Mitos literários (ii): da superioridade dos relatos fantasiosos sobre aqueles baseados em fatos reais, autobiográficos ou não

Desde muito cedo me acostumei com a ideia de que só se conhece um grande escritor a partir de seu segundo livro, depois que transcende o relato autobiográfico. Noves fora o fato de um autor poder muito bem criar histórias a partir da própria fantasia antes de cometer seu primeiro texto confessional, entendo hoje que tal crença não passa de um mito. Noutras palavras: a qualidade de um texto não depende de sua inspiração ter saído da fantasia do autor ou de sua própria experiência pessoal ou de outros fatos reais.

Ao pensar em obras magistrais baseadas em experiências pessoais de seus autores, me veio imediatamente à mente os contos de Lucia Berlin, publicados postumamente, ou os 6 volumes (apenas 4 deles traduzidos para o português) da saga A Minha Luta, de Karl Ove Knausgard. Outros textos aportados como autobiográficos por Maria de Abreu, Luciana Etchegaray e Marcelo Borba, são, respectivamente, O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche.

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É claro que as duas categorias (fantasia X realidade (autobiográfica ou não)) não são mutuamente excludentes, i.e., provavelmente na maioria dos casos o texto resultante é um amálgama de criações fantasiosas mescladas com pitacos de experiência pessoal do autor ou de outrem.

A componente real de cada obra de ficção é, no entanto, geralmente difícil de ser identificada, posto que advinda de episódios da vida privada de cada autor ou de terceiros nem sempre explicitados em biografias de domínio público. Até por isto, constituem uma espécie de eixo temático preferencial em textos críticos especulativos. Ou seja, são objeto favorito de teses e resenhas.

São comuns, por exemplo, histórias que partem de fabulações sobre a vida e/ou a obra de personalidades históricas. De certo modo como os docudramas e algumas cinebiografias mais licenciosas. Há, nesta categoria, uma obra prima que se ergue sobre a maioria das outras: Doutor Fausto, de Thomas Mann, cuja trama alude a inovações musicais introduzidas por Arnold Schoenberg. Só que o livro é, sob muitos aspectos, maior do que o argumento de partida que Mann tomou emprestado. Bem maior. Pertence ainda a esta região híbrida, entre a realidade e a ficção, a novela O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, inspirada na vida de Shostakovich.

Interessantíssimo, também, o experimento literário A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Nele, o autor cria um relato totalmente fictício emulando o estilo de uma obra de não ficção, a saber, uma antologia de biografias, só que de personagens totalmente imaginários. Uma obra singular que tenta, de algum modo, borrar, ainda que artisticamente, a outrossim rígida fronteira entre as categorias mutuamente excludentes da ficção e da não ficção.

Tão bom é o exercício estilístico de Bolaño, supracitado, que um leitor desavisado bem poderia “arquivá-lo” numa estante junto a obras de não ficção. Aqui me assola um pensamento aleatório, descomprometido, passível de desenvolvimento posterior: já se deram conta de como o ato de posicionar um livro numa coleção equivale, de certa forma, a domesticá-lo ? Fecha parêntesis.

A possibilidade, a que aludo no parágrafo anterior, de que uma obra seja inadvertidamente classificada junto a outras que não tenham nada a ver com seu teor me traz de imediato à memória um fato divertido, ao qual devo meu primeiro contato sério, porquanto primário, com a obra de Richard Dawkins, guru mor dos ateus. Estava eu fazendo hora num shopping quando avistei, na vitrine de uma livraria religiosa, o livro Deus, um Delírio, de Dawkins, de quem, até então, somente tinha ouvido falar. Ora, era evidente que a obra estava ali por acidente, pois era totalmente alienígena em relação ao restante do acervo da livraria. Provavelmente, o livreiro, induzido pela ambiguidade do título (lembram da igreja Brasas – louvor e adoração ?), o tomara por um texto apologético. É claro que resgatei imediatamente o pobre volume daquele contexto hostil à sua essência, o comprando e devorando em tempo recorde. Os argumentos de Dawkins são avassaladores. Mas já estou falando de não ficção. Melhor deixar para depois. Fecha outro parêntesis.

