Por que lixeiros devem ganhar mais do que banqueiros

Como mais e mais pessoas estão ganhando mais dinheiro sem contribuir com nada de valor

Por Rutger Bregman

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Este texto é a tradução de um original publicado por Bregman em Evonomics. Dele, já havia resenhado Utopia para Realistas.

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Um denso nevoeiro envolve a Prefeitura de Nova Iorque ao raiar do dia 2 de fevereiro de 1968. Sete mil garis da cidade se aglomeram em clima de rebelião. John DeLury, porta-voz do sindicato, se dirige à multidão sobre a capota de um caminhão. Quando anuncia que o prefeito rejeitou mais concessões, a raiva da turba ameaça transbordar. Quando os primeiros ovos podres cruzam os ares, DeLury percebe que o tempo de negociação esgotara. É hora de adotar a via ilegal, o caminho proibido aos lixeiros pela simples razão de que o trabalho que fazem é importante demais.

É hora de fazer greve.

No dia seguinte, o lixo não é recolhido na Big Apple. Quase todos os lixeiros da cidade ficaram em casa. “Nunca tivemos prestígio, e isto nunca me preocupou antes“, disse um gari a um jornal local. “Mas agora é diferente: pessoas nos tratam como lixo“.

Quando o prefeito sai para avaliar a situação dois dias depois, o lixo nas ruas da cidade já chega à altura dos joelhos, com mais 10.000 toneladas acrescentadas a cada dia. Um fedor começa a se infiltrar nas ruas e ratos foram vistos até nos bairros mais chiques. Em apenas poucos dias, uma das cidades mais icônicas do mundo começa a parecer uma favela. E pela primeira vez desde a epidemia de pólio de 1931 autoridades declaram estado de emergência.

O prefeito ainda não recua. Tem a imprensa local a seu lado, a qual retrata os grevistas como narcisistas gananciosos. Leva uma semana para que se comece a perceber que os lixeiros vencerão. “Nova Iorque é impotente diante deles“, admitem os editores do New York Times. “Esta maior de todas as cidades precisa se render ou verá a si mesma afundar no lixo“. Nove dias depois de entrar em greve, quando o lixo acumulado nas ruas chegou a 100.000 toneladas, os garis tiveram sucesso. “A moral da história“, disse a Time Magazine, “é que fazer greve compensa“.

Ricos sem mover um dedo

Talvez, mas não em qualquer profissão.

Imagine, por exemplo, se todos os 100.000 lobistas de Washington entrassem em greve amanhã. Ou se todo contador de Manhattan decidisse ficar em casa. Parece improvável que o prefeito anunciasse um estado de emergência. Na verdade, é improvável que qualquer desses cenários causasse muito dano. Greve, digamos, de especialistas em mídias sociais, operadores de telemarketing ou corretores de valores talvez não gerassem notícia alguma.

Quando se trata de lixeiros, todavia, é diferente. Seja lá como você encarar, eles executam um trabalho do qual não se pode prescindir. E a dura verdade é que um número crescente de pessoas realizam trabalhos sem os quais estaríamos muito bem. Se parassem repentinamente de trabalhar, o mundo não se tornaria mais pobre, feio ou de modo algum pior. Considere corretores de Wall Street que enchem seus bolsos às custas de mais um fundo de aposentadoria. Ou advogados astutos que podem postergar um processo corporativo até o fim dos dias. Ou o publicitário brilhante que cria o slogan do ano e tira a concorrência do negócio.

Ao invés de criar riqueza, tais trabalhos principalmente a faz circular.

É óbvio que não há uma linha clara entre quem cria riqueza e quem a faz circular. Muitos trabalhos fazem as duas coisas. É inegável que o setor financeiro pode contribuir para nossa riqueza e, durante o processo, azeitar as engrenagens de outros setores. Bancos podem distribuir riscos e financiar pessoas com ideias brilhantes. Todavia, hoje bancos cresceram tanto que grande parte do que fazem é simplesmente movimentar a riqueza ou mesmo destruí-la. Ao invés de fazerem crescer o bolo, a expansão explosiva do setor bancário aumentou a fatia que servem a si mesmos.

Ou tomem a profissão legal. É claro que o estado de direito é necessário para que um país prospere. Mas agora que os EUA possuem 17 vezes o número de advogados per capita do Japão, isto torna o estado de direito norte-americano 17 vezes mais eficaz ? Ou os norte-americanos 17 vezes mais protegidos ? Longe disto. Alguns escritórios de direito até costumam comprar patentes de produtos que não pretenden produzir tão somente para poder processar terceiros por violação de propriedade industrial.

O bizarro é que são precisamente os trabalhos que fazem o dinheiro circular – criando quase nada de valor tangível – os que pagam os melhores salários. É um estado de coisas paradoxal e fascinante. Como é possível que todos os agentes de prosperidade – como professores, policiais e enfermeiros – ganhem tão pouco, enquanto especuladores sem importância, supérfluos ou mesmo destrutivos se saiam tão bem ?

Quando o ócio ainda era um direito de nascença

Talvez a história possa lançar alguma luz sobre este dilema. Até poucos séculos atrás, quase todos trabalhavam na agricultura. Isto deixava uma classe afluente livre para vagar, vivendo de seu patrimônio privado, e travar guerras – passatempos que não criam riqueza mas, na melhor das hipóteses, a faz circular ou, na pior, a destrói. Todo nobre de sangue azul se orgulhava de seu estilo de vida, que dava a uns poucos felizardos o direito hereditário de encher seus bolsos às expensas de outros. Trabalho ? Isto é para o campesinato.

Nesses dias, antes da revolução industrial, uma greve de fazendeiros paralisaria toda a economia. Hoje, gráficos e diagramas sugerem que tudo mudou. Como parte da economia, a agricultura parece marginal. Na verdade, o setor financeiro dos EUA é 7 vezes maior do que o agrícola.

Então, isto significa que se fazendeiros fizessem greve, isto nos deixaria em menos apuros do que numa greve de banqueiros ? (Não, mas o contrário). E, além disto, a produção agrícola não falou mais alto em décadas recentes ? (Certamente.) Consequentemente, não estão agricultores ganhando mais do que nunca ? (Infelizmente, não).

Veja que, numa economia de mercado, as coisas funcionam exatamente ao contrário. Quanto maior a oferta, menor o preço. E há o tempero. Nas últimas décadas, a disponibilidade de alimentos disparou. Em 2010, vacas norte-americanas produziram o dobro do leite que produziram en 1970. No mesmo período, a produtividade do trigo também dobrou, e a de tomates triplicou. Quanto mais a agricultura melhore, menos estamos dispostos a pagar por ela. Hoje, a comida em nossos pratos se tornou barata como sujeira.

É disto que se trata o progresso econômico. À medida que nossas fazendas e fábricas se tornam mais eficientes, representam uma parcela cada vez menor de nossa economia. E quanto mais produtivas a agricultura e a indústria se tornam, menos pessoas empregam. Ao mesmo tempo, a mudança gerou mais trabalho no setor de serviços. Ainda assim, antes de conseguirmos um emprego neste novo mundo de consultores, chefs, contadores, programadores, conselheiros, corretores, doutores e advogados, precisamos primeiro obter as credenciais apropriadas.

Tal desenvolvimento gerou uma riqueza imensa.

Ironicamente, também criou um sistema no qual um número crescente de pessoas pode ganhar dinheiro sem contribuir com nada de valor tangível para a sociedade. Chamem a isto o paradoxo do progresso: aqui, na Terra da Abundância, quanto mais ricos e espertos ficamos, mais descartáveis nos tornamos.

Quando banqueiros fizeram greve

“FECHAMENTO DOS BANCOS”

Em 4 de maio de 1970, esta notícia circulou no Irish Independent. Depois de longas mas infrutíferas negociações sobre salários que não acompanharam a inflação, funcionários de bancos irlandeses decidiram entrar em greve.

Da noite para o dia, 85% das reservas do país ficaram indisponíveis. Com todos os indicativos sugerindo que a greve deveria durar algum tempo, negócios em toda a Irlanda começaram a racionar dinheiro. Duas semanas depois da greve, The Irish Times disse que a metade dos 7.000 banqueiros do país já tinhamn comprado passagens aéreas para Londres em busca de outro trabalho.

No início, comentaristas previram que a vida na Irlanda paralisaria. Primeiro, se esgotariam os estoques de dinheiro; depois, o comércio estagnaria; e, finalmente, o desemprego explodiria. “Imagine todas as veias em seu corpo repentinamente encolhendo e explodindo“, um economista descreveu o temor reinante, “e você poderá começar a ver como economistas concebem o fechamento de bancos“. Próximo ao verão de 1970, a Irlanda começou a se preparar para o pior.

Então algo inusitado aconteceu. Ou, mais precisamente, nada aconteceu.

Em julho, The Times da Inglaterra reportou que “números e tendências disponíveis indicam que a disputa ainda não teve um efeito adverso na economia“. Alguns meses depois, o Banco Central da Irlanda fez o balanço final. “A economia irlandesa continuou a funcionar por um período razoavelmente longo com seus principais bancos fechados“, concluiu. Não apenas isto, mas a economia continuou a crescer.

Ao final, a greve durou seis meses – 20 vezes mais tempo do que a dos lixeiros da cidade de Nova Iorque. Mesmo que um estado de emergência tenha sido declarado depois de apenas 6 dias, a Irlanda continuava forte depois de 6 meses sem banqueiros. “A principal razão pela qual eu não posso lembrar muito sobre a greve dos bancos“, refletiu um jornalista irlandês em 2013, “é por que ela não teve nenhum impacto debilitante na vida cotidiana“.

Mas sem banqueiros, o que usaram como dinheiro ?

Algo bem simples: os irlandeses começaram criando sua própria moeda. Depois do fechamento dos bancos, continuaram a emitir cheques uns aos outros como sempre, a única diferença sendo que não poderiam mais ler liquidados nos bancos. Ao invés disto, outro operador de ativos líquidos – o pub irlandês – saltou à frente para preencher o vazio. Num tempo em que os irlandeses ainda apareciam para um trago em seus pubs locais ao menos três vezes por semana, todos – e especialmente o barman – sabiam e quem podiam confiar. “Os gerentes desses estabelecimentos de varejo e lugares públicos detinham um alto grau de informação sobre seus clientes“, explica o economista Antoin Murphy. “Alguém não serve bebidas a outrem por anos sem descobrir algo sobre seus recursos líquidos“.

