A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

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Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

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A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

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O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

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O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

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PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”

Beethoven tempi, outra vez

Nestes dias de ópera-rock farroupilha, nem vale a pena falar do assunto. Não que o tema, tão repugnante, não mereça. Ao contrário. É que tantos amigos vem se manifestando com tanta propriedade, tanto na mídia como em redes sociais (vejam, por exemplo, as ótimas peças de Claudia Laitano, Celso Loureiro Chaves, Milton Ribeiro e Francisco Marshall, para citar uns poucos), que, diante do brilho do que já foi dito, é melhor ficar calado.

É nestas horas, em que mais nos esforçamos para afastar nossa atenção do absurdo cotidiano, que certas preocupações recorrentes, tidas por artistas como leitmotiv ou acadêmicos como linhas de pesquisa ou indagação, mais nos ocupam a mente. Em meu caso, torno ciclicamente a ruminar sobre a fidelidade ou não aos tempos de execução diligentemente prescritos por Beethoven para cada trecho de suas monumentais sinfonias. Tanto que já me ocupei disto, ao menos, aqui e aqui.

Sei. Até há músicos bons e honestos capazes de sustentar firmemente que os  andamentos de quaisquer movimentos de sinfonias de Beethoven sejam prerrogativa exclusiva de cada regente no pódio. Há controvérsias. Talvez poucos saibam que Beethoven foi, dentre os compositores mais importantes, o primeiro a deixar instruções específicas quanto a isto aos chefes de orquestra futuros por meio de anotações metronômicas em suas partituras.

Vergonhosamente, é prática corriqueira desrespeitá-las. Se pode ter uma visão, ao mesmo tempo ampla e sucinta, de como pode variar o tempo de execução do primeiro movimento da Eroica (terceira sinfonia de Beethoven, composta em 1803 e 1804), neste fabuloso audiográfico, autoexplicativo, dentre os melhores que já vi.

Notem a lentidão das primeiras gravações, em especial as de Toscanini (1938 e 1945) e Furtwängler (1944 e 1952); em oposição à vivacidade das da última década da amostra, com Abbado (2000), Rattle (2002) e Chailly (2011). Notem também o baixo diapasão das orquestras de instrumentos de época de Hogwood (1985), Norrington (1987), Harnoncourt (1991), Gardiner (1993) e Savall (1994). Interessantemente, o pessoal dos instrumentos de época está entre os que mais aderiram às prescrições de andamento de Beethoven. Muito mais, pelo menos, do que seus contemporâneos.

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Sempre que o tema dos andamentos de Beethoven vem à tona, não há como não nos referirmos à primeira gravação integral de suas sinfonias segundo a vontade do autor, a saber, a coleção gravada entre 1987 e 1989 pelos London Classical Players, liderados por Roger Norrington. A edição, encaixotada pela EMI, é primorosa. O encarte, trilíngue (inglês, alemão e francês), de 94 páginas, tem o requinte de especificar a duração da unidade de tempo (notação metronômica, tipo “semi-colcheia igual a 92”) para cada nova seção, com a devida minutagem na faixa do CD, de cada movimento de cada uma das nove sinfonias. Chamem, se quiserem, de referência.

On (non) conducting (xvi): A propósito da impactante descoberta de Les Dissonances, duas piadas com um fundo de verdade

Como é bom poder tocar um instrumento

Caetano Veloso, em Tigresa

O repertório de piadas que circulam em ambientes musicais, desde conservatórios até orquestras, é imenso. Os violistas são os que mais sofrem com isto. Ou se divertem, não sei ao certo. Quem ainda não viu, por exemplo, este célebre fragmento de um ensaio do grande Celibidache ?

Mas não vim aqui para falar dos queridos amigos violistas. Soe que, dentre a penca de excelentes comentários desencadeada pelo post de ontem, sobre a execução da Sagração da Primavera, de Stravinsky, pelo ensemble Les Dissonances em Paris, alguns me trouxeram de pronto à memória duas populares piadas, tendo a orquestra como temática de fundo, que não poderiam ser mais verdadeiras. Ainda por cima, as duas compõem um par perfeito, correlato – por se tratar, num caso, de uma semelhança e, no outro, de uma diferença. Não resisti. A elas.

A primeira deve ser contada a inglês, para preservar o ótimo trocadilho entre condom (preservativo) e conductor (regente). É mais ou menos assim:

Question: What’s there in common between a condom and a conductor ?

Answer: In both cases, it’s safer with, but better without.

Já a segunda é assim:

Pergunta: Qual a principal diferença entre uma orquestra sinfônica e uma de jazz ?

Resposta: É que na segunda, todos parecem gostar do que fazem.

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É sabido que piadas explicadas tendem a perder a graça. Deixo, então, a vocês, se quiserem, a tarefa opcional de as relacionarem com comentários sob a primeira postagem de divulgação do texto de ontem no facebook. Dito isto, assumo o risco de me tornar demasiado sério e enfadonhamente didático ao trocar em miúdos o tal fundo de verdade ao qual aludo no título.

A primeira piada se refere claramente à relação custo/benefício envolvida no uso de preservativos e maestros. Numa primeira leitura, mais ligeira, depreendemos a correlação inversa entre segurança e prazer normalmente associada ao uso ou não de uns e de outros. Indo, no entanto, um pouco mais a fundo, verificamos que a música orquestral é executada com melhores resultados em concertos sem a intervenção de maestros – ainda que, para tanto, sejam necessários muito mais ensaios.

Temos, então, que, salvo nos raros casos que envolvem maestros excepcionais (i.e., em poucos ou pouquíssimos concertos, dependendo da orquestra), eles estão ali antes de tudo para poupar tempo de ensaio. Pois, afinal, ensaios são caros e agendas precisam ser cumpridas.