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Este é um mito complicado de ser reconhecido, principalmente por que as narrativas oriundas da fantasia de seus autores (total ou parcialmente, como vimos acima) são mais numerosas do que as predominantemente autobiográficas ou inspiradas por fatos reais. Muito mais. Passando os olhos pelas lombadas dos livros na estante, há mais obras de ficção criadas a partir da fantasia de seus autores do que derivadas de suas experiências pessoais ou de outrem. Vários fatores contribuem para este estado de coisas.

Inicialmente, o fato de que toda escrita profissional, enquanto atividade que se estende por grande parte da vida de um autor, por vezes durante toda ela, implica numa produção continuada. Ora, isto é incompatível com a utilização sistemática e exclusiva de experiências vividas como ponto de partida – por que, afinal, biografia, por mais rica que seja, cada um só tem uma. Face a este impasse, a fantasia se constitui como um recurso inesgotável e, portanto, irresistível.

Contribui também para a hegemonia esmagadora de histórias fantasiosas, total ou predominantemente, o fato de ser impossível a qualquer autor se referir a coisas como, por exemplo, pessoas que voam, animais que falam ou consciência pós morte sem recorrer à imaginação.

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Há um gênero de ficção exclusivamente composto de narrativas fantásticas, a saber, a ficção científica, com todos os seus subgêneros (obrigado, Nikellen: sem você eu jamais saberia que existe algo chamado steampunk !).

A dicotomia entre o real e o imaginário (categorias, como vimos, por vezes superpostas) não se aplica, evidentemente, à literatura de não ficção, exclusivamente devotada ao universo experimental. Senão, estaria incorrendo, voluntariamente ou não, num certo tipo de falsidade ideológica. Como frequentemente ocorre em textos proselitistas tais como, por exemplo, os publicitários e panfletários.

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Falando assim, pode parecer que eu não reconheça valor em narrativas exclusiva ou predominantemente advindas da imaginação. Longe disso. A fantasia sempre foi, é e sempre será um valioso recurso disponível para escritores tecerem suas histórias. O que se torna problemático é quando a imaginação por si só se torna um indicador de qualidade literária valorizado de forma exacerbada, muito mais do que outros igualmente importantes. O mito a que me refiro é, portanto, o de que histórias baseadas primordialmente em dados de realidade, sejam elas derivadas da própria experiência pessoal de seus autores ou não, são, por definição, inferiores àquelas onde a fantasia corre solta. Noutras palavras, o que quero dizer é que importa menos se os ingredientes são reais ou fantásticos do que, propriamente, aquilo que um autor faz com eles.

Mitos literários (i): da superioridade do grande romance

Desde muito cedo (nem lembro quando) acreditei em duas “cláusulas pétreas” sobre as quais julgava que se erguia toda grande literatura. Uma diz respeito à forma, mais precisamente à extensão da mesma, e a outra, ao conteúdo. Hoje as reputo como não mais do que mitos. São eles:

  1. o romance é um formato literário superior aos outros, mais curtos; e
  2. escritores cuja fantasia transcende o relato autobiográfico são melhores do que aqueles que tecem sua obra exclusivamente a partir experiências por eles vividas.

A eles, então.

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O primeiro mito, sobre a superioridade do romance sobre formas mais curtas, esbarra, de saída, no problema de que superlativos, conquanto toda análise comparativa possa deitar alguma luz sobre a singularidade de obras específicas, tendem a obscurecer, num manto de mediocridade, tudo aquilo que é considerado menos elevado. Mas não é só isso.

Para melhor se entender como o grande romance acabou por adquirir seu status de tour de force literário, há que levar em conta determinantes históricos, comerciais e tecnológicos. Tratemos, pois, inicialmente, do aspecto comercial. Até por que fatores históricos e tecnológicos são melhor analisados como uma coisa só.

