Como os Candlelight Concerts prestam um desserviço à causa de revitalizar o hábito de frequentar concertos

Foi com divertida curiosidade que saí para fazer algo que já há algum tempo vinha querendo, a saber, assistir a um dos celebrados, inovadores e polêmicos (como verão) concertos à luz de velas, mais conhecidos como Candlelight Concerts. Mal começada a apresentação, percebi de pronto que a experiência, que pretendia indolor, se revestia de uma profunda tristeza. Vou direto ao ponto, pois só assim conseguirei dizer o que penso. É que subiram ao palco músicos excelentes, algum deles dentre os melhores que conheço. A pergunta que imediatamente me veio é por que fariam parte de um tipo de espetáculo, pior do que ruim, tão tóxico (como tento demonstrar adiante). A resposta, óbvia, é que não devem ter tido escolha diante de uma proposta irrecusável que, por decoro, me abstive de querer conhecer. Deste modo, os músicos participantes não podem ser culpabilizados pela existência do espetáculo, como se estivessem, através de sua participação, o chancelando. Até por que sei que muitos deles lideram e/ou participam de iniciativas artísticas e educativas de grande valor, muito mais interessantes, mas com pouco valor de mercado e que, consequentemente, não ajudam muito na hora de pagar as contas.

Antes, ainda, de explicar por que tais concertos prestam um desserviço à causa que alegadamente defendem, convém descrever, para quem nunca os frequentou, no que consistem. Já que mais de um amigo que comentou meu spoiler no facebook aludiu à chama ou ao cheiro de velas de verdade. A estes, me apresso em esclarecer que as tais velas são imitações plásticas, alimentadas por pilhas, que simulam a chama trêmula dos objetos de cera que conhecemos. Até aí tudo bem, pois seria no mínimo temerário cobrir o palco (há centenas, talvez milhares, destas velas falsas espalhadas pelo mesmo) com tantos objetos incandescentes, facilmente combustíveis. Toda esta iluminação, com a temperatura de cor idêntica à de velas de verdade, confere ao cenário uma atmosfera “de época”, com os músicos na penumbra durante a maior parte do tempo. Com efeito, foi só no final, com a luz de serviço ligada, que consegui identificar alguns deles.

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E chegamos, finalmente, à explicação de por que este tipo de espetáculo funciona como um tiro no pé. É que, ao emular, mesmo que alegoricamente, a ambientação de como a música era apresentada num passado que nos parece remoto, anterior à luz elétrica, tais apresentações reforçam a falsa e perigosa premissa de que concertos pertencem irremediavelmente ao passado. E se for para evocar uma atmosfera anacrônica, André Rieu se sai bem melhor.

Bem, é preciso reconhecer que a música ouvida no concerto de ontem é bem mais recente do que a dos eventos a que aludem. Não se trata de música antiga em instrumentos de época. O cardápio servido era uma antologia de pop e de rock, com “clássicos” dos Beatles, Queen, Led Zeppelin, Pink Floyd e outros, todos imediatamente reconhecíveis, em arranjos abreviados que mais lembravam aquelas versões curtas das músicas no reality show The Voice.

O conjunto, híbrido, merece um parágrafo à parte. Nele havia um grupo pop bem completo (guitarra, teclado, baixo e bateria), apoiado por naipes reduzidos de metais e cordas. Perdida no meio disto tudo, como único representante dos instrumentos da família das madeiras, uma flauta, cujo som, tão rico e característico, não foi proeminentemente ouvido em nenhum momento. O som das cordas também foi digno de nota. Sim, havia 4 violinos, 2 violas e 2 violoncelos. Mas nada que soasse como naipes de cordas. Não por culpa dos músicos, todos eles excelentes, como disse acima, mas por causa da amplificação. Mais especificamente, da captação. Que achatava a resposta de frequência, praticamente anulando os harmônicos agudos responsáveis pela riqueza do som destes instrumentos quando executados em contextos acústicos. Sei. É complicado misturar, num mesmo palco, o som de violinos com o de uma bateria e um contrabaixo elétrico. Mas possível, como pudemos ouvir nos recentes espetáculos da OSPA com música de cinema e do Pink Floyd.

Contei, ao todo, 17 músicos. Forças instrumentais suficientes, portanto, para levar ao palco uma big band. Ou uma orquestra de câmara. Tentar apresentar algo do tipo “o melhor de dois mundos” bem que mereceria uma atenção especial com o som por parte de uma produção daquele porte. Se não mereceu, é por que a qualidade sonora não importava. Ou importava menos. Mais importante, no caso, eram os violinos, dispostos em maior evidência, como signo inequívoco da música de uma época distante, que era tocada à luz de velas.

Mas aqui já estamos falando da própria motivação para a existência deste tipo de espetáculo, a qual implica no reconhecimento de pressupostos que tem origem na história da indústria da música. Então, lhes peço um pouco de paciência, me perdoando o tom didático, com um breve apanhado de fatos que, ainda que de vosso domínio, podem ser abrigados sob o manto mais genérico da economia da música.

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Desde o início da gravação sonora até o advento da internet e, com ela, da pirataria e, mais recentemente, do streaming, a indústria da música se locupletou, com lucros progressivamente maiores, da produção e comercialização de música em meios físicos, tais como o LP ou o CD. Naquele período, os meios de produção, como estúdios e equipamentos, eram bem mais caros e inacessíveis do que hoje. Agora, em plena era do home studio e da auto distribuição por meios digitais, a indústria teve que, para sobreviver, migrar para outro nicho lucrativo que não a distribuição de música por meios físicos. Assim nasce a era da experiência, na qual pessoas deixam de consumir objetos para consumir vivências.

No plano musical, isto se traduz em espetáculos públicos. Só que, para a indústria, shows deste ou daquele artista representam, mais do que uma solução, um problema, já que apresentações dos mesmos intérpretes costumam ser experiências únicas (ainda que repetidas), controladas e principalmente exploradas por eles próprios ou, no máximo, por agentes que representam, for força da própria complexidade de tais eventos, não mais do que uns poucos artistas.

Faltava, portanto, à indústria um produto que pudesse ser facilmente replicado em série em diferentes lugares com gerenciamento remoto. Pois a padronização e a reprodução em larga escala são pré-requisitos básicos para a existência de qualquer indústria. Os concertos à luz de velas (uma marca registrada) atendem perfeitamente a estas exigências. Arranjos padronizados de músicas conhecidas universalmente executados por músicos proficientes recrutados localmente.

Dito isto, não vale a pena se deter mais sobre a qualidade da música oferecida. Melhor, no caso, é se debruçar sobre a reação do público. Quem foi até lá saiu de casa numa tarde fria pagando valores que variavam de 150 % do que e preciso desembolsar para assistir a um concerto da OSPA (só pare se ter uma unidade de referência) até 5 vezes (sic!) o mesmo valor. Para pessoas pouco habituadas a frequentar concertos, se trata de um montante considerável – o que denota a importância, para as mesmas, de terem tal experiência.

Ainda dentro da mesma linha de comparação, assisti a um excelente concerto da OSPA no dia anterior. Dentre os melhores, senão o melhor, do ano inteiro. Tendo presenciado as duas coisas, me é impossível deixar de notar a forma comedida como foi aplaudida a brilhante execução da 9ª Sinfonia de Shostakovich, com o público se levantando pouco a pouco depois de algum tempo, em relação à imediata ovação em pé, como se houvesse molas sob as poltronas, depois do Candlelight. Mas não se deve culpar o público por isto, já que ninguém pode ser acusado de não saber apreciar o que não conhece. Antes, é preciso tentar compreender como a música deixou de ser hegemonicamente entendida (se é que alguma vez foi) para se tornar um nicho especializado, distante do grande público, o qual, por razões complexas cuja análise não cabe aqui, tem um grau de expectativa cada vez mais rasante.

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É patético ver e ouvir músicos que podem entregar experiências musicais ricas e únicas simplesmente replicando algo igual ao que é tocado em qualquer parte do mundo. Não é à toa que ficam a maior parte do tempo na penumbra, sendo difícil até a quem os conhece identificá-los antes que suas faces sejam iluminadas só no final do show. Por tudo isto, podemos dizer com boa margem de segurança que o formato dos Candlelight Concerts realiza melhor do que qualquer outra iniciativa o ideal de globalização no que tange a espetáculos musicais.

Isto é bom para os investidores ? Sim, com certeza.

É bom para o público ? Depende do ponto de vista. Se o mesmo for considerado como uma massa consumidora acrítica, inocente nesta história, tanto faz.

E para a música ? Definitivamente, não.

Maestros, obras-primas e loucura (2008), de Norman Lebrecht

Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.

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O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.

Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.

As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.

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O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.

Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.

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É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.

Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?

A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.

Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.

Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.

Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.

Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.

Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.

Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.

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Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.

Atrações locais que “abrem” megashows de celebridades globais recebem alguma remuneração por isto ou, como parece mais lógico, pagam para fazê-lo ?; ou Sobre títulos bombásticos e limitações do streaming

Acompanhando de longe os últimos megashows a acontecerem em minha cidade, me ocorreu perguntar se atrações locais que “abrem” espetáculos de celebridades globais efetivamente recebem algum tipo de remuneração para fazê-lo ou, efetivamente, como me parece bem mais lógico, pagam para estar ali, com toda aquela infraestrutura emprestada e provavelmente a maior audiência que hão de encarar em suas carreiras. Não, a pergunta não é retórica. E por mais preconceito que possa denotar, me apresso em esclarecer que, de acordo com a teoria da qualidade distribuída, ou dispersa, não é de todo improvável que, circunstancialmente, artistas desconhecidos fora de seus nichos locais tenham muito mais qualidade, num sentido amplo, do que as celebridades que guarnecem. Retornaremos a isto em seguida.

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Admito. Títulos bombásticos, ultrajantes, constituem um grande atrativo – razão pela qual a eles recorro com frequência, mesmo sabendo que quem a eles reage mais prontamente muitas vezes sequer lê o texto ao abrigo dos mesmos. Isto é fácil de provar. Num exemplo recente, compartilhei um excelente artigo publicado em Evonomics cujo bem escolhido título rezava How America Hates Socialism without Knowing Why (Como os EUA odeiam o socialismo sem saber por que). A peça estabelece uma arguta correlação entre o grau de confiança no país (i.e., em seus homens públicos, segundo dados da Transparência Internacional) e o apreço de seus cidadãos pelo socialismo. Para meu espanto, um troll comentou, sob a postagem: Parece que a América já está tendo acesso a história e sabendo o que foi o socialismos ao longo destes cento e alguns anos(sic). Normalmente, não reajo a este tipo de provocação. Só que, neste caso, minha curiosidade foi maior e tive que perguntar se o comentarista lera, de fato, o artigo.  É claro que não obtive resposta alguma.

Numa situação mais remota, fui chamado de idiota prá baixo ao postar um texto sob o descaradamente apelativo título Por que gosto de assistir ao jornalismo da Globo. Até agora não sei quantos dos que protestaram com indignação efetivamente leram o que escrevi.

