve estar na origem de minha dificuldade com a ficção. Pois, enquanto o não ficcionista busca, como forma de expressão ideal, o modo mais simples (menos prolixo) de traduzir seus argumentos em cadeias silogísticas perfeitamente inteligíveis (como expressões matemáticas depois da simplificação dos fatores); o ficcionista enriquece a narrativa dizendo muitas vezes a mesma coisa de modos diferentes. Como, por exemplo, um cineasta que mostra uma mesma cena sob vários pontos de vista. Pela repetição, o espectador/leitor vai formando, então, uma imagem cada vez mais nítida do que o autor quer mostrar.

Conquanto isto possa ser chamado, como já disse, de estilo, tenho pouca paciência com o mesmo (ao menos em literatura). Um exemplo. Abandonei o outrossim excelente Extinção, de Thomas Bernhard, na página 248 (a mesma em que fui derrotado por Crime e Castigo !). Adoro Bernhard, de quem li ótimos livros. Em Extinção, um calhamaço de 476 páginas, ele se entrega ao desafio de escrever um livro com apenas dois parágrafos. Talvez o maior (mais extenso) monólogo interno da literatura. Sem dúvida um belo exercício de virtuosismo. Nas primeiras páginas, o protagonista deixa bem claro que odeia sua família. Mais especificamente, sua mãe. Quanto aos outros, apenas despreza. Até onde li, todo o livro é uma reiteração insistente de tamanho ódio. Permeado de histórias, é claro, a justificá-lo. Virou um livro de sala de espera, i.e., o lia enquanto não podia fazer outra coisa, ansiando por um desfecho digno do tempo investido. Tão logo percebi isto, o abandonei.

Não é novidade, para quem me lê, meu alto apreço pela concisão. Tanto que cunhei a expressão “densidade lógica” para tentar quantificá-la. Em vão. Impossível de ser expressa por valores numéricos (ideias/(nº de palavras), talvez), a densidade lógica se estabelece tão somente por meio da comparação entre sua presença em dois ou mais objetos. Tipo: este texto é logicamente mais denso do que aquele. Talvez por isto minha tardia disposição de ampliar a familiaridade com a literatura de ficção (que remonta à juventude) seja amiúde interrompida pela urgência de entrar em contato com algum texto não ficcional brilhante recém descoberto.

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Qual a relação ideal entre o volume de leitura e o de escrita de cada pessoa ? Existe uma ? Se alguém escreve muito mais do que lê, tende à irrelevância. Por outro lado, sobra pouco tempo para a escrita a quem cede sem freios à sedução da leitura. Talvez, sei lá, algumas horas do dia sejam mais propícias à escrita ou à leitura. Prefiro, por exemplo, escrever pela manhã e ler ao entardecer. Mas não é só isto. Há, para complicar a equação, uma questão de índole mais ideológica que tem a ver com a concessão a apenas uns poucos do benefício do imprimatur.

Ao menos em tese, todos podem escrever. Ainda que, é claro, alguns textos sejam mais interessantes do que outros. O que faz, então, com que só esses poucos (tão poucos que é lícito falar de alguma cultura de celebridades em ação) conquistem o privilégio de ter seu espírito imortalizado em volumes encadernados com lombadas em uma estante ? Ouso supor que há mais bons livros não escritos do que tudo o que repousa nas melhores bibliotecas. Por que, então, tal estado de coisas ? Razões não faltam.

Primeiramente, é claro, por que o ofício do escritor exige dedicação continuada e, portanto, meios de sustento a garanti-la. Mas, também, por que o acesso às gráficas e livrarias depende, acima de tudo, da aprovação de uma casta de editores, que especulam sobre o potencial de venda maciça, estimada em milhares de exemplares, de cópias de cada original apreciado. Conquanto este gradus ad parnassum editorial possa ter mudado muito na atual era da auto publicação, o que sempre houve, desde Guttenberg, e existe até hoje, é um enorme desequilíbrio entre toda criação textual possível do espírito humano e a pequena parcela do mesmo legada à posteridade em tinta e papel. Ou, atualizando, arquivos voláteis.

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Como, então, lidar com esse excesso de coisas a serem lidas, muitas delas jamais escritas ? A vertiginosa Biblioteca de Babel de Borges (Ficciones, 1944), que abarcava todos os livros possíveis e ultrapassava os confins do universo. Na falta de um critério que se sobreponha aos outros (curadoria em suas diversas formas), dou preferência ao que escrevem meus amigos. Assim, diante da impossibilidade de ler tudo o que quero, dediquei, nos últimos anos, especial atenção às criações da Nikellen, do Farinatti, do Milton, do Henrique e do Liberato. Sem qualquer arrependimento. Posso ter esquecido de alguém. Mas tenho sorte em ter os amigos que tenho.

Gosto de ideias utópicas e distópicas, pois ajudam a imaginar mundos melhores. E se, de repente, todos lessem o que pessoas que lhes fossem conhecidas escrevessem, ao invés (ou, pelo menos, além) das grandes obras do cânone do conhecimento universal ? Teríamos uma melhor distribuição do privilégio da autoria ? Ou alguma espécie de sensibilidade mais local, avessa às celebridades e ao mercado global ?

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PS: pouco depois de publicar as linhas acima, fui agraciado com o seguinte comentário, do Charlles Campos, o qual reproduzo mediante consentimento. Bem melhor do que a encomenda, é EXATAMENTE o tipo de reação que quis suscitar. Ganhei meu dia.

Ótimo texto! Obrigado pela citação. Bom, tem muita coisa aí para debate. Eu sou formado em história e jornalismo, além de veterinária. Menciono isso por ser concernente ao assunto, pois são áreas tão díspares mas me tornaram um leitor profícuo em todas elas. Leio muito não ficção, história, biografias, e divulgação científica. Tem meses que me ocupo apenas com não ficção. Semana passada mesmo li o excepcional livro sobre a cientologia, do Lawrence Wright, e agora estou relendo Thimoty Snyder e lendo Carisma e Poder, do Ian Kershaw. Mas, nada se compara à ficção, ao romance. A ficção oferece um leque completo de tudo que tem nos outros gêneros, além do adendo valioso de seu caráter de identificação humana. Eu vi no curso de história o quanto a grande maioria dos professores eram limitados a apenas lerem sobre suas matérias de trabalho, sendo incultos sobre tudo o mais. E creio que isso seja uma lamentável característica do academicismo brasileiro, pois em todos os grandes escritores de história globais se vê que são profundos conhecedores e leitores de literatura. Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Thompson, Ginzburg, etc, etc, que são grandes historicistas, dedicam uma substancial parte de suas produções à literatura. Então, eu vejo como uma enorme limitação o leitor não ler ficção. Claro que a regra de Borges vale sobre tudo, e a gente deve ler o que der prazer. Mas há muita ficção que dá prazer, e talvez o problema seja o que Roberto Bolaño, do Detetives Selvagem, uma vez conceituou muito bem, que nós, povos latino-americanos, devemos nosso subdesenvolvimento a não termos literatura de gênero, se referindo às pulp fiction, às fantasias, às narrativas puras. E pode ser um ótimo diagnóstico. Nos falta alguma coisa muito salutar que nos faz achar que tais fantasiações possam ser pouco sérias, ou demasiado infantis. O que talvez explique, abrangendo a percepção do escritor chileno, a paixão militar, a veneração por um patriotismo tosco, e uma deficiência mutiladora de autoconsciência nacional. Como estou divagando de forma espontânea, me permitindo um fluxo de consciência do citado Ulisses, isso casa com uma excelente interpretação escrita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek da alma norte americana tomando como base os romances de Michael Crichton, o criador de filmes representativos da esfera midiática daquele país, como Jurassic Park.