Devemos tratar a atividade editorial, em que pesem suas nuances, antes de tudo como uma indústria. E para qualquer indústria, o problema da escala de produção é crucial, por que tem implicações diretas no custo. Do seguinte modo. É mais barato produzir, anunciar e distribuir uma quantidade maior de cópias de um número menor de itens. Daí que a industrialização anda de mãos dadas com a padronização.

Mas o último parágrafo pode ter ficado um pouco nebuloso, porquanto teórico e, logo, abstrato. Tratemos, pois, de ilustrar. Pensem numa estante onde caibam uns 30 romanções ou uma centena de volumes menores. Qual preenchimento da estante (com livrões ou livrinhos) terá o menor custo para toda a cadeia produtiva, da gráfica à livraria, passando pela resenha crítica ?

Menos, Augusto, bem menos. É claro que, dentre as nuances, a que aludi acima, de toda indústria denominada “cultural” (é mais honesto chamá-la de “indústria do entretenimento”), possui especial destaque a demanda, por parte de leitores, ouvintes e espectadores (ou, em que pese soe cruel, consumidores) pela maximização da diversidade. Que se traduz em linhas de produção, campanhas publicitárias e estoques mais onerosos. A administração deste conflito entre, de um lado, padronização e escala e, de outro, diversificação é a alma do gerenciamento da indústria [você escolhe: cultural ou do entretenimento]. Para o negócio, é uma questão de vida ou morte.

Parêntesis. Alguns textos curtos, como os de Poe, adquirem vida própria e terminam por conquistar certa autonomia. Foi o que sucedeu com Bartleby, o escrivão, de Herman Mellvile (autor de Moby Dick). O conto, genial, cabe em 44 páginas. Como justificar sua edição autônoma ? A solução encontrada pela Ubu, uma editora de livros bonitos (como a extinta Cosacnaify (o que dá margem à indagação sobre se este modelo de negócio (i.e., a publicação de livros bonitos) é ou não sustentável)) foi a publicação, como antigamente, de um livro costurado, com páginas que devem ser abertas com uma espátula. Um livro fetiche. Do tipo que temos receio de riscar. Certamente o mais caro (R$/nº de páginas) que já comprei.

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A questão histórico-tecnológica. Não vou, aqui, tornar a um tema que já esmiucei bastante em textos anteriores que é a fragmentação progressiva do discurso (que encantaria Bakhtin) desde a palavra impressa que se lia a luz de velas até o que temos em redes sociais e na internet em geral. Ao longo desta evolução (reparem que não utilizo o termo progresso), narrativas mais longas foram dando lugar a formas mais compactas. As quais, por sua vez, passaram a demandar maiores esforços de concisão por parte de quem escreve, tanto para adequar os textos aos meios que habitam quanto à expectativa dos leitores. A própria expectativa da audiência é condicionada pelo meio em que reside o conteúdo.

Mas voltemos, por um instante, ao romanção enquanto absoluto tour de force literário, i.e., no qual o autor eleva a patamares extremos sua maestria em sustentar o interesse do leitor ao longo de narrativas prolixas. Ora, por que razão devo supor que a habilidade e a criatividade de quem tece um relato enorme são de alguma forma superiores às de quem empreende esforços de concisão para acomodar ideias a contextos de publicação de dimensões mais restritas ?

Como se uma sinfonia fosse, necessariamente, uma realização mais significativa do que um lied (canção) tão somente por que ocupa toda a duração de um disco ou quase toda a de um concerto, enquanto lieder costumam ser agrupados para justificar a ida a um recital ou a compra de um produto fonográfico.