Não quero dizer, com isto, que leio todas as letras miúdas sob os mais chamativos títulos que desfilam na timeline. Até por que o expediente de ler apenas as manchetes em busca de conteúdos que nos interessam é pelo menos tão antigo quanto os jornais impressos – não tendo, aliás, as manchetes outra função senão a de permitir que evitemos a leitura de conteúdos que se nos afigurem como menos relevantes. Só que, para tentar evitar pagar micos, me abstenho de comentar textos que não tenha lido, tão somente a partir de seus títulos.

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Como falávamos acima, a probabilidade de um frequentador contumaz de megashows se deparar ao acaso com shows de abertura de algum modo superiores às celebridades que os sucedem no palco não é, ao contrário do que empresários acreditam, totalmente nula. Até por que muitas bandas hoje célebres mas então obscuras devem ter sido descobertas ao abrirem shows de artistas consagrados. Se este tipo de evento inesperado, “fora da curva”, de fato existe como possibilidade concreta, tal se deve à consistência da teoria da qualidade dispersa, ou distribuída, à qual não cansamos de aludir neste blog, que pode ser mais ou menos formulada como:

Deve haver, oculta sob o manto da diversidade, muito mais qualidade do que qualquer que já tenha sido revelada pela indústria do entretenimento, posto que esta , em sua seletividade predatória, é incapaz de acessar, por meio de seus radares centralizados, o que de melhor existe como fruto da criatividade e expressão artística humanas.

Num paradigma anterior, astros predestinados a algum sucesso nas gravadoras e no showbusiness eram frutos de escolhas arbitrárias, orientadas por perspectivas de mercado, de produtores todo-poderosos. O binômio mais emblemático deste estado de coisas é a exitosa associação entre George Martin e os Beatles – o primeiro, um executivo fonográfico incumbido pela indústria de descobrir sons que, prensados em discos de vinil, constituíssem objetos de desejo imediato do maior número possível de consumidores, e os últimos, um conjunto de jovens menestréis como qualquer outro em terras britânicas. Sei que esta última afirmação tende a angariar, entre defensores irredutíveis dos méritos do quarteto de Liverpool, contraditórios veementes sempre que reiterada neste espaço. Rogo-lhes, ainda assim, que deixem temporariamente de lado a eterna questão do caráter único ou banal da música dos Beatles para, ao menos desta vez, se fixarem na transformação dos meios de acesso ao estrelato desde aquele tempo até agora – esta sim central à presente argumentação.

Desde então,  o showbusiness, adaptativo como qualquer indústria, vem procurando incorporar, sintonizado ao espírito dos tempos, procedimentos de avaliação distribuída, típicos das comunidades virtuais, nos quais a maioria da audiência é quem decide quem vai adiante e quem é eliminado em muitos reality shows. Devemos, no entanto, frisar que isto é o máximo que já se conseguiu até agora em se tratando da tão propalada mas tão pouco implementada televisão interativa. Ao mesmo tempo, muitos concursos televisivos, sejam de canto, dança ou culinária, ainda se mantém fiéis ao formato tradicional de júris compostos por um punhado de celebridades.

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Em nome da concisão (bem como da inteligência dos leitores), não choveremos no molhado falando, aqui, das recentes e radicais transformações sofridas pela indústria do entretenimento nas últimas décadas. Suficiente, então, sublinhar que, para se adaptar à perda do monopólio sobre os meios de produção (estúdios caros e fábricas de LPs e CDs), investidores migraram para o setor de distribuição por meio de streaming.

O streaming (i.e., a transmissão de sons e imagens, residentes em servidores, pela internet) sepultou, ao menos entre consumidores menos especializados, o até então robusto comércio de música e cinema gravados em mídias físicas como CDs e DVDs. Proprietários destes serviços se desoneraram completamente da tarefa de produzir conteúdos para transmissão, cabendo agora a cada artista – de uma base, portanto, supostamente ampla e diversa – produzir seus próprios conteúdos, os disponibilizando para streaming por valores bem mais acessíveis do que, comparativamente, o jabá anteriormente pago pelas gravadoras para a execução repetida de música por estações de rádio. Cabe, ao mesmo tempo, a cada artista a divulgação e a criação de uma demanda por todo conteúdo por ele disponibilizado “na nuvem”.

Como em todo negócio da era digital, provedores de streaming apostam acima de tudo na venda de acesso. Para tanto, competem entre si para oferecer a seus assinantes a maior base possível de conteúdos disponíveis. Daí o custo irrisório de se “subir” qualquer coisa para a nuvem – praticamente destinado apenas a cobrir gastos operacionais de inclusão e manutenção de conteúdos em servidores.

Por mais, no entanto, que o capital cumulativo tenha assumido, ao se adaptar e migrar para a economia digital, aspectos distribuídos das comunidades virtuais, jamais encontrou um modo de se desvincular de sua natureza – que é a de favorecer inevitavelmente as celebridades, como veremos a partir de duas críticas recentemente veiculadas a dois gigantes da distribuição de conteúdos digitais: Spotify e Netflix.

Um compositor amigo meu, desconhecido das multidões (alguém que jamais tocará num megashow) mas que cultiva, há muitos anos, um público consistente e cativo de apreciadores de sua música, se queixou de que, por milhares de execuções da mesma no Spotify, obteve como remuneração não mais do que centavos. Levei a queixa a outro amigo, versado nos meandros da indústria, que de pronto me respondeu que, para se faturar alguma quantia significativa no Spotify, é preciso ter sua música executada milhões de vezes. O que prova que, para se fazer sucesso no Spotify e afins, é preciso ser uma celebridade. Como queríamos demonstrar.

Ao mesmo tempo, a Newsweek publicou recentemente uma matéria denunciando a falta de filmes clássicos na Netflix. Era de se esperar que a exacerbação da seletividade das plataformas de streaming, manifesta na exclusão de conteúdos importantes, fosse mais acentuada na distribuição de filmes do que na de música, posto que o armazenamento de imagens em movimento ocupa muito mais espaço em servidores do que o de sons. O que, no entanto, mais nos interessa, neste caso, é que serviços de streaming não são, ao contrário do que muitos pretendem fazer acreditar, a melhor solução para a distribuição imediata de conteúdos diversificados.

Moral da história: desconfiem sempre de grandes iniciativas capitalistas (big players) apregoando oferecer amplo acesso à diversidade. Nisto, os commons, não lucrativos por definição, permanecem imbatíveis.

Por que não vou a megashows de roqueiros veteranos

Quem lê este blog sabe o quanto gosto de causar polêmica. Por isto, regozijei ontem ao lograr dividir opiniões, no facebook, sobre megashows atuais de roqueiros veteranos. Li atentamente todos os comentários, compreendendo as razões de ambos os lados – me esforçando, no entanto, para me manter em silêncio (que esforço !), já pensando em explorar melhor o tema num post. O qual, advirto, não deve ser lido por quem pretende ir ao show do The Who em Porto Alegre hoje à noite. Não, ao menos, antes de ter ido ao show.

Há bandas e bandas; roqueiros e roqueiros. É, assim, um exercício totalmente inútil tentar discutir com fãs de uns ou de outros sobre os enormes méritos de seus ídolos em relação aos demais. Não cairei nesta cilada. Antes, tentarei me debruçar sobre certos atributos genéricos de apresentações requentadas, comuns à maioria dos astros veteranos que optaram, por razões pecuniárias ou quaisquer outras, por retardar indefinidamente o abandono dos palcos. Que me perdoem, então, os fãs das honrosas exceções.

Primeiro, preciso esclarecer por que tenho o rock, dentre os gêneros populares, como algo datado, intrinsecamente associado a experiências da juventude de seus apreciadores. Senão, me apontem um ouvinte que seja que, tendo vivido a juventude alheio ao rock (ou seja, numa caverna), desenvolveu algum tipo de apreço pelo gênero em idades mais maduras. Não conheço ninguém assim. Mas me disponho alegremente a conhecer tal sujeito, como objeto de estudo.

Assim, tendo a presumir que pessoas com mais de 40 ou 50 anos prefiram, em sua maioria, ouvir música sentadas, em ambientes relativamente silenciosos. Ouvir música em pé ? Pior: em meio a uma multidão de sovacos a erguerem celulares sobre suas cabeças ? Incluam-me fora disso. O megashow tem outros agravantes. Citarei dois. Exceto para os felizes portadores dos ingressos mais caros, os astros não serão mais do que minúsculos vultos distantes, tendo a maioria dos espectadores que se contentar com closes dos mesmos projetados em telões ao lado do palco. Depois, tem aquela passarela, que se estende perpendicularmente ao palco cortando o espaço destinado à audiência, na qual protagonistas empreenderão, ao longo do show, uma ou duas corridas ensaiadas – premiando, com isto, os que ousarem disputar um espaço junto à mesma com a fugaz sensação de maior proximidade com seus ídolos.

Música ? A música é secundária neste contexto, em que mais vale a comunhão entre os presentes no culto aos que se apresentam. Isto explica, ao menos em parte, o fenômeno dos celulares – pois, para muitos, mais importante do que estar lá é poder mostrar, aos outros e mesmo a si próprios, que se esteve lá.

But so much for the stage. Aos atores, então.

Comecemos por um preconceito. Com o qual, devo confessar, me identifico profundamente – a saber, o de que o rock é, acima de tudo, uma das mais intensas manifestações de espíritos jovens que habitam corpos jovens. Muito já se disse que rock é atitude e coisas semelhantes. Pois a atitude rock é, na maioria das vezes, explosiva, de inconformidade e rebeldia em relação a valores herdados à revelia. Com o avançar da idade, além de preferirmos ouvir música sentados ao invés de em pé, tendemos a elaborar nossa crítica a valores hegemônicos com os quais não concordamos de modo mais introspectivo ou contemplativo. Notem que, como eu disse, se tratam, aqui, de preconceitos, realçados pelas notáveis exceções. Pois bem. Acontece que a maioria dos roqueiros veteranos que espreito (confesso: jamais vi um show inteiro de algum…) são de velhos que se comportam e vestem como meninos, na tentativa patética de emular suas performances de décadas atrás. É claro que, nestes casos, os fãs são condescendentes, não esperando dos mesmos o  desempenho atlético e vocal de outrora.

A longevidade de certas bandas é, para mim, um completo mistério. Por exemplo, não entendo o êxito estrondoso de cada nova tourné dos Rolling Stones, invariavelmente anunciada como sendo a última. Outra coisa: o que faz com que uma banda veterana, com apenas alguns de seus integrantes originais, ostente a denominação que consagrou a banda ou, ao contrário, apenas o nome de seus integrantes remanescentes ? Como, por exemplo, o que faz com que Pete Townshend se apresente como The Who e David Gilmour ou Roger Waters não se apresentem como Pink Floyd – já que, em todos estes casos, o núcleo duro dos shows se constitua de canções de suas bandas míticas ? Desconheço detalhes, mas suspeito que o uso de nomes de bandas como marcas seja objeto de complexas disputas comerciais.