Vinil

Há hoje um certo glamour em torno do disco de vinil. Vamos aqui especular sobre possíveis origens do fenômeno. Fatos e mitos. A inexorável marcha dos meios comerciais de distribuição de gravações sonoras. Eis algo bom para se começar, organizando um pouco o campo no qual o vinil se insere.

Desde a invenção do som gravado, já tivemos cilindros sulcados, que logo se converteram em discos (mais facilmente industrializáveis, porque passíveis de serem “impressos”), em seus diferentes diâmetros e rotações de reprodução, até o advento do CD que, por sua vez, deu lugar ao streamming. Tudo isto em pouco mais de 100 anos, apenas. Tempo suficiente, no entanto, para influenciar o padrão de duração da música comercial até como a conhecemos hoje. Da seguinte maneira.

O disco compacto, lançado pela RCA em 1949, com 7 polegadas de diâmetro e reproduzido a 45 rotações por minuto, podia conter no máximo 4 minutos de música em cada face. Com o disco compacto rapidamente se tornando o formato hegemônico para o lançamento de hits (músicas mais promovidas pelos meios de comunicação, que por isto mesmo se tornam as mais populares), ocorre que os 4 minutos acabaram se tornando uma espécie de limite superior para a duração de qualquer coisa que se grave almejando ao sucesso comercial imediato. Vale ressaltar que um LP (disco de 30 centímetros de diâmetro) contém obrigatoriamente um hit (e via de regra não mais do que isto), sendo o restante de seu “espaço” reservado a manifestações mais “autorais”. De tal modo que podemos, grosseiramente, afirmar que, enquanto o hit pertence ao produtor, o resto de um LP é território por excelência de seu titular – o qual, ironicamente, costuma ser preenchido por composições que não ultrapassam o limite dos 4 minutos, mesmo sem jamais serem comercializadas em discos compactos.

É claro que esta padronização exacerbada se aplica somente àquela música mais imediatamente consumível, reconhecida pelo rótulo de canção popular, não tendo qualquer validade para gêneros como o jazz, a música eletrônica, algum rock progressivo e discursos musicais mais experimentais. E a música chamada “erudita”, é claro. Em tais gêneros, não é nada raro ouvirmos peças que começam num lado de um LP e terminam no outro, com um par fade in/fade out ao fim do lado A e no início do lado B a sinalizar a continuidade.

Notem que tal critério duracional repercute ainda sobre formatos que nada tem a ver como o disco compacto, sepultado há décadas – como, por exemplo, os abomináveis reality shows musicais televisivos, que tentam resgatar os velhos festivais e shows de calouros com auditórios, tais com The Voice ou The Masked Singer. Se em The Voice cada música é abreviada pelo corte de repetições presentes nas gravações originais, já The Masked Singer apresenta as canções inteiras. Num ou noutro, a padronização do tempo alocado a cada candidato visa não apenas garantir uma certa isonomia de oportunidade aos mesmos mas, sobretudo, regular a quantidade de “conteúdo” oferecida aos espectadores entre um intervalo comercial e o próximo. Pois a proporção propaganda/conteúdo, maximizada ao limite da suportabilidade, é o principal fator a determinar grades de programação na mídia comercial.

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Quando uma nova mídia, quase sempre apregoada como revolucionária, desbanca uma anterior, hegemônica, se travam verdadeiras guerras por fatias de mercado, com argumentos abundantes contra ou em prol de uma mídia ou de outra. Quando surgiu o CD, se dizia que soava melhor e durava mais do que um LP. Prefiro deixar a discussão quanto à qualidade do som para os especialistas, até por que tanto CDs como LPs podem conter tipos distintos de gravações, a saber, analógicas ou digitais. Tal distinção, por si só, diz muito mais da qualidade do som de uma gravação do que, propriamente, o meio (CD ou LP) onde está codificada.

Na falta de maiores conhecimentos técnicos, me arrisco, todavia, a manifestar certa preferência pelo som de um disco de vinil. No caso de gravações analógicas, um CD não pode fazer nada para melhorar como uma mesma música soaria num LP. O mesmo não se dá com gravações digitais. Há, aqui, uma diferença fundamental. Enquanto no CD a música é codificada digitalmente, num LP a mesma gravação digital precisa ser convertida em analógica antes de ser “impressa” no disco. Então, a possível diferença é muito mais lógica do que sensorial (talvez a diferença seja pequena demais para ser ouvida), formulada da seguinte maneira: qual deve ser o melhor conversor digital-analógico: o contido nos circuitos de um tocador de CDs produzido em massa para consumo ou aquele utilizado numa planta industrial para converter os pulsos binários de uma gravação digital em uma onda analógica capaz de ser “impressa” em LPs ? A resposta definitiva, envolvendo bytes e bits, é, no entanto, de uma complexidade técnica fora do meu alcance, razão pela qual prefiro deixá-la a cargo de especialistas, passando, de pronto, ao próximo argumento, a saber, a durabilidade.

Quando surgiu o CD, se dizia que era eterno. Um argumento fácil, se levarmos em conta a facilidade com que um LP acumula arranhões e sujeira. Tudo bem. Mas só por um certo tempo. A imutabilidade do som do CD ao longo dos anos era bem convincente (uma noção falsa, já que, sabemos, o mais simples tocador de CDs é capaz de sintetizar pequenas porções de informação faltante na medida em que um CD é lido pelo feixe de laser). Isto até eu tentar ouvir, anos atrás, CDs da prestigiosa Deutsche Grammophon adquiridos no fim da década de 80 nos quais havia trechos de informação faltante longos demais para serem sintetizados pelo aparelho reprodutor. Foi quando, num exame visual da superfície do CD, constatei que a película metálica na qual é gravada a informação binária estava corrompida, com grandes manchas, visíveis a olho nu, denotando o ataque por fungos. Em contrapartida, ouço até hoje os LPs favoritos de minha juventude, comprados ca. 10 anos antes.

A maior diferença entre o CD e o LP não é, todavia, a qualidade sonora, possivelmente mensurável só em laboratórios, nem tampouco a durabilidade, que só pode ser percebida depois de muitas décadas, talvez mais do que o período de vigência de cada meio. Entendo que tenha a ver com a própria música que se gravava em cada um. Falo, aqui, de curadoria.

O ressurgimento do LP é revestido de um certo fetiche. Seu aspecto saudosista, que nos faz gostar de tecnologias e objetos antigos. Vintage virou sinônimo de glamoroso. Fotografia com filmes negativos em vez da digital. Cinema em vez de televisão. Rituais não são menos importantes. Assim como ir ao cinema (embora os modernos projetores reproduzam arquivos de HDs), é mais prazeroso (ainda que mais trabalhoso) do que ver televisão, com os discos se dá o mesmo. Descer suavemente a agulha sobre uma superfície giratória e virar o disco ao fim do lado A agrega à experiência da audição musical muito mais do que simplesmente apertar botões. Por que ? Não sei.