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A segunda piada tem a ver com o prazer que os músicos demonstram sentir, num caso e noutro (i.e., na orquestra sinfônica e na de jazz), ao tocar. Ora, é praticamente impossível a alguém habituado a frequentar concertos sinfônicos não perceber, em pelo menos alguns assentos orquestrais, músicos que mais parecem no desempenho de alguma função burocrática, apenas à espera do fim do expediente. Isto não acontece em conjuntos de jazz, onde o prazer de cada integrante é muito mais evidente. Por que, então, orquestras tendem a ser mais “broxantes” para alguns ? (não falo, aqui, é claro, dos muitos músicos sinfônicos que revelam a cada instante a imensa alegria que sentem por poderem fazer parte daquilo tudo)

Uma possível explicação para este fenômeno é a tremenda desigualdade existente na distribuição de atenção entre todos os atores envolvidos em uma performance musical. Comparem, por exemplo, um concerto sinfônico com um jogo de futebol. Se em campo todos os olhares e as câmeras estão voltados, na maior parte do tempo, para os jogadores que correm no gramado ao invés de para o técnico que grita e gesticula à margem do mesmo, já num concerto tanto o público quanto as lentes parecem se concentrar no gestual do maestro, como se dele, e não dos músicos, emanasse a música que se ouve.

Ora, assim como excluídos e remediados se ressentem da enorme desigualdade na distribuição de renda, é natural que músicos de um conjunto limitem, voluntária ou inconscientemente, seu desempenho ao perceberem desequilíbrio similar na distribuição da atenção de ouvintes presenciais ou remotos. Suprimido o grande imã de atenção no qual se constitui a figura do maestro, a mágica se processa: todos passam a dar seu máximo, tocando “na ponta da cadeira”, motivados pela percepção de estarem recebendo seu devido quinhão na economia da atenção. Então, não é que alguns músicos não pudessem tocar mais proativamente – mas, tão somente, por que, dada a baixa taxa de atenção recebida, simplesmente não viam motivo algum para tanto entusiasmo. Isto é perfeitamente evidente, por exemplo, na execução da Sagração da Primavera por Les Dissonances, da qual falei ontem.

Outro aspecto inibidor do ímpeto orquestral é o confortável hábito de se ter uma referência visual única permanentemente disponível. A supressão da regência, além de obrigar cada músico a ouvir melhor o que os outros tocam, também engendra um complexo e ágil jogo de olhares entre as partes que compõem o todo. Isto pode ser ser muito bem observado nos close-ups de um outro vídeo de Les Dissonances tocando o movimento lento (a marcha fúnebre) da sétima sinfonia de Beethoven. Notem o contraste entre a delicadeza da música e o intenso jogo de olhares necessário para manter aquele tecido coeso.

Ainda sobre o prazer de tocar se sentindo no comando: observem a felicidade da primeira flautista de Les Dissonances, depois de tocar, praticamente sozinha, aquela frase final da Sagração, logo depois daquela apoteose orgiástica. Ninguém me convence de que é possível tocar aquilo melhor em resposta a um comando externo.

Conquanto o problema seja de fácil diagnóstico, sua solução não é nada simples. Passa, antes, pela conquista de uma sociedade mais igualitária, horizontal, na qual a competência de poucos deixe de ser reconhecida como tão superior à de muitos. Até lá, o modelo orquestral vigente permanecerá como talvez a melhor metáfora disponível de ideais neoliberais.

 

On conducting (xv): Por que A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, é melhor executada sem a intervenção de um regente

Por mais piegas que possa parecer, tenho que confessar: chorei vendo isto:

O vídeo me foi apresentado por um amigo – a quem sou imensamente grato – que, presumivelmente, prefere permanecer anônimo. Além de emocionado, também fiquei lisonjeado por ter sido, de certo modo, lembrado como alguém que comemoraria a boa nova. Faço, então, mais do que isto compartilhando a façanha.

Para quem ainda não se deu conta, se trata da estreia, há poucos dias em Paris, da icônica Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, executada sem a intervenção de um regente. Não é pouca coisa. Pois embora vários conjuntos internacionais (um dos primeiros foi o Orpheus, de Nova Iorque) já se dediquem há algum tempo à execução de repertório orquestral sem maestros, havia, antes desta façanha do Les Dissonances, um certo consenso de que aquele repertório no limite da complexidade rítmica sempre exigiria alguém à frente da orquestra a indicar o tempo. Com esta performance, foi deixado para trás mais este mito.

Antes disto, eu já havia visto uma execução de uma sinfonia de Mahler sem regente. Que, no entanto, deixou muito a desejar. Provavelmente por que, ao contrário do que costuma ocorrer na obra de Stravinsky, na qual o tempo é inflexível, já em Mahler o tempo é maleável – o que talvez ainda implique na direção de uma consciência individual para sua realização. Assim, embora aqueles músicos conseguissem tocar Mahler juntos sem o auxílio de um maestro (o que também não é pouco), faltava à música, a meu ver, digamos que um pouco de personalidade.

Tal não é o caso, entretanto, na execução de Stravinsky pelos membros de Les Dissonances – grupo que me apressei em conhecer e cuja performance do Concerto de Orquestra de Bartók, também no facebook, verei imediatamente após publicar este post.

Vendo e ouvindo este final da Sagração da Primavera, não pude deixar de reparar duas coisas. Primeiro, é visível o tremendo envolvimento de cada membro da orquestra, com uma linguagem corporal comum na música de câmera mas absolutamente rara em orquestras. Pois em Les Dissonances, todos tocam como se fossem spallas, i.e., proativamente. Tamanho empenho individual se reflete no corolário sonoro deste aspecto visual. Posso estar enganado, mas jamais ouvi uma orquestra que soasse tão articulada.

Quem frequenta concertos sinfônicos habitualmente já deve ter observado um certo “arrefecimento” (salvo raras exceções) do ímpeto dos que sentam nas primeiras estantes na medida em que nos aproximamos das últimas. Acho que isto pode até ter se normalizado como uma espécie de competência ideal na “ética” da performance orquestral – i.e., seguir o spalla sem em nenhum momento desafiá-lo. O resultado deste “abrandamento” de intenção expressiva em direção às últimas estantes passou, então, a ser percebido não como uma distorção mas, ao contrário uma qualidade orquestral – traduzida, talvez, como uma suavidade de ataque (na verdade um blend de ataques ligeiramente fora de sincronia) impensável em conjuntos de câmera.

Orquestras não tocam assim, no entanto, por que seus músicos sejam incompetentes. Ao contrário. O problema decorre, em parte, do fato de que músicos devam obedecer, permanentemente, a uma espécie de duplo comando, a saber, do regente e do respectivo spalla. Só que é bem difícil e contraditório – com efeito não mais do que uma aproximação – tocar ao mesmo tempo junto com outros instrumentistas (a concepção camerística) e com alguém que apenas gesticula sem tocar instrumento algum.