Ainda vou entender por que bandas de enorme sucesso como Beatles, Nirvana, Legião Urbana ou Mamonas Assassinas não tiveram qualquer carreira depois das mortes de, respectivamente, Lennon, Cobain, Russo ou todos os seus membros. Pois, em todos os casos, bastaria um produtor com algum senso de oportunidade e muita habilidade no manejo de contratos para garantir o influxo contínuo de dividendos sobre sucessos garantidos.  Seriam, nestes casos, as figuras dos intérpretes mais importantes do que as músicas ? A pergunta não é retórica. Vou modificar ligeiramente. O que é preferível: ouvir  membros remanescentes de bandas icônicas cantando novas canções desconhecidas ou, ao contrário, bandas cover interpretando velhos sucessos da maneira mais próxima possível à original ?

O megashow é território por excelência da indústria do espetáculo, comandada por produtores. Que, como os barões de qualquer indústria, abominam todo risco. Pois os investimentos são demasiado volumosos para sequer se admitir a hipótese de qualquer erro. Assim, sempre que ingressos são postos à venda para qualquer megashow, já se sabe de antemão que um público numeroso afluirá ao mesmo e dele sairá plenamente gratificado. Caminhando sobre nuvens. Vastos recursos de sonorização, iluminação e pirotecnia contribuem, além do elenco aclamado cuidadosamente escolhido para cada audiência, para a sinestesia da experiência.

Já uma situação totalmente diferente ocorre em espetáculos de gêneros musicais mais intimistas, como, por exemplo, o jazz, apresentados para plateias sentadas, escuras e silenciosas diante de um palco despojado de recursos visuais no qual músicos efetivamente correm riscos ao improvisarem em público.

Vale a pena, aqui, tecer algumas comparações entre o megashow de rock e o espetáculo intimista de jazz. Num a audiência é iluminada; no outro, não. Num o público faz parte da experiência; noutro não (vide, por exemplo, a quantidade de selfies tirados num e noutro). Um segue um roteiro minucioso, com todas as ações dos protagonistas cuidadosamente planejadas; o outro é aberto ao imprevisto. Num o público fica em pé; no outro, sentado. Num o público grita e canta junto; no outro, permanece em silêncio. Em qual deles vocês acham que ouvintes estão mais propensos a uma apreciação crítica ?

Para produtores e investidores habituados à indústria do espetáculo, a anulação do risco pode até ser tida como natural. Discordo. Pois tenho a imponderabilidade em relação ao êxito como um dos principais atrativos de qualquer manifestação artística. Pensem, por exemplo, no que seriam os famosos festivais de MPB televisionados ao vivo nos anos 70 sem o expediente da vaia. Os próprios reality shows de calouros atuais exploram ao limite a tensão entre o sucesso e o fracasso.

Além disto, no caso de manifestações radicalmente inovadoras, uma vaia contemporânea é um dos melhores indicativos de um êxito futuro. Lhes contarei uma história. Após a estréia de A Sagração da Primavera, fragorosamente vaiada pela platéia do teatro dos Champs-Elysées em 1913, seu compositor Stravinsky, o empresário dos Ballets Russes de Paris, Serge Diaghilev e o coreógrafo Vaslav Nijinsky retornaram juntos ao hotel. Diaghilev estava furioso; Nijinsky, em estado de choque e Stravinsky, radiante – somente o último, portanto, perfeitamente ciente do enorme triunfo que aquela vaia representou.

Sobre marcadores e celebridades

Costumo utilizar marcadores (bookmarks, em inglês), que são etiquetas com nomes de categorias, para salvar, para referência futura, toda página da internet que, numa leitura cuidadosa ou rápida, se afigure como de algum interesse. Deste modo, acumulei, desde 2009, quando comecei a usar a plataforma de marcadores Delicious, mais de 7000 páginas marcadas.

Dentre minhas categorias mais populosas, se destacam, entre outras, as de music economics, celebrities, album, orchestral crisis e fontes como Norman Lebrecht, The Guardian ou brainpickings. Pensadores da internet como Clay Shirky, Cory Doctorow, Henry Jenkins e Howard Rheingold também mereceram categorias próprias. Numa analogia com o conhecimento acadêmico, podemos, então, afirmar que tais categorias resumem exemplarmente o que, num programa de pós-graduação, seria considerado, respectivamente, como as “linhas de investigação” adotadas por alguém, bem como seu elenco de “gurus”.

Só que, anos atrás, o Delicious foi comprado pelo Yahoo e, desde junho último, numa tremenda puxada de tapete, o site opera em modo read only, tendo perdido, portanto, toda a funcionalidade para armazenar novas páginas. Tiveram ao menos o decoro de manter a coisa no ar por tempo suficiente para que usuários desesperados, como eu, tivessem tempo de migrar com seus dados para outras plataformas. Meu desespero, no caso, não se trata de nenhum eufemismo, posto que todo meu conhecimento adquirido ao longo da última década passou a correr o risco de, por não estar mais acessível, se pulverizar.

Foi quando decidi, semanas atrás, empreender uma cruzada em busca tanto de uma nova plataforma com um bom prognóstico de sobrevivência (por que nessas horas sempre confiamos tanto no Google ?) como de um meio prático para executar a migração. Pois 7000+ páginas não é pouca coisa. O Delicious tentou facilitar a tarefa, disponibilizando uma ferramenta para gravar um arquivo HTML que pudesse ser importado por seus concorrentes. De pouco adiantou, entretanto, pois os aplicativos de migração davam pau (como eu disse, 7000+ é uma quantidade atipicamente grande) em meio à operação de importação.

O que me fez sair atrás de um editor de HTML para fracionar o arquivo em partes menores, mais manejáveis pelo algoritmo de importação do Google Bookmarks, meu novo hospedeiro de marcadores. Não sem antes, no entanto, promover uma faxina nas páginas hospedadas no Delicious, no intuito de reduzir significativamente seu número. Em vão, pois só logrei eliminar ca. 1000 páginas. É sobre o que constatei neste processo que falarei daqui em diante.

* * *

Antes, porém, de examinar mais de perto os links eliminados, algumas palavras sobre por que me tornei tão obcecado por marcadores. Tem a ver, principalmente, com a velocidade do feed nas redes sociais e, ao mesmo tempo, a necessidade de aglutinar notícias, fatos ou descobertas descontínuos no tempo e isolados por tudo aquilo que acontece entre eles em categorias, definidas por um mesmo headline, capazes de alguma significação mais permanente. Deste modo, tudo aquilo que vem no feed que, de algum modo, reverbera singularmente em nossa mente, entra em ressonância com um conjunto de outros fatos, já coletados ou não, que, embora nada signifiquem isoladamente, podem dizer muito se considerados em conjunto.

O hábito de salvar marcadores se torna, assim, extremamente útil quando da recuperação de referências para pesquisa ou citação. Pensem, se quiserem, por analogia, naquela profusão de papeizinhos com notas afixados às páginas de documentos impressos levantados e perscrutados na fase de revisão bibliográfica de qualquer tese acadêmica. Pois os marcadores virtuais vieram para render essas etiquetas obsoletas, tanto pela facilidade de recuperação de informações como pela de cruzamento entre as mesmas.

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Há 24 horas atrás, estava, com lhes disse acima, às voltas com o problema de ter que reduzir drasticamente, para futura exportação, os links que armazenara no Delicious. Nesta situação, um método se afigurava como absolutamente necessário, posto que não teria tempo de examinar cada um dos links antes de decretar sua permanência ou exclusão. De sorte que ataquei, de pronto, aquelas categorias mais numerosas sobre as quais não pretendia mais me concentrar. Curioso como nossos interesse mudam, ainda que só consigamos perceber isto quando distanciados no tempo.

Quando comecei a salvar marcadores em 2009, estava obcecado pela indústria fonográfica, querendo anunciar como um arauto ou profeta uma realidade que, para qualquer observador mais atento, já estava caindo de maduro – a saber, o declínio de certas mídias e formatos e, com eles, da própria indústria. Pois poucas coisas mudaram tanto nas últimas décadas, sob efeito da internet, como o modo como ouvimos música e a forma como ela é produzida e distribuída. Testemunhamos o empoderamento dos autores e o esfacelamento dos impérios do disco, que reinaram absolutos por cerca de 50 anos.

O primeiro conjunto de links salvos que descartei sumariamente foi aquele gerado quando de minha descoberta do compartilhamento gratuito, reunidos sob o sugestivo marcador free music. Foi um enxugamento formidável. Posso afirmar, hoje, que salvei muito mais páginas de blogs e álbuns do que efetivamente cheguei a ouvir. Tempo perdido. Pois não há nada mais fácil do que descobrir, instantaneamente, de onde baixar qualquer coisa que queiramos ouvir. Num dos poucos links que preservei, alguém pontifica que ouvimos muito mais a música que compramos do que aquela que baixamos. Pode ser. Devo ler com atenção.

Procedi, então, às igualmente numerosas categorias celebrities e album, além de fontes especializadas na indústria fonográfica como hypebot e pitchfork. Nesta etapa, excluí centenas de referências a pessoas como Rihana, Milley Cirus, Britney Spears, Katy Perry, Lady Gaga, Kanye West, Will.i.am, Jay-Z, Madonna e afins. Foi quando confirmei algo de que, por muito tempo, sempre suspeitara – a saber, a tremenda redundância verificada entre os factoides exaustivamente divulgados como notícias por estes atores. Tanto que vale a pena uma compilação dos gêneros assumidos pelos mesmos.

Em primeiríssimo lugar, celebridades e seus produtores competem entre si para ver quem emite mais anúncios sobre planos futuros, do tipo “A banda X lançará até o mês Y o primeiro disco depois de Z anos !”. Em seguida, vem as notas de lançamento de cada novo álbum, invariavelmente apregoado como algo inovador. Acompanham estas notas aquelas sobre o sobe e desce de cada artista em vendas de discos, audições em rádio e outras plataformas e visualizações em redes sociais. Como numa bolsa de valores.

São também frequentes os anúncios de colaborações em forma de dobradinha entre um rapper e um cantor ou cantora. Só que nem sempre produtores acertam e, com isto, nos deparamos frequentemente com imbroglios envolvendo desmentidos, insultos e até pedidos de desculpa. Ao fim e ao cabo, de pouco importa se as colaborações se concretizam, já que os encontros e desencontros estão na mídia, a um custo muito mais barato do que o de casamentos e divórcios entre celebridades.

No lado B da indústria do entretenimento, são também muito comuns os cancelamentos de shows e os casos de hostilidade em relação a celebridades, como copos jogados pelo público em Axl Rose ou garrafas d’água em Justin Bieber. E como não há nada para quebrar o marasmo do noticiário upbeat, bombam as notícias sobre cada vez que uma celebridade é flagrada pisando na bola. Como o uso ocasional de cocaína por Lady Gaga, de maconha por um tal de George Michael, a agressão de um fã por Justin Bieber ou, ainda, as 19 tentativas empreendidas por Ozzy Osbourne até obter, finalmente, uma carteira de motorista.

Dentre os grandes micos nacionais, se destacam o fiasco novaiorquino de Ivete Sangalo (episódio que deve ter ensinado muito a produtores nativos sobre o equívoco de se comparar protagonistas de degêneros regionais como aché, tchê, pagode e sertanejo a celebridades pop internacionais) e o imbroglio de Xuxa no twitter (aquele em que culpou Sacha por seus atentados linguísticos).