Sei, no entanto, que os caminhos percorridos por uma música até ser impressa num CD ou LP são totalmente distintos. Principalmente no que se refere à curadoria. Na era do LP, os meios de produção eram caros (estúdios com mesas de 24 ou mais canais e máquinas gravadoras de fita de 2 polegadas) e escassos (eram poucas as fábricas de discos), e eram franqueados pela indústria fonográfica a produtores todo poderosos que lhes apontavam com quais artistas e repertórios poderiam auferir maiores lucros. Se a década de 80 (quando o LP já minguava) foi dominada por produtores descobridores de talentos, anteriormente o acesso mais democrático aos selos importantes era regulado pelos festivais.

Foi, contudo, na era do CD que o acesso ao disco mais se democratizou. Com o surgimento do home studio, todo autor passou a poder, a custos bem mais acessíveis do que no período precedente, industrializar e divulgar seu próprio trabalho. Então, ainda que as fábricas de CDs não fossem, talvez, muito mais numerosas do que as de LPs, muito mais títulos foram fabricados pelas primeiras do que pelas últimas. Numa proporção astronômica, eu diria.

Nesta transição, um fator importante que não pose ser subestimado é a internet. Sem ela, uns poucos produtores, que representavam poucos selos fonográficos, tinham poder de vida ou morte sobre a música que era ou não industrializada e promovida, pois sua área de atuação também incluía o acesso, por meio de expedientes como o jabá, à programação de rádio e TV. Hoje, além de se auto-produzir, todo autor também se promove publicando sua obra em plataformas de streamming e a divulgando em redes sociais. Deste modo, não é nenhum exagero se afirmar que, hoje, uma aprovação maciça (likes) vale bem mais do que qualquer crítica publicada.

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Tendo feito, acima, uma apologia do disco de vinil, caímos na complexa experiência de comprar LPs hoje. Primeiro, por que o hype do formato contribuiu muito para o aumento de seu preço médio. Ao ponto de se cobrar por LPs novos (de 180 gr) algo como R$ 250, sejam lançamentos ou reedições. A situação dos usados não é mais alentadora, custando em média entre 50 e 100 reais. O problema dos usados merece um parágrafo autônomo.

Adotei recentemente a disciplina de garimpar LPs em feiras de usados, na crença de que, vez que outra, meus esforços seriam recompensados com a descoberta de algo excepcional. Ledo engano. Em todas as minhas incursões até agora (ainda não perdi de todo a esperança), só topei com discos dos quais as pessoas se desfizeram em reduções de coleções; elas invariavelmente guardam para si (assim como eu) seus melhores discos. Então, para você que, por qualquer motivo, gosta de discos de vinil, as notícias não são das melhores. Das duas uma: ou você tem que ter muito dinheiro ou se contentar com aquilo de bom que adquiriu num passado remoto.

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Para um mergulho mais profundo, repleto de informações valiosas, nos meandros da indústria fonográfica, vale a pena conhecer três obras: Como a música ficou grátis, de Stephen Witt; Os Donos da Voz, de Márcia Tosta Dias; e Maestros, obras-primas e Loucura, de Norman Lebrecht. Enquanto os títulos de Lebrecht (sobre o declínio da indústria da música clássica) e de Witt (sobre a pirataria) se encontram traduzidos para o português, o de Dias, sobre a indústria da música no Brasil, além de ser original em nosso idioma, é um daqueles raros casos em que uma tese de pós-graduação, de tão boa e pertinente, acabou se tornando um livro publicado.

Ode a meu amigo livreiro

Me tornei um leitor maduro. Explico. Até pouco tempo atrás, tinha lido quase todo meu “repertório” acumulado até pouco antes de completar 30 anos, quando me tornei, segundo aquele a quem dedico este post, “um leitor de catálogos e manuais” (não canso de repetir esta definição que adoro) e, ultimamente, nem isto. Bem, mais exatamente, até o Milton se tornar livreiro – fato decisivo, como veremos adiante, para modificar, espero que de modo duradouro, meu hábito de leitura. Antes, porém, breves considerações sobre trocas de carreiras.

É complicado, para aqueles que , como dizem, já cruzaram o Cabo de Boa Esperança (para não usar termos infelizes como Terceira ou Melhor Idade), redesenhar suas vidas. Primeiro, por já não se poder contar mais com a disposição da juventude. Ou, mais precisamente, é necessário se conciliar a disposição mental (que parece crescer com a experiência) com o declínio da disposição física. Depois, há circunstâncias peculiares a cada campo ocupacional, as quais se dividem em duas categorias – a saber, a confiança de terceiros na capacidade de trabalho e atualização de quem se aproxima da aposentadoria e a própria incerteza decorrente da instabilidade do cenário ocupacional (desgraçadamente conhecido por mercado de trabalho), típica dos dias que correm.

Tais fatos servem para realçar a juventude mental e a ousadia de meu amigo que, depois de, aos 50 anos, deixar uma bem sucedida carreira em tecnologia da informação (é assim que chamam ?) para virar jornalista e, novamente aos 60, largar tudo (bem, quase tudo: ele ainda publica assiduamente em seus blogs) para se tornar livreiro. Não canso de repetir sua história, quase como um mantra de autoajuda para aplacar a insegurança congelante dos mais jovens.

A principal razão de eu considerar seu movimento de virar livreiro um de extrema ousadia é que, mesmo tendo amado a literatura desde (deve haver uma expressão melhor equivalente a “a mais tenra idade”…), Milton comprou uma livraria exatamente quando muitas começam a fechar suas portas, a começar pelas maiores. Tal se deve à suposta “morte dos livros” ensejada pelas mídias digitais e preconizada pelos mais alarmistas. Ora, é claro que o livro não vai morrer, como sustentam sensacionalmente os filósofos do Parêntesis de Gutenberg. Não é possível, no entanto, se acreditar que a leitura de livros e impressos em geral seja hoje tão hegemônica como em tempos anteriores. Bem mais sensato é reconhecer que livros vem se tornando, pouco a pouco, um território de especialistas. É contra esta tendência que se posiciona o intenso ativismo bibliófilo. É também esta tendência que faz da decisão de alguém se tornar livreiro hoje uma de extrema ousadia, exclusiva dos que não nasceram para coisas pequenas.

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So much for the context. Tratemos de nos ater ao prometido no kaput, namely, de como a súbita disponibilidade de um amigo livreiro me tornou um leitor, senão melhor, ao menos mais contumaz. (este é um daqueles posts de desfecho previsível, mas vamos lá)

Semana passada, ouvi de um psicólogo que, ao contrário do que reza o senso comum, as livrarias não estão fechando devido à leitura em meios digitais, mas por causa da Amazon. Em suporte ao argumento, citou um par de livros (o CID (código internacional de doenças) e um outro) que, orçados em grandes livrarias, custavam em torno da terça ou da quarta parte no gigante do comércio online.  Ao externar seu espanto, ouviu de um livreiro resignado o conselho “compre sem hesitar !”. Nossa conversa enveredou, então, pela análise dos fatores econômicos e logísticos por trás de tal discrepância mas que foge, no entanto, ao (vá lá: escopo, de uma precisão semântica indispensável, é um baita clichê…) deste texto.