Em pouco tempo, as pessoas forjaram um sistema monetário radicalmente descentralizado com os 11.000 pubs do país como seus nodos principais e sua credibilidade como mecanismo subjacente. Quando os bancos finalmente reabriram em novembro, os irlandeses já tinham impresso incríveis 5 bilhões de libras em moeda feita em casa. Alguns cheques foram emitidos por empresas; outros no verso de caixas de cigarros, ou mesmo em papel higiênico. Segundo historiadores, a razão por que os irlandeses foram capazes de se sair tão bem sem bancos tem tudo a ver com coesão social.

Então não houve problemas ?

Não, é claro que houve problemas. Pense no cara que comprou um cavalo de corridas a crédito e então pagou o débito com dinheiro que ganhou quando seu cavalo chegou em primeiro – basicamente apostando com o dinheiro de outrem. Isto é muito semelhante ao que bancos fazem agora, só que, então, era em menor escala. E, durante a greve, empresas irlandesas passaram mais trabalho para adquirir capital para grandes investimentos. Na verdade, o simples fato de que pessoas começaram a tomar para elas próprias as atividades bancárias torna claro que não podiam viver sem algum tipo de setor financeiro.

Mas que poderiam perfeitamente viver sem toda a fumaça e espelhos, toda a especulação arriscada, os arranha-céus envidraçados e os crescentes bônus pagos por contribuintes. “Talvez, apenas talvez“, o autor e economista Umair Haque conjectura, “bancos precisem de pessoas muito mais do que pessoas precisam de bancos“.

Outra forma de taxação

Que contraste com aquela outra greve dois anos antes e a 3.000 milhas de distância. Enquanto Nova Iorque se desesperou ao ver a cidade se deteriorar num lixão, os irlandeses se tornaram seus próprios banqueiros. Enquanto Nova Iorque enxergava o abismo depois de apenas 6 dias, na Irlanda as coisas continuavam bem depois de 6 meses.

Deixemos, no entanto, algo bem claro. Fazer dinheiro sem criar algo de valor não é fácil. Requer talento, ambição e inteligência. E mentes espertas transbordam no mundo dos bancos. “O gênio do grande investidor especulativo é ver o que outros não enxergam, ou ver antes dos outros“, explica o economista Roger Bootle. “Isto é uma competência. Só que tanto quanto a habilidade para ficar na ponta de um dos pés, se equilibrando sobre uma das pernas, com uma xícara de chá sobre a cabeça e sem derramar“.

Noutras palavras, o fato de algo ser difícil não o torna automaticamente valioso.

Em décadas recentes estas mentes espertas criaram vários tipos de produtos financeiros complexos que não criam riqueza, mas a destroem. Esses produtos são, essencialmente, como um imposto sobre o restante da população. Quem você acha que está pagando por todos esses ternos sob medida, mansões e iates de luxo ? Se banqueiros não estão gerando eles próprios o valor agregado, então ele tem que vir de outro lugar (ou de outra pessoa). O governo não é o único a redistribuir riqueza. O setor financeiro também o faz, mas sem um mandato democrático.

O resultado final é que a riqueza pode se concentrar nalgum lugar, mas isto não significa que é onde ela é criada. Isto é verdade tanto para o senhor feudal como para o CEO da Goldman Sachs. A única diferença é que banqueiros tem às vezes um lapso momentâneo e imaginam a si próprios como os grandes criadores de toda a riqueza. O senhor que se orgulhava de viver do trabalho de seus campesinos não sofria desta ilusão.

Trabalhos de Merda

E pensar que as coisas poderiam ser tão diferentes.

Quase um século atrás, o economista John Maynard Keynes celebrizou-se por prever que, pelo ano 2030, trabalharíamos 15 horas por semana. Pensava que nossa riqueza e prosperidade cresceria dramaticamente e que converteríamos muito dessa riqueza em lazer. Certamente Keynes não foi o único a acreditar que seria apenas uma questão de tempo até resolvermos o “problema econômico”. Nos anos 70, economistas e sociólogos profetizaram que o “fim do trabalho” estava próximo.

Na verdade, nada disto aconteceu. Somos muito mais prósperos, mas não estamos exatamente nadando num mar de tempo livre. Antes o contrário. Estamos todos trabalhando mais do que nunca. Muitos explicam tais circunstâncias assumindo que usamos dinheiro que não temos para comprar coisas de que não precisamos para impressionar pessoas de quem não gostamos. Noutras palavras: sacrificamos nosso tempo livre no altar do consumismo.

Mas uma peça não se encaixa no quebra-cabeça. A maioria das pessoas não participa da produção de iPhones em sua panóplia de cores, xampús exóticos com extratos botânicos ou mocha cookie crumble frappuccinos. Nossa adição ao consumismo é alavancada principalmente por robôs e escravos assalariados no terceiro mundo. E apesar da capacidade de produção agrícola e fabril ter crescido exponencialmente nas últimas décadas, o emprego nestas indústrias caiu. É então realmente verdade que nosso estilo de vida baseado no trabalho excessivo se resume em consumismo fora de controle ?

David Graeber, antropólogo na London School of Economics, acredita que há algo mais acontecendo. Poucos anos atrás ele escreveu um ensaio fascinante que culpava não as coisas que compramos mas o trabalho que fazemos. Intitulado, apropriadamente, “On the phenomenon of bulshit jobs“.

Na análise de Graeber, inúmeras pessoas passam suas vidas de trabalho inteiras desempenhando funções nas quais não veem propósito algum, trabalhos como operadores de telemarketing, gerentes de recursos humanos, estrategistas de mídias sociais, conselheiros de relações públicas, e toda uma classe de posições administrativas em hospitais, universidades e repartições governamentais. “Bullshit jobs“, Graeber as chama. São os trabalhos tidos como supérfluos mesmo por aqueles que o exercem.

Quando pela primeira vez escrevi um artigo sobre este fenômeno, o mesmo desencadeou uma pequena inundação de confissões. “Pessoalmente, eu preferiria fazer algo genuinamente útil“, respondeu um corretor de ações, “mas eu não suportaria o corte na remuneração“. Ele também descreveu seu “impressionantemente talentoso colega de classe com PH.D em física” que desenvolve tecnologias para detecção de câncer e “ganha tão menos do que eu que chega a ser deprimente“. Mas é claro que se seu trabalho serve a um alto interesse público e requer muito talento, inteligência e perseverança não significa automaticamente que você nade em dinheiro.

Ou vice-e-versa. É alguma coincidência que a proliferação de bullshit jobs bem pagos coincidiu com uma grande explosão na educação superior e uma economia que gira em torno do conhecimento ? Lembrem-se: fazer dinheiro sem criar nada de valor não é fácil. Para novatos, é preciso memorizar algum jargão que, ainda que soe importante, carece de sentido. (É crucial, por exemplo, ao se participar de reuniões inter-setoriais, enfatizar continuamente o valor agregado de co-criações na sociedade conectada). Qualquer um pode recolher lixo, mas uma carreira bancária é reservada para uns poucos mais qualificados.

Num mundo que fica cada vez mais rico, onde vacas produzem mais leite e robôs mais coisas, há mais espaço para amigos, família, serviços comunitários, ciência, arte, esporte e todas as outras coisas que fazem a vida valer a pena. Mas há também mais espaço para bullshit. Desde que continuemos obcecados com trabalho, trabalho e mais trabalho (mesmo que atividades úteis sejam mais automatizadas ou terceirizadas), o número de empregos supérfluos só vai continuar a crescer. Mais ou menos como o número de gerentes no mundo desenvolvido, que cresceu nos últimos 30 anos sem nos tornar sequer centavos mais ricos. Ao contrário, estudos mostram que países com mais administradores são na verdade menos produtivos e inovadores. Num levantamento entre 12.000 profissionais pela Harvard Business Review, a metade afirmou sentir que seu trabalho não tinha “sentido e significado”, e um igual número não conseguiu se identificar com a missão de sua empresa. Outra pesquisa recente revelou que nada menos do que 37% dos trabalhadores britânicos julgavam ter bullshit jobs.

De modo algum esses novos empregos do setor de serviços são despropositados – longe disto. Olhe para a assistência à saúde, educação, bombeiros e polícia e verá muita gente que vai para casa todos os dias sabendo, apesar de seus contracheques modestos, que fizeram do mundo um lugar melhor. “É como se lhes estivessem dizendo“, escreve Graeber, “Você conseguiu ter um trabalho de verdade ! E com tudo isto você tem a cara de pau de esperar pensões de classe média e seguro saúde ?

Há outra via

O que torna tudo isto especialmente chocante é que está acontecendo num sistema capitalista, alicerçado sobre valores como eficiência e produtividade. Enquanto políticos insistem na necessidade de reduzir o governo, permanecem em silêncio sobre o fato do número de bullshit jobs não parar de crescer. Isto resulta em cenários onde, de um lado, governos cortam gastos com empregos úteis em setores como saúde, educação e infraestrutura – resultando em desemprego – enquanto, por outro lado, investem milhões em indústrias que desempregam como as de treinamento e vigilância, cuja ineficácia já foi há muito comprovada.

O mercado moderno também não tem interesse em utilidade, qualidade e inovação. Tudo o que interessa é o lucro. Às vezes isto leva a contribuições maravilhosas. Às vezes não. De operadores de telemarketing a consultores de impostos, há uma sólida justificativa para criar um bullshit job depois de outro. Você pode acumular uma fortuna sem jamais produzir nada.

Nesta situação, a desigualdade só exacerba o problema. Quanto mais riqueza se concentra no topo, maior a demanda por advogados corporativos. lobistas e grandes intermediários. Demanda, afinal, não existe num vácuo. É produto de uma constante negociação, determinada pelas leis e instituições de um país e, é claro, por pessoas que controlam a chave do cofre.

Talvez isto também explique por que as inovações dos últimos 30 anos – um período de desigualdade galopante – não corresponderam a nossas expectativas. “Queremos carros voadores; ao invés disto, ganhamos 140 caracteres“, debocha Peter Thiel, intelectual residente no Silicon Valley. Se o pós-guerra nos deu invenções fabulosas como a máquina de lavar, o refrigerador, o space shuttle e a pílula, ultimamente tem sido não mais do que versões ligeiramente aprimoradas do mesmo telefone que compramos um par de anos atrás.