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A conspirar contra meu propósito, declarado no kaput, de me debruçar, aqui, sobre dois mitos literários, está o fato deste texto ter já assumido proporções temerárias para um post, suficientes, ao menos, para desencorajar sua leitura na plataforma onde reside. Some-se a isto o fato de, no decorrer da escrita, eu ter me lembrado de um terceiro mito. Querem um spoiler ? Trata-se da noção, já incorporada ao senso comum, de que qualquer texto publicado num meio de broadcasting seja, por isto mesmo, de algum modo superior a coisas escritas para uma circulação (só teoricamente) mais restrita através do narrowcasting. Instigante, não ? Por hora, mais não digo.

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PS: de uns tempos prá cá, adquiri o hábito de minerar no facebook informações visando ampliar a base de conhecimento sobre a qual escrevo. Pois, como não deve ser novidade para quem me lê, falo muito sobre o pouco que sei. Pelos cotovelos. Ainda não achei a razão ideal entre os volumes de escrita e de leitura. Na última consulta, sobre grandes autores que escreveram mais textos curtos do que longos, amigos a quem sou grato me trouxeram a seguinte nominata: Bioy Casares, Isaac Bashevis Singer, Ivan Bunin, Raymond Carver, Luigi Pirandello, Flannery O’Connors, O. Henry, Julio Cortázar, Leonid Andreiev, Lucia Berlin, Milton Ribeiro, Machado de Assis, Juan Rulfo, Ghassan Kanafani, Katherine Mansfield, Alice Munro e Ernest Hemingway. Não é pouca gente. Isto que é apenas uma amostra, i.e., a lista seria bem maior se a consulta permanecesse ativa por mais tempo. O que me leva a concluir, talvez apressadamente mas não sem uma ponta de indisfarçável triunfo, que minha “tese” sobre a valoração exacerbada do romanção em relação ao conto ou à crônica pode ter, afinal, algum fundamento.

Anotações de leitura

Se perde na bruma do tempo o instante em que comecei a rabiscar ferozmente nas margens de tudo o que leio. Se, no início, era uma coisa ostensiva, até com caneta hidrográfica vermelha (como constatei, para minha própria surpresa, dia desses ao manusear meu surrado exemplar de Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas em busca de uma referência -a qual, graças às anotações, facilmente localizei), hoje não me sento para ler sem ter às mãos um lápis bem apontado. De grafite macio (6B), para não ferir o papel. E também por ser mais legível, escuro, quase um carvão (já provaram 8B ? Esse é mesmo um carvão). Nem sei, aliás, por que os horríveis HB e nº2 são tão populares.

Sei que há, no entanto, quem, como Astrid, não goste de ler livros anotados. “- Por que fazes isto ?” Não faço a menor ideia. Ou, pior, até acho que sei por que (embora eu tenha muito cedo saído do curso de engenharia, ela nunca saiu de mim). É mais forte do que eu. Me debruço, pois, neste post, que espero curto, sobre possíveis razões, conscientes ou não, que me levam a isto.

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Depois de escrever os parágrafos acima, tentei, por meio de uma consulta no facebook, levantar uma demografia da questão rabiscar ou não os livros que se lê. Não esperava que o conjunto das respostas fosse tão rico (obrigado, pessoal !), quantitativa e qualitativamente. Não apenas uma questão tão singela e aparentemente sem importância divide opiniões, com defensores fervorosos de um lado e de outro (rabiscar ou não), como também revelou, entre os que rabiscam, uma vasta gama de procedimentos, levando à inevitável conclusão de que cada rabiscador tem seu próprio método. Ainda que com alguma redundância, é claro, mas sempre com peculiaridades únicas.

Meu levantamento serviu ao menos para que eu desistisse de desfiar aqui meu(s) método(s), como se (que me desculpem a presunção) tivesse inventado a roda. Prefiro, outrossim, me deter sobre as razões que me levam a rabiscar, as quais dividi (a engenharia que não sai de mim…) em duas grandes categorias, a saber, conscientes e inconscientes.

Começo pelos motivos conscientes, que, como tais, são bem mais fáceis de identificar. A principal razão, minha e de outros respondentes, para anotar nas margens e entre as linhas de tudo o que se lê é, de longe, facilitar a recursividade, i.e., o acesso posterior, por quaisquer razões, a algo que lembramos de ter lido sem saber exatamente onde.

