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Conforme demonstra Yuval Noah Harari em Homo Deus, o espírito dos tempos está impregnado nos jogos mais populares de cada época. Consoante a isto, assim como o xadrez encerra uma ideia de finitude de recursos (sempre se termina com menos peças do que se começa) que prevaleceu até a Idade Média, jogos contemporâneos como Minecraft e Civilização obedecem a um pressuposto fundamental de crescimento ilimitado – que se confunde, por sua vez, com a própria definição do capitalismo. Já tratei disto aqui.
Neste post, examinaremos como premissas facilmente refutáveis do capitalismo também se fazem presentes em outros jogos bem populares em nossa época – a saber, a roleta e o jogo de tabuleiro War. Antes, porém, devemos identificar vetores genéricos que atuam em partidas de cada jogo, bem como no que um jogo difere de um esporte. Comecemos por esta última distinção.
Em esportes, o que está em jogo é tão somente o enfrentamento de adversários em competências e habilidades específicas. Ganha o que, por uma combinação de preparo e improvisação (a última sempre depende do primeiro), apresentar o melhor desempenho numa partida disputada segundo regras rigorosas previamente acordadas entre os participantes. Em embates esportivos, resultados dificilmente podem ser atribuídos, portanto, à maior ou menor sorte de qualquer uma das partes. É assim no futebol, no boxe, no atletismo, no turfe e até no automobilismo – onde até a quebra de um motor ou o estouro de um pneu terão a ver com a maior ou menor robustez de equipamentos utilizados por cada equipe.
Nos jogos é bem diferente, pois, ainda que a maioria das modalidades permita, em maior ou menor grau, alguma manipulação racional por parte dos jogadores, à qual chamaremos de estratégia, o êxito ou o fracasso em cada rodada depende, acima de tudo, de eventos aleatórios que fogem a qualquer controle por parte dos jogadores. Como o lançamento de dados, a retirada de esferas numeradas de dentro de um globo ou de cartas de um baralho ou, ainda, o setor onde cairá uma esfera lançada sobre uma roleta giratória.
Nestes eventos aleatórios, ainda que seja impossível se predizer qualquer resultado (daí parte do fascínio exercido por certas modalidades sobre jogadores compulsivos), se pode, no entanto, estimar com absoluta precisão qual a probabilidade de ocorrência de cada evento independente ou de eventos combinados. Temos, então, que os resultados de quaisquer jogos são sempre determinados por uma combinação de habilidade (o domínio da estratégia) e sorte (a componente probabilística). Por esta razão, tais jogos são popularmente conhecidos como jogos de azar.
Deste modo, a roleta, os jogos com dados e cartas e as loterias são jogos de azar. Já o turfe, não. Muito embora nele se tenha institucionalizado o expediente de apostas, não são estas que definem se um jogo é ou não de azar mas, tão somente, sua imponderabilidade ou, se preferirem, sua componente probabilística. Pois mesmo que se tenha vulgarizado a figura do “cavalo azarão” (bem como, no futebol, a da zebra), qualquer apostador sabe da importância da posse de informações de cocheira, capazes de explicar por que um cavalo bom corre ocasionalmente mal e vice-e-versa.
Feita esta distinção, aos jogos.
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Minha curiosidade pelos jogos de azar, bem como minha paciência com os mesmos, só durou até o final da adolescência – que foi quando compreendi, mais do que o princípio probabilístico envolvido (i.e., que, por mais que eu me empenhasse, o resultado jamais dependeria de meus esforços), o fato de que, em partidas prolongadas, há uma tendência crescente e irreversível à vitória daquele competidor que tiver o maior capital acumulado. Examinemos primeiro o caso do célebre jogo de tabuleiro War.
Quem, depois de alguma excitação inicial, não descartou como diversão as invariavelmente longas partidas de War com base na rápida constatação de que aquele jogador que acumulasse, no início do jogo e como resultado do rolar dos dados, mais exércitos sempre vencia ? Complexo ? Reformulo, então, mais sucinto: quem já viu alguém ganhar uma partida de War “de virada” ? Pouco provável, não ?