De fato, se tornou mais lucrativo NÃO inovar. Imagine quanto progresso perdemos por que milhares de mentes brilhantes desperdiçaram seu tempo sonhando com produtos financeiros hiper complexos que são, afinal, apenas destrutivos. Ou que passaram os melhores dias de suas vidas duplicando fármacos já existentes de modo que fossem infinitesimalmente diferentes, somente o suficiente para garantir uma nova requisição de patente por um advogado habilidoso, de modo que um departamento brilhante de relações públicas pudesse lançar uma novíssima campanha de marketing para uma droga nem tão nova assim.

Imagine se todo esse talento fosse investido não em fazer circular a riqueza, mas em criá-la. Talvez tivéssemos, quem sabe, mochilas a jato, ou construído cidades submarinas, ou curado o câncer.

Friedrich Engels, um amigo próximo de Karl Marx, descreveu a “falsa consciência” da qual a classe trabalhadora de sua época – o “proletariado” – foi vítima. Segundo Engels, o operário fabril do século 19 não se levantou contra a elite por que sua visão de mundo foi obliterada pela religião e pelo nacionalismo. Talvez a sociedade esteja hoje presa numa “ferrugem” análoga, só que desta vez no topo da pirâmide. Talvez algumas dessa pessoas tenham sua visão nublada por todos os zeros em seus contracheques, os bônus robustos e os confortáveis planos de aposentadoria. Talvez uma carteira gorda acenda uma falsa consciência: a convicção de que você está produzindo algo de grande valor por que você ganha muito.

Seja como for, o modo como as coisas são não é o modo como elas precisam ser. Nossa economia, nossos impostos e nossas universidades podem todos ser reinventados para fazer a inovação e a criatividade compensarem. “Não devemos esperar pacientemente por mudanças culturais lentas“, desafiou o economista independente William Baumol mais de 20 anos atrás. Não precisamos esperar até que apostar com o dinheiro dos outros não seja mais lucrativo; até que lixeiros, policiais e enfermeiros ganhem salários decentes; ou até que gênios da matemática voltem a sonhar com construir colônias em Marte em vez de começar seus próprios fundos de cobertura.

Afinal, não é o mercado ou a tecnologia que decide o que tem real valor, mas a sociedade. Se queremos que este seja um século em que todos fiquemos mais ricos, então temos que nos libertar do dogma de que todo trabalho tem sentido. E, enquanto estivermos nisto, nos livremos também da falácia de que um salário maior é automaticamente um reflexo de valor social.

Então talvez percebamos que em termos de criação de valor, não compensa ser um banqueiro.

A cidade de Nova Iorque, 50 anos depois

Meio século depois da greve, a Big Apple parece ter aprendido sua lição. “Todos em NYC querem ser lixeiros“, dizia uma recente manchete. Hoje em dia, os garis da megacidade ganham um salário invejável. Depois de 6 anos na folha, levam prá casa US$ 70.000 por ano, mais horas extra e vantagens. “Eles mantém a cidade funcionando“, explicou, num artigo, um porta-voz do Departamento de Limpeza. “Se eles parassem de trabalhar, ainda que por pouco tempo, toda a cidade de Nova Iorque paralisaria“.

O jornal também entrevistou um gari. Em 2006, Joseph Lerman, então com 20 anos, recebeu um telefonema da prefeitura informando que ele poderia se apresentar para o cargo de lixeiro. “Me senti como se tivesse ganho na loteria“, conta ele. Hoje, Lerman acorda às 4 todas as manhãs para coletar sacos de lixo até as 12. Para seus conterrâneos novaiorquinos, é razoável que ele seja bem pago por seu trabalho. “Honestamente“, sorri o porta-voz da cidade, “não é prá menos que esses homens e mulheres são tidos como heróis de Nova Iorque“.

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Este ensaio é adaptado de Utopia para Realistas: como construir um mundo melhor, Open Borders e Uma Semana de Trabalho de 15 Horas, por Rutger Bregman. Utopia para Realistas se originou em The Correspondent, a plataforma jornalística sem anúncios que serve de antídoto para o noticiário diário.

Traduzido do holandês por Elizabeth Manton

21 de abril de 2016

O fim do trabalho (i): a capilarização do espírito humano no tecido social

Por força do ofício, a saber, ao organizar conteúdo para uma nova disciplina acadêmica pela qual me deixei atrair por causa de sua vasta liberdade temática, penso cada vez mais sobre a já tão difundida profecia de que, num futuro não muito distante, a maioria das profissões conhecidas, senão sua totalidade, estará extinta.

Não é de hoje que o ser humano se autodefine pelo trabalho. Profissões hereditárias (vide escritórios de advocacia e outros negócios legados de pais para filhos) já eram comuns em tempos medievais, bem como as corporações de ofício. Numa recente entrevista, o “instinto de trabalhar” chega a ser arrolado por James Suzman como uma das possíveis razões para o fracasso da previsão de Keynes (ca. 1930) de que, em mais ou menos 100 anos, a jornada de trabalho seria de apenas 15 horas semanais. Já em A Sociedade do Cansaço, o filósofo coreano/alemão Byung-chul Han sustenta que já não são mais necessários feitores, capatazes e gerentes a assegurar a produtividade, posto que, hoje, cada um é o próprio algoz de si mesmo. Com a abolição do trabalho como principal meio de afirmação da identidade individual, temos aí um problema.

A extinção das profissões não é uma tendência nova, tendo já atingido, por exemplo, leiteiros e datilógrafos e, em breve, chegará a carteiros, telefonistas ou operadores de caixa. Motoristas também logo se tornarão obsoletos, quando veículos autônomos forem mais uma regra do que uma exceção.

É claro que a mídia mais rasa e sensacionalista não tardou a abraçar a ideia, publicando listas das primeiras profissões que devem desaparecer. Tais matérias se baseiam, por sua vez, num extenso artigo de Oxford, por Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, repleto de fórmulas matemáticas inacessíveis ao leitor leigo, que é, no entanto, bem menos taxativo. Antes de lançar previsões bombásticas, fala da probabilidade de extinção de cada ocupação conhecida em razão de sua facilidade de automação.

Ainda num segmento editorial mais sério, Harari (que, por sua vez, já foi considerado sensacionalista por gente bem séria) preconiza, em Homo Deus, o fim de todas as profissões exceto a de programador de jogos de realidade virtual, nos quais a humanidade, enquanto não for extinta, deve mergulhar na ausência do trabalho. Na escala de extinção sucessiva das profissões conhecidas, Harari também comenta que a profissão médica será uma das últimas a desaparecer, se restringindo, todavia, pouco a pouco aos pacientes mais abastados, já que planos de saúde cada vez menos poderão arcar, frente a robôs e algoritmos para diagnóstico e tratamento, com os comparativamente elevados custos e risco de erro de médicos humanos. Eu próprio já fui censurado por eminentes colegas de profissão ao difundir a previsão de Iván Fischer, célebre maestro húngaro, de que a orquestra, assim como a conhecemos, i.e., como corpo estável, em ca. 30 anos não mais existirá.

Tais exercícios de futurologia distópica se baseiam, via de regra, em avanços tecnológicos, principalmente aqueles que envolvem graus mais elevados de automação. Outro fator importante, derivado da tecnologia, é a onipresença das redes, que faculta a todos o status de persona pública naquilo que bem entender. Tal condição não tem qualquer precedente histórico, pois, até poucas décadas atrás, todo indivíduo era meramente consumidor ou força de trabalho, lhe sendo permitido, no máximo, interferir (ainda que só estatisticamente) na esfera pública, de tempos em tempos, através do voto.

Dada a saturação textual sobre o fim do trabalho pelo avanço da tecnologia, quero salientar aqui um aspecto menos lembrado da extinção das profissões, que é a assimilação pelo homem comum, em caráter diletante, de atividades outrora relegadas exclusivamente a segmentos profissionais. Significa que, enquanto hoje qualquer um é escritor, músico ou fotógrafo (para citar apenas 3 nichos criativos), resta menos espaço para o exercício profissional destas atividades. Para que publicar, a elevados custos, textos de alguém quando qualquer um se autopublica ? Para que produzir, a elevados custos, a música de alguém quando qualquer um produz e promove sua própria música ? Por que uma empresa jornalística manteria fotógrafos em sua folha de pagamento ou, ainda, compraria equipamentos caros quando, hoje, qualquer notícia é prontamente documentada com um celular por quem quer que esteja próximo ao evento ?

Chamo a isto capilarização do espírito humano, por se tratar de atividades com certo grau de ambição artística que foram outrora reservadas a poucos privilegiados que ultrapassassem a barreira do imprimatur ou outros filtros editoriais mas que, graças à pulverização dos meios de produção e distribuição, são hoje acessíveis a qualquer um.

É claro que tais atividades continuarão existindo. Sempre haverá novos Cartier-Bressons e Sebastiões Salgado, ainda que, talvez, mais raros. E é bom que seja mais fácil a qualquer um praticar estas e outras artes. Só será bem mais difícil, senão impossível, contar com elas como meio de subsistência. Para tanto, das duas uma: ou o sujeito abraça uma atividade com alguma demanda ou mercado, ou aposta em programas governamentais de renda mínima. Em ambos os casos, é feliz fazendo o que gosta sem precisar se preocupar em viver daquilo.

Essa nova realidade inexorável sempre me remete às cenas iniciais do filme Interestelar (antes de mergulhar no universo metafísico dos portais de espaço/tempo), nas quais um astronauta, i.e, um indivíduo altamente treinado numa das ocupações mais interessantes que alguém poderia imaginar, se dedica a administrar uma fazenda, obviamente automatizada, para a produção de alimentos, estes sim uma necessidade urgente da humanidade.

Resistência a novas tecnologias

Quem acompanha este blog sabe que periodicamente torno a me debruçar sobre prós e contras de facilidades, viabilizadas por novas (ou nem tão novas) tecnologias, que surgem a toda hora para substituir culturas antigas e se tornar, com isto, o novo estado da arte. Conquanto vantajosas para proprietários de negócios, que lucram mais eliminando recursos humanos, quase sempre mais caros e tidos como menos eficientes do que sistemas automáticos, tais novidades não representam, necessariamente, vantagem alguma para a outra ponta da cadeia econômica, a saber, clientes, consumidores e usuários. Ao contrário, precarizam relações de trabalho e transferem aos mesmos cada vez mais o ônus operacional.