Já experimentaram procurar uma passagem específica num livro lido mas não anotado ? Trabalho demorado e, quase sempre, frustrante. Embora use e abuse (como tantos amigos que me responderam) de sublinhas (para informações curtas), colchetes ([], para citações longas) e traços nas margens laterais (para parágrafos inteiros), o que mais tem me ajudado a localizar trechos lidos são mnemônicos que escrevo, como subtítulos, na margem superior de algumas páginas, a informar sobre do que se trata na mesma.

Funciona como um segundo índice, mais detalhado, segmentando o texto com maior frequência sem, contudo, interromper a leitura do mesmo – não interferindo, assim, com estilos literários que dependam de longos fluxos de consciência. Tipo textos monolíticos como, por exemplo, a parte final de Ulisses ou os dois parágrafos de Extinção. Com mnemônicos de topo de página, tudo é facilmente remissível como, sei lá, os curtíssimos capítulos, por vezes com menos de uma página, todos eles com títulos, das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Uma especulação interessante. Será que um autor, ao escrever um bloco de texto maciço, sem quaisquer recursos de diagramação (parágrafos, seções, capítulos) que induzam interrupções na leitura, não entenderia a fragmentação cartesiana, por qualquer motivo, de sua prosa ininterrupta como uma mutilação de sua obra ? Estaria, então, o leitor, ao “decupar” um bloco de texto monolítico em porções mais facilmente digeríveis, atentando contra a vontade do autor ? É bem possível. Mas aí já adentramos na longa, conquanto pertinente, discussão sobre até que ponto uma obra cometida ainda pertence a seu autor. Noutro momento, talvez.

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É fácil para quem faz anotações em livros justificar racionalmente tal opção. Mais difícil é decifrar ou sequer perceber quais impulsos não declarados podem estar por trás do ato. Por isto, tudo o que segue não passa de um exercício hipotético. E para não impor aos que tão gentilmente responderam minha enquete com a arbitrariedade, por vezes até violência, inerente a toda interpretação, limito aqui minhas observações à minha própria experiência.

Há um abismo entre o espírito cristalizado num livro e a materialidade do volume em si. Conquanto ideias nele contidas, salvo a atribuição de autoria, pertençam à humanidade, podemos possuir uma edição fabricada e comercializada daquelas formulações. Um livro numa estante, pouco importa se lido ou não pelo proprietário, é, de certo modo, como um espírito domesticado.

Já ouvi pessoas supostamente inteligentes declararem que, para sondar a alma de alguém, basta espreitar sua biblioteca. Que disparate ! Tudo bem que, numa das vezes, ouvi isto como uma piada. Mas, em pelo menos uma das outras, a coisa foi proferida com ares de profunda sabedoria. Por acaso ou não, lembrei aqui de uns biombos de cartolina estampados com lombadas de livros em estantes utilizados como fundo (cenário) naquelas lives popularizadas durante a pandemia de covid-19.

Mas não percamos o foco. O que isto tem a ver com anotações ? Nada, admito. Enveredei por este parêntese tão somente para enfatizar a conotação de autoridade acumulada conferida a alguém pelos livros que possui – dos quais, na maioria dos casos, somente uma parcela foi efetivamente lida. Também não interessa aqui a interessantíssima discussão sobre a validade da posse de livros não lidos.

E chegamos, finalmente, ao caso dos livros que, por estarem anotados, foram realmente lidos. Pois não dá prá se anotar (ao menos coerentemente) o que não se lê. O que quero dizer é que, por melhores que sejam os motivos que me levaram a anotar sobre um texto impresso, e por mais úteis que essas anotações possam ser, está subentendida, concomitantemente, a afirmação de que “estive aqui”. Ou, numa formulação menos confessável, a de que “este volume me pertence”. Ou ainda, se quiserem, como um cão a urinar num poste a demarcar território.