Em Les Dissonances, no entanto, não existe este duplo comando e a impressão que se tem é de uma orquestra em que todos tocam como se fossem spallas.

É claro que qualquer orquestra não tocaria melhor sem um regente. A disciplina da submissão a uma batuta é arraigada à cultura orquestral e assimilada desde o início da formação de cada instrumentista. A ruptura proposta por conjuntos de ponta como Les Dissonances só é possível com muito muito treino e certamente tem também seu embasamento teórico. Então, não esperem ver, daqui prá frente, muitas orquestras seguindo os passos destes bravos franceses. Até por que há bastante poder em jogo, fundado sobre tradições tão antigas quanto a realização de concertos sinfônicos.

Deixo instaurada a polêmica. Comentem à vontade !

A influência do cargo de Simon Rattle é menor do que a de um visconde

O que segue é a tradução de um artigo de Norman Lebrech publicado em The Spectator em 23 de setembro de 2017

O novo director musical da London Symphony Orchestra (LSO) pode pensar que tem mais controle do que seus predecessores mas, como todo director musical de orquestras nos dias que correm, não tem poder algum

Muito se falou do cargo dado a Sir Simon Rattle quando chegou à Orquestra Sinfônica de Londres. Ao contrário de seus predecessores – Valery Gergiev, Colin Davis, Michael Tilson Thomas, Claudio Abbado  ou André Previn – todos eles contratados como regentes principais, Rattle foi nomeado diretor musical, uma posição que implica em sérias responsabilidades administrativas. Como Rattle disse recentemente numa de uma dúzia de entrevistas concedidas à mídia: “- Valery não estava interessado, tampouco Claudio. Colin os amava, mas deixou bem claro que não queria nada que tivesse a ver com a administração, as audições ou o pessoal… Eu me involverei muito mais com o dia a dia.“

Será que vai ? De todas as erosões que afetaram orquestras na última geração, entre as mais significativas está a degradação progressiva do diretor musical. Tendo sido já altos déspotas que demitiam músicos ao bel prazer e tratavam orquestras com feudos pessoais – pensem em Toscanini, Beecham ou Solti – o papel evoluiu primeiro para um amigável  primus inter pares e, ultimamente, até para um pouco abaixo dos pares.

O fim dos tiranos não é de todo indesejável. Músicos de Boston ainda contam do oboísta que, demitido em meio a um ensaio, se ergueu e gritou. “– Foda-se, Koussevitzky !“ O maestro russo, pouco fluente no idioma inglês, retrucou, “- É tarde demais para se desculpar.” Despotismo deste tipo é decididamente indesejável.

Leonard Bernstein, protegido de Koussevitzky, inaugurou um estilo mais amigável, temperando seus ensaios com piadas judaicas e, ocasionalmente, baixando ambas os braços mãos para reger só com a expressão – como a dizer que o regente é um item de luxo, a ser usado com parcimônia e amplamente compartilhado.

Pelos anos 80, era comum que grandes maestros fossem diretores musicais em dois ou três continentes, alocando a cada orquestra fragmentos de sua preciosa atenção. Em suas ausências, seus poderes foram usurpados. Músicos tomaram a si o direito de escolher novos membros das orquestras. Em 1989, Herbert von Karajan se demitiu da Orquestra Filarmônica de Berlim após anos de amargura, depois que os músicos rejeitaram sua escolha de uma clarinetista principal em 1983, alegando que Sabine Meyer – que seria a primeira mulher a entrar na orquestra – não se adequava a seu som. Em 2005, Riccardo Muti foi dispensado do La Scala de Milão em razão de um voto de desconfiança de seus músicos.

Outras erosões se seguiram. Na ausência de maestros, gestores passaram a controlar conteúdo. “- Jamais deixarei um diretor musical me dizer que solistas contratar,” me assegurou o presidente de uma orquestra norte-americana. “- Tampouco aceitaria seus regentes convidados preferidos.” Patronagem costumava ser o charme de um maestro, se dando a velhos excêntricos um acesso a jovens talentos do qual alguns desavergonhadamente abusavam. O fim da patronagem acabou com o expediente. Exceto por Muti em Chicago e Barenboim na Ópera Estatal de Berlim, hoje é difícil se apontar uma instituição musical onde a voz dominante ainda pertença ao diretor musical.

Tomem Covent Garden (a principal casa de ópera inglesa). Antonio Pappano manteve o velho navio andando a uma velocidade decente por 15 anos mas foi impotente para impedir cortes em sua orquestra. Ao longo de 45 anos no Met (Nova Iorque), James Levine não deixou marcas duradouras. Quando sua amiga Kathleen Battle foi demitida por ser uma praga, Levine não pode readmiti-la. Na Ópera Estatal de Viena, tudo o que Franz Wesler—Möst conseguiu fazer quando suas produções foram cortadas pelo diretor geral foi se demitir, alegando que o cargo de diretor musical carecia de autoridade significativa.

Então, o que, exatamente, pode Rattle esperar realizar na LSO ? Ele disse a amigos que gostaria de ver algumas trocas de pessoal, mas contratar e demitir está inteiramente nas mãos dos músicos. Tudo o que o diretor musical pode fazer é empurrar e piscar para seus apoiadores e esperar por um resultado desejado. Rattle inaugurou a temporada com um programa inteiramente dedicado a compositores ingleses, a maioria deles vivos, mas a ele não será permitido impor qualquer programação além do que a bilheteria permita – a qual não suportará, por sua vez, mais do que um desses chamarizes por temporada.

O que Rattle deveria fazer é abolir excursões desnecessárias que exaurem seus melhores músicos, bem como datas de gravação no Abbey Road com aspirantes de quarta categoria. Mas a LSO precisa da grana dessas gravações e os músicos não tolerarão um diretor musical que interfira com filões lucrativos.