Nesta linha de raciocínio, já destilei aqui algum veneno contra o WhatsApp (ao qual posteriormente me rendi), o Pix, os totens de cobrança de estacionamento, o streaming (aqui e aqui) e o teleatendimento em geral. A redução progressiva, ao longo de décadas, dos caixas em agências bancárias faz parte da mesma tendência. Pois bancos, por lucrarem mais com menos funcionários, nos incentivam a usar cada vez mais plataformas de home banking ou, no máximo, terminais de autoatendimento existentes nas agências antes que clientes sequer tenham que passar por portas giratórias detectoras de metais.

Não sou neo-ludista (movimento, nomeado a partir de Ned Ludd, de trabalhadores ingleses do ramo têxtil que, nos primórdios da revolução industrial (1810), vandalizavam máquinas que substituíam o trabalho humano). Seria como lamentar a obsolescência da máquina de escrever (e, com ela, dos datilógrafos) quando é consenso para quem quer que escreva a imensa vantagem dos editores de texto. Ou dos revisores em salas de redação (ainda existem ?), quando corretores ortográficos e a responsabilidade individual sobre o próprio texto pressupõem jornalistas cada vez melhores. Mas há casos e casos.

O telefone celular, por exemplo. Quando surgiu, era não mais do que um telefone móvel. Uma indiscutível revolução. Desde então, qualquer um cujo número tivéssemos poderia ser imediatamente acessado. Até que foram incorporando câmeras, internet, agendas, o escambau. A vida de cada um dentro de seu bolso. Mas até que ponto a conexão permanente é, não digo boa, mas desejável para o ser humano ? Já viram coisa mas patética do que uma multidão, seja num parque, numa parada de ônibus ou numa sala de espetáculos, frequente ou até continuamente buscando abarcar o mundo por meio de uma telinha que ocupa uma ínfima parte de seu campo visual ? Mais: abrindo mão de interagir com pessoas ao redor ou mesmo, ainda que contemplativamente, com a paisagem ou o ambiente onde efetivamente estão.

Outro problema dos smartphones, com seu interface touch screen, são as complexas árvores de comandos (menus) que precisam ser percorridas até se chegar onde se quer. Mas prefiro falar disto comparativamente em relação às câmeras fotográficas.

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Não sou, obviamente, contra a fotografia digital, que, a nível de custo e praticidade, praticamente matou a “analógica” (péssimo termo para designar a antiga arte de fotografar em filmes de acetato impregnados por emulsões químicas sensíveis à luz). Antes, porém, de falarmos da evolução das câmeras com a simplificação exacerbada do interface, vale a pena examinar o que mudou na cultura fotográfica. Não me importo, aqui, com o fato do sujeito fotógrafo vir se tornando um profissional cada vez mais raro. Empresas de notícias, que antes empregavam legiões de profissionais para cobrir acontecimentos, hoje precisam apenas vasculhar nas redes sociais para obter imagens ilustrativas para suas matérias: sempre vai ter algum anônimo apontando um celular para fatos jornalisticamente relevantes, de tal modo que é frustrante para qualquer redação enviar um profissional a tempo de tirar as melhores fotos de coisas que acontecem a toda hora – apesar de que isto, às vezes, ainda ocorra.

Certamente uma enorme vantagem das câmeras digitais sobre as analógicas é a instantaneidade da verificação dos resultados (não há mais espera pelo processamento dos filmes em laboratórios), aliada ao número astronomicamente maior de tentativas facultadas a um fotógrafo. Se antes, com filmes comerciais de, no máximo, 36 exposições, era preciso pensar (rápido) antes de pressionar o obturador, hoje se pode obter, num chip padrão, milhares de fotos de uma mesma cena para depois escolher as melhores. Fotógrafos chegam, por vezes, a manter o obturador pressionado durante um fragmento de ação (como, por exemplo, num gol ou carambola durante uma corrida automobilística), como se estivessem filmando, para depois escolher as melhores fotos. Sei, por experiência, que, nestes casos, dá muito mais trabalho selecionar fotos do que, propriamente, tirá-las.

Há tempos eu já havia notado que câmeras digitais profissionais tendiam a emular o design das anteriores analógicas. Achava que era uma bobagem, um apelo de mercado ao design retrô e à tradição. Engano meu. Se câmeras profissionais mais modernas, conquanto largamente computadorizadas, continuam tendo a mesma forma, com botões e seletores discretos dispersos nos mesmos lugares, é por que o controle sobre diferentes variáveis, tais como tempo de exposição, abertura do diafragma e seu reflexo na profundidade de campo (faixa de distância na qual objetos permanecem em foco) é por que isto ainda faz parte da arte de fotografar.

Outra coisa é o visor. Já devem ter notado que fotógrafos experientes permanecem fiéis ao uso do visor, dispensando as telinhas pixilizadas hoje existentes em qualquer câmera. Isto não é por acaso. Enquanto numa pequena tela o que está no quadro compete em atenção com todo o entorno, que ocupa uma parte bem maior do campo visual, no visor quem fotografa vê somente o que está enquadrado. Como diante de uma tela de cinema ou, ainda, de um aparelho de TV numa sala escura. Por conveniência, câmeras profissionais (desde as melhores analógicas) costumam mostrar, nas margens do quadro, índices sobre os controles de exposição (tempo e abertura), pré-selecionados ou ajustados automaticamente. Já em celulares, o próprio visor foi abolido. Tampouco é preciso ter qualquer consciência sobre os ajustes para cada foto, pois o computador de bordo se encarrega de tudo.

Outra questão são as lentes. Uma das razões para a manutenção do formato na migração das câmeras analógicas para as digitais é a possibilidade do uso de lentes intercambiáveis. Assim como componentes de áudio mais pesados são melhores do que os mais leves (por terem fontes mais robustas e, portanto, estáveis), também lentes de diâmetro maior se traduzem em imagens melhores. Já devem ter notado que tanto celulares como aquelas primeiras câmeras digitais não profissionais (daquelas que se usava antes dos celulares começarem a incorporá-las) tem lentes minúsculas. As chamo de “lentilhas”.

Sei. A baixa resolução de imagens que serão vistas predominantemente em telas pixilizadas cancela a vantagem do uso de lentes maiores. Mas vale lembrar que, para puristas, até a praticidade das lentes zoom (com distância focal variável – o que, para leigos, significa poder, com uma única lente, afastar ou aproximar o objeto), que já foram exceção mas são hoje um atributo de qualquer câmera com lente fixa, pode comprometer a qualidade da imagem – tanto que a linha Batis da Zeiss (empresa ótica de ponta) possui lentes de várias distâncias focais sem incluir, todavia, nenhuma zoom.

Toda essa simplificação é boa para a fotografia ? Sim e não. Se, por um lado, nos aproximamos cada vez mais do ideal (?) “todos podem fotografar” (parafraseando Ratatuille em “todos podem cozinhar”), por outro, a arte da fotografia fica mais pobre. Se antes um fotógrafo precisava compor cada foto, escolhendo o melhor ângulo, a melhor luz e os melhores ajustes de exposição antes de apertar o botão, hoje qualquer testemunha da história aponta o celular de onde estiver, no máximo ajustando o zoom, e pronto. O resultado é, por definição, uma foto. Prático ? Sem dúvida. Outro dia, liguei para um serralheiro para que consertasse um portão e ele me pediu que tirasse uma foto do defeito com o celular e lhe mandasse por WhatsApp para que pudesse me enviar um orçamento. Gostaria de saber o que Sebastião Salgado, Henri Cartier-Bresson ou Ansel Adams (que fotografava em câmeras de negativos planos, gigantes, que carregavam apenas uma placa de cada vez) pensariam disto. Talvez tenhamos um dia que reconhecer historicamente a existência de um “parêntesis da fotografia”.

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Conquanto tenha me alongado, talvez demais, sobre a evolução recente da fotografia (uma paixão confessa), a diatribe da vez é, aqui, contra os famigerados sites de compras, daqueles em que você vai colocando tudo o que quer num “carrinho” virtual e paga pelos objetos desejados na saída (checkout), os enviando para seu endereço.

Não que a ideia seja ruim em si. Costuma funcionar bem para a aquisição de apenas um ou uns poucos objetos de cada vez. Como, por exemplo, livros. Já experimentaram, no entanto, comprar um rancho num supermercado desse jeito ? Lhes asseguro: é tão frustrante que chega a ser irritante.

Primeiro, por que você tem que abrir uma página para cada coisa que quiser comprar. Se quiser comparar vários produtos, terá que ir e vir entre duas ou mais páginas antes de se decidir por um deles. De tal modo que, para comprar n coisas, terá que abrir, no mínimo n + x páginas. Arrisco dizer que é, portanto, bem mais nocivo para seus tendões (além de gastar muito mais tempo) navegar nestes sites do que rabiscar uma lista e percorrer os corredores de um supermercado.

Segundo, por que boa parte do que você procura não é encontrado. Este problema tem várias origens. A mais comum é que, como sites varejistas são sistemas centralizados que abrangem toda uma cidade, estado ou, por vezes, país, é comum listarem produtos não disponíveis para entrega em sua região – o que torna, invariavelmente, a compra uma experiência incompleta ou, ao menos, pior que uma ida ao supermercado.

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Nos últimos meses, a pandemia me forçou a recorrer a fornecedores que oferecessem serviços de tele-entrega. A padaria, o açougue e o mercadinho do bairro foram os mais fáceis. Pequenos demais para desenvolverem sites de compras automatizados, funcionavam com listas como que de armazém que eu convenientemente lhes enviava por WhatsApp, recebendo os produtos em minha porta.

A coisa complicou quando precisei escolher um supermercado. Jamais comprei na rede A por que, em seu site, os preços dos produtos eram majorados em relação a seus preços de prateleira, já que a compra online era realizada por uma empresa terceirizada.

Depois de algumas tentativas, também desisti de comprar na rede B por causa da escassez de produtos “disponíveis para entrega em minha região”, conforme comentei acima.

Finalmente, cheguei à rede C que, pequena demais para já ter seu site de compras, ainda atendia clientes por meio de “listas de armazém” recebidas por WhatsApp, enviando os ranchos por motoristas de Über que, convenientemente, traziam a maquininha para o cartão de crédito a ser utilizado no pagamento. O serviço era tão bom que, quando não tinham um produto, ofereciam opções, comparando preços e, por vezes, enviando fotos de produtos disponíveis em suas prateleiras. Não tinha erro. Era como ir ao supermercado, só que sem precisar ir ao supermercado. Já tinha até decidido manter o hábito depois da vacina.