Antes do Milton comprar a Bamboletras, eu já tinha encomendado lá alguns livros, movido pela facilidade de poder contatar pelo facebook Lu Vilella, sua proprietária anterior. Não foi, no entanto, só pela conveniência que intensifiquei minha relação com a livraria após sua aquisição. Pois é igualmente fácil, além de muito mais barato, comprar livros pela internet e recebê-los pelo correio. De fato, sigo usando o expediente para importar um que outro volume, cuja aquisição por meio de livrarias físicas seria demasiado trabalhosa e demorada, além de onerosa.

Concluo, então, que, mais do que qualquer facilidade, o que ainda me leva a frequentar livrarias (bom, na verdade, apenas uma) é a qualidade da experiência. Não gosto de garimpar em estantes: o excesso de oferta tem para um geminiano um efeito sinestésico paralisante. Não troco por nada, isto sim, a possibilidade de conversar com o próprio livreiro ou seus ilustrados colaboradores. Gente que conhece minhas preferências de leitura e, como tal, é capaz de emitir recomendações confiáveis. O livreiro como curador. Ou, se quiserem, personal booker. E isto é praticamente impossível em grandes livrarias.

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Aos 20 anos, podíamos nos dar ao luxo de ler qualquer coisa que nos caísse nas mãos. Pois o tempo era uma commodity abundante e, portanto, não reputávamos leituras supérfluas como tempo perdido. Aos 60, é bem diferente. Começamos a ver o tempo como mais escasso e, logo, precioso. É por isto que, na maturidade, só consagramos tempo a leituras precedidas por fortes recomendações. Imperiosas, eu diria.

Tão logo me dei conta desta nova realidade, pensei que, doravante, só teria olhos para a não ficção até que, apenas mais recentemente, comecei a me reconciliar também com a ficção, com a qual tive tão pouco contato. Clássicos dos quais sempre ouvira falar sem jamais conhecer por experiência própria. Ainda que não saiba explicar por que bons livros fazem tanto bem, devo o hábito de sua leitura indubitavelmente ao Milton. Vida longa a ele e a sua aconchegante livraria !

Apelos por menos informação surgem onde ela é tudo o que importa

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À medida em que a população de livros e periódicos continua a explodir, bibliotecários reclamam que o espaço nas prateleiras está acabando e que os custos estão fora de controle. Ao mesmo tempo, autores e estudiosos dizem que a multiplicidade de publicações medíocres torna impossível peneirar as que contém ideias novas.  A proliferação de livros e periódicos parece ter reduzido o acesso à informação ao invés de aumentá-lo, e algumas universidades estão pensando em maneiras de encorajar seus corpos docentes a publicar menos, não mais.

” Há gente que publicou 400 manuscritos durante sua vida, e alguns muito mais do que isto “, disse Marcia Angel, editora do New England Journal of Medicine. ” É difícil acreditar que alguém possa realizar trabalho realmente importante nesta escala. “

O excesso de informação é mais grave nos campos científicos, onde o número de periódicos publicados mundialmente excede hoje 40.000. Em razão dos periódicos se destinarem a públicos tão pequenos, os preços podem ser astronômicos. Para citar um exemplo extremo, uma assinatura anual de um periódico de física nuclear publicado na Holanda custa 3.885 dólares e inclui mais de 11.000 páginas.

Por sua vez, alguns jovens pesquisadores de Harvard, da Universidade da California em Berkeley e de outras universidades renovaram esforços para que escolas fundamentassem decisões sobre carreiras mais no desempenho em aulas e na quantidade de fundos de pesquisa que membros de seus corpos docentes tenham colhido do que no número de livros e artigos que publicaram. Um relatório divulgado pela Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching em 1986 também recomendou que professores sejam avaliados mais por seu ensino do que por sua habilidade em publicar.

Limites à Publicação

Em fevereiro de 1988, a Harvard Medical School editou novas diretrizes para progressões docentes, recomendando que fossem requeridos não mais do que 5 trabalhos publicados para candidatos a professor assistente, 7 para professores associados e 10 para titulares. Candidatos anteriores, na tentativa de impressionar julgadores, submetiam o máximo que podiam.

O crescente número de periódicos ocorre numa época em que cientistas confiam cada vez menos neles. As últimas ideias em ciência são tipicamente trocadas muito antes de sua publicação formal, em conferências e através de cópias  de papers distribuídos antecipadamente por máquinas de fax e redes de computadores.

Richard M. Dougherty, diretor da biblioteca da Universidade de Michigan e presidente da American Library Association, disse que bibliotecários tem sido forçados a cancelar assinaturas montando às centenas de milhares de dólares de periódicos científicos raramente usados. Mas o cancelamento de assinaturas parece causar apenas uma espiral mortal, na qual editores precisam cobrar mais para compensar listas de envio menores.

Henry H. Barschall, professor aposentado de física na Universidade de Wisconsin, estudou o custo/benefício de 200 periódicos de física e descobriu que, em geral, os mais caros são menos propensos a serem citados em outros periódicos e presumivelmente menos passíveis de serem lidos. ” Quando me tornei ativo como pesquisador em física 40 anos atrás, costumava ler tudo o que saía “, disse. ” Hoje, isto é impossível. Ninguém pode ler tudo o que é publicado em seu campo. “

Armazenamento de Livros

Conquanto periódicos possam ser relegados ao microfilme, bibliotecas ainda precisam criar espaço para o fluxo contínuo de livros. E apesar de que a informação seja crescentemente disponível através de redes de computadores, bibliotecários dizem que o acesso a estas redes é caro e mantenedores de bibliotecas frequentemente preferem trabalhar com material impresso. A maioria das bibliotecas de pesquisa teve recentemente que construir instalações de armazenamento remotas onde materiais mais antigos e menos usados repousassem até serem convocados para uso. A Universidade da California em Berkeley possui mais de três milhões de volumes no acervo; a Universidade de Michigan, mais do 900.000 e a Columbia, 400.000. Em Harvard, bibliotecários tiveram recentemente que tomar a difícil decisão de começar a transferir livros de suas prateleiras na Widener Library para um local de armazenamento a 45 minutos do campus para dar espaço a novos livros.

Apesar de que materiais armazenados sejam geralmente recuperáveis em horas, pesquisadores reclamam que remover livros de estantes nas quais possam ser manuseados ou neles se possa tropeçar acidentalmente impede a pesquisa. A Association of Research Libraries, em Washington, previu que todas as suas 119 bibliotecas associadas terão locais de armazenamento remotos nos próximos cinco anos.

Surpreendentemente, a única biblioteca que ainda não sofreu com a elevação do custo de periódicos e o encurtamento do espaço em estantes é a Biblioteca do Congresso, que acumula mais de 88 milhões de itens em três prédios. A biblioteca recebe 31.000 novos livros a periódicos por dia e guarda 7.000 deles. Por meio do armazenamento de muitos textos em microfilmes e discos óticos, bibliotecários esperam alargar o espaço em estantes até o final do século, de acordo com a porta-voz Nancy Bush. ” Temos tudo o que o New York Times publicou numa única gaveta “, diz.