Num mundo perfeito, Rattle excursionaria com a LSO em seu próprio país, ao invés de em toda parte no estrangeiro, com um grito de guerra em prol da elevação de padrões. Isto não acontecerá, no entanto, por que o Arts Council não custeará nada que atenda demandas de públicos regionais. Tudo isto deixa Rattle com um cargo com menos influência do que o de um visconde. Um honorífico para enganar a mídia, a levando a acreditar em milagres. Estas limitações ajudam a explicar por que o novo diretor musical fincou tanto o pé em arrancar das autoridades públicas a construção de um novo teatro. Isto, ao menos, poderia ser creditado como uma conquista concreta.

Eu não queria falar sobre xenofobia, mas…

Logo que conheci o blog Opera e Ballet, de Ali Hassan Ayache, simpatizei com sua prática de replicar textos meus e de outros autores e até com sua militância em favor de muitas boas causas musicais. De modo que dei pouca ou nenhuma atenção às diatribes que lá apareceram contra Marin Alsop à frente da OSESP. Até por sempre ter sido favorável a uma melhor distribuição do poder em instituições culturais (dentre elas as orquestras) entre músicos, maestros, ouvintes, críticos e, vá lá, mesmo patrocinadores. Depois, Lady Alsop dispensa defensores: sua competência e reputação (uma de nada serviria sem a outra) falam por si mesmas.

Então, veio, semanas atrás, a mais explicita incitação à xenofobia que já vi no meio musical. Francamente, quem seria neste país qualquer coisa em música não fosse a contribuição de um ou mais estrangeiros ou descendentes de imigrantes ? Ao ler, estupefato, o ataque endereçado, desta vez, à incrível regente italiana Valentina Peleggi, me limitei a repassar a peça difamatória ao amigo Milton Ribeiro, cuja indignação e maestria verbal se encarregaram de publicizar o ocorrido sem que eu precisasse pronunciar uma palavra sequer. Aqui, a excelente réplica do Milton.

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* * *

Até dias atrás, quando a bola da vez do Opera e Ballet passou a ser o spalla da OSESP, o italiano Emmanuele Baldini. De pronto, cutuquei o Milton outra vez – que, no entanto, já tinha dito a Baldini que nada diria sobre o ocorrido, a fim de não dar visibilidade a um ataque tão gratuito – com o que o italiano concordou, apenas agregando que ler um troço daqueles doía (acho que ele não se importará de eu ter revelado isto, principalmente em razão do que escreverei daqui em diante). Dada, então, a sábia reticência do Milton, me coube a missão de tecer este pequeno instrumento de desagravo (da última vez em que fiz isto, me chamaram de puxa-saco).

Vou poupá-los de citar a íntegra do post do Opera e Ballet, destacando, tão somente, duas expressões que saltam aos olhos como grandes disparates, só “deglutíveis” por aqueles que não tenham a mínima familiaridade com a música nem tampouco com o contexto envolvido – a saber, o das orquestras sinfônicas no Brasil e no mundo.

Primeiro, Baldini é chamado por Ayache de “spalla mediano”. Qualquer um que já tenha ouvido o violinista jamais partilharia desta opinião. Em seguida, Ayache declara, com a maior cara de pau, que “Baldini acomodou-se como spalla da OSESP”. Ora, dizer isso é tão absurdo como dizer que Messi ou Neymar se acomodaram a jogar no Barcelona. Ou então (já que falamos de italianos) que algum piloto tenha se acomodado a competir pela Ferrari. Percebem, com isto, o absurdo de se afirmar que alguém se acomodou como spalla da OSESP ? Como é possível se considerar um acomodado quem se encontra no topo de sua carreira ?

É preciso dizer, ainda, em favor da presença de estrangeiros entre nós, que, especialmente em casos como os dos italianos Baldini e Pellegi, pinçados por Ayache como exemplares (num tiro que, felizmente, lhe saiu pela culatra…), sua influência tem um alcance que transcende em muito o âmbito de seu trabalho junto à instituição que os acolhe (neste caso, a OSESP, que ela rege e na qual ele toca numa posição de destaque) – já que ambos perseguem, como missão de vida, oportunidades de compartilhamento de seus conhecimentos em festivais, cursos e programas educativos em nosso país. De tal forma que, sem estrangeiros assim, ainda estaríamos, em áreas tais como a música, em plena idade da pedra.

Então, a frase com que Milton termina seu post de desagravo em favor de Valentina também se aplica perfeitamente ao caso de Baldini, que não deveria ser jamais um problema – mas, antes, um motivo de orgulho para São Paulo.

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Acompanhando de longe a intensificação dos ataques xenofóbicos naquele blog, minha amada Astrid formulou, como sempre, a pergunta crucial: a mando de quem Ali escreve ? Quem paga suas contas ?

* * *

As anotações para este post (e para o próximo, sobre o problema da didática da regência) se amontoaram ao redor de meu PC por vários dias, enquanto aderi à resolução de não escrever uma única linha no blog antes de tocar, na última terça-feira (nem parece que já faz tanto tempo !) a primeira sinfonia de Mahler e, ontem, no lançamento do CD de Leonardo Winter.

Dias antes, quando pensamentos enfurecidos acerca dos recentes episódios de xenofobia ainda dominavam minha mente, Valentina disse ” Vi que vocês vão tocar Mahler 1 !! Fantástico !! Se divirta, tem solos incríveis. ”

Obrigado Valentina ! Obrigado, Leonardo ! Obrigado, Mahler !

Comentários a um texto sobre o mito da escassez do talento para reger orquestras (on conducting xiv)

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Dias atrás, ao divulgar um post sobre o mito da escassez do talento para reger orquestras, fui, como sempre, brindado com comentários que ampliavam muito minha visão sobre o tema – razão pela qual os compilo abaixo. Como na última vez, optei por deixar a penca de comentários intacta, sem edições.
Obrigado, ilustres interlocutores !
Tudo começou com uma provocação minha a alguns amigos maestros.
* * *

Augusto Maurer O que acham, Emmanuele Baldini, Valentina Peleggi, Fabio Zanon, Lavard Skou Larsen, Tobias Volkmann, Nicolas Rauss, Ricardo Melo, Osvaldo Colarusso, Evandro Matté, Arthur Barbosa, Wilthon Matos, Lincoln Da Gama Lobo, Sasha Mäkilä … ?

Augusto Maurer … Leandro Schaefer, Ubiratã Rodrigues ?

Lavard Skou Larsen Quem? Aonde?