Até que ponto as razões “nobres”, explícitas, sem dúvida legítimas, para se rabiscar um livro enquanto se lê e, por outro lado, aquelas indizíveis, seja para documentar a experiência da leitura, seja para reforçar a posse do volume encadernado, interagem, com predominância de umas ou de outras, é motivo para debate.

Ao qual, em nome da concisão, por hora me furto. Se, depois de ler estas linhas (principalmente as últimas), na próxima vez em que quiser macular o excedente de papel em branco de um livro com alguma anotação, subitamente o lápis (ou, vá lá, a caneta) lhe parecer mais pesado, nutrirei secretamente um sentimento de missão cumprida.

Déficit literário

Disclaimer: depois de ter declarado, dias atrás, não ter tempo para ler ficção, confessei, ontem, meu projeto de recuperação de meu déficit literário (i.e., o que já deveria ter lido mas ainda não li). Como assim, Brutus ? Quanto a esta volubilidade, noves fora o fato de eu ser geminiano, só tenho a dizer o seguinte. Na inocência da juventude, ao ser interpelado por amigos sobre alguma opinião mutante, respondi “- Não me cobrem coerência !”. Difícil descrever o impacto, misto de riso e espanto, da frase sobre os que a ouviram pela primeira vez. Desde então, a uso com frequência para justificar esta metamorfose ambulante.

A estas alturas, nem que eu quisesse conseguiria ler tudo o que gostaria. Então, meu plano é simples, a saber, ler pelo menos uma obra de cada grande autor até agora negligenciado (o que não é pouco !). Para tanto, confio em minha rede de recomendantes. Não há como fugir, por exemplo, da unanimidade acerca de Brás Cubas, assim como o bom senso manda que não me aventure com o Finnegan’s Wake antes de ler Ulysses.

De todas as obras aleatoriamente mencionadas em rede social, como (bem-sucedida) provocação, a que mais reações causou foi, de longe, Crime e Castigo. Mais precisamente, minha confissão de ter abandonado a leitura do livro por achá-lo chato. Devo, portanto, uma explicação. Ou, ao menos, uma tentativa. Mas não sem, antes, agradecer pela ótima recomendação de Charlles Campos sobre a “forma correta” de se ler Dostoiévski, a saber, de uma sentada só. A qual, por sua vez, roça a razão de minha desistência (ou, pelo menos, minha hipótese sobre a mesma), na página 248.

Acontece que, desde a época dos romanções russos (tudo bem: também escreveram e ainda escrevem grandes romances em outros lugares), o tempo de atenção médio dedicado a um único texto despencou. De tal modo que Bakhtin teria se deliciado ao submeter a extrema fragmentação do discurso contemporâneo à sua teoria sobre as interrupções das falas. A comunicação humana (e, portanto, a literatura) é hoje muito mais dominada pelo tweet, pelo post, pela crônica ou, vá lá, pelo conto (nesta ordem) do que, propriamente, pela novela e pelo romance. O cinema, a televisão e, mais recentemente, as conexões virtuais são, com sua eficácia, objetividade e imediatismo, responsáveis por isto.

Posso muito bem, no entanto, estar não mais do que racionalizando minha desistência. O abandono pode ter sido mero esquecimento. Ou, até mesmo, por eu ter achado a coisa chata. Como assim ? Aquelas descrições quilométricas, de várias páginas, cada vez que um novo personagem entra em cena. Não contente em descrever o personagem, o autor recita a história de sua vida. É o estilo, dirão. Me reservo, todavia, o direito de, face a uma objetividade quase cartesiana a que o cinema nos acostumou, sofrer de baixa tolerância em relação a objetos mais prolixos. Minha predileção é por formas de linguagem mais compactas. Questão de gosto.

Gosto ? Sai, Satanás ! Pois quem vos escreve é o mesmo que afirmou categoricamente, esses dias, que, ao contrário do que reza o senso comum, gosto, assim como política e religião, se discute, sim. Tributem, então, esse deslize a meu credo, exposto no kaput, de rejeição consciente e explícita à coerência.