A Biblioteca do Congresso é também a única que não paga pela maior parte de suas publicações seriais. Muitos dos periódicos estrangeiros vem de intercâmbios internacionais, e editores domésticos precisam enviar cópias gratuitas à biblioteca ao reivindicar direitos autorais.

Um resultado do excesso de livros e periódicos é que bibliotecários se tornaram mais discriminatórios, microfilmando materiais essenciais e cancelando assinaturas dos que não são. ” Acho que, pela primeira vez, estamos nos tornando bons consumidores “, diz Michael A. Keller, bibliotecário universitário associado em Yale. ” Estamos tentando indicar aos criadores de toda essa informação que temos a responsabilidade de escolher. “

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

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E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

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Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

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O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

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Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

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Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

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E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

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E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.

Por que o ataque à exposição Queermuseu foi um tiro que saiu pela culatra

Belo afresco de Pompeia, garimpado pelo Milton Ribeiro

Nem as malas e caixas com dinheiro do Geddel tiveram tanta permanência. Pois, passados já quase três dias, só o que se fala na timeline é sobre o fechamento da exposição Queermuseu: Cartografia da Direrença na Arte Brasileira pelo Santander Cultural de Porto Alegre. Não que o ultraje seja exagerado: o fato gerador criou um precedente perigosíssimo e, portanto, nunca será demais alardeá-lo. Mas começo a sentir uma certa falta nostálgica da não predominância de um único tema sobre os demais. Mesmo com a alegre profusão de imagens de arte erótica socialmente curada que tomou conta de nossas telas nos últimos dias, em saudável e justa reação ao gesto desastrado do banco que primeiro promoveu e depois interrompeu a exposição.

Inclusive por que tanto já foi dito, não só aqui mas em outros estados e até países, relutei muito antes de vir aqui dar meus pitacos. Consoante a isto, não esperem encontrar, nos próximos parágrafos, mais indignação dirigida ao Santander e/ou ao MBL em razão do ocorrido. Até por que, coitados, o Santander é apenas um banco (com interesses de um banco, portanto) e o MBL é só… o MBL. Me interessam, ao contrário, muito mais duas coisas, a saber,

por que o MBL, podendo escolher como alvo inúmeras manifestações artísticas ou culturais “degeneradas”, optou justamente por uma exibição de arte em um museu; e

os efeitos indesejáveis imprevistos (ou mal calculados, se preferirem) de sua ação estapafúrdia (não sei por que, lembrei aqui daquela cena do esquadrão suicida num filme do Monty Python, que se auto imola antes de “salvar” Cristo da cruz…).

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Tentei em vão localizar, no mar de matérias jornalísticas produzidas sobre o imbroglio, os primeiros relatos que li dando conta de constrangimentos tête-à-tête a que militantes do MBL submeteram visitantes casuais da exposição. Isto por que tal possibilidade – a de provocar abertamente o público – está, a meu ver, no cerne da escolha, pelo movimento, do alvo para sua cruzada moralista.

Ora, obras de “arte degenerada” (insisto na expressão arcabouço, por condensar convenientemente um rol de significados a que temos que, aqui e ali, aludir) são hoje corriqueiras em todas as artes, seja no cinema, no teatro, na música ou nas artes visuais. Ao eleger a exposição Queermuseu, no Santander, como palco de sua ação desastrada (explico por que adiante), o MBL conferiu singularidade a um evento que, por si só, em nada difere, em seu potencial ultrajante, a, por exemplo, peças teatrais como Macaquinhos, muitas das letras de funk mais populares ou, ainda, dúzias de filmes com temática homossexual lançados anualmente.

Pois tenho para mim que a escolha da exposição no Santander como palco de sua ação teve como uma de suas principais razões, senão a única, o fato de que o espaço de exibição em uma galeria moderna confere tanto destaque ao espectador quanto às obras nele expostas. Tem a ver, em parte, com a iluminação e a claridade do ambiente. Reparem como o espaço do Santander Cultural é claro, sem a menor possibilidade de ocultação ou anonimato do espectador (já falei disto aqui). De tal modo que, em tais espaços, qualquer manifestação do público competirá, com vantagem (pois quadros e esculturas são silenciosos), com as obras expostas pela atenção de outros espectadores. É precisamente nisto que o MBL, ao direcionar seus militantes para o centro cultural, estava mais interessado. Ali, sua intervenção seria, necessariamente, mais notada do que, por exemplo, como contraponto a qualquer parada gay, na qual se diluiria entre outros grupos ruidosos e estaria, provavelmente, esquecida ao cabo de alguns dias.

Mais. Já lhes ocorreu por que o MBL jamais se preocupou em protestar em meio à audiência de tantos filmes potencialmente tão ou mais ultrajantes aos conservadores do que o acervo da exposição Queermuseu ? Ora, é elementar: simplesmente por que plateias são escuras e, portanto, qualquer vaia delas proveniente, anônima. Vai daí que tal tipo de manifestação não interessa ao movimento – para o qual é inútil proferir um discurso que não possa assinar.

Poderíamos prosseguir trilhando esta senda, analisando por que é tão importante ao MBL, mais ou menos como aos movimentos terroristas, assumir a autoria do que fazem, já que estão a serviço de interesses escusos cujos grandes donos não podem ser nominados (embora, paradoxalmente, todos os conheçam). Mas isto já escapa ao foco deste texto, que se pretende breve.

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Dos muitos efeitos inusitados do ataque sofrido pela mostra, instrução e entretenimento estão entre os principais. Foi muito instrutivo, por exemplo, conhecer a célebre mostra de arte degenerada curada por Goebbels e execrada pelo regime nazista, invocada, não sem razão, como perigoso precedente à censura aplicada, primeiro pelo MBL e depois pelo próprio Santander, à exposição Queermuseu.

Então, vieram, de uma infinidade de perfis, belas amostras de arte erótica, recente e antiga, de muitas culturas, socialmente curadas com a finalidade de sublinhar o desatino dos promotores arrependidos da mostra por meio de uma engenhosa redução ao absurdo. Esta descentralização da crítica, face a uma censura que só existe por que concentrada num agente único (a saber, o MBL que, não obstante, reivindica a si agir no interesse de muitos que, todavia, não mostram a cara), é um tópico fascinante – a ser abordado, no entanto, num próximo texto, sobre o mito do alegado esfacelamento da esquerda ante a unidade aparente da direita.

De todos os efeitos imponderáveis da ação desastrada, há um, no entanto, que assume mais importância do que todos os demais. Um tsunami que tomou de surpresa a cúpula do MBL, que até agora não deve ter entendido o que houve, e que jamais teria orquestrado a ação se pudesse, de algum modo, prever o que ocorreria. Falo, é claro, da imensa promoção que o boicote e posterior fechamento da mostra representaram para o acervo exposto.  Ontem, comentei com um amigo que, quando Queermuseu voltar, se formarão longas filas às portas da exibição. Meu amigo acha, no entanto, que não vai voltar. Pouco importa. Assim como pouco importa o recuo do Santander. O que importa é que muito mais pessoas estão vendo, na mídia e em redes sociais, as obras que foram retiradas de exposição do que as pessoas que lá estiveram. Mais: estão não apenas vendo como também discutindo e se posicionando em relação ao que é visto. Ora, isto é muito maior do que o mais ambicioso sonho de qualquer curador.