Outra categoria interessante são os leilões. Como, por exemplo, do piano empregado em gravações dos Beatles ou do vaso sanitário (sic !) usado por John Lennon. Jamais duvidem da devoção de um fã. Acrescente-se à trivia do célebre piano a indignação dos fãs do quarteto de Liverpool com o uso do mesmo por Lady Gaga, como se isto se constituísse numa profanação do icônico instrumento.

Quando a indústria constata a exaustão criativa de seus elencos atuais, se volta invariavelmente a seus acervos históricos. Foi assim que, dentre os links que deletei, encontrei notas bombásticas sobre reedições como, por exemplo, a das primeiras gravações, ainda em mono, de Bob Dylan e até, pasmem, a publicação póstuma de músicas inéditas de Michael Jackson. Neste departamento, a cereja do bolo é, a coleção de “duetos” não consentidos entre Renato Russo, já morto, e terceiros – as quais foram recebidas naturalmente, como um grande achado, longe de se constituírem em algo ligeiramente macabro. E, aproveitando a deixa, passemos a um último tópico – que, compreensivelmente, deverá suscitar certa revolta entre muitos fãs.

De todas as categorias a mais especial é, sem sombra de dúvida, a morte. Pois não há nada mais extraordinário – e, portanto, monetizável – em relação à mesmice produzida por qualquer celebridade pop ao longo de sua carreira do que a própria morte. As luxuosas reedições de gravações, os onerosos ingressos para shows de tributo e os altos valores alcançados em leilões de objetos pessoais de, digamos, um Elvis Presley, Michael Jackson, John Lennon, Kurt Cobain ou Amy Winehouse estão aí para provar que mais vale investir em seus espólios do que em suas obras em vida. Para pelo menos um analista, a morte precoce teria literalmente salvado, senão a carreira, ao menos a obra de Jackson.

Mais: é bem mais interessante para uma celebridade, sob o ponto de vista econômico, ter sua vida interrompida abruptamente, por acidente, assassinato, overdose ou suicídio, no auge de sua capacidade criativa do que por morte natural aos seus 80 anos, já tendo enfrentado o declínio e o esquecimento. É só comparar os obituários de uns com os de outros, que aparecem, respectivamente, em capas e nas últimas páginas – ou, ainda, o tempo relativo que lhes é consagrado pela TV.

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PS: tão logo terminei de escrever este post, lembrei deste, bem mais denso, de Norman Lebrecht (um dos primeiros links salvos em meus marcadores, em 2009), sobre o por que do não surgimento, após suas mortes, de mitos com a força de Elvis Presley e Maria Callas. Prestem atenção na parte em que ele culpa os executivos fonográficos desde os anos 70, que “are not in the market for uninsurable risks”. Melhor citação: “cultural narcolepsy”.

Primeiros comentários sob um post sobre as razões de ser das orquestras

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Não é novidade para quem lê este blog que, de uns tempos prá cá, temos publicado, muito mais do que textos originais, comentários derivados dos mesmos. Só que a imensa maioria dos comentaristas ainda prefere comentar posts em redes sociais ao invés de nos sites e blogs onde são originalmente publicados – mesmo sabendo que a permanência do que é dito é muito maior em sites do que em redes sociais (soube, esses dias, que já há uma plataforma, acho que snapchat, que deleta tudo o que nela aparece pouco tempo depois !…).

Então, até como forma de dar continuidade a uma auspiciosa discussão que procurei, com o post anterior, iniciar, resgato, para a permanência do blog e para vossa reflexão, os primeiros e valiosos comentários deixados sob a divulgação do mesmo. Notem que, ainda que sejam apenas dois os comentaristas iniciais, deixaram pareceres qualificadíssimos, vindos de dois universos opostos, mutuamente excludentes – a saber, de um lado, o de quem é profundamente habituado a concertos e, de outro, o de quem precisa viajar 500 quilômetros para ouvir a orquestra mais próxima. Ameaçada, aliás, de extinção por determinação governamental.

Muito obrigado, então, Breno Freire, que ainda não conheço pessoalmente, e Solange Maciel, que conheci no sertão baiano, pelos ilustrativos comentários deixados, abaixo transcritos. Que sirvam de combustível a esta virtuosa discussão. Para que orquestras como a OSBA deixem de ser ameaçadas pela pura ignorância dos ungidos pelo voto.

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Breno Freire Tenho muito para falar sobre isso também. Faltou-me a iniciativa da escrita. Curioso para saber a justificativa da determinada passagem ” orquestras não podem nem devem ser populares nem tampouco (portanto) gerar lucros”.

Augusto Maurer Se orquestras flexibilizarem suas programações a ponto de se deixarem pautar predominantemente pelo gosto popular, deixam de cumprir sua função, que é a de tocar música composta originalmente para elas – correndo real risco de extinção, pois, fora do âmbito da música sinfônica, não conseguem concorrer com alternativas mais econômicas de performance. Por exemplo: por que utilizar uma orquestra num espetáculo de crossover, quando uma banda de rock pode dar conta da tarefa com muito mais economia e eficiência ? Obrigado por se interessar pela discussão !

Breno Freire Augusto, fundamental é falarmos sobre isso ! Se nós, os músicos, não discutimos e tivermos claro em nossas perspectivas os porquês de uma orquestra, estamos perdidos. Vamos lá, entendo seu ponto de vista. porém, ascendo a questão para alguns pontos:

1) Antes de tudo, penso que popularizar não é flexibilização de programação. Popularizar no meu ponto de vista, é tornar o evento economicamente viável para a prática de todas as diferentes categorias de remuneração da sociedade, a ponto de não se excluir público pelas condições determinadas pelo preço. A orquestra é fruto de trabalho humano, e portanto feita por seres humanos PARA seres humanos, TODOS e TODAS devem ter acesso a ela.

2) “gosto popular” – o que é o gosto popular ? Pela sua afirmação parece-me que existe um “gosto popular” que é aquele que é formado pela apreensão “fácil” de músicas ” fáceis” e o gosto “erudito” formado pela intelectualização da apreensão estética. Além de eu não concordar com essa fala, acho que ambos sabemos que um deles é forjado para alimentar uma cultura burguesa distante da realidade total em que vivem os seres humanos. A popularização das entidades orquestrais se dá justamente pela sua prática na sua plena forma do “dever-ser” e para além de uma questão de repertório, fornecer a humanização dos sentidos ao maior número de pessoas, estamos falando de trabalho humano. Se “privarmos” o acesso em decorrência de categorias salariais, vamos entender que a orquestra age como uma propriedade privada na sua forma de expressão plenamente capitalista, na qual a pessoa deve pagar para ter acesso. Sou a favor de caminharmos para custos de ingresso tendendo a zero, e assim a responsabilidade do Estado em comprometer-se com uma entidade que não busca lucrar, mas busca potencializar nas formas mais intensas e complexas, os seres humanos.

3) Repertório – O gosto por Beethoven só vai existir se a pessoa ouvir Beethoven. Mas para isso acontecer, ela precisa adentrar ao espaço do concerto, sentido que aquilo é parte dela, ou seja, que se identifique com a orquestra. Não é o repertório, na minha opinião, o fator determinante para a não potencialização da audição da música. Acho sim, que essas questões residem na esfera capitalista, em sua forma monetária. Pessoas de menor poder aquisitivo não vão, porque não tem acesso ( entenda acesso não apenas como determinação de valor, mas também cultural ) e por consequência, a questão do repertório acaba travestida num ponto que, na minha opinião, não é o dela. Orquestras devem tocar o repertório que para ela foi escrita e as pessoas terão a oportunidade de escolher se lhes agrada ou não, o que vai além de uma determinação de gosto por questões relativas ao dinheiro.

É isso meu camarada, um abraço. Obrigado por compartilhar.

Augusto Maurer Concordo plenamente que orquestras devem ser acessíveis a todos. Sou, no entanto, radicalmente contra a flexibilização por meio da facilitação de seu repertório em nome da ampliação da audiência. Então, parece que estamos de acordo. Mas reconheço que preciso clarear melhor alguns pontos. Tomara que esta discussão frutifique !

Breno Freire Também sou, Augusto ! Não é assim, no meu ponto de vista, que vamos encher as casas de concerto, não com essa falsa sensação de que se populariza por meio da “facilitação” de repertório. Todas as pessoas merecem um Gurre-Lieder, uma segunda de Mahler, um Willy Correa e um Pixinguinha.

Breno Freire Torço para florescer esse debate cada vez mais nos núcleos de música !

Solange Maciel Gosto muito de ouvir uma orquestra, embora onde moro há alguns anos, não tenha sido possível, até o presente momento, apreciar tal evento, e sempre pensei na ideia de acessibilidade das orquestras, mas, confesso, que pensava nessa “flexibilização de repertório”, na minha ignorância, até ler o que o senhor escreveu nessa resposta, professor Augusto Maurer. Realmente, agora entendi esse aspecto e concordo plenamente com o senhor. Essa flexibilização nos impediria de conhecermos um repertório mais vasto e diversificado, sobretudo, elaborado por quem efetivamente conhece uma orquestra. Achei muito interessantes e esclarecedores os seus argumentos.
Ah! E desculpe-me pela intromissão (extremamente leiga!) nesta discussão.

Augusto Maurer Muito obrigado, Solange Maciel, pela intromissão, sempre bem-vinda: com efeito, é só por isso que escrevo, i.e., tentando conversar e polemizar. Só para de me chamar de senhor – ou também vou te tratar por senhora !

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Atualização em 06 de janeiro de 2017: enquanto publicava os comentários acima, me chegaram mais dois, de frequentadores habituais de concertos, expressando opiniões de certo modo contrárias; o primeiro, reivindicando a ampliação do repertório por meio da maior inclusão de obras recentes e populares, com menos repetições; o segundo, advogando justo o contrário, i.e., mais repetições das peças mais populares entre ouvintes em nome da ampliação da audiência. O segundo comentário abaixo também trata com agudeza do problema da amplitude semântica da palavra popular, exigindo – com razão – definições mais precisas, das quais trataremos adiante. Difícil equação, cuja solução ainda não vislumbro. Fiquem, então, por enquanto, com mais estes argutos comentários resgatados da algaravia do facebook. E obrigado, André e Norberto, por se juntarem a esta importante conversa !

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Norberto Flach Tirando as grandes e centenárias orquestras europeias e norte-americanas, quais orquestras sinfônicas são “apenas” sinfônicas? Não têm que fazer parte de um contexto mais amplo, de arranjos sinfônicos de música popular, grupos menores para repertório de câmara, uma ou outra ópera, escola de música etc? É isso, ou a inexistência. (Agora, só aqui entre nós: acho que tem muita música sinfônica do século XX excelente ou pelo menos boa. Quero dizer: muito mais do que o pessoal costuma programar. São ingleses, europeus orientais, japoneses e por aí vai. Mas o pessoal prefere programar pela cagagésima vez aquela música para fogos de artifício).