Sasha Mäkilä It is neither. The problem is the uneven distribution of talent – a lot of talented people don’t get enough chances to prove themselves in front of the orchestra, while a lot of untalented people are able to make a career because of political or financial support.

Augusto Maurer I strongly agree, Sasha !

Fabio Zanon Uma vez perguntaram isso ao Lorin Maazel. Ele respondeu: ¨existem três pessoas no mundo hoje que reúnem todas as qualidades para torná-los dignos de subir ao pódio: maestro Karajan, maestro Solti e eu”. Na época, como você deve lembrar, estavam vivos Bernstein, Celibidache, Giulini, Kleiber, para não falar dos mais novos. Para responder à sua pergunta, a gente tem de decidir onde que deve traçar a linha. Quem critica maestros by default deveria experimentar, por uma vez só na vida, subir ao pódio e tentar conduzir um começo de uma sinfonia de Mozart. Não sai nada; a preocupação em mexer os braços tapa os ouvidos, e tudo aquilo que se preparou previamente não resulta muito. Precisa ter uma confiança técnica muito grande ou uma cara de pau infinita. E, mesmo fazendo tudo errado, ainda tem mais chance de sair melhor com que sem maestro. Um maestro que realmente reúne as qualidades todas necessárias para fazer um grupo que já é de alto nível chegar a um nível excepcional é muito, MUITO rara e vale ouro; isso, combinado à necessidade de se colocar um nome e reputação na berlinda frente a um grupo e a autoridades, patrocinadores e público, faz com que os salários subam a níveis estratosféricos, é um pouco como jogador de tênias. As pessoas ainda acreditam que talento para reger é somente facilidade musical, mas, apesar de ser a condição sine qua non, é só o começo da história. Eu cursei regência como segundo estudo numa das melhores escolas que existem, que formou Simon Rattle entre outros, e garanto que, se o sujeito não dominar uma partitura como quem descasca uma banana, não consegue nem passar no exame de admissão. As vagas são muito poucas, as exigências são altas e eles preferem não preencher se não tiver ninguém à altura. Eu vi professor descascar aluno talentoso por não estar perfeitamente preparado e o cara sair chorando da aula; foi para casa, estudou como um escravo e hoje o cara é titular de uma boa orquestra, já regeu Concertgebouw em Amsterdam. Eu não acredito muito somente nessa coisa de contatos, apesar disso ser absolutamente necessário. Quem não é competente está fora do jogo. Se tem alguém genial que fica de fora? Sim.

Augusto Maurer Obrigado pela profundidade do comentário, Fabio Zanon, como sempre ! Já faz tempo que superei a ingenuidade de achar que qualquer um pode reger. Insisto, todavia, que o acesso às oportunidades de instrução em regência ainda estão muito longe de ser universal e isonômico. É claro que grandes maestros são raríssimos. Mas existem muitos suficientemente bons que permanecem desconhecidos mesmo sendo melhores do que a maioria dos que detém com exclusividade ou quase exclusividade as poucas posições existentes.

Fabio Zanon Eu acho que a vocação para regência deveria brotar de uma outra atividade musical. Uma pessoa que naturalmente lidera quando faz música de câmara ou canta, que tem facilidade para compor, que já está acostumada a liderar uma orquestra ou um naipe a partir da primeira estante, que é craque em acompanhar e treinar cantores, enfim, que se excede em mais de um ramo de atividade é aquela que deveria ser encaminhada para reger. O problema é que o que a gente vê com frequência é gente que toca um pouco de piano que acorda um dia e acha que seria bonito ser maestro; entra num curso de baixo nível de exigência e, ao final, bem…todo mundo tem de trabalhar, né?

Lavard Skou Larsen conductor = condom;  with condom = safe; without condom = you enjoy; (sometimes condom explodes….)

Lavard Skou Larsen Violaplayer and concertmaster meet in stomach of conductor!; Violaplayer to concertmaster: “Did he also swallow you???”; Concertmaster:”No, I came from behind…..!!”

Sasha Mäkilä This is a new one! 😀

Wilthon Matos José Milton Vieira

Arthur Barbosa Na minha opinião Augusto, são vários fatores a serem analisados…é uma temática complicada porque não pode ter uma só medida… depende de que tipo de orquestra se fala ( nem tanto pela sua qualidade mas pela sua função ) . Quanto mais orquestras no mundo melhor para a música, melhor para os músicos e melhor para a humanidade, mas assim como só existiu um Carajan, só existe uma Filarmônica de Berlim… lógico que os que fazem música com responsabilidade, tanto músicos, como orquestras e regentes, querem mirar lá no alto, na qualidade absoluta, porém são barrados por suas próprias limitações naturais… mas daí dizer que se eles não forem cópias de Carajan não servem como regentes seria ridículo. Um só exemplo: Na última vez que estive na Venezuela, movido por minha curiosidade, perguntei a um dos organizadores locais do El Sistema: ” com tantas orquestras (quase 500) no pais, como vocês fazem para ter uma formação de regentes de excelência?” …a Resposta foi surpresa pra mim (ou não) : “Desde pequenos já identificamos perfis que se enquadram em ser um regente, mas mais que regentes com “excelência” buscamos regentes eficazes”… ou seja , uma demanda alta fez com que não mirassem em ser perfeito, mas que funcionassem bem com tal papel…Realmente não é fácil, como muito músico acha, se posicionar na frente de uma orquestra , porém acho que todo bom músico deveria ter em sua formação esta experiência, ajudaria a ele como músico e ajudaria a entender um papel diferente do seu na orquestra… Por outro lado algumas castas da música de concerto tentam sim mitificar a função de tal modo que a gente pense que é “rarississíssimo” achar um regente competente, mas acho que parte dessa culpa é do próprio músico de orquestra que muitas vezes não sabe nem identificar e distinguir entre um regente bom, um ótimo, um razoável ou um ruim. Só para ilustrar, esta semana ouvi um grupo de músicos profissionais falando sobre um determinado concerto que tinham feito com um determinado regente recentemente e diziam mais ou menos o seguinte: ” – Foi legal o concerto né? o maestro é meio palhaço, rege fora do tempo, faz macaquices , mas tem seu carisma com o público… e no final a orquestra toca sempre bem …” Ora, nem eles mesmos se dão conta de que tocaram bem porque são excelentes músicos, e que pelo que percebi, o regente mais atrapalhou que ajudou, mas apenas ter carisma resolve, mesmo que o resto ( da parte do regente) seja horrível, e ainda por fim este regente em questão em nenhum momento os ajudou a tocarem melhor, mas atribuem a ele o sucesso do concerto…enfim, enquanto nós músicos de orquestra ( coisa que sou há muito mais tempo que regente ) não soubermos identificar e concluir que um regente que é carismático e palhaço ( ou qualquer outra atribuição “não-musical” ) mas é ruim como regente não nos serve de nada não sairemos desta linha antiga de pensamento que diz “sob a batuda de…” . Abraço