Foi quando, recentemente, respondendo ao impacto da pandemia sobre os negócios, a rede C também inaugurou seu site de compras com o infame carrinho. Pior: concentraram as vendas online em apenas duas lojas da rede, sendo que aquela à qual tocou atender “minha região” tinha um mix de produtos dramaticamente mais limitado do que a loja na qual eu havia me habituado a comprar – a ponto de faltarem itens básicos como, por exemplo, esponjas de cozinha. Para complicar, terminou o diálogo com o funcionário que diligentemente ajustava minhas necessidades à disponibilidade da loja. A tal ponto de receber, ao fim da primeira compra pelo novo sistema (mas ainda por lista mandada pelo WhatsApp, pois me recusei terminantemente a usar o site), a lacônica mensagem “o que não está na nota é por que nós não temos”.

Enfrentei, então, um dilema entre botar a boca no trombone, tipo cliente indignado (como é moda em redes sociais), tornando à selva em busca de um serviço customizado como aquele ao qual me acostumara ou, ao invés, procurar o gerente da loja da rede C, na qual me atenderam exemplarmente por tanto tempo, em busca de uma alternativa. Felizmente, tive tempo para pensar, nos dias que se passaram entre um rancho e o próximo, e acabei optando pelo caminho conciliatório. Fui imediatamente compreendido e o velho sistema restaurado sem que ninguém precisasse burlar as novas diretrizes administrativas da empresa. Eles continuariam comprando as listas que eu enviasse por WhatsApp, bastando que eu (ou alguém em meu lugar) passasse na loja para apanhar o rancho. Para montar minha nova logística, até recorri ao mesmo entregador cujo serviço já conhecia, só que agora contratado por mim ao invés de pela empresa. Quando eu obteria o mesmo tratamento de uma empresa maior, mais centralizada, com pirâmides gerenciais mais verticais e mais funcionários engessados por rígidas condutas de “boas práticas” ?

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Nem entrei, neste texto, no mérito de como a substituição progressiva de postos de trabalho humanos por robôs e algoritmos contribui para a marcha inexorável, vislumbrada por Harari, em direção a uma classe de inempregáveis. Por que, então, me dei ao trabalho de relatar tudo isto ? Tão somente para deixar claro que nem toda inovação tecnológica corresponde, necessariamente, a um progresso e, também, para ilustrar que, muitas vezes, resistir é possível.

Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Por que não frequento reuniões, bem como um olhar sobre a concepção de Steven Johnson sobre espaços que favorecem a criatividade

É conhecido e universalmente aceito o poder transformador de novas tecnologias sobre processos antigos. Sabe-se, também, que reuniões presenciais constituíram, por muito tempo, uma parte inalienável do cotidiano dos mais diversos coletivos, desde departamentos universitários até partidos políticos, passando por condomínios, clubes, agremiações profissionais e equipes de trabalho. Curiosamente, tais encontros tem resistido, com todos os expedientes que lhes são peculiares, como secretaria de palavra (que concede a permissão para falar) e redação de atas, aos mais variados avanços tecnológicos que em muito simplificariam  seu processo e logística.

Para ilustrar a obsolescência das reuniões presenciais, basta lembrar que, para que sejam levadas a cabo, é preciso que todos os seus participantes (que não costumam ser poucos) estejam num mesmo lugar ao mesmo tempo. Mas vamos por partes. Examinando, de início, suas funções, explícitas e subentendidas, apontando, aqui e ali, como poderiam ser melhor contempladas por meios digitais já amplamente disponíveis.

Explicitamente, reuniões servem para

comunicação de fatos do interesse da comunidade reunida. Embora tais fatos sejam do interesse de todos, isto não significa que cada um prefira tomar ciência dos mesmos no exato momento em que cada reunião ocorre. Para tanto, emails são não apenas suficientes como muito mais convenientes a cada participante, que poderá abri-los quando melhor lhe aprouver. É claro que defensores de reuniões objetarão que muita gente não abre emails – mas, afinal, que garantia existe de que todo participante de uma reunião preste a devida atenção em cada palavra proferida (especialmente na era das mensagens de texto, que podem ser silenciosamente lidas e disparadas) ?

discussão pelos participantes de questões polêmicas, i.e., nada que não possa ser feito num chat com vantagens dentre as quais, para citar apenas duas, 1) a facilidade para ler recursivamente tudo o que foi dito e 2) a facilidade para responder, se necessário, a algo que foi dito muito antes de falas imediatamente anteriores. Pois quem já não acabou esquecendo ou deixando de lado, numa reunião, alguma observação pertinente tão somente por que o secretário de palavra só lhe concedeu a mesma muito depois do assunto em questão já ter “morrido” ?

deliberação pelos participantes de posições a serem adotadas pela totalidade do grupo, que pode ser aberta, geralmente erguendo os braços, ou secreta, através de cédulas anônimas posteriormente contabilizadas. Novamente é preciso que se diga que qualquer plataforma de chat, onde os participantes são identificados por login, dá conta do recado. A bem da verdade, tais plataformas só não oferecem uma resposta satisfatória para votações secretas, para as quais assembleias ainda são necessárias. Mas sejamos realistas: quantas das últimas reuniões que vocês frequentaram tiveram votações secretas ? Ora, todas as outras poderiam ter sido mediadas virtualmente, com incontáveis vantagens para seus participantes.

Além destas funções explícitas, reuniões também podem ter por objetivo propiciar a seus “mestres de cerimônia” (chefes, síndicos, presidentes, diretores e toda sorte de líderes) uma plataforma privilegiada para que iluminem com seu verbo uma audiência silenciosa e impotente. Sei. Nem todos os chefes são assim, nem tampouco tenho como provar se isto acontece ou em que extensão. Uma teoria conspiratória, então, se quiserem. Mas nada me tira a impressão que formei, no tempo em que frequentava reuniões, de um certo gozo por parte de alguns que tinham ali seus momentos de fama.

Outra suposta vantagem das reuniões presenciais pode ser resumida em “o poder do olho no olho”, que significa que muitos podem perceber como vantagem falar encarando interlocutores. Tanto por um suposto maior poder de persuasão como por um também suposto meio de melhor avaliar se alguém está dizendo a verdade. Estamos aqui, no entanto, diante de mais percepções subjetivas e, como tais, não comprovaveis – permanecendo, portanto, no escorregadio terreno das teorias conspiratórias.

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Toda reunião presencial padece de um vício de origem maior, a saber, o estrangulamento do canal da palavra, que é tanto maior quanto maior for o número de participantes da reunião. Pois reza o protocolo desses encontros formais que, enquanto cada um fala, todos os outros devem permanecer em silêncio. Em grupos muito numerosos, tal cláusula pode se tornar uma verdadeira demonstração de poder – principalmente quando quem preside a reunião se reserva o direito de emitir réplicas para cada uma das falas que tiveram que se subordinar à secretaria de palavra.

Já numa reunião digitalmente mediada por chat, todos podem falar ao mesmo tempo. A grande vantagem deste tipo de agenciamento é que nenhuma ideia  se perde. É natural que tais debates, mais ricos por definição, sejam vistos com reservas por lideranças mais autoritárias.

Devo fazer, aqui, uma ressalva a respeito de um tipo de reunião virtual que se tornou bem popular nesta quarentena. Trata-se daquelas reuniões mediadas por aplicativos que dividem a tela do computador em tantos retângulos quanto forem os participantes, nos quais aparecem imagens dos mesmos captadas pelas câmeras de seus computadores. Entendo que tais reuniões não tiram o devido proveito do modo de agenciamento síncrono não presencial, pois, como ocorre em reuniões presenciais, enquanto cada um fala, todos os demais devem permanecer calados. Só me ponho a imaginar quão mais proveitosos estes encontros seriam se mediados por chat. Pois a aparente desordem da algaravia que se instala favorece, como veremos adiante, a criatividade – que é, por sua vez, função direta da maior colisão entre ideias.

Finalmente, reuniões por chat simplificam enormemente um processo inerente a quase toda reunião presencial, a saber, a feitura de atas, as quais não se tornam oficiais antes de serem lidas, aprovadas e firmadas, em reuniões posteriores, por cada participante da anterior à qual se refere cada ata. A redação de atas minuciosas é tão trabalhosa (podendo se estender por muito mais tempo do que as reuniões que lhes ensejaram) quanto entediante (por que nada de novo se cria neste processo), se constituindo, assim, como um enorme desperdício de tempo e energia e, como tal, num bullshit job exemplar. No caso de reuniões mantidas por chat, as atas são a simples transcrição de tudo o que foi escrito por cada um dos participantes, sem edições, omissões nem tampouco qualquer possibilidade de distorção de palavras. Simples assim.

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Alguns leitores podem ser levados a pensar que este desabafo se trata, essencialmente, de mais uma rabujice de alguém anti-social. Que não se enganem ! Pois não hesito em reconhecer o lado virtuoso de um tipo particular de reunião, informal e voluntariamente atendida, que acontece sempre que pessoas unidas por vínculos afetivos espontâneos se encontram, num café ou espaço congênere, tão somente para, por assim dizer, jogar conversa fora.

Antes que alguém se apresse em apontar que tais reuniões são, por definição, não focadas e improdutivas, me permitam dizer que Steven Johnson, no livro e palestra homônimos “De onde vêm as grandes ideias”, afirma que a ciência progride mais na conversa descontraída de um café do que, propriamente, no insight solitário de alguém que passa à posteridade como gênio. Que toda descoberta importante tem origem mais no acaso da fricção social do que na experimentação planejada e controlada por uma única mente, porquanto brilhante. Assim, sua obra consiste, noutras palavras, no elogio supremo da colaboração.

Seu exemplo matador é o de  dois pesquisadores americanos que, em 1957, conversavam na cafeteria sobre como ouvir sinais emitidos pelo recém lançado satélite soviético Sputnik. Com equipamento rudimentar, conseguiram detectar uma variação de frequência no sinal emitido pelo satélite quando de sua passagem pelo ponto mais próximo, num fenômeno conhecido como efeito Dopler, e a partir daí determinar sua posição exata. Indagados, então, por um chefe, se poderiam fazer o contrário, i.e., localizar um ponto estacionário na superfície terrestre a partir de um satélite se movimentando em órbita do planeta, acabaram inventando o GPS.

O livro de Johnson contém um impressionante apêndice com mais de 40 páginas listando, em ordem cronológica, as principais invenções e descobertas científicas entre 1400 e 2000, com seus respectivos créditos. Há versões alternativas e ampliadas de seu argumento em palestras proferidas no Google e na London School of Economics, ambas disponíveis no YouTube – bem como a sinopse abaixo, ultra didática.