Parabéns, então, MBL, por mais este fragoroso tiro que saiu pela culatra ! Vocês estão prestando um enorme serviço àqueles que tanto odeiam. Ou esquerda devassa, se assim quiserem chamar.

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Cumprindo a promessa de um texto leve e divertido, deixo, para vosso deleite, um vídeo que chegou até mim graças a um daqueles perfis que teimo em não excluir em nome do benefício ao contraditório e do rompimento das bolhas discursivas. A moça, autora de uma biografia de Sérgio Moro, é uma comédia ambulante. Reparem em sua linguagem corporal. Como ela ajeita repetidamente o decote como a temer que ele mostre mais do que deve.

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Atualização 1, em 12/9: acabo de saber que o facebook bloqueou novamente o Milton, e com ele provavelmente mais uns quantos, devido às generosas e instrutivas postagens de arte erótica. O que estava bom durou pouco.

Atualização 2, em 13/9: hoje, sabemos que ao menos Belo Horizonte já se interessou em reeditar a exposição.

Por que não ouço rádio (ii)

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Nos últimos dias, esta lista pipocou em meu timeline, guarnecida por cabeçalhos que variavam do conformismo à indignação. De pronto chamou minha atenção que ela era compartilhada praticamente como um meme por pessoas que reputo como musicalmente esclarecidas. Bem esclarecidas. Especialistas, até, na maioria dos casos. Talvez por isto, não me dei ao trabalho de verificar a fonte da informação, nem de conhecer o universo amostral. Pois, dependendo da região de abrangência geográfica, da estação pesquisada ou mesmo do fato dela ser de AM ou FM, é claro que a lista seria sempre bem diferente.

Supondo, então, pela credibilidade dos compartilhadores e pelo senso comum de quem já zapeou por um dial de rádio, que os dados da lista estejam corretos, chegamos inevitavelmente ao problema de explicar por que músicas tão ruins sejam também, senão as mais escutadas, pelo menos as mais tocadas por estações de rádio. E, indiretamente, à imponderabilidade semântica da palavra popular.

Pois o “gosto popular”, no sentido daquilo que as pessoas escolhem ouvir, é largamente condicionado por aquilo que as mesmas conhecem. Ao mesmo tempo, hoje as pessoas conhecem muito mais a música que toca em meios de comunicação de massa (broadcasting) e, em contextos mais conectados, nas redes sociais; do que aquela que (quando há) é produzida ou praticada em cada lugar. Então, o rádio ainda é, principalmente entre os segmentos menos conectados, o maior vetor de conhecimento de praticamente tudo o que alguém pode querer ouvir. Pois, como disse Adorno (em defesa da música de Schoenberg), “só se gosta daquilo que se conhece.”

(lembro sempre de Bruno Kiefer dizendo, numa aula de música brasileira, se se enganavam os que tomavam por música popular aquilo que ouviam no rádio)

Percebem o ciclo vicioso ? Enquanto produtores e gravadoras dominarem, mais comumente pelo expediente do jabá, a programação do que é tocado em estações de rádio comerciais, a audiência não será mais do que massa de manobra, doutrinada para o consumo de bens que anunciantes queiram vender, aí incluídos e principalmente os produtos sonoros.

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Do pouquíssimo que sei de economia, consta como um dos princípios pétreos do estado liberal o de permitir (leia-se ao capital empreendedor) a exploração dos segmentos mais rentáveis da economia e assumir aqueles que, conquanto deficitários, são essenciais à preservação do tecido social. Como saúde, educação e segurança. Entusiastas de um estado mínimo já falam abertamente de um certo caráter supérfluo da cultura e até mesmo da extinção de disciplinas e redução de investimentos em educação pública. E a direita, hora empoderada, vê na cultura e mesmo em disciplinas como história, filosofia, sociologia, artes e afins pólos de geração e irradiação de pensamento de esquerda. Mas isto já é outro assunto.

O que nos interessa, neste momento, é que muitos grupos demográficos, ainda sem acesso à internet, ainda estão exclusivamente conectados (e de modo apenas unidirecional, ao contrário do que se dá na web !) ao mundo por meios de broadcasting. Então, mesmo que as frequências de rádio e os canais de televisão aberta sempre tenham sido sustentados por receitas próprias, oriundas da cessão de tempo de broadcasting a anunciantes, isto não significa que a exploração do que é veiculado (em ondas que, afinal, existem de fato num espaço público !…) no rádio e na TV deva ser concedida “naturalmente” (i.e., tendo por base exclusivamente históricos exitosos de investimentos privados no setor) à iniciativa privada. Qual o ganho público ? Quem lucra mais: produtores ou espectadores ? Se forem estes os critérios, então, o atual sistema de concessão de frequências de rádio e TV claramente não satisfazem.

Em emissoras públicas, ao contrário, a atribuição de relevância a cada conteúdo jornalístico ou artístico concorrente à grade de programação é orientada sempre pelo interesse público – que não é, como vimos acima, o gosto do público (pois o que cada um gosta de ver não é, na maioria das vezes, o que cada um gostaria de ver, fosse maior o leque de opções). Nelas também se dá o predomínio de músicas e outros conteúdos produzidos localmente e/ou por pequenos produtores e tendo em foco personalidades locais ao invés de celebridades.

Então, conquanto deva haver vários outros motivos, só as razões elencadas acima já são, por si só, suficientes para que se queira abolir, por norma constitucional, a concessão de licença para operação de prefixos de rádio e TV a entidades cuja existência não seja dedicada, por força estatutária, ao interesse público, garantido por meio de dispositivos de controle social. Como universidades, fundações culturais, museus, teatros e afins. Com programações orientadas por diversidade cultural e mérito artístico, por exemplo (algo que, por definição, não há no rádio nem tampouco na TV privados). Notem, também, que deixei igrejas fora desta lista (pois religião e interesse público não tem nada a ver um com o outro). Imaginem passear por um dial povoado por estações geridas por instituições assim.

Se esta miragem não lhes parecer por demais utópica, defendam a imediata revisão dos critérios para concessão de frequências de rádio e canais de televisão, em nome da inclusão de dispositivos que garantam o controle social sobre seu interesse público. Obrigado.

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A insólita história de Florence Foster Jenkins, ou A comédia e a tragédia da falta de noção

florence 1Todo melômano conhece a voz e a história de Florence Foster Jenkins (1868-1944), imortalizada como a pior cantora lírica a ganhar alguma notoriedade, na Nova Iorque da década de 1940. Filha de um rico banqueiro, foi desde cedo desencorajada nos estudos de canto pelo próprio pai mas, uma vez herdeira de sua fortuna, desfrutou de amplos recursos – e liberdade ! – para tornar pública sua absoluta falta de qualquer talento – se tornando, assim, a maior piada da história do som gravado. Pois gravou, sim, ao menos dois discos. Oferecia um recital anual, cujos ingressos vendia pessoalmente a fim de evitar os jornalistas, e cujos lucros revertiam sempre para instituições de caridade. Consta que seu seu único recital no Carnegie Hall foi nada menos do que memorável, com incontáveis celebridades na plateia, inclusive uma atriz que precisou ser removida às pressas por não conseguir conter o riso.