Andy Serrano sobe esta passagem:

“Se orquestras flexibilizarem suas programações a ponto de se deixarem pautar predominantemente pelo gosto popular, deixam de cumprir sua função, que é a de tocar música composta originalmente para elas – correndo real risco de extinção, pois, fora do âmbito da música sinfônica”

O que me vem a cabeça são duas formas de entender a palavra “popular”…

Uma coisa é a orquestra que interpreta a “música popular”, do tipo “música popular brasileira” ou ” música popular americana”, ou “música popular alemã”, etc… ou seja, peças originalmente não sinfônicas.

e OUTRA coisa é a orquestra ter PEÇAS SINFÔNICAS que sejam do APREÇO POPULAR. (melhor não elencar Karmina nem Bolero pra não reeditar celeumas).

Minha opinião é que peças de apreço popular (e podem ser sinfônicas sim) são porta de entrada para que as pessoas entendam melhor uma orquestra, e passem, consequentemente, a buscar por mais apresentações das mesmas.

E tampouco penso ser isso um “mal necessário” para a orquestra… embora imagine que, depois de tocar a mesma peça tantas vezes, seja um saco também.

Para que servem orquestras ? Por que sua existência deve ser garantida pelo estado ?

batutas-14Já ouvi de uma amiga, eminente economista de inclinação liberal, que é papel do estado assumir direitos dos cidadãos desprezados pelo capital privado. Orquestras, como um dos mais conhecidos e onerosos equipamentos culturais, pertencem a esta categoria. Tanto que as poucas mantidas predominantemente por recursos públicos são constante alvo de projetos de enxugamento por parte de partidos que almejam um estado mínimo. Nessas horas é que mais pessoas se perguntam para que servem, afinal, orquestras sinfônicas. Pergunta difícil, que tentaremos responder abaixo, por partes.

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A primeira e talvez principal razão para a existência de orquestras sinfônicas tem a ver com a execução de um repertório, altamente redundante, predominantemente composto durante um período de uns 200 anos por europeus em sua maioria.

Poucos compositores compõem (cada vez menos) ou compuseram sinfonias. Os bons, pelo menos umas 4; os melhores, raramente mais do que 9 (depois de Haydn ou Mozart (cuja produção juvenil deve ser, para efeito de execução pública, descartada), só aqueles dois russos). De sorte que, se ouço falar de algum sinfonista vivo, fico imediatamente curioso, tratando logo de verificar se o mesmo efetivamente se ergue acima dos ombros de um Mahler, Nielsen ou Shostakovich. Costumo me decepcionar.

Neste contexto, não são poucos os que taxam a música sinfônica de ser, além de francamente elitista (refutaremos esta falácia noutra ocasião), limitada a um repertório fechado e redundante. Têm razão no que toca ao reperrtório. Mas isto não quer dizer que orquestras sejam de modo algum obsoletas.

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Uma segunda razão para a manutenção desses conjuntos musicais, dedicados à execução repetida de um repertório composto quase totalmente no passado, até tidos por uns como dinossauros (não falarei, neste post, de extinção, prevista por alguns, de orquestras como hoje as conhecemos (i.e., fixas) em até 30 anos), é que não se pode conceber a plenitude da audição de um bom concerto sinfônico em um bom auditório a não ser pela própria experiência.

Deste modo, ninguém pode conhecer, de fato, uma sinfonia meramente pela reprodução de gravações da mesma. Isto por que, enquanto na plateia de um concerto ouvimos sons produzidos por fontes dispersas em um espaço contínuo que chegam até nós refletidos por múltiplas superfícies, quando escutamos música gravada ouvimos, na maioria das vezes, sons vindos de apenas duas fontes (quando em estéreo) ou, mais raramente, em até 5 canais (como em algumas salas de cinema). Não é a mesma coisa.

É difícil explicar a quem nunca foi a um bom teatro ouvir boa música tocada por uma boa orquestra por que a experiência é bem diferente de ouvir uma gravação da mesma música nos melhores home theaters. Ainda mais hoje, que chegamos instantaneamente à melhor música sinfônica (as melhores obras pelas melhores orquestras com os melhores solistas e maestros) já está há muito disponível online, em plataformas como o youtube. Só que nenhuma gravação de som ou imagem obtida por meio de qualquer tecnologia conhecida substitui a experiência única de ouvir esta mesma música ao vivo em um concerto. Muito se pode falar da degradação histórica da qualidade de experiência auditiva em espetáculos musicais. Da amplificação eletrônica, do fim do silêncio, do encurtamento das formas. Mais tarde, talvez.

Por hora, apenas deixemos sublinhado que há muitos outros aspectos a serem observados na participação como ouvinte em concertos sinfônicos, principalmente se levarmos em conta a evolução dos espetáculos musicais desde seu surgimento até os dias atuais. Mas, como disse ainda há pouco, so much for one post (mais tarde, quem sabe…) Que fique apenas registrada, por enquanto, a enorme importância, em qualquer época, dos ritos de escuta coletiva, sincronicamente compartilhada.

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O que está escrito acima é uma revisão severa da parte aproveitável de algo editado pela última vez mais de um ano atrás (joguei a maior parte fora). O rascunho foi desencadeado pelo fato de eu ter sido incumbido, ainda antes, numa assembleia de músicos da OSPA, de redigir algo que, de algum modo, esclarecesse à opinião pública para que serve, afinal, uma orquestra hoje. Se demorei, no entanto, para retornar à tarefa – mesmo com sua questão norteadora reverberando incessantemente desde então em minha mente (com efeito, é para mim praticamente uma questão de vida), foi por jamais julgar ter elencado motivos suficientes ou suficientemente bons.

Até uns dias atrás. Por meio do seguinte comentário que deixei sob uma postagem no facebook, respondendo a alguém que acreditava que orquestras devem subsistir exclusivamente do que arrecadam na bilheteria de seus concertos:

Orquestras não pertencem, como muitos devem acreditar, à indústria do entretenimento e, portanto, não podem depender de arrecadações de bilheteria. São, sim, sofisticadíssimos equipamentos educativo-culturais, cuja função é ampliar horizontes estéticos. Se tiverem, no entanto, que depender do gosto do público e da mesmice que o mesmo estaria disposto a pagar para ouvir (para isto existem as mídias comerciais), já não servem mais para nada.

Foi, ao que me recordo, a partir deste instante que me ficou absolutamente claro (como não me dei conta disto antes !…) que orquestras não podem nem devem ser populares nem tampouco (portanto) gerar lucros. Para explicar o por que disto, preciso de um outro post, que já prometi acima, sobre a evolução das plateias de espetáculos musicais. Por enquanto, é suficiente dizer que, por sua pouca afinidade natural ao lucro, orquestras devem ter sua existência, como disse minha amiga liberal, garantida pelo estado. Caso contrário, têm suas atividades corrompidas (como pode ser visto em tantos casos próximos e distantes) ao serem utilizadas, em muitas ocasiões, muito aquém de todo seu potencial artístico.

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Atualização em 25/1/2017: Este texto dialoga diretamente com outro, de André Egg, publicado ontem: A importância de orquestras e sua manutenção. Ele vê alguma contradição entre o que eu disse aqui e quase três anos antes em Políticos demais (iii): anotações para uma reforma política. Obrigado, André, por tocar em frente uma discussão tão importante ! Terei que me puxar para oferecer uma réplica à altura.

Comentários a um texto sobre o mito da escassez do talento para reger orquestras (on conducting xiv)

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Dias atrás, ao divulgar um post sobre o mito da escassez do talento para reger orquestras, fui, como sempre, brindado com comentários que ampliavam muito minha visão sobre o tema – razão pela qual os compilo abaixo. Como na última vez, optei por deixar a penca de comentários intacta, sem edições.
Obrigado, ilustres interlocutores !
Tudo começou com uma provocação minha a alguns amigos maestros.
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Augusto Maurer O que acham, Emmanuele Baldini, Valentina Peleggi, Fabio Zanon, Lavard Skou Larsen, Tobias Volkmann, Nicolas Rauss, Ricardo Melo, Osvaldo Colarusso, Evandro Matté, Arthur Barbosa, Wilthon Matos, Lincoln Da Gama Lobo, Sasha Mäkilä … ?

Augusto Maurer … Leandro Schaefer, Ubiratã Rodrigues ?

Lavard Skou Larsen Quem? Aonde?

Sasha Mäkilä It is neither. The problem is the uneven distribution of talent – a lot of talented people don’t get enough chances to prove themselves in front of the orchestra, while a lot of untalented people are able to make a career because of political or financial support.

Augusto Maurer I strongly agree, Sasha !

Fabio Zanon Uma vez perguntaram isso ao Lorin Maazel. Ele respondeu: ¨existem três pessoas no mundo hoje que reúnem todas as qualidades para torná-los dignos de subir ao pódio: maestro Karajan, maestro Solti e eu”. Na época, como você deve lembrar, estavam vivos Bernstein, Celibidache, Giulini, Kleiber, para não falar dos mais novos. Para responder à sua pergunta, a gente tem de decidir onde que deve traçar a linha. Quem critica maestros by default deveria experimentar, por uma vez só na vida, subir ao pódio e tentar conduzir um começo de uma sinfonia de Mozart. Não sai nada; a preocupação em mexer os braços tapa os ouvidos, e tudo aquilo que se preparou previamente não resulta muito. Precisa ter uma confiança técnica muito grande ou uma cara de pau infinita. E, mesmo fazendo tudo errado, ainda tem mais chance de sair melhor com que sem maestro. Um maestro que realmente reúne as qualidades todas necessárias para fazer um grupo que já é de alto nível chegar a um nível excepcional é muito, MUITO rara e vale ouro; isso, combinado à necessidade de se colocar um nome e reputação na berlinda frente a um grupo e a autoridades, patrocinadores e público, faz com que os salários subam a níveis estratosféricos, é um pouco como jogador de tênias. As pessoas ainda acreditam que talento para reger é somente facilidade musical, mas, apesar de ser a condição sine qua non, é só o começo da história. Eu cursei regência como segundo estudo numa das melhores escolas que existem, que formou Simon Rattle entre outros, e garanto que, se o sujeito não dominar uma partitura como quem descasca uma banana, não consegue nem passar no exame de admissão. As vagas são muito poucas, as exigências são altas e eles preferem não preencher se não tiver ninguém à altura. Eu vi professor descascar aluno talentoso por não estar perfeitamente preparado e o cara sair chorando da aula; foi para casa, estudou como um escravo e hoje o cara é titular de uma boa orquestra, já regeu Concertgebouw em Amsterdam. Eu não acredito muito somente nessa coisa de contatos, apesar disso ser absolutamente necessário. Quem não é competente está fora do jogo. Se tem alguém genial que fica de fora? Sim.

Augusto Maurer Obrigado pela profundidade do comentário, Fabio Zanon, como sempre ! Já faz tempo que superei a ingenuidade de achar que qualquer um pode reger. Insisto, todavia, que o acesso às oportunidades de instrução em regência ainda estão muito longe de ser universal e isonômico. É claro que grandes maestros são raríssimos. Mas existem muitos suficientemente bons que permanecem desconhecidos mesmo sendo melhores do que a maioria dos que detém com exclusividade ou quase exclusividade as poucas posições existentes.