No início de uma partida de War, temos controle sobre como posicionamos nossos exércitos e sobre o momento de parar de atacar em cada rodada. De pouco importa, no entanto, tudo isto se não contarmos com uma boa dose de sorte no rolar dos dados – únicos responsáveis por nossa conquista de novos territórios ou, ao contrário, pela dizimação de nossos exércitos. Só que isto só vale para o início de cada partida – pois, ao fim de algumas rodadas, com a série de resultados dos dados convergindo para uma média (uma das primeiras coisas que se apreende em cálculo probabilístico), tende a se ampliar a vantagem, obtida no início da partida, de um jogador sobre os demais, os quais são submetidos a uma agonia lenta, irreversível e enfadonha. Exatamente por isto, muitas partidas de War que começam a ser disputadas não chegam a termo, com os oprimidos aceitando de bom grado uma derrota antecipada, por abandono, em troca da liberdade para procurar uma distração melhor.
(num ataque nostálgico, talvez movido pela falsa promessa de oferecer uma alternativa razoável aos jogos eletrônicos, adquiri já adulto um kit de War para jogar com meus filhos. Do que, de pronto, me arrependi. Felizmente, eles também não tardaram muito a descobrir que aquilo era um tédio só – exceto para quem estava ganhando, é claro)
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Talvez não haja jogo mais emblemático dos cassinos do que o de roleta. Muitos fatores contribuem para isto. Primeiro, é claro, o ricochetear da bolinha antes de cair num dos setores numerados. Parece pouco ? Comparem com o lançamento de dados – que, numa fração de segundo, se imobilizam mostrando os números sorteados na face superior. Sob o ponto de vista de um apostador compulsivo, uma eternidade se passa desde o momento em que o crupiê lança a bolinha em sentido contrário ao do giro da roleta até que ela caia numa de suas canaletas. A prolongação do tempo de sorteio potencializa, então, a emoção da expectativa de um resultado favorável. Não estamos interessados, aqui, no entanto, nas nuances psicológicas do jogo – mas, tão somente, em seus aspectos matemáticas.
Se fosse só para apostar em sequências de eventos aleatórios, apostadores se divertiriam lançando moedas em jogos de cara ou coroa sem precisar ir a cassinos. A parte mais importante do glamour do jogo de roleta – assim como de qualquer jogo de azar – reside na aparente complexidade do mesmo, que permite a todo jogador fantasiar sobre a existência de um sistema possível de enriquecimento fácil, capaz de derrotar o cassino ou, no jargão dos apostadores, “quebrar a banca”.
No jogo de roleta, esta aparência complexa é suprida pela variedade de modalidades de aposta com taxas de remuneração diferenciadas. Numa roleta, existe 1 chance em 37 de que um número seja sorteado. Que, para todos os efeitos, devem ser consideradas 36, posto que, numa delas (o zero), a banca ganha tudo. Pois bem. Se você apostar num único número e acertar, ganha 35 vezes o que apostou; uma vez a menos, portanto, do que o número de chances que tem de ganhar, que é de 36. Por conveniência, apresentamos, abaixo, cada possibilidade de aposta existente numa mesa de roleta, com as respectivas chances de vitória e taxas de remuneração.
números por aposta |
chance de vitória |
remuneração |
1 |
uma em 36 |
35 vezes |
2 |
uma em 18 |
17 vezes |
3 |
uma em 12 |
11 vezes |
4 |
uma em 9 |
8 vezes |
6 |
uma em 6 |
5 vezes |
12 |
uma em 3 |
2 vezes |
18 |
uma em 2 |
1 vez |
Pelo quadro acima, é fácil se entender por que, numa mesa de roleta, a banca sempre ganha, independentemente da existência do “zero” – a saber, por que, para cada tipo de aposta, a banca (o cassino) paga sempre uma vez a menos do que o número de chances que o apostador tem de vencer. O exame deste quadro também torna evidente a qualquer um que domine rudimentarmente o cálculo probabilístico que derrotas sucessivas podem ser compensadas com apostas crescentes em progressão geométrica até a vitória, em séries reiniciadas após cada vitória ao fim de uma sequência de derrotas.
Desta constatação – a saber, de que apostas em progressão geométrica podem compensar perdas em derrotas sucessivas – derivam todos os sistemas ilusoriamente criados no intuito de “quebrar a banca”. Só que cassinos sabem disto e, mesmo que algum apostador com os bolsos mais forrados se encontre em posição de sustentar séries sucessivas de apostas exponencialmente crescentes, as últimas costumam ter valores limitados por categoria de aposta, de modo a, depois de um certo número de tentativas fracassadas, inviabilizar a recuperação das perdas anteriores numa mesma série. Tem-se, então, que os limites estipulados pela banca acabam por derrubar, mais cedo ou mais tarde, qualquer sistema de apostas.