Sua interessantíssima biografia serviu de trama ao musical Souvenir na Broadway em 2005, o espetáculo Gloriosa com Marília Pera no Brasil em 2009 e, mais recentemente, dois filmes: Margueritte, produção franco-belga-tcheca de 2015, e Florence Foster Jenkins (Inglaterra, 2016 – no Brasil Florence: quem é esta mulher).

Embora o pianista Cosmé McMoon, que aparece no filme inglês, tenha realmente existido e acompanhado Florence desde que a conheceu até sua última apresentação, não há qualquer evidência de que a cantora tenha mantido ao longo de toda sua carreira sua suposta ingenuidade por força da proteção de um marido poderoso – que, curiosamente, em ambos os filmes mantém amantes do círculo de relações da esposa.

Intrigou-me em Margueritte por que os membros da claque eram estrangeiros. Primeiro, achei que, por serem desconhecidos dos nativos, melhor poderiam denotar verdade em comportamentos falsos (como o aplauso imerecido). Só depois vim a entender que, justamente por serem reconhecidos como forasteiros, melhor poderiam induzir nativos a duvidar de seus próprios julgamentos diante dos de estranhos supostamente mais informados.

Em ambos os filmes (bem como no verbete da wikipedia dedicado à cantora) se aventa a hipótese, de cores inegavelmente dramáticas, de que a mesma teria morrido em decorrência de uma depressão resultante de ter finalmente se dado conta da razão de sua imensa popularidade.

Vi primeiro Margueritte, reputado por muitos como bem superior a Florence. Certamente por já conhecer a bizarra voz e imensa cara de pau (ou, para dar o benefício da dúvida, total falta de noção) de Florence, fui ao cinema em busca de risadas. Vi, no entanto, uma tragédia, magistralmente anunciada. A cena final (salte um par de linhas se não quiser ler o spoiler) – do marido correndo para tentar impedir que Margueritte ouvisse, por uma primeira e derradeira vez, uma gravação de sua própria voz – é, desde já, antológica.

Tendo, até então, visto apenas o divertido trailler de Florence Foster Jenkins, me resignei com a tristeza da tragédia de Margueritte achando que as risadas viriam inevitavelmente com o filme inglês. Nova decepção. Nele, também a trágica história de alguém protegido da consciência da própria miséria que sucumbe ao impacto da perda da inocência.

florence 2* * *

Ao contrário dos dois filmes, que abraçam a ideia de uma suposta ingenuidade de Florence em relação ao próprio talento, a wikipedia duvida desta hipótese, a retratando como perfeitamente ciente de sua aguda limitação e da própria comicidade como razão única de seu sucesso. Segundo a plataforma colaborativa, FFJ tinha plena consciência de sua voz miserável, bem como do efeito hilariante produzido em ouvintes experimentados quando de sua audição, não sendo, portanto, de modo algum aceitável a hipótese de que a cantora de algum modo ignorasse ou não percebesse tais peculiaridades. Corroboram esta hipótese, supostamente, não só o fato de Florence ter ativamente mantido, por meio do estrito controle sobre a venda de ingressos, os críticos afastados de seus recitais – mas de também ter, ao menos ocasionalmente, muito provavelmente ouvido seus próprios discos.

Até o momento da postagem deste texto, não tenho nenhuma opinião formada acerca de se Florence Foster Jenkins, como sugerem os dois filmes, não tinha a menor noção de sua incompetência tragicamente cômica ou se (como parece querer fazer crer a wikipedia), ao contrário, tinha plena consciência das limitações da própria voz, deliberadamente tirando proveito de sua comicidade. Por isto, pergunto: Florence foi ou não um caso exacerbado de falta de noção ? Ouça e decida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais sobre reality shows

big brother 3Reality shows são a derradeira tentativa da TV  ser, de algum modo, participativa – o que é absolutamente impossível, já que todo broadcasting é, por definição, centralizador. Isto por que a TV, por mais que queiram seus proprietários, jamais será colaborativa e/ou participativa de modo a incluir cada um de seus espectadores em seus desígnios (esta será, aliás, a causa de sua extinção nos próximos anos).

Reality shows falham sistematicamente em seu propósito não declarado de suprir continuamente novas celebridades. Vencedores do Big Brother não costumam lograr a grandeza sustentável de astros ungidos por outros modos de curadoria. Por produtores, suponho, na maioria dos casos. Pois foi, por exemplo, tão somente pela vontade de George Martin que os Beatles – e não outras tantas bandas juvenis provavelmente existentes na cena suburbana londrina de então – foram escolhidos para ter acesso às então caríssimas prensas fonográficas e programas de TV. Mas isto já é outra conversa.

Como dizia, reality shows apareceram com a desastrosa missão de prover à voraz cena do broadcasting um fluxo contínuo de novas celebridades. Que não se sustentam, todavia, após o fim do programa. Quando, então, vidas tidas como interessantes (ao menos por magos da TV) perdem todo e qualquer interesse para a maior parte da audiência tão logo deixam o ambiente privilegiado do espaço cenográfico.

Então vieram os especializados. Primeiro, os shows de calouros, como The Voice Brasil ou Superstar, que ainda não lograram, até onde eu saiba, revelar talentos sustentáveis como, por exemplo, no tempo dos festivais. Depois, alguém (preciso rastrear a origem do fenômeno !) se deu conta de que o que funcionava bem com microfones deveria também funcionar com panelas. Os concursos televisivos de cozinheiros foram uma decorrência natural. Assim como os de dança.

Já podemos estabelecer uma tipologia dos reality shows em razão do balanço que há, em cada um deles, entre a opinião popular e a de júris especializados. Nesta categorização, teríamos, de um lado, o grau máximo de concessão de poder à audiência (desconsiderem, por favor, o tremendo poder nas mãos dos produtores que escolhem os participantes do programa) em realities de confinamento como o Big Brother. Cujos produtores, inferimos, ousam confiar totalmente no discernimento de espectadores em se tratando de apreciação de vidas ordinárias (alheias, deve ser dito).

Em realities um pouco mais especializados, como os de música ou dança, produtores já não arriscam depender exclusivamente da avaliação popular, recorrendo, nestes casos, a um júri cuidadosamente designado, incluindo especialistas e profissionais reputados. São os casos dos júris em programas como The Voice Brasil, Superstar ou A Dança dos Famosos, cuja apreciação é balanceada com a avaliação popular.

Já os reality shows culinários são, presumivelmente, tidos por seus produtores como os mais especializados, posto que repousam exclusivamente sobre o julgamento de uns poucos especialistas, sem qualquer contraponto com um veredito popular. Acho isto muito estranho. Talvez, sei lá, por achar mais fácil cozinhar do que cantar. De sorte que, se a máxima participativa qualquer um pode [verbo no infinitivo], celebrizada em Ratatouille como qualquer um pode cozinhar  for verdadeira no que diz respeito ao canto ou qualquer outro fazer musical, tanto mais o será no que toca à arte das panelas. Talvez por isto não entenda todo esse hype em torno de bons cozinheiros. Ou chamem, se quiserem, de glamourização da culinária.