Fabio Zanon Eu acho que a vocação para regência deveria brotar de uma outra atividade musical. Uma pessoa que naturalmente lidera quando faz música de câmara ou canta, que tem facilidade para compor, que já está acostumada a liderar uma orquestra ou um naipe a partir da primeira estante, que é craque em acompanhar e treinar cantores, enfim, que se excede em mais de um ramo de atividade é aquela que deveria ser encaminhada para reger. O problema é que o que a gente vê com frequência é gente que toca um pouco de piano que acorda um dia e acha que seria bonito ser maestro; entra num curso de baixo nível de exigência e, ao final, bem…todo mundo tem de trabalhar, né?

Lavard Skou Larsen conductor = condom;  with condom = safe; without condom = you enjoy; (sometimes condom explodes….)

Lavard Skou Larsen Violaplayer and concertmaster meet in stomach of conductor!; Violaplayer to concertmaster: “Did he also swallow you???”; Concertmaster:”No, I came from behind…..!!”

Sasha Mäkilä This is a new one! 😀

Wilthon Matos José Milton Vieira

Arthur Barbosa Na minha opinião Augusto, são vários fatores a serem analisados…é uma temática complicada porque não pode ter uma só medida… depende de que tipo de orquestra se fala ( nem tanto pela sua qualidade mas pela sua função ) . Quanto mais orquestras no mundo melhor para a música, melhor para os músicos e melhor para a humanidade, mas assim como só existiu um Carajan, só existe uma Filarmônica de Berlim… lógico que os que fazem música com responsabilidade, tanto músicos, como orquestras e regentes, querem mirar lá no alto, na qualidade absoluta, porém são barrados por suas próprias limitações naturais… mas daí dizer que se eles não forem cópias de Carajan não servem como regentes seria ridículo. Um só exemplo: Na última vez que estive na Venezuela, movido por minha curiosidade, perguntei a um dos organizadores locais do El Sistema: ” com tantas orquestras (quase 500) no pais, como vocês fazem para ter uma formação de regentes de excelência?” …a Resposta foi surpresa pra mim (ou não) : “Desde pequenos já identificamos perfis que se enquadram em ser um regente, mas mais que regentes com “excelência” buscamos regentes eficazes”… ou seja , uma demanda alta fez com que não mirassem em ser perfeito, mas que funcionassem bem com tal papel…Realmente não é fácil, como muito músico acha, se posicionar na frente de uma orquestra , porém acho que todo bom músico deveria ter em sua formação esta experiência, ajudaria a ele como músico e ajudaria a entender um papel diferente do seu na orquestra… Por outro lado algumas castas da música de concerto tentam sim mitificar a função de tal modo que a gente pense que é “rarississíssimo” achar um regente competente, mas acho que parte dessa culpa é do próprio músico de orquestra que muitas vezes não sabe nem identificar e distinguir entre um regente bom, um ótimo, um razoável ou um ruim. Só para ilustrar, esta semana ouvi um grupo de músicos profissionais falando sobre um determinado concerto que tinham feito com um determinado regente recentemente e diziam mais ou menos o seguinte: ” – Foi legal o concerto né? o maestro é meio palhaço, rege fora do tempo, faz macaquices , mas tem seu carisma com o público… e no final a orquestra toca sempre bem …” Ora, nem eles mesmos se dão conta de que tocaram bem porque são excelentes músicos, e que pelo que percebi, o regente mais atrapalhou que ajudou, mas apenas ter carisma resolve, mesmo que o resto ( da parte do regente) seja horrível, e ainda por fim este regente em questão em nenhum momento os ajudou a tocarem melhor, mas atribuem a ele o sucesso do concerto…enfim, enquanto nós músicos de orquestra ( coisa que sou há muito mais tempo que regente ) não soubermos identificar e concluir que um regente que é carismático e palhaço ( ou qualquer outra atribuição “não-musical” ) mas é ruim como regente não nos serve de nada não sairemos desta linha antiga de pensamento que diz “sob a batuda de…” . Abraço

Augusto Maurer Muito obrigado, Arthur, por lançar tanta luz sobre o tema. Em especial com o relato primário de teu mergulho na Venezuela – e pela distinção, às vezes sequer percebida pelos próprios músicos, entre bons e maus maestros.

Augusto Maurer Mais: tocaste num ponto crucial: para que se evidenciem talentos excepcionais, é preciso, antes, implementar e manter estruturas que permitam e fomentem a descoberta contínua e sistemática de talentos suficientemente bons. Pois não existiria nenhuma Fórmula 1 sem as divisões inferiores do esporte, desde o kart; ou, ainda, um Neymar sem centenas de bons jogadores disputando os mesmos campeonatos. De acordo com o que disseste (e como eu suspeitava !), a Venezuela tem feito isto em relação à regência como, suponho, ainda não é feito em qualquer outro lugar do mundo. Talvez por isto a regência ainda seja tida pela maioria como um território para iniciados, muitas vezes de formação nebulosa (felizmente isto já está mudando !), com o acesso ao pódio regulado por desígnios misteriosos para o leigo.

Fabio Zanon Augusto, isso já é feito na Alemanha, na Finlândia, na Áustria, na Inglaterra, na Suíça, até na Itália há décadas. Sim, precisa ser feito e é feito; só não é feito aqui (isso está mudando com os projetos sociais inspirados no El Sistema; o Neojibá estimulou desde cedo um jovem muito talentoso chamado Yuri Azevedo). Eu ouço falar do Daniel Harding desde que ele tinha 15 anos; com 18 ele já regia orquestras profissionais. E o fato é que não existe nenhuma escola que se proponha a formar Kleibers; isso acontece por força da excepcionalidade do talento da pessoa. TODA boa escola de regência tenta formar, antes de mais nada, regentes eficientes. Na Inglaterra, em particular, onde as orquestras são freelancers e tempo de ensaio vale ouro, ser capaz de reger sem ensaiar é uma condicão fundamental pra se começar uma carreira. Francamente, um bom curso de regência é uma estrutura muito cara e as escolas brasileiras não podem se dar ao luxo de manter isso com os números que temos. Por enquanto, vale mais a pena investir num bom preparo teórico precoce para quem é fera e mandar o sujeito estudar fora com 17 anos.

Fabio Zanon Sobre a mítica do maestro, bom… O fato é que existem maestros que mitam! Uma vez, conversando com um músico da Fil de Berlim, perguntei como era trabalhar com o Harnoncourt. Ele respondeu “ah, a orquestra tem um padrão próprio; quando tem um regente médio a gente toca mais ou menos do nosso jeito”. Harnoncourt, médio! Lidar com músicos de alto nível é uma coisa misteriosa, porque, de fato, eles não vão tocar abaixo de um certo padrão. O problema é como motivar ou induzir quem já toca com perfeição a ir além da perfeição. Eu ficava muito impressionado com os ensaios do Giulini, por exemplo, porque ele não falava quase nada; quando dava algum problema ele dava uma instrução em poucas palavras,e seguia o ensaio. Mas, por alguma razão, a Philharmonia soava com ele de um jeito que não soava com mais ninguém; parecia que tinham devoção pelo homem. Aqui na OSESP acontecia algo parecido com o Frank Shipway, um maestro que, aliás, sempre teve problemas de convivência com as orquestras e tinha uma carreira muito inferiro à sua capacidade. E assim o barco anda. Mas o fato é que isso tudo só interessa por mais uns 40 ou 50 anos; a estrutura está mudando completamente. Veja um cara chamado Teodor Currentzis, por exemplo; ele está fazendo um trabalho visionário de construção de grupo no interior da Rússia, com resultados extraordinários. Acho que esse tipo de coisa vai se tornar a norma, descentralizar a responsabilidade artística e enxugar estruturas.

Arthur Barbosa Sobre o El Sistema ser “único” o Fabio já respondeu o que eu ia responder basicamente…

Júlio César Apollo CRO é tão abundante ou tão escassa quanto a competência para tocar clarineta, se for com uma boquilha mansa é um pouco mais fácil. Assim como é um pouco mais fácil reger músicos amistosos. Certamente a CRO não reside no âmbito musical. É muito mais do que competência musical e os colegas aí em cima já disseram bem sobre isso. Eu penso que o que diferencia o solista e/ou o regente, aqueles que ficam em pé na frente, é, entre outras coisas e principalmente, o sangue frio. Ah, e há, também, uma habilidade quase mística de sentir, entender e conduzir a platéia nas costas.

Tobias Volkmann Augusto, todos os grandes regentes ou grandes mestres da regência com quem busquei aprender o ofício na universidade, em masterclasses ou ao menos em uma conversa no intervalo de ensaios (entre eles Kurt Masur, Jorma Panula, Mariss Jansons, Manfred Honeck, Andris Nelsons, Gustavo Dudamel, Herbert Blomstedt e meu mentor Ronald Zollman, entre outros não considerados grandes, mas com muito a ensinar) em algum momento destacaram o seguinte: é indispensável desenvolver a maturidade como músico/intérprete em algum instrumento para ser capaz de assumir a responsabilidade de conduzir o processo de construção de uma interpretação coletiva. Nisso concordamos todos. Porém, o que você define como CRO eu entendo como um conjunto de “Cs” que vem sempre em um pacote com níveis distintos em cada aspirante a regente. Eu, por exemplo, não tive a benção de ter tocado profissionalmente em uma orquestra – o que é uma enorme lacuna que estou até hoje buscando preencher com muita observação e ouvidos bem atentos aos bons músicos experientes – mas cresci cantando em coros, atuei como cantor profissional e estudei instrumentos de orquestra na infância e durante o estudo de regência. Não é o que poderíamos chamar de usual na trajetória de uma formação na área, mas não me impediu de atuar hoje como profissional. Porém, há muitas capacidades a desenvolver, entre elas a cultura geral, línguas, a gestão psicológica de coletividades, a auto-gestão psicológica, o controle do ego, a gestão do tempo de ensaio, o planejamento de trabalho em uma temporada, o conhecimento de repertório, as características específicas de gêneros como ballet, ópera e da música contemporânea e… ah!… ia me esquecendo… a técnica gestual! Tudo isto DEPOIS de uma sólida formação musical. Ainda assim, se um dedicado e esforçado talento consegue desenvolver com um mínimo equilíbrio estas habilidades, a “selva” do mercado musical, que de democrática não tem nada, se encarrega de não oferecer oportunidades suficientes para que um verdadeiro talento tenha mais do que uma ou duas chances. Assim, muitas vezes vale a máxima gaúcha: cavalo encilhado não passa duas vezes!!!

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Sobre o mito da escassez da competência para a regência orquestral (on conducting xiii)

batutas-11Há em todo concerto para escolas o clássico momento em que o maestro empresta a batuta a uma criança sorteada entre as presentes – momento, aliás, da igualmente clássica pegadinha em que fazem o desavisado inocente se mover indefeso diante de uma orquestra que começa a tocar – pasmem ! – uma daquelas danças húngaras repletas de mudanças de andamento. Numa destas, diante da inação do maestro em exercício em interromper alguém que, ouvindo a música, entendera rapidamente qual era a jogada, ouvi de um músico de outro naipe a hilária e emblemática exortação

Interrompe logo ele, maestro – ou vai acabar achando que é fácil !

Ao que, prontamente, corrigi;

Errado: vai acabar descobrindo como é fácil.