 

Textos sombrios (iv): Qual o sentido de ser produtivo durante a quarentena ?

Depois de algumas semanas, começa a ficar claro que o isolamento vai durar bem mais do que uns poucos meses. Já há quem fale que o distanciamento social perdurará, ainda que intermitentemente, até 2022, e que qualquer coisa antes disto, tipo uma vacina, deverá ser saudada como uma grata surpresa. Uma realidade bem pesada, até mesmo para quem tem a sorte de poder permanecer em quarentena. Digo sorte por que só uma minoria, que desfrutou de condições iniciais vantajosas, como apoio dos pais e/ou certo lastro financeiro, para estudar mais do que os outros e, com isto, lograr posições de trabalho relativamente mais estáveis dentro do colapso social e econômico que vivemos, pode se dar ao luxo de cumprir as determinações de autoridades sanitárias.

Neste contexto, é perfeitamente natural que tantos se entreguem à manutenção de rotinas de trabalho com uma dedicação quase maníaca, espécie de surto produtivo, numa tentativa desesperada de negar o que está acontecendo. Será, no entanto, daqui prá frente, cada vez mais difícil sustentar este tipo de comportamento, que pode bem ser chamado de negacionismo profilático.

Embora o grande capital (bancos e grandes conglomerados industriais e comerciais) já venha, há algum tempo, se aproveitando da crise para agregar à sua imagem a de grande benfeitor público,

(ora, não fazem mais do que a obrigação; os que doam não são heróis – antes, os que não doam é que são omissos; empresas “generosas” tentam fazer passar por filantropia migalhas que concedem de seus lucros exorbitantes e sub-taxados)

ainda não foram sentidos os efeitos da ruptura definitiva dos tênues laços que ainda sustentam o tecido social.

O grande levante nunca esteve tão próximo. Não falta muito para que pobres finalmente se sintam irremediavelmente abandonados pelos ricos e, finalmente, se revoltem. E aí, não há repressão armada que segure. Esses dias, uma notícia não recebeu a repercussão que merecia.  Citava uma pesquisa que estimava que 60% da população de favelas  do Rio de Janeiro só tinha renda para se alimentar por mais uma semana. Se isto for verdade, e se a pandemia se prolongar, de pouco adiantará o auxílio temporário de 600 reais.

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Mas deixemos de lado, por hora, tal cenário apocalíptico. Até por que a resignação, a submissão e a passividade dos oprimidos já deu provas contundentes de resistir às maiores provações. Então, se você pertence à minoria privilegiada que pode se dar ao luxo de uma quarentena, assegurada por tele-entregas e amenizada pela interação exacerbada em redes sociais, será atormentado, no máximo, por típicos “problemas de gente branca” – tal como, por exemplo, “o que será de minha ocupação principal quando (se) tudo isto passar ?”. Pois a peste só veio a acelerar o fenômeno, há anos postulado, da obsolescência das profissões.

Tais ideias são, obviamente, angustiantes e, portanto, justificam em parte o supracitado negacionismo por meio de surtos de produtividade. Longe de mim querer entender por que isto acontece – até por que muita gente vem fazendo isto, com maior ou menor grau de profundidade, respectivamente, aqui e aqui.

É claro, no entanto, que este súbito interesse renovado pela produtividade compulsiva me remete diretamente a um livro fundamental que, já em 2017, se preocupava com o fenômeno (ainda que restrito à comunidade acadêmica), e que resenhei aqui. Se tiverem a paciência e o interesse de ler os artigos de agora e a resenha do livro de três anos atrás, devem perceber alguma correlação.

 

Mais a propósito da peste: uma visão auspiciosa sobre o futuro da economia

Quando decretaram a quarentena, os primeiros textos que surgiram – fora o mantra do capitalismo agonizante a incitar que todos voltassem ao trabalho – denotavam uma preocupação crescente sobre como manter a sanidade mental durante o período de isolamento.

Quando se tornou mais evidente que a quarentena deveria se prolongar por muito mais tempo do que uns poucos meses, começaram a aparecer aqueles de índole mais filosófica, sobre a impossibilidade de um dia retornarmos à normalidade como a conhecíamos – já que, depois do vírus, o mundo seria necessariamente outro.

Cientistas procuram uma cura para a covid-19. Humanistas imaginam possíveis cenários para depois da pandemia. É da natureza da mente humana. Destas projeções, que oscilam entre a catástrofe iminente e a luz no fim do túnel, é natural que muitas se constituam como especulações sobre o futuro da economia. Pois nunca, nem quando das primeiras grandes navegações ou da industrialização, que foram fenômenos graduais, nos deparamos com uma realidade ao mesmo tempo tão repentina e disruptiva das relações de trabalho e econômicas. Neste contexto, é compreensível o clamor desesperado pela manutenção da ordem vigente por parte daqueles que tentam preservar o que já acumularam e, por outro lado, não conhecem nenhum outro meio de acumulação. Não é disto, no entanto, que trataremos aqui, até por que já estamos saturados destas informações, tanto em fontes centralizadas, como governo e mídia, como, principalmente, das dispersas em redes sociais.

Assumimos, então, que a economia como existia até o surgimento do vírus já era. A globalização das marcas, por exemplo. Se hoje consumimos bens produzidos em confins longínquos, escolhidos apenas em razão de custos de produção (leia-se trabalhistas) mais vantajosos para os proprietários de marcas e levados desde onde foram produzidos até onde serão consumidos às custas de petróleo que suja os mares e a atmosfera; todo o sistema cai por terra devido ao colapso das redes de abastecimento, as quais pressupõem, por sua vez, circulação maciça, hora proibitiva. Sem marcas, cai a indústria da publicidade. Tudo como num castelo de cartas.

Isto no plano global X regional. Vejamos, agora, um pouco mais de perto. Mais especificamente, no plano urbano X rural. No ponto em que estamos da pandemia, já começam a se abater as primeiras restrições ao funcionamento de supermercados, até então preservados como serviços essenciais. Algumas voluntárias, por parte de clientes que preferem comprar em estabelecimentos menores (i.e., com menor circulação); outras de grandes lojas que começam a impor restrições à circulação dos clientes. Ora, supermercados são uma forma de varejo extremamente concentradora, para conveniência e alegria de seus (grandes) proprietários, já que oferecem, num espaço relativamente pequeno operado por muitos empregados, muitos produtos a muitos clientes. Como tais, se constituem como um duplo vetor de contaminação. Falo, é claro, da promiscuidade de muitos clientes compartilhando o mesmo espaço restrito com muitos empregados.

O pequeno comércio, tido por hora como alternativa, tampouco terá, se mantida por muito tempo a quarentena e o crescimento da curva de contaminação, uma maior sobrevida. Com efeito, não tardará o dia em que as próprias tele-entregas serão vistas com tendo um elevado potencial de contaminação.

Paro por aqui. Poderia me deter sobre a crise de qualquer profissão liberal que dependa, em maior ou menor grau, de alguma fricção social. Pois é difícil imaginar algum trabalho majoritário que não envolva encontros presenciais.

Cabe, aqui, um parêntesis para lembrar que o colapso das profissões, formulado por Frey e Osborne (Oxford, 2013) e citado por Harari e tantos outros, veio subitamente, por conta de um vírus, bem mais cedo do que o previsto e não gradualmente, como se esperava, ao longo dos próximos 20 ou 30, em razão da crescente automação.

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Um dos aspectos mais cruéis do vírus é sua seletividade em relação ao poder econômico, i.e., acabará matando mais pobres do que ricos. Pois os últimos podem se proteger e os primeiros, não. Tal fato, super comentado e óbvio demais para que o expliquemos aqui, é mesmo saudado pela extrema-direita como promotor de um “realinhamento” há muito tido como necessário (mais aqui). Mesmo a esquerda se refere ao que chama de genocídio dos mais pobres como uma consequência inevitável da doença.

É aqui que me permito discordar. Sem negar a exploração e expropriação da população dos cinturões de miséria ao redor de toda grande cidade por uma elite gananciosa, que é real, avento a hipótese de que, ao menos, o perigo iminente de uma proximidade social exacerbada (sem falar das condições de saneamento precárias) simplesmente não existiria se tais populações estivessem a produzir no campo, de onde foram empurradas para a periferia urbana pelo avanço do latifúndio. Sim, estou a falar de reforma agrária. Que foi empurrada com a barriga, como um problema vago, para o futuro, mas que responderia muito mais satisfatoriamente a esta crise do que medidas emergenciais e assistenciais.

Notem que uma reforma agrária proveria não apenas uma resposta agressiva para o problema do isolamento em regiões densamente povoadas, mas, além de representar uma inquestionável melhora na qualidade de vida (principalmente em tempos de conexão digital universal) de quem hoje habita o inabitável e vive de esperança de uma inclusão que nunca chega, aponta alternativas para o colapso da economia global que hoje experimentamos.

É fácil entender. Se hoje consumimos bens produzidos globalmente – desde grãos cujas safras são negociadas em bolsas transnacionais até acessórios esportivos supérfluos (o fenômeno de como a ideia de bem-estar “colou” em marcas desportivas, como Adidas ou Nike, é bem interessante e merece, por si só, um olhar mais demorado) – é por que a globalização determina, mais cedo ou mais tarde, deliberadamente ou não, o colapso de redes de produção e abastecimento locais. Talvez a chave do problema seja comprarmos de muito longe o que é mais barato, ainda que supérfluo,  ao invés de buscarmos mais perto tão somente o que é necessário.

Antes de finalizar, preciso aludir a dois casos didáticos que me ocorrem, um de longe, macro, e outro bem de perto. Pensem no embargo comercial a Cuba. Se a pequena ilha realmente precisasse de algo que o poderoso cerco norte-americano insistiu por décadas em lhe negar acesso, há muito teria sucumbido, não tendo hoje um dos melhores sistemas de saúde do mundo nem oferecendo generosamente ajuda a países hora dedicados (bem, ao menos um deles) à pilhagem de máscaras de proteção.

E antes que me acusem de uma visão naive, que a macro economia não é bem assim, que o mercado e as finanças internacionais tem seus meandros complexos, acessíveis apenas a iniciados, etc. e tal, me permitam relatar um descobrimento singelo, por ocasião do início da quarentena, quando as tele-entregas ainda não eram a regra. Preocupado com a manutenção do abastecimento de víveres, perguntei numa rede social que mercadinhos entregavam listas de compras em Porto Alegre. Foi quando dois amigos (obrigado, Marta e Fábio !) me falaram, imediata e simultaneamente, de um agricultor de Nova Santa Rita (município próximo a POA), que, uma vez por semana, entregava cestas orgânicas na cidade.