Tudo isto, que pode ser ilustrado com uma série de tabelas, parece bem complicado, mas pode ser resumido, para jogadores neófitos, na seguinte máxima: não tente, em hipótese alguma, quebrar a banca. Pois é inútil, já que, dada a engenhosa arquitetura do jogo, ela sempre vence. Ou não haveria um negócio lucrativo, que até alguns estados exploram, chamado cassino.
Daí se depreende que a indústria dos jogos de azar só existe por que é a própria banca quem estipula as regras. Pois é fácil se intuir que não existiriam mesas de roleta em cassinos se as taxas de remuneração por vitória fossem iguais ou superiores às chances de acerto em cada faixa de apostas. Isto é elementar. Tão elementar como o fato de se estabelecerem relações escusas e promíscuas entre o poder e o capital a fim de que o último possa operar em benefício próprio dentro da zona de conforto da conformidade com a lei.
Tal vício está no cerne da questão do financiamento de campanhas, ardilosamente contornada no que hora chamam, por aqui, eufemisticamente, de reforma política. Lawrence Lessig, criador do protocolo Creative Commons, propõe, por meio de um movimento chamado Fix Congress Now, uma alternativa razoável a este estado de coisas – a saber, o de que a justiça eleitoral só legitime contribuições de doadores limitadas a um certo montante. Com doações limitadas, por exemplo, a cem dólares (e o consequente banimento das grandes doações), estaríamos livres da principal forma conhecida de pressão corporativa sobre a política.
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Todo este preâmbulo – de, confesso, um jogador desistente que, sem jamais ter apostado um único centavo, tentou insistentemente, em mesas lúdicas e de várias maneiras, quebrar a banca – foi só para dizer que um sistema capitalista, descrito por apologistas como, ao mesmo tempo, autoregulatório e meritocrático, não é nem um nem outro. Vejamos por partes.
Não é à toa que grandes investidores sejam comumente designados por economistas como players. Pois o livre mercado, canonizado pelo pensamento liberal como árbitro supremo de todos os conflitos, não passa de um grande jogo de apostas submetido às mesmas forças que atuam nos jogos de azar. Neste cenário, players desenvolvem suas estratégias principalmente a partir de informações privilegiadas (daí o conceito de sigilo comercial) cujo domínio beira a ilegalidade. Todos os outros fatores cuja interação se apresenta, pela própria complexidade, como mais imponderável constituem a área de expertise das agências de atribuição de risco, que vivem de recomendar ou não o investimento de capitais aqui ou ali.
(dia desses, no intuito de conhecer a retórica do liberalismo mais raso, me diverti ao ver Kim Kataguiri afirmar que a taxação das grandes fortunas seria uma medida inócua, posto que o capital migraria facilmente para onde fosse menos taxado. Como se esta fluidez fosse, antes de um crime, uma espécie de lei natural ou direito adquirido. Deve ser preciso muito estômago e paciência para se debater com gente assim…)
Neste contexto, desfrutam de ampla vantagem aqueles competidores que, por estarem garantidos por um lastro financeiro maior do que os outros, podem correr mais riscos – até se dando, vez que outra, o luxo de perderem. Como apostadores bem capitalizados. Já numa competição mais prolongada, que envolva rodadas múltiplas, tendem inevitavelmente a engolir os menores.
Circula, entre apologistas das virtudes do livre mercado, uma retórica de exaltação do pequeno empreendimento. Bullshit. Se grandes empresas não voltam seu apetite insaciável a alguns setores econômicos, tal se dá tão somente por que tais setores não lhes oferecem tanta lucratividade como aqueles nos quais investem. É só estudar a fusões. As indústrias da comunicação e farmacêutica, por exemplo, são pródigas em casos de aquisição. Mas nenhum player parece interessado, no entanto, em adquirir mercadinhos com a mesma sanha que demonstraria em relação a redes de supermercado. Então, há nos setores econômicos mais lucrativos, como em um tabuleiro em forma de mapa mundi sobre o qual se travam partidas de War, uma tendência à existência de um número cada vez menor de competidores maiores.
Com isto, não se pode dizer que o mercado seja nem de longe qualquer coisa parecida com autoregulatório. Já a crítica a sua índole meritocrática é ainda mais fácil – posto que, como num jogo de azar, a banca (leia-se: o competidor que dispuser de melhores condições iniciais) sempre vence. Acreditarei nisto até que historiadores da economia me demonstrem o contrário. Pois, até onde sei, nenhum David consegue derrotar um Golias a não ser na mitologia. Então, está mais do que na hora de começarmos a pensar na supremacia do mercado mais como um conjunto de mitos do que, como nos querem fazer acreditar, um sistema de leis “naturais”.