Não é preciso ir muito a fundo para perceber que o diálogo acima, conquanto passível de diversas interpretações, denota antes de tudo a proteção ao mito de que a competência para a regência (doravante CRO) seja uma aptidão escassa, i.e., que só uns poucos são aptos a exercê-la. A perpetuação do mesmo talvez se deva ao fato de que a didática da regência orquestral seja, enquanto área ou disciplina acadêmica, um fato ainda muito recente

Deve ser difícil a qualquer instituição de ensino pensar na regência como objeto de um programa acadêmico acessível a muitos. Possivelmente achem que, face ao máximo de tempo semanal que alunos de conservatórios de primeira linha toleram (antes de tudo por causa dos músicos que lhes regem !) tocar em orquestras formativas. Pois a maior parte dos que ingressam em conservatórios ainda quer ser solista. O que é muito bom – pois isto faz deles alunos estudiosos . Tão bom, ao menos, quanto que sejam obrigados, ainda que por imposição curricular, a integrar orquestras acadêmicas durante a maior parte de seus cursos.

Neste quadro demográfico é fácil notar que, nas poucas horas em que uma orquestra acadêmica ensaia (sempre menos, em todo caso, do que a carga semanal de ensaios de uma orquestra profissional !), será possível treinar poucos regentes. Além disto, há quem pergunte por que treinar uma legião de frustrados se as oportunidades de trabalho conhecidas são tão poucas. Não acreditamos que sejam poucas mas, tão somente, mal distribuídas. Só que, em nome da perversa lógica de toda proteção de mercado, já vi um curso universitário de bacharelado em regência orquestral ser extinto.

Em muitos conservatórios são ministradas disciplinas de regência. Só em alguns deles, todavia, há ensaios e aulas conduzidos por grandes maestros. Na falta de orquestras didáticas para todos, é comum que alunos de regência sejam primordialmente treinados “regendo” reduções de partituras orquestrais para um ou dois pianos. Tal problema, o da grande discrepância numérica entre aspirantes ao pódio ou às estantes orquestrais, foi magistralmente solucionado na Finlândia – berço de uma das mais reputadas escolas de regência, praticamente personificada na polêmica figura de Jorma Panula – que declarou, para pasmo e decepção de seus admiradores (alguns dos quais ainda insistem que podia estar bêbado ou, ainda, que suas palavras foram severamente descontextualizadas) que mulheres seriam menos aptas do que homens a dirigir uma orquestra (sic !)

Kiyotaka Teraoka, que estudou na Finlândia, conta que, lá, todo aluno de regência deve obrigatoriamente participar também, como músico, executando um instrumento no qual seja totalmente proficiente, da orquestra integrada e regida por seus colegas. Como única exceção a esta exigência, também são admitidos às classes de regência os pianistas excelentes. Concertistas, no mínimo. É por estas e outras que esses finlandeses estão anos-luz à frente de quem quer que seja na pedagogia da batuta.

* * *

A economia da batuta deve ser intuitivamente vista por muitos mais ou menos como o problema dos técnicos de futebol. Ora, todos sabem que qualquer um que se dispuser a assistir em estádios ou mesmo pela TV disputas travadas entre grandes times se tornará, depois de algum tempo, apto a gritar da porta do vestiário com um plantel a se degladiar. Qual diretoria se atreveria, no entanto, pressionada por uma torcida furiosa, a confiar jogadores caros a alguém sem algum êxito prévio à frente de grandes equipes ? com isto, apenas poucos, de um universo abundante de capacitados (compreensivelmente, em muitos casos, ex-jogadores de expressão) chegam a ocupar os raros postos de trabalho existentes.

(nunca entendi muito bem a função de um técnico de futebol (do mesmo modo, acho, que custei a perceber a de um maestro).

Custo a entender por que raios duas equipes de 11 pessoas que se enfrentam numa arena durante noventa minutos devem ficar, cada uma delas, de algum modo

subordinadas ao comando único de alguém a lhes gritar coisas da boca do vestiário, inaudíveis na maior parte do tempo;

ao invés de, ao contrário,

cada equipe funcionar como uma entidade única e autônoma, orientada por decisões instantâneas tomadas de modo descentralizado (não sei por que suspeito que, na prática, a coisa seja mais ou menos assim) – como, sei lá, por meio da interação entre nodos de uma rede neural.

Falo da diferença entre processos seriais e paralelos. Acho um técnico a gritar e gesticular à beira do campo um troço tão… serial. Mas devo estar, afinal, esperando demais de um esporte organizado.

Na regência orquestral, tampouco é diferente. Na proporção de, ao menos, um pódio para algumas dezenas de estantes, muitas delas para dois músicos)

* * *

O mito da regência orquestral como competência escassa tem, além de, como vimos, a relativa novidade de sua didática como disciplina autônoma, também como razões de sua perpetuação até hoje o protetorado e a proximidade. Já ouviram aquela história de ser a pessoa certa na hora e no lugar certos ? É disto que falo.

O protetorado pode ser mais ou menos descrito como o acesso aos meios (i.e., às orquestras) mediante imposição ou forte recomendação de alguém eminente. Fatores como proximidade pessoal e confiança são sempre determinantes. Dentre os casos conhecidos, podemos citar os de Koussevitzky e Eleazar, Bernstein e Chamis ou, mais recentemente, Masur e Minczuk, só para ficar entre alguns dos que envolvem brasileiros.

A proximidade frequentemente tem a ver com a exposição precoce, pré-escolar e, em muitos casos, familiar, à atividade. Kleiber cresceu vendo o pai reger. Pelo menos até certa idade. Os Wagner são bem conhecidos e, mais recentemente, os Järvi também. E notem que, em famílias de músicos, dentre os mais novos aqueles que tomam para si a ocupação dos pais tendem a superá-los. A propósito, me refresquem a memória: o pai de Bernstein também não foi músico ? De qualquer modo, Bernstein foi o cara certo no lugar certo e na hora certa que, quando faltou um maestro, intrepidamente stepped in. Não desmereço (ao contrário !) nenhuma faceta de sua genialidade (inclusive o talento televisivo que tanto o popularizou !) – mas, fossem os meios de acesso mais… democráticos, por assim dizer, não teríamos conhecido, de sua época, tantos mais Bernsteins ?

Outro exemplo, já esquecido, de um cara que teve o atrevimento de saltar à frente quando, na última hora, precisaram de um regente foi o de um trombonista baixo que assumiu um concerto na Alemanha. É certo que não deve ser nenhum gênio. Mas, de tanto ouvir a música, a conhecia bem. O mais provável, então, é que, dada a escassez de partes compostas para seu seu instrumento (os trombones só comparecem em Beethoven a partir do último movimento de sua quinta sinfonia !…), estivesse ocioso quando o dever o chamou. Então, despretensiosamente, isento de qualquer vaidade, encarou a bronca em nome de um show que tinha que continuar. Colegas devem ter brindado a ele depois. Com razão. Mais entusiasmados podem até achar que, na ocasião, se revelou um grande talento dormente. Prefiro pensar que o episódio tenha muito mais a ensinar. A saber, que a CRO é uma competência enormemente mais abundante do que comumente se pensa. Esta é, no entanto, uma verdade bem inconveniente para alguns.

Nenhuma indústria – em especial a do entretenimento – jamais soube nem teve qualquer interesse em aceitar premissas de que certas competências gerenciais (como muitos ainda entendem a regência orquestral) sejam disponíveis abundantemente. Isto se dá por que a preservação de mitos de competência escassa tenham, na maior parte das vezes, a ver com a maior concentração de lucros.

Outra anedota bem popular (como aquela, factual, com que iniciamos este post) que, olhada a fundo, também remete diretamente ao mito da CRO como uma competência escassa é a de que” ninguém deveria reger a nona sinfonia de Beethoven pela primeira vez. ”

Os mitos de escassez são vitais ao ideário capitalista e, portanto, onipresentes na maior parte dos ambientes corporativos. Pois há, em toda grande organização, muitíssimos postos mais monótonos e menos especializados e, ao mesmo tampo, cada vez menos postos gerenciais à medida que se sobe na pirâmide administrativa. Desgraçadamente, a formulação encontra fáceis analogias na natureza (um filé e tanto para os crédulos !), como nos casos de abelhas-rainha e tais, de modo que tudo conspira para reforçar a crença que seja normal ou natural, para líderes ou gestores de toda espécie, saber mais que seus subordinados.

Mais. Toda indústria de entretenimento anterior à web (brodcasting, media oriented) sempre endossou, explícita ou implicitamente, em qualquer de suas ações, o culto à celebridade – categoria à qual pertencem, além de muitos políticos, executivos, cantores, atores, jogadores e até técnicos de futebol, também, “naturalmente”, os maestros. Eram conhecidíssimos, por exemplo, o apreço e os favores de executivos japoneses a Karajan. E não há guru ou coach corporativo que não ame a metáfora da orquestra como modelo organizacional perfeito.

(difícil, neste cenário, se livrar do estigma de que orquestras funcionem, essencialmente, subordinadas a um protocolo de comando altamente centralizado)

* * *

Praticamente todo bom regente é ou foi, antes de empunhar a batuta, um músico, senão de grande expressão, ao menos completamente proficiente. Os casos são inúmeros, desde Rostropovich, Levine, Ashkenazy, Barenboim (que, para a decepção e desespero de alguns fãs, surpreendentemente se declarou contrário a que músicos orquestrais se sentissem empoderados em relação a assumir o pódio) até brasileiros como Zanon ou Minczuk ou, ainda, membros de destaque de orquestras prestigiosas como Baldini (spalla da OSESP) ou, até (não é piada !), o spalla de violas (!) da Filarmônica de Berlim (Lebrecht disse, tempos atrás, que Sir Rattle o deixou dirigir um concerto antes de se aposentar !…). Até de Karajan ao piano há filmes.

Todavia, como bom cético que sou, sigo no aguardo de vir a conhecer ao menos um caso de um bom regente que não é ou tenha sido, antes, um ótimo musico. Se alguém ainda duvidar disto, é só perguntar para qualquer virtuose que, por razões de saúde, idade, vaidade, finanças ou outras quaisquer, tenha optado, a partir de certo momento de sua carreira, por também atuar como regente, o que levou mais tempo para aprender: se

a tocar seu instrumento ou

a reger uma orquestra ?

Ou, ainda,

a tocar um concerto como solista ou

a reger uma sinfonia ?

* * *

Apesar de importantes progressos na aceitação de que a CRO é muito mais abundante do que até há pouco tempo se supunha, a indústria ainda trabalha primordialmente com a hipótese de que tal habilidade seja bem escassa, a ser prospectada apenas entre uns poucos. Accordingly, posições de destaque ainda são ocupadas por uns poucos.

O que, no entanto, a maioria não percebe é que, conquanto um Dudamel ainda seja tratado pela indústria como um caso isolado de talento excepcional, não é difícil perceber que ele só emergiu por força da existência, num dado contexto (a saber, o célebre El Sistema, da Venezuela), de uma necessidade muito acima da habitual de sujeitos aptos a reger orquestras sinfônicas, no qual ele foi prospectado e prosperou. Só que, como ele, há, muito provavelmente, muitos. Como Payarez, Allondra e outros ainda por serem descobertos.