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A predileção pela retórica compacta deve estar na origem de minha dificuldade com a ficção. Pois, enquanto o não ficcionista busca, como forma de expressão ideal, o modo mais simples (menos prolixo) de traduzir seus argumentos em cadeias silogísticas perfeitamente inteligíveis (como expressões matemáticas depois da simplificação dos fatores); o ficcionista enriquece a narrativa dizendo muitas vezes a mesma coisa de modos diferentes. Como, por exemplo, um cineasta que mostra uma mesma cena sob vários pontos de vista. Pela repetição, o espectador/leitor vai formando, então, uma imagem cada vez mais nítida do que o autor quer mostrar.

Conquanto isto possa ser chamado, como já disse, de estilo, tenho pouca paciência com o mesmo (ao menos em literatura). Um exemplo. Abandonei o outrossim excelente Extinção, de Thomas Bernhard, na página 248 (a mesma em que fui derrotado por Crime e Castigo !). Adoro Bernhard, de quem li ótimos livros. Em Extinção, um calhamaço de 476 páginas, ele se entrega ao desafio de escrever um livro com apenas dois parágrafos. Talvez o maior (mais extenso) monólogo interno da literatura. Sem dúvida um belo exercício de virtuosismo. Nas primeiras páginas, o protagonista deixa bem claro que odeia sua família. Mais especificamente, sua mãe. Quanto aos outros, apenas despreza. Até onde li, todo o livro é uma reiteração insistente de tamanho ódio. Permeado de histórias, é claro, a justificá-lo. Virou um livro de sala de espera, i.e., o lia enquanto não podia fazer outra coisa, ansiando por um desfecho digno do tempo investido. Tão logo percebi isto, o abandonei.

Não é novidade, para quem me lê, meu alto apreço pela concisão. Tanto que cunhei a expressão “densidade lógica” para tentar quantificá-la. Em vão. Impossível de ser expressa por valores numéricos (ideias/(nº de palavras), talvez), a densidade lógica se estabelece tão somente por meio da comparação entre sua presença em dois ou mais objetos. Tipo: este texto é logicamente mais denso do que aquele. Talvez por isto minha tardia disposição de ampliar a familiaridade com a literatura de ficção (que remonta à juventude) seja amiúde interrompida pela urgência de entrar em contato com algum texto não ficcional brilhante recém descoberto.

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Qual a relação ideal entre o volume de leitura e o de escrita de cada pessoa ? Existe uma ? Se alguém escreve muito mais do que lê, tende à irrelevância. Por outro lado, sobra pouco tempo para a escrita a quem cede sem freios à sedução da leitura. Talvez, sei lá, algumas horas do dia sejam mais propícias à escrita ou à leitura. Prefiro, por exemplo, escrever pela manhã e ler ao entardecer. Mas não é só isto. Há, para complicar a equação, uma questão de índole mais ideológica que tem a ver com a concessão a apenas uns poucos do benefício do imprimatur.

Ao menos em tese, todos podem escrever. Ainda que, é claro, alguns textos sejam mais interessantes do que outros. O que faz, então, com que só esses poucos (tão poucos que é lícito falar de alguma cultura de celebridades em ação) conquistem o privilégio de ter seu espírito imortalizado em volumes encadernados com lombadas em uma estante ? Ouso supor que há mais bons livros não escritos do que tudo o que repousa nas melhores bibliotecas. Por que, então, tal estado de coisas ? Razões não faltam.

Primeiramente, é claro, por que o ofício do escritor exige dedicação continuada e, portanto, meios de sustento a garanti-la. Mas, também, por que o acesso às gráficas e livrarias depende, acima de tudo, da aprovação de uma casta de editores, que especulam sobre o potencial de venda maciça, estimada em milhares de exemplares, de cópias de cada original apreciado. Conquanto este gradus ad parnassum editorial possa ter mudado muito na atual era da auto publicação, o que sempre houve, desde Guttenberg, e existe até hoje, é um enorme desequilíbrio entre toda criação textual possível do espírito humano e a pequena parcela do mesmo legada à posteridade em tinta e papel. Ou, atualizando, arquivos voláteis.