Sou um sonhador. Imagino um mundo sem publicidade e sem intermediários. Pressionados pelo vírus, já estamos fazendo o downgrade do supermercado para o mercadinho da esquina. Mas a descoberta da Família Argolo, de Nova Santa Rita, que faz chegar legumes e verduras diretamente de onde são produzidos até a porta de minha casa, me ajuda a sonhar que um mundo melhor é possível.

Textos sombrios (ii): o futuro do trabalho

Advertência: devo aqui ruminar mais um pouco na linha pessimista de meu texto anterior, desta vez sobre o que esperar, num futuro não muito distante, de uma civilização cujos indivíduos, principalmente nos últimos 500 anos, passaram cada vez mais a definir sua existência pelo trabalho.

Um ser humano típico, exercendo uma ocupação formal (i.e., com garantias e vínculos reconhecidos), passa, via de regra, durante sua vida, por três idades distintas, a saber, a formativa, na qual se prepara para ingressar no mundo do trabalho; a da produção, quando exerce a ocupação para a qual foi treinado; e a terceira, eufemisticamente chamada de “melhor idade” e geralmente associada à aposentadoria, na qual já não tem a oferecer à sociedade a mesma energia vital de outrora, sendo, portanto, dispensado dos esforços (mas não dos tributos !) exigidos dos mais jovens.

Se o ócio é mais aceitável em idosos do que em gente mais jovem, tal se deve principalmente a razões econômicas como menor produtividade e custos mais elevados advindos de adoecimento. Tais imperativos são via de regra esquecidos ou ignorados com o uso de expressões como “terceira” ou “melhor” idade, que possuem uma carga semântica, respectivamente, neutra ou francamente mais positiva do que, simplesmente, velhice. Uma espécie de recompensa por uma vida dedicada a não se sabe muito bem o quê. Alguma dúvida, até aqui, sobre o fato de que a linguagem é, sim, ideológica ?

(da mesma forma que me incomodam anúncios de bancos com pessoas sempre sorrindo (quem já viu coisa parecida, i.e., rostos sorridentes num atendimento bancário típico, no mundo real ?), também tenho uma aversão cética em relação à propaganda de planos e serviços de saúde e previdência para idosos no qual os mesmos são retratados invariavelmente felizes. Tal situação não corresponde de  modo algum ao que se vê em instituições, beneficientes ou de luxo, na qual velhos recebem cuidados enquanto lá são deixados para envelhecer e morrer)

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A distinção geralmente aceita entre trabalho (o que se faz para (sobre)viver) e lazer (o que se faz por prazer ou enriquecimento espiritual pessoal) é uma relativamente recente na história da humanidade quando observada numa escala de tempo mais ampla.  Com efeito, desde nossos ancestrais caçadores-coletores, passando pela idade agrícola e até a idade média (deixando, é claro, de lado o trabalho escravo), jornadas de trabalho eram mais curtas, o trabalho facultativo, e não havia uma distinção clara entre o que o ser humano fazia pela própria subsistência ou apenas por prazer. Entre caçadores-coletores, por exemplo, canto, dança e histórias ao redor da fogueira eram uma necessidade tão vital quanto alimentação ou abrigo e, se alguém eventualmente não quisesse participar da caçada, não havia problema algum, pois seria de bom grado alimentado pelo bando (vide Economistas estão obcecados pela “criação de empregos”. E se trabalhássemos menos ?, no final do oitavo parágrafo).

É razoável, portanto, supor que a noção de trabalho como a temos hoje tenha se originado com a divisão de classes nas revoluções comercial e industrial – já que, antes, não fazia qualquer sentido a ideia de exploração do trabalho humano por terceiros. Foi só com a maximização do lucro obtido, primeiro com a comercialização e depois com a fabricação, de bens que passou a ser importante o aproveitamento de toda a força de trabalho, só limitado pelas conquistas trabalhistas. A partir daí a história é conhecida, com reivindicações sindicais e, mais recentemente, proteção da infância e reconhecimento de direitos iguais para mulheres.

Quanto ao lazer, é tolerado indiscriminadamente em idosos (já que “socialmente inúteis”); um pouco menos em crianças (só depois da realização dos deveres escolares) e muito pouco entre adultos. Pelo menos entre adultos trabalhadores, não ricos (rentistas). Notem que tanto adultos como crianças devotam suas melhores horas (aquelas em que estão mais dispostos) ao estudo e ao trabalho, lhes sendo concedidas para o próprio lazer apenas aquelas em que estão, na maioria das vezes, exaustos, só esperando o sono, por sua vez restaurador para uma nova jornada de esforços nos quais, muitas vezes, não percebem qualquer sentido. Mas não vou me deter nos bullshit jobs, tão bem descritos e estudados por David Graeber na obra que resenhei aqui. Graeber dedica seu livro “aos desempregados, que são quem efetivamente cuida dos outros”.

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Estudiosos de Oxford estimaram, já em 2013, a probabilidade de extinção, nos 20 anos seguintes, das principais profissões que conhecemos hoje. A lista (compilada por Harari em Homo Deus e citada aqui), encabeçada por operadores de telemarketing e corretores de seguros, é impressionante.

Face a esta realidade onipresente, não surpreende que agremiações de classes ocupacionais, reeditando o movimento ludista (trabalhadores que, no início da revolução industrial, quebraram máquinas num gesto desesperado para tentar manter seus empregos), tentem garantir a manutenção de suas profissões, as quais vão se tornando obsoletas face a avanços tecnológicos irreversíveis. Como, por exemplo, carteiros numa era de comunicações digitais; taxistas em meio a aplicativos de transporte; vendedores de lojas concorrendo com o comércio eletrônico; caminhoneiros (que já tiveram sindicatos poderosos, como mostrou recentemente Martin Scorcese em O Irlandês) em estradas cada vez mais povoadas por veículos autônomos; caixas em bancos e postos de cobrança de estacionamento em shopping centers e operadores em qualquer atividade outrora existente que, em tempos recentes, foi contemplada com o auto atendimento.

Quando o declínio progressivo da quantidade de postos de trabalho em razão da automação crescente e da proliferação do do it yourself e do self service, não tardará o dia em que, em razão da necessidade minguante de trabalhadores, a divisão de classes, ainda hegemônica, entre patrões (proprietários) e trabalhadores (empregados), será rendida totalmente obsoleta. Harari estima que, numa futura sociedade voltada para o lazer, uma das únicas profissões ainda em demanda será a de programador de jogos. Tal contexto já foi bastante explorado em obras de ficção – como no filme de animação Wall-e (2008), rara distopia para o público infantil, onde uma humanidade ociosa e obesa migra para outro planeta, deixando para trás uma Terra suja e esgotada, povoada por robôs faxineiros.

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Alguém já observou, com muita propriedade, que atividades como a caça ou a pesca, que nos primórdios da história humana eram consideradas uma espécie de trabalho (ainda que, como dissemos acima, não havia uma distinção clara entre trabalho e lazer como a que temos hoje) são atualmente exercidas por muitos francamente como lazer. Ao mesmo tempo, sem entrarmos no mérito da questão sobre se cada uma das atividades abaixo arroladas se constitui ou não, no entender de Graeber, num bullshit job, é difícil imaginar algum prazer (exceto, é claro, o da gratificação econômica) experimentado pelo operador de uma máquina numa linha de produção industrial; por vendedores no comércio varejista ou e por burocratas dedicados ao tráfego de informações, seja em papel ou por meios digitais, em bancos, tribunais, cartórios ou repartições de toda sorte. Notem que uma parte considerável da população economicamente ativa exerce, em nome da própria subsistência, alguma destas atividades.

Reconhecer tal estado de coisas implica, necessariamente, num impasse em se tratando de educar indivíduos para o assim chamado mundo da produção. Como educar filhos para viver num mundo em que a sobrevivência (mais: a própria identidade individual) ainda depende fundamentalmente do trabalho quando não temos razões para acreditar que, num futuro não muito distante, o trabalho ainda existirá como fator hegemônico de definição da existência humana ?

Neste cenário, ainda tido pela maioria como pessimista mas cada vez mais aceito como realista, há quem se atreva a propor utopias capazes de lidar com o problema do desemprego generalizado. Uma destas vertentes é a da renda mínima universal (UBI, para universal basic income), que prevê o aporte pelo estado de uma quantia substancial a cada cidadão, suficiente para lhe garantir uma existência digna, independentemente do mesmo pertencer ou não à força de trabalho. O holandês Rutger Bregman é um dos principais representantes desta corrente, esmiuçada em detalhe em sua obra Utopia para Realistas, de 2016.

Também digna de nota é a candidatura à presidência dos EUA, ainda neste ano, de Andrew Yang, que defende a concessão pelo governo de mil dólares mensais a cada cidadão. Antes, no entanto, de saudarmos a renda mínima como um projeto de esquerda e nos entusiasmarmos com a plataforma de Yang, é preciso que se diga que ele a vê, antes de tudo, como um modo ideal de estimular – pasmem ! – o empreendedorismo. Vem, meteoro.

Contra o empreendedorismo

Empreendedorismo está na moda. Em economias liberais, é superestimado. Empreendedores assumem riscos movidos pela perspectiva da obtenção de lucro. Num cenário isonômico, tal perspectiva deveria ser, por si só, suficiente para lançar tais indivíduos em busca de seus objetivos. Só que não. Pois qualquer aspirante a empresário pode recorrer a agências de fomento, incubadoras empresariais e linhas de crédito dedicadas. Todo este aparato governamental, acadêmico e financeiro à disposição do dito espírito empreendedor equivaleriam a um incentivo a apostadores em um cassino.

Por razões além do interesse deste texto, cassinos são, em nosso país, ilegais. E mesmo que fossem legais, seria difícil imaginar governo, universidades e bancos proporcionando as condições necessárias a todo apostador em potencial (bem, há, é claro, as loterias oficiais, mas as deixemos, por hora, de fora desta argumentação). Num cassino, a regra é simples: aposta quem tem, não aposta quem não tem. Sem choradeira. Cada um compra as fichas antes de jogar.