O ponto onde quero chegar é que pódios mais numerosos e rotativos revelariam, por definição, mais maestros suficientemente bons do que todos os que atualmente conhecemos. Se no, entanto, o acesso aos pódios orquestrais ainda é tão restrito, tal se deve exclusivamente à manutenção de privilégios indevidamente adquiridos.

Não canso de dizer, neste blog e no facebook, que devemos nos engajar, entre outras coisas, numa cruzada pela substituição do mito de que a CRO seja uma competência escassa pela ideia de que a mesma é abundante. Nesta índole, todo programa de treinamento com livre acesso é extremamente bem-vindo. Como, por exemplo a academia de regência da OSESP, dirigida por Valentina Peleggi, onde o acesso universal e isonômico às disputadíssimas vagas é garantido por um rigoroso processo seletivo regulamentado por edital público.

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Dois livros para se entender a indústria fonográfica

Nos últimos 25 anos tenho me mantido, mais por força do hábito do que por determinação, um leitor de catálogos e manuais. Isto quer dizer que li, nas últimas décadas, muito pouca ficção, invariavelmente a pedido de amigos. Fora isto, os poucos volumes dos quais cheguei às última páginas tiveram a ver com algum interesse bem específico. Quase técnico. Como, por exemplo, a história da indústria fonográfica, desde sua expansão a partir de meados do século 20 até seu colapso frente ao avanço da internet.

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Já faz tempo que li a indispensável tese de Marcia Tosta Dias, publicada pela Boitempo em 2000, Os donos da voz; indústria fonográfica no Brasil e mundialização da cultura, abrangendo a história das gravadoras no Brail desde os tempos dos festivais e da bossa nova. Fundado sobre extensos de depoimentos primários de alguns de seus principais atores, como o executivo André Midani ou o produtor Pena Schmidt. O livro é um rico compêndio de dados sobre a indústria do disco no Brasil e no mundo. Fartos quadros de fusões e curvas de faturamento dão uma boa ideia de como este importante setor da economia (já repararam como os negócios mais lucrativos são justo aqueles ligados à beleza, ao entretenimento ou ao lazer, tidos por vezes como supérfluos ?) se comportou por mais de meio século.

André Midani
André Midani

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Pena Schmidt

Lendo Os Donos da Voz, fiquei meio incomodado com a predominância, sei lá se por hábito acadêmico ou o que, de muitas páginas dedicadas à explicitação de um referencial teórico/ideológico (Adorno, se não me falha a memória) que, conquanto importante de algum modo para a autora, é perfeitamente dispensável para o leitor em busca do que é prometido no título. Impaciente, queria chegar logo à parte que tratava da indústria da música no Brasil. Pois, ora, se quisesse ler sobre o frankfurtiano, comprava um livro sobre ele.

Também senti falta de um índice onomástico no lugar de uma bibliografia (outro vestígio inequívoco da origem acadêmica do texto), além de um certo sabor de história inacabada devido ao fato do volume não contemplar a então novíssima cena virtual e as reações da indústria frente à nova ameaça da pirataria. Não devemos, no entanto, culpar a autora por esta omissão – já que tudo aquilo era, então, ainda muito novo. Em que pesem estas arestas a serem aparadas da transposição da tese acadêmica para um relato destinado ao leitor comum, o trabalho permanece, no entanto, essencial para se entender como a economia afetou a história da música brasileira num período áureo.

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Ano passado, recomendações pelo facebook de Maria Estrella e Zeca Azevedo me levaram até Como a música ficou grátis (Intrínseca, 2015), do jornalista Stephen Witt. Como o livro de Dias, este também ostenta um subtítulo (como se editores no fundo duvidem que títulos destinados a públicos mais específicos chamem, de algum modo, a atenção de seus leitores em potencial…): O fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria.

Em favor do livro de Witt (ah, maldito estigma da comparação…) está o ritmo da narrativa. Ao contrário de Dias, intercala, com a maestria de um bom roteirista, fragmentos de narrativas de vários atores, todos eles centrais na história da indústria fonográfica, mas cujas trajetórias pessoais, todavia, jamais se tocaram. Como resultado, dá um sentido (ou, como talvez prefiram alguns, provê um contexto) para fatos que, de outro modo, pareceriam desconexos.

A base de consulta de Witt é ampla: dezenas de entrevistas e milhares de páginas de documentos examinados. Os quais, no entanto, não nos são mostrados sequencialmente, tal qual armazenados em arquivos. Ao invés, o texto salta dinamicamente de uma narrativa para outra a cada capítulo, começando com a história de Karlheinz Brandenburg e seu círculo, responsáveis por desenvolverem, no Instituto Fraunhofer (Erlangen, Alemanha), o algoritmo de compactação utilizado até hoje no formato mp3.

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Karlheinz Brandenburg

A seguir, passa a narrar a história da pirataria musical, constituída principalmente por anônimos, a partir da biografia de um de seus principais atores, Dell Glover, funcionário de uma fábrica de CDs da Polygram em Kings Mountain (Carolina do Norte, EUA) que, tendo progredido por anos a fio de empacotador e gerente, conseguiu vazar mais de dois mil CDs antes de seus lançamentos até ser pego por autoridades. Peça importantíssima para grandes redes piratas como a Scene ou seu subgrupo RNS, Dell foi um dos principais informantes de Witt, revelando, entre outras coisas, não conhecer pessoalmente, a não ser por conversas telefônicas mediante pseudônimos, o “dono” da rede a quem se reportava.

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Dell Glover

A perseguição por agentes policiais e braços jurídicos das gravadoras aos compartilhadores piratas mais eficientes foi sempre desastrada. Conseguindo chegar não mais do que a usuários finais, resultou principalmente em perseguições a estudantes e donas de casa enquanto responsáveis por redes ou servidores permaneciam, via de regra, impunes. Na maioria das vezes, incógnitos. Quando logravam prender alguém, como aquele australiano doido, dono do Megaupload, em sua casamata, se tratava de uma exceção, altamente celebrada e publicizada. Como, por exemplo, no insólito caso de Alan Ellis, dono do exitosíssimo site Oink (de compartilhamento via torrent), encarcerado pelo governo britânico.

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Alan Ellis

Um dos raros piratas que efetivamente chegaram a cumpriram pena, Ellis se tornou notório por jamais ter utilizado, em benefício próprio ou para seu sustento, qualquer centavo das volumosas doações que seu site recebia, as quais mantinha – talvez por achar que, assim, melhor as protegeria contra qualquer confisco ou congelamento judicial – distribuídas em dez contas bancárias distintas.

Do lado da indústria, acompanhamos a trajetória de grandes executivos. Como Doug Morris, que esteve à frente, entre outras, da Warner, da Universal e da Sony.

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Doug Morris

Lendo o livro de Witt, sucumbimos à evidência de que o gênero que moveu a indústria nos últimos dez ou vinte anos foi, sem sombra de dúvida, o rap. Mais que a irreverência, acionistas de grandes gravadoras reconheciam em letras de muitos rappers o incitamento a sentimentos indesejáveis, como a violência ou o sexismo. Os mesmos eram, no entanto, tolerados em virtude de serem, entre todos os artistas dos elencos das gravadoras, os que mais rentabilidade apresentavam nas últimas décadas..

A certa altura, Witt dedica alguns parágrafos a esmiuçar o tipo de contrato tradicionalmente oferecido pela indústria fonográfica. Funcionava mais ou menos assim. Tendo escolhido um artista, a gravadora investia antecipadamente os elevados montantes requeridos para a produção, gravação e fabricação dos discos, descontando, depois, dos artistas, tais valores dos royalties que deveriam receber sobre as vendas. Por vezes, dados os custos extravagantes de algumas produções, músicos não recebiam praticamente nada pelas vendas de álbuns bem populares. Cabe, aqui, comparar este tipo de contrato – a saber, do acesso aos meios de produção por seus proprietários mediante o comprometimento de parte substancial da produção futura – com o tipo de acordo tacitamente outrora celebrado entre, de um lado, senhores feudais e, de outro, os servos que aravam suas terras.

Não é, pois, de se estranhar que, ao ensejo do impacto de novas tecnologias, tal tipo de contrato tenha sido abandonado. Com efeito, é bem mais provável que este tipo de contrato – muito mais do que, como muitos ainda acreditam, a pirataria – tenha “matado” a indústria fonográfica. De uns tempos prá cá, as poucas gravadoras corporativas (i.e., não indie) que sobrevivem, além de não mais investir na produção de qualquer artista (um investimento, como mostra Witt, de alto risco – já que, dos muitos nomes do elenco de qualquer gravadora, somente uns poucos podem ser considerados, efetivamente, como lucrativos), passaram, ao invés de pagar royalties por vendas de álbuns a artistas, a cobrar (sic !) dos mesmos parte de valores obtidos com a venda de ingressos para seus shows.

Temos, com isto, uma mudança radical do foco de atuação de uma indústria minguante procurando se reinventar para sobreviver. Pois quem antes vendia mídias físicas gravadas agora vende experiência presencial. Isto, aliás, ajuda a entender todos aqueles smartphones que se erguem hoje sobre as cabeças do público em muitos espetáculos.

O livro de Witt tem um epílogo desconcertante. Conta o autor que, tendo sucumbido definitivamente ao streamming, resolveu se livrar de vários HDs que guardara ao se desfazer de sucessivos computadores, alguns já ilegíveis, contendo milhares de álbuns baixados ao longo de várias décadas. Procurando uma empresa especializada neste tipo de serviço, foi conduzido pelo proprietário de uma delas até um recinto onde havia uma máquina de pregar. O sujeito, então, após se recusar a receber qualquer valor devido ao ínfimo porte do trabalho a ser realizado, efetuou com a pistola alguns disparos contra os HDs para, em seguida, os abandonar numa caixa ao lado que já continha a sucata de muitos outros.

* * *

A tragédia da indústria fonográfica é seu fracasso sistemático em repetidas tentativas de abranger a qualidade e a diversidade. Pois a índole do capital é a devora do menor pelo maior, tendendo à existência de um número cada vez menor de conglomerados cada vez maiores, no que poderíamos chamar de um efeito espuma – na qual, com o tempo, há um número cada vez menor de bolhas maiores. Com negócios lucrativos – como foram, por muito tempo, as grandes gravadoras – não é diferente.

Alguns selos indie –  clássicos, inclusive – até perduram por algum tempo. Mas nenhum catálogo físico (como os HDs pregados de Witt) é ou será capaz de resistir ao apelo avassalador da internet e do streamming. Há coisas que, como a fotografia digital, vieram para sepultar outras. Ao menos quando competitividade comercial estiver em questão.

Como praticamente toda história, esta começou a ser contada a partir de seu final – com o qual temos, obrigatoriamente, maior familiaridade. Resta, então, para completar a narrativa do parêntesis da indústria fonográfica, esperar que alguém escreva o grande livro sobre o recém falecido George Martin, inventor da coisa. Quando poderemos ter, finalmente, uma perspectiva mais completa de como a economia afetou a música durante os últimos cinquenta anos.

George Martin
George Martin