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Como, então, lidar com esse excesso de coisas a serem lidas, muitas delas jamais escritas ? A vertiginosa Biblioteca de Babel de Borges (Ficciones, 1944), que abarcava todos os livros possíveis e ultrapassava os confins do universo. Na falta de um critério que se sobreponha aos outros (curadoria em suas diversas formas), dou preferência ao que escrevem meus amigos. Assim, diante da impossibilidade de ler tudo o que quero, dediquei, nos últimos anos, especial atenção às criações da Nikellen, do Farinatti, do Milton, do Henrique e do Liberato. Sem qualquer arrependimento. Posso ter esquecido de alguém. Mas tenho sorte em ter os amigos que tenho.

Gosto de ideias utópicas e distópicas, pois ajudam a imaginar mundos melhores. E se, de repente, todos lessem o que pessoas que lhes fossem conhecidas escrevessem, ao invés (ou, pelo menos, além) das grandes obras do cânone do conhecimento universal ? Teríamos uma melhor distribuição do privilégio da autoria ? Ou alguma espécie de sensibilidade mais local, avessa às celebridades e ao mercado global ?

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PS: pouco depois de publicar as linhas acima, fui agraciado com o seguinte comentário, do Charlles Campos, o qual reproduzo mediante consentimento. Bem melhor do que a encomenda, é EXATAMENTE o tipo de reação que quis suscitar. Ganhei meu dia.

Ótimo texto! Obrigado pela citação. Bom, tem muita coisa aí para debate. Eu sou formado em história e jornalismo, além de veterinária. Menciono isso por ser concernente ao assunto, pois são áreas tão díspares mas me tornaram um leitor profícuo em todas elas. Leio muito não ficção, história, biografias, e divulgação científica. Tem meses que me ocupo apenas com não ficção. Semana passada mesmo li o excepcional livro sobre a cientologia, do Lawrence Wright, e agora estou relendo Thimoty Snyder e lendo Carisma e Poder, do Ian Kershaw. Mas, nada se compara à ficção, ao romance. A ficção oferece um leque completo de tudo que tem nos outros gêneros, além do adendo valioso de seu caráter de identificação humana. Eu vi no curso de história o quanto a grande maioria dos professores eram limitados a apenas lerem sobre suas matérias de trabalho, sendo incultos sobre tudo o mais. E creio que isso seja uma lamentável característica do academicismo brasileiro, pois em todos os grandes escritores de história globais se vê que são profundos conhecedores e leitores de literatura. Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Thompson, Ginzburg, etc, etc, que são grandes historicistas, dedicam uma substancial parte de suas produções à literatura. Então, eu vejo como uma enorme limitação o leitor não ler ficção. Claro que a regra de Borges vale sobre tudo, e a gente deve ler o que der prazer. Mas há muita ficção que dá prazer, e talvez o problema seja o que Roberto Bolaño, do Detetives Selvagem, uma vez conceituou muito bem, que nós, povos latino-americanos, devemos nosso subdesenvolvimento a não termos literatura de gênero, se referindo às pulp fiction, às fantasias, às narrativas puras. E pode ser um ótimo diagnóstico. Nos falta alguma coisa muito salutar que nos faz achar que tais fantasiações possam ser pouco sérias, ou demasiado infantis. O que talvez explique, abrangendo a percepção do escritor chileno, a paixão militar, a veneração por um patriotismo tosco, e uma deficiência mutiladora de autoconsciência nacional. Como estou divagando de forma espontânea, me permitindo um fluxo de consciência do citado Ulisses, isso casa com uma excelente interpretação escrita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek da alma norte americana tomando como base os romances de Michael Crichton, o criador de filmes representativos da esfera midiática daquele país, como Jurassic Park.