Augusto Maurer Muito obrigado, Arthur, por lançar tanta luz sobre o tema. Em especial com o relato primário de teu mergulho na Venezuela – e pela distinção, às vezes sequer percebida pelos próprios músicos, entre bons e maus maestros.

Augusto Maurer Mais: tocaste num ponto crucial: para que se evidenciem talentos excepcionais, é preciso, antes, implementar e manter estruturas que permitam e fomentem a descoberta contínua e sistemática de talentos suficientemente bons. Pois não existiria nenhuma Fórmula 1 sem as divisões inferiores do esporte, desde o kart; ou, ainda, um Neymar sem centenas de bons jogadores disputando os mesmos campeonatos. De acordo com o que disseste (e como eu suspeitava !), a Venezuela tem feito isto em relação à regência como, suponho, ainda não é feito em qualquer outro lugar do mundo. Talvez por isto a regência ainda seja tida pela maioria como um território para iniciados, muitas vezes de formação nebulosa (felizmente isto já está mudando !), com o acesso ao pódio regulado por desígnios misteriosos para o leigo.

Fabio Zanon Augusto, isso já é feito na Alemanha, na Finlândia, na Áustria, na Inglaterra, na Suíça, até na Itália há décadas. Sim, precisa ser feito e é feito; só não é feito aqui (isso está mudando com os projetos sociais inspirados no El Sistema; o Neojibá estimulou desde cedo um jovem muito talentoso chamado Yuri Azevedo). Eu ouço falar do Daniel Harding desde que ele tinha 15 anos; com 18 ele já regia orquestras profissionais. E o fato é que não existe nenhuma escola que se proponha a formar Kleibers; isso acontece por força da excepcionalidade do talento da pessoa. TODA boa escola de regência tenta formar, antes de mais nada, regentes eficientes. Na Inglaterra, em particular, onde as orquestras são freelancers e tempo de ensaio vale ouro, ser capaz de reger sem ensaiar é uma condicão fundamental pra se começar uma carreira. Francamente, um bom curso de regência é uma estrutura muito cara e as escolas brasileiras não podem se dar ao luxo de manter isso com os números que temos. Por enquanto, vale mais a pena investir num bom preparo teórico precoce para quem é fera e mandar o sujeito estudar fora com 17 anos.

Fabio Zanon Sobre a mítica do maestro, bom… O fato é que existem maestros que mitam! Uma vez, conversando com um músico da Fil de Berlim, perguntei como era trabalhar com o Harnoncourt. Ele respondeu “ah, a orquestra tem um padrão próprio; quando tem um regente médio a gente toca mais ou menos do nosso jeito”. Harnoncourt, médio! Lidar com músicos de alto nível é uma coisa misteriosa, porque, de fato, eles não vão tocar abaixo de um certo padrão. O problema é como motivar ou induzir quem já toca com perfeição a ir além da perfeição. Eu ficava muito impressionado com os ensaios do Giulini, por exemplo, porque ele não falava quase nada; quando dava algum problema ele dava uma instrução em poucas palavras,e seguia o ensaio. Mas, por alguma razão, a Philharmonia soava com ele de um jeito que não soava com mais ninguém; parecia que tinham devoção pelo homem. Aqui na OSESP acontecia algo parecido com o Frank Shipway, um maestro que, aliás, sempre teve problemas de convivência com as orquestras e tinha uma carreira muito inferiro à sua capacidade. E assim o barco anda. Mas o fato é que isso tudo só interessa por mais uns 40 ou 50 anos; a estrutura está mudando completamente. Veja um cara chamado Teodor Currentzis, por exemplo; ele está fazendo um trabalho visionário de construção de grupo no interior da Rússia, com resultados extraordinários. Acho que esse tipo de coisa vai se tornar a norma, descentralizar a responsabilidade artística e enxugar estruturas.

Arthur Barbosa Sobre o El Sistema ser “único” o Fabio já respondeu o que eu ia responder basicamente…

Júlio César Apollo CRO é tão abundante ou tão escassa quanto a competência para tocar clarineta, se for com uma boquilha mansa é um pouco mais fácil. Assim como é um pouco mais fácil reger músicos amistosos. Certamente a CRO não reside no âmbito musical. É muito mais do que competência musical e os colegas aí em cima já disseram bem sobre isso. Eu penso que o que diferencia o solista e/ou o regente, aqueles que ficam em pé na frente, é, entre outras coisas e principalmente, o sangue frio. Ah, e há, também, uma habilidade quase mística de sentir, entender e conduzir a platéia nas costas.