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Atinente à minha má vontade em relação a reality shows de qualquer espécie (ok, aquele sobre a família que fazia motocicletas artesanais até que era bem legal – mas não havia nenhuma competição envolvida – os caras, só por fazer o que faziam, eram vencedores absolutos !), perguntei no facebook sobre a sina de vencedores históricos do Big Brother esperando respostas vazias. Quebrei a cara. Soube que, entre eles, há várias apresentadoras de TV e até um deputado federal. Chama a atenção, ainda assim, que a grande maioria perseguiu, quase sempre com êxito, o único propósito de enriquecer investindo o prêmio ganho no programa. É, pois, perfeitamente razoável considerar o gênero como um retumbante fracasso em seu propósito velado de produzir novas celebridades.

Se a mesma argumentação também vale para reality shows musicais e culinários, talvez ainda seja muito cedo para se dizer. Antes, será preciso saber quantos vencedores do The Voice ou Superstar efetivamente embarcaram em carreiras musicais, ou que vencedores do Masterchef lograram alguma permanência em programas culinários ou seus próprios restaurantes. Até lá, muito lixo ainda está por vir.

(repararam que os quatro mais populares reality shows possuem nomes em inglês ? Sei que, para assistir a alguns dele, pagamos royalties no exterior. Será o caso de todos eles ?)

Interpretação de Texto; ou À deriva por um mar de links; ou, ainda, Sobre o que significa ser de esquerda ou direita hoje (ii)

” – Interpretação de texto até em casa, agora ! “

foi o que ouvi, com ironia, de um de meus filhos ao lhes perguntar, dia desses, se tinham lido uma matéria do Huffington Post que lhes recomendara, na semana anterior, sobre limitações sugeridas para a conectividade de jovens em diferentes faixas etárias. Foi como descobri que eles (e provavelmente a maioria de seus pares !) desdenham a modalidade pedagógica, ao menos como a conhecem. Me pergunto por que. Tratarei de descobrir quais textos são lidos em suas escolas e quem os escolhe. Quaisquer que sejam as respostas, tenho, no entanto, desde já, que pais de alunos também devam, além de professores, exercer algum tipo de curadoria sobre tudo o que nelas se lê, vê e ouve. Suponho que, na maioria das vezes, isto não aconteça

Mas por que não, afinal, interpretação de texto também em casa não é uma má ideia ?

(devo lembrar de agradecer a meu filho por ela (ainda que proposta ao contrário, i.e., como um parecer desfavorável))

Pais se responsabilizando pela escolha do que é lido, visto ou escutado por seus filhos não é nenhuma novidade. A história de David Gilmour, escritor canadense que desobrigou o filho de frequentar a escola mediante o compromisso de assistir a um filme por dia, escolhido pelo pai, é contada no livro O Clube do Filme (The Film Club, 2007).

JonasCom alguma licença poética, a ideia é uma mesma que encontramos no filme Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (1976).

(como nenhum nativo digital era vivo quando o filme foi lançado, me permito, nas próximas linhas, alguma digressão sobre o mesmo)

Esta obra-prima de Alain Tanner figura com certeza entre aqueles 100 ou 200 filmes memoráveis que cada ser maduro já viu na vida.

(curioso: 150 é também uma espécie de valor médio aceito por pesquisadores para o número de “amigos” que cada pessoa consegue, de fato, conhecer !…)

Nele, o protagonista, a espera de seu primogênito (me desculpem a cacofonia !), divaga, ao pedalar, numa paisagem bucólica suíça, todas as manhãs para o trabalho, sobre [lições/palestras/preleções/chautauquas] que pretendia dar a seu filho, quando crescesse, sobre os mais diversos assuntos, sobretudo políticos. Simplesmente inesquecível ! Me divirto até hoje ao lembrar dos irmãos Zero.

Talvez inspirado por tais exemplos, passei a colecionar, de tudo o que me vem, links para textos, vídeos, músicas e o escambau que gostaria que meus filhos viessem a conhecer nalgum futuro, próximo ou distante. Como numa cápsula de tempo. Na qual depositei o supracitado artigo do Huff Post sobre limites recomendados para a conectividade infanto-juvenil.

* * *

Segunda-feira. Início da semana digital. Pois me disse um amigo, especialista em informática, que, em termos de índices de visitação, a situação de um portal durante os finais de semana é de maior letargia do que nos outros dias. Eis que, recomendado num comentário de André Paz sob meu compartilhamento de um post compartilhado anteriormente por Marcos Abreu (ah, benditas PLNs !), me aparece na timeline um trecho de uma entrevista concedida por Frank Zappa sobre as principais diferenças entre a indústria fonográfica de hoje e a dos anos 60. A parte mais hilária é definitivamente quando, logo no início, afirma que velhos executivos (da turma do George Martin, suponho), que publicavam tudo o que lhes fosse mais estranho, eram bem menos conservadores do que os de agora – a saber, jovens hyppies, que anteriormente só traziam o cafezinho e distribuíam a correspondência mas que, por terem trazido o cafezinho na hora umas quatro vezes seguidas, são promovidos a executivos yuppies que passam a decidir sistematicamente não publicar nada que lhes seja estranho com base tão somente na estapafúrdia justificativa de que gente como eles próprios (!) não ouve coisas assim. Ou seja, a propagação da imbecilidade de cima para baixo e de dentro para fora. Confiram.

Com o passar do tempo, ficou cada vez mais claro que a tônica do dia seria o declínio da indústria fonográfica. Já que, horas depois, tomei contato, por meio de Artur Elias, com uma das melhores diatribes que já vi contra a música pop. Em forma de vídeo (!). Do tipo que sintetiza, de modo claro e conciso, tudo o que sempre pensei sobre o assunto. A lamentar somente a ausência de referências ou links para o mar de citações apresentadas. Compartilhei – não sem, antes, muito matutar acerca de quais frases de apresentação seriam as mais impactantes

Talvez pela primeira vez (maldita cacofonia (outra vez) !), detive minha atenção ao discurso de um youtuber. Detalhe curioso. Suprimindo-se o áudio e as legendas, o que se vê é um inflamado discurso de ódio (à música pop, no caso), digno do melhor doutrinador nazista. Nos vídeos relacionados, logo encontramos outra peça do autor – desta vez uma diatribe contra as artes visuais modernas. Os velhos argumentos sobre Pollock, Rothko, children art, mictórios and the like.

Num olhar mais atento, notamos que a peça pertence ao canal de um coletivo denominado Tradutores de Direita. De direita ? WTF ?

Campos ideológicos, tais como existem hoje, podem ser bem confusos. Se bem entendi, o sujeito explica em detalhes os mais sórdidos mecanismos da indústria cultural – até pouco tempo uma das meninas dos olhos do capitalismo corporativo transnacional. Então, como enquadrar o que é dito por ele em qualquer ideário que possa ser considerado, de algum modo vago ou longínquo, de direita ?