Com o empreendedorismo, não é diferente. Espírito empreendedor ? Bullshit. Ainda que a ideologia liberal insista em exaltar o empreendedor como o visionário que aceita empreender riscos, a grande verdade oculta é que só empreende quem tem cacife para apostar, i.e., dispõe de vastos recursos, geralmente herdados ou oriundos do lucro de empreendimentos anteriores bem sucedidos, dos quais pode perfeitamente prescindir se tudo der errado. Também se sabe que grande parte dos empreendedores só obtiveram sucesso depois de várias tentativas; até lá, tão somente perderam recursos investidos.

Por outro lado, alguém já viu um assalariado que luta para pagar suas contas no fim do mês se lançar com êxito em algum empreendimento ? Ok, isto às vezes acontece – e, nestes casos, faz a alegria dos produtores de televisão. Mas, via de regra, trabalhadores são cautelosos com seus gastos – o que exclui, na maioria das vezes, qualquer possibilidade de empreender. Como, por exemplo, na abertura de franquias, que costuma exigir um pesado investimento inicial.

Outra verdade oculta é a alta taxa de mortalidade empresarial, i.e., de empresas que encerram atividades poucos anos depois de abertas, seja por expectativas demasiado otimistas de seus fundadores, seja pela concorrência predatória tão exaltada como a “mão invisível do mercado”. Assim, está longe de ser uma resposta satisfatória para o problema da desigualdade um sistema no qual ao sucesso de um corresponde necessariamente o fracasso de muitos.

Sucesso e fracasso. Costuma-se dizer de todo empreendedor bem sucedido que ele venceu por reunir mais méritos do que os que fracassaram. Estamos aqui claramente diante de uma meia verdade. Pois, ainda que não possamos negar a competência de qualquer empreendedor bem sucedido, certamente nem todos os concorrentes que não lograram o mesmo êxito são desprovidos de tais méritos. Muito já se falou da desigualdade das condições iniciais como principal vulnerabilidade da meritocracia. É, pois, aqui, suficiente dizer que muitos empreendimentos que não emplacam devem seu fracasso à escassez de capital de risco, falhas de mercado ou, simplesmente, sorte.

Falhas de mercado. Na utopia capitalista, todos os competidores iniciam o jogo nas mesmas condições. Como exércitos isonomicamente distribuídos no início de uma partida de War (jogo de tabuleiro mais chato que conheço, metáfora perfeita do sistema capitalista, em que sempre ganha a [longa] partida quem vence as primeiras rodadas). Só que, na prática, jamais encontramos esse cenário perfeitamente controlado. A começar pela sorte que, em qualquer competição, sorri para alguns em detrimento de outros. E para complicar as coisas, surgem as chamadas falhas de mercado, das quais as mais conhecidas são o protecionismo e as informações privilegiadas.  Alíquotas tributárias e taxas de juros diferenciadas, bem como isenções fiscais, aplicadas a diferentes categorias, constituem os exemplos mais conhecidos de protecionismo. Já as informações privilegiadas se referem ao conhecimento prévio e exclusivo, por parte de um ou mais competidores, de dados sensíveis tais como, por exemplo, oscilações futuras no valor de ativos e comodities.

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Já falamos de mortalidade empresarial. Falemos, agora, do que esperar de qualquer empreendimento bem sucedido.  Num sistema que valoriza, acima de tudo, o crescimento (já foi dito que a salvação do planeta, para as próximas gerações, depende principalmente das nações abrirem mão da expectativa de crescimento que move a economia), todo novo empreendimento só pode almejar, realisticamente a 1) se tornar suficientemente interessante a ponto de ser adquirido por uma empresa maior; ou 2) crescer o suficiente para comprar os concorrentes mais sérios.

Notem que apenas pequenos estabelecimentos, como mercadinhos, padarias, oficinas mecânicas, borracharias, bares, restaurantes e afins parecem imunes a esta regra.  De resto, farmácias, supermercados, franquias e grandes lojas tendem a constituir redes cada vez maiores. Sem ser economista, avento uma possível especulação para tal estado de coisas. É que, enquanto os negócios do primeiro grupo limitam seu porte à capacidade produtiva de quem neles trabalha, já os do segundo almejam à constante expansão do capital.

E aqui estamos, outra vez, diante de uma dicotomia entre capital e trabalho que muitos já consideram, como aquela entre esquerda e direita, ultrapassada. Não conheço, todavia, maneiras melhores de ver a economia. Consoante a isto, gosto de pensar no capitalismo, enquanto sistema competitivo ao invés de colaborativo, como uma espuma – na qual, na ausência de uma força externa de agitação (análoga aos célebres think tanks, como a Atlas Foundation ou a Mont Pèlerin Society, através dos quais o capital internacional busca explicar e justificar sua existência), tende a se dispersar num conjunto cada vez menor de bolhas cada vez maiores. Não conheço melhor metáfora para a tendência às fusões e aquisições dos negócios mais rentáveis. Ou seja: o capitalismo pode ser, como uma espuma, tudo menos auto sustentável.

Utopia para Realistas (2016), de Rutger Bregman

Quando meu amigo Ivo Eduardo me recomendou, num comentário sob uma postagem que fiz no facebook sobre renda mínima, Utopia para realistas (2016), do historiador holandês Rutger Bregman, logo desconfiei que se tratava de um grande livro, por já ter traduzido dois artigos do autor, respectivamente, sobre trabalhos inúteis (“bullshit jobs“) e redução da jornada de trabalho. Consoante a isto, tratei logo de obter o volume e passá-lo à frente de minha fila de leitura (a grande vantagem dos livros sucintos: o de Bregman tem só 225 páginas, fora as notas).

As notas. Ocupando 28 páginas (mais de 10% do livro, portanto), denotam inequivocamente um dos principais traços do estilo do autor, a saber, o de comprovar toda e qualquer alegação sua – muitas das quais contundentes, na contramão do senso comum – por meio de farta bibliografia de estudos e pesquisas já conduzidos e disponíveis online para quem quiser conferir. Há mesmo uma seção inteira dedicada a explicar o que é um estudo controlado randomizado, ou ECR (aqueles com grupos de controle) – como, por exemplo, um realizado no Quênia em 1998 para investigar o efeito da ajuda humanitária sob a forma de doação de livros escolares. Curiosidade: o primeiro ECR de que se tem notícia foi realizado no século VII a.C. e relatado na bíblia.

Outra faceta convidativa do estilo de Bregman é a fragmentação de cada capítulo em seções com subtítulos que não passam de duas páginas. Com isto, fica mais fácil interromper e retomar a leitura, bem como localizar passagens específicas em referências futuras.

De resto, seu estilo é francamente aforístico (como, suponho, num manual de autoajuda), incessantemente conclamando o leitor a alguma linha de conduta em prol do progresso social.

Dito isto, deixemos de lado o estilo do texto para nos concentrarmos em seu conteúdo. Como o título indica, se trata de uma utopia, alicerçada sobre três princípios centrais: a implementação de (1) uma renda mínima universal; de (2) jornadas de trabalho radicalmente mais curtas (idealmente, 15 horas semanais, como previra Keynes em 1930) e (3) a abolição de todas as fronteiras nacionais.

Discutindo a renda mínima, Bregman cita exemplos históricos, a começar por sua quase implementação nos EUA por Nixon,  citando inúmeros estudos realizados sobre populações que já a experimentaram. Tais estudos tem por principais objetivos a derrubada de mitos tais como os de que uma renda mínima universal seria demasiado onerosa ou de que, ainda, induziria à indolência e/ou ao oportunismo. Ao fim, estudos conduzidos sobre populações que já foram submetidas a programas de renda mínima demonstraram que

o custo de tais programas é significativamente menor do que aqueles outros, assistenciais e paliativos, destinados a mitigar os efeitos da pobreza; e que

sujeitos contemplados com uma renda mínima, ao contrário de se resignarem a não trabalhar e a consumir os recursos que lhes foram destinados com alcoolismo e drogadição (como muitos detratores acreditam), usam os mesmos para custear despesas de subsistência, utilizando o tempo livre, não mais comprometido com empregos subremunerados ou mesmo inúteis, para buscar ocupações socialmente significativas.

Ao longo do livro, Bregman sustenta várias teses interessantes. Dignas de nota são

a história do PIB (produto interno bruto); suas limitações; o mito da sustentabilidade de modelos econômicos baseados em crescimento constante e a necessidade de novos índices para aferição do progresso social;

o mito de que o setor privado (indústria e serviços) é mais barato e o público (saúde e educação), muito caro; para refutá-lo Bregman se vale dois itens excluídos do PIB, a saber, os custos ocultos do setor privado e os benefícios ocultos do público.

o fenômeno dos empregos inúteis (bullshit jobs), citando amplamente David Graeber, autor do ensaio de 2013 no qual cunhou o termo e do livro de 2018 totalmente dedicado ao tema;

a relação inversa normalmente verificada entre a utilidade e a remuneração de cada trabalho (quanto maior a importância social, menor a remuneração, e vice-e-versa); por esta regra, garis, enfermeiros e professores (profissões que produzem riqueza) ganham muito menos do que, por exemplo, advogados, lobistas e operadores financeiros (profissões que transferem riqueza). No sugestivo capítulo intitulado Por que não vale a pena trabalhar em banco, Bregman compara o efeito imediato (negociação após 6 dias) da greve dos lixeiros de Nova Iorque em 1968 com a dos bancários da Irlanda em 1970, suspensa depois de 6 meses por não ter produzido qualquer resultado esperado pelos grevistas;

a permanência de modelos falidos por meio da ideologização da credulidade,  sintetizada pela máxima “pessoas inteligentes não utilizam seu intelecto para obter a resposta correta; usam-no para obter o que elas querem que seja a resposta” (citando Ezra Klein em How politics makes us stupid).

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Conquanto brilhantemente defendida e fartamente documentada, a utopia de Bregman não é, como qualquer utopia, de fácil implementação. Seu estabelecimento depende da adoção progressiva, por parte de lideranças internacionais importantes, de um ou mais dos três princípios arrolados no quinto parágrafo deste post. Sua aceitação, no entanto, por parte de eleitores, não é nada simples, implicando, antes, uma revolução cultural para desinstalar falsos pressupostos “naturalizados”, tais como, por exemplo, o mito do crescimento contínuo e o valor incondicional do trabalho.

Felizmente, a pauta de Bregman, contra todas as expectativas mais conservadoras, já faz parte do discurso político, começando pela candidatura à presidência dos EUA em 2020 de Andrew Yang, que pretende, entre outras coisas, dar a cada cidadão norte-americano a quantia de 1000 dólares por mês, independentemente de estarem desempregados ou inscritos em qualquer programa de assistência ao desemprego. Oxalá iniciativas assim proliferem !