Tobias Volkmann Augusto, todos os grandes regentes ou grandes mestres da regência com quem busquei aprender o ofício na universidade, em masterclasses ou ao menos em uma conversa no intervalo de ensaios (entre eles Kurt Masur, Jorma Panula, Mariss Jansons, Manfred Honeck, Andris Nelsons, Gustavo Dudamel, Herbert Blomstedt e meu mentor Ronald Zollman, entre outros não considerados grandes, mas com muito a ensinar) em algum momento destacaram o seguinte: é indispensável desenvolver a maturidade como músico/intérprete em algum instrumento para ser capaz de assumir a responsabilidade de conduzir o processo de construção de uma interpretação coletiva. Nisso concordamos todos. Porém, o que você define como CRO eu entendo como um conjunto de “Cs” que vem sempre em um pacote com níveis distintos em cada aspirante a regente. Eu, por exemplo, não tive a benção de ter tocado profissionalmente em uma orquestra – o que é uma enorme lacuna que estou até hoje buscando preencher com muita observação e ouvidos bem atentos aos bons músicos experientes – mas cresci cantando em coros, atuei como cantor profissional e estudei instrumentos de orquestra na infância e durante o estudo de regência. Não é o que poderíamos chamar de usual na trajetória de uma formação na área, mas não me impediu de atuar hoje como profissional. Porém, há muitas capacidades a desenvolver, entre elas a cultura geral, línguas, a gestão psicológica de coletividades, a auto-gestão psicológica, o controle do ego, a gestão do tempo de ensaio, o planejamento de trabalho em uma temporada, o conhecimento de repertório, as características específicas de gêneros como ballet, ópera e da música contemporânea e… ah!… ia me esquecendo… a técnica gestual! Tudo isto DEPOIS de uma sólida formação musical. Ainda assim, se um dedicado e esforçado talento consegue desenvolver com um mínimo equilíbrio estas habilidades, a “selva” do mercado musical, que de democrática não tem nada, se encarrega de não oferecer oportunidades suficientes para que um verdadeiro talento tenha mais do que uma ou duas chances. Assim, muitas vezes vale a máxima gaúcha: cavalo encilhado não passa duas vezes!!!

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Sobre o mito da escassez da competência para a regência orquestral (on conducting xiii)

batutas-11Há em todo concerto para escolas o clássico momento em que o maestro empresta a batuta a uma criança sorteada entre as presentes – momento, aliás, da igualmente clássica pegadinha em que fazem o desavisado inocente se mover indefeso diante de uma orquestra que começa a tocar – pasmem ! – uma daquelas danças húngaras repletas de mudanças de andamento. Numa destas, diante da inação do maestro em exercício em interromper alguém que, ouvindo a música, entendera rapidamente qual era a jogada, ouvi de um músico de outro naipe a hilária e emblemática exortação

Interrompe logo ele, maestro – ou vai acabar achando que é fácil !

Ao que, prontamente, corrigi;

Errado: vai acabar descobrindo como é fácil.

Não é preciso ir muito a fundo para perceber que o diálogo acima, conquanto passível de diversas interpretações, denota antes de tudo a proteção ao mito de que a competência para a regência (doravante CRO) seja uma aptidão escassa, i.e., que só uns poucos são aptos a exercê-la. A perpetuação do mesmo talvez se deva ao fato de que a didática da regência orquestral seja, enquanto área ou disciplina acadêmica, um fato ainda muito recente

Deve ser difícil a qualquer instituição de ensino pensar na regência como objeto de um programa acadêmico acessível a muitos. Possivelmente achem que, face ao máximo de tempo semanal que alunos de conservatórios de primeira linha toleram (antes de tudo por causa dos músicos que lhes regem !) tocar em orquestras formativas. Pois a maior parte dos que ingressam em conservatórios ainda quer ser solista. O que é muito bom – pois isto faz deles alunos estudiosos . Tão bom, ao menos, quanto que sejam obrigados, ainda que por imposição curricular, a integrar orquestras acadêmicas durante a maior parte de seus cursos.

Neste quadro demográfico é fácil notar que, nas poucas horas em que uma orquestra acadêmica ensaia (sempre menos, em todo caso, do que a carga semanal de ensaios de uma orquestra profissional !), será possível treinar poucos regentes. Além disto, há quem pergunte por que treinar uma legião de frustrados se as oportunidades de trabalho conhecidas são tão poucas. Não acreditamos que sejam poucas mas, tão somente, mal distribuídas. Só que, em nome da perversa lógica de toda proteção de mercado, já vi um curso universitário de bacharelado em regência orquestral ser extinto.

Em muitos conservatórios são ministradas disciplinas de regência. Só em alguns deles, todavia, há ensaios e aulas conduzidos por grandes maestros. Na falta de orquestras didáticas para todos, é comum que alunos de regência sejam primordialmente treinados “regendo” reduções de partituras orquestrais para um ou dois pianos. Tal problema, o da grande discrepância numérica entre aspirantes ao pódio ou às estantes orquestrais, foi magistralmente solucionado na Finlândia – berço de uma das mais reputadas escolas de regência, praticamente personificada na polêmica figura de Jorma Panula – que declarou, para pasmo e decepção de seus admiradores (alguns dos quais ainda insistem que podia estar bêbado ou, ainda, que suas palavras foram severamente descontextualizadas) que mulheres seriam menos aptas do que homens a dirigir uma orquestra (sic !)

Kiyotaka Teraoka, que estudou na Finlândia, conta que, lá, todo aluno de regência deve obrigatoriamente participar também, como músico, executando um instrumento no qual seja totalmente proficiente, da orquestra integrada e regida por seus colegas. Como única exceção a esta exigência, também são admitidos às classes de regência os pianistas excelentes. Concertistas, no mínimo. É por estas e outras que esses finlandeses estão anos-luz à frente de quem quer que seja na pedagogia da batuta.

* * *

A economia da batuta deve ser intuitivamente vista por muitos mais ou menos como o problema dos técnicos de futebol. Ora, todos sabem que qualquer um que se dispuser a assistir em estádios ou mesmo pela TV disputas travadas entre grandes times se tornará, depois de algum tempo, apto a gritar da porta do vestiário com um plantel a se degladiar. Qual diretoria se atreveria, no entanto, pressionada por uma torcida furiosa, a confiar jogadores caros a alguém sem algum êxito prévio à frente de grandes equipes ? com isto, apenas poucos, de um universo abundante de capacitados (compreensivelmente, em muitos casos, ex-jogadores de expressão) chegam a ocupar os raros postos de trabalho existentes.

(nunca entendi muito bem a função de um técnico de futebol (do mesmo modo, acho, que custei a perceber a de um maestro).

Custo a entender por que raios duas equipes de 11 pessoas que se enfrentam numa arena durante noventa minutos devem ficar, cada uma delas, de algum modo

subordinadas ao comando único de alguém a lhes gritar coisas da boca do vestiário, inaudíveis na maior parte do tempo;

ao invés de, ao contrário,

cada equipe funcionar como uma entidade única e autônoma, orientada por decisões instantâneas tomadas de modo descentralizado (não sei por que suspeito que, na prática, a coisa seja mais ou menos assim) – como, sei lá, por meio da interação entre nodos de uma rede neural.

Falo da diferença entre processos seriais e paralelos. Acho um técnico a gritar e gesticular à beira do campo um troço tão… serial. Mas devo estar, afinal, esperando demais de um esporte organizado.

Na regência orquestral, tampouco é diferente. Na proporção de, ao menos, um pódio para algumas dezenas de estantes, muitas delas para dois músicos)

* * *

O mito da regência orquestral como competência escassa tem, além de, como vimos, a relativa novidade de sua didática como disciplina autônoma, também como razões de sua perpetuação até hoje o protetorado e a proximidade. Já ouviram aquela história de ser a pessoa certa na hora e no lugar certos ? É disto que falo.

O protetorado pode ser mais ou menos descrito como o acesso aos meios (i.e., às orquestras) mediante imposição ou forte recomendação de alguém eminente. Fatores como proximidade pessoal e confiança são sempre determinantes. Dentre os casos conhecidos, podemos citar os de Koussevitzky e Eleazar, Bernstein e Chamis ou, mais recentemente, Masur e Minczuk, só para ficar entre alguns dos que envolvem brasileiros.

A proximidade frequentemente tem a ver com a exposição precoce, pré-escolar e, em muitos casos, familiar, à atividade. Kleiber cresceu vendo o pai reger. Pelo menos até certa idade. Os Wagner são bem conhecidos e, mais recentemente, os Järvi também. E notem que, em famílias de músicos, dentre os mais novos aqueles que tomam para si a ocupação dos pais tendem a superá-los. A propósito, me refresquem a memória: o pai de Bernstein também não foi músico ? De qualquer modo, Bernstein foi o cara certo no lugar certo e na hora certa que, quando faltou um maestro, intrepidamente stepped in. Não desmereço (ao contrário !) nenhuma faceta de sua genialidade (inclusive o talento televisivo que tanto o popularizou !) – mas, fossem os meios de acesso mais… democráticos, por assim dizer, não teríamos conhecido, de sua época, tantos mais Bernsteins ?

Outro exemplo, já esquecido, de um cara que teve o atrevimento de saltar à frente quando, na última hora, precisaram de um regente foi o de um trombonista baixo que assumiu um concerto na Alemanha. É certo que não deve ser nenhum gênio. Mas, de tanto ouvir a música, a conhecia bem. O mais provável, então, é que, dada a escassez de partes compostas para seu seu instrumento (os trombones só comparecem em Beethoven a partir do último movimento de sua quinta sinfonia !…), estivesse ocioso quando o dever o chamou. Então, despretensiosamente, isento de qualquer vaidade, encarou a bronca em nome de um show que tinha que continuar. Colegas devem ter brindado a ele depois. Com razão. Mais entusiasmados podem até achar que, na ocasião, se revelou um grande talento dormente. Prefiro pensar que o episódio tenha muito mais a ensinar. A saber, que a CRO é uma competência enormemente mais abundante do que comumente se pensa. Esta é, no entanto, uma verdade bem inconveniente para alguns.

Nenhuma indústria – em especial a do entretenimento – jamais soube nem teve qualquer interesse em aceitar premissas de que certas competências gerenciais (como muitos ainda entendem a regência orquestral) sejam disponíveis abundantemente. Isto se dá por que a preservação de mitos de competência escassa tenham, na maior parte das vezes, a ver com a maior concentração de lucros.

Outra anedota bem popular (como aquela, factual, com que iniciamos este post) que, olhada a fundo, também remete diretamente ao mito da CRO como uma competência escassa é a de que” ninguém deveria reger a nona sinfonia de Beethoven pela primeira vez. ”

Os mitos de escassez são vitais ao ideário capitalista e, portanto, onipresentes na maior parte dos ambientes corporativos. Pois há, em toda grande organização, muitíssimos postos mais monótonos e menos especializados e, ao mesmo tampo, cada vez menos postos gerenciais à medida que se sobe na pirâmide administrativa. Desgraçadamente, a formulação encontra fáceis analogias na natureza (um filé e tanto para os crédulos !), como nos casos de abelhas-rainha e tais, de modo que tudo conspira para reforçar a crença que seja normal ou natural, para líderes ou gestores de toda espécie, saber mais que seus subordinados.

Mais. Toda indústria de entretenimento anterior à web (brodcasting, media oriented) sempre endossou, explícita ou implicitamente, em qualquer de suas ações, o culto à celebridade – categoria à qual pertencem, além de muitos políticos, executivos, cantores, atores, jogadores e até técnicos de futebol, também, “naturalmente”, os maestros. Eram conhecidíssimos, por exemplo, o apreço e os favores de executivos japoneses a Karajan. E não há guru ou coach corporativo que não ame a metáfora da orquestra como modelo organizacional perfeito.

(difícil, neste cenário, se livrar do estigma de que orquestras funcionem, essencialmente, subordinadas a um protocolo de comando altamente centralizado)

* * *

Praticamente todo bom regente é ou foi, antes de empunhar a batuta, um músico, senão de grande expressão, ao menos completamente proficiente. Os casos são inúmeros, desde Rostropovich, Levine, Ashkenazy, Barenboim (que, para a decepção e desespero de alguns fãs, surpreendentemente se declarou contrário a que músicos orquestrais se sentissem empoderados em relação a assumir o pódio) até brasileiros como Zanon ou Minczuk ou, ainda, membros de destaque de orquestras prestigiosas como Baldini (spalla da OSESP) ou, até (não é piada !), o spalla de violas (!) da Filarmônica de Berlim (Lebrecht disse, tempos atrás, que Sir Rattle o deixou dirigir um concerto antes de se aposentar !…). Até de Karajan ao piano há filmes.

Todavia, como bom cético que sou, sigo no aguardo de vir a conhecer ao menos um caso de um bom regente que não é ou tenha sido, antes, um ótimo musico. Se alguém ainda duvidar disto, é só perguntar para qualquer virtuose que, por razões de saúde, idade, vaidade, finanças ou outras quaisquer, tenha optado, a partir de certo momento de sua carreira, por também atuar como regente, o que levou mais tempo para aprender: se

a tocar seu instrumento ou

a reger uma orquestra ?

Ou, ainda,

a tocar um concerto como solista ou

a reger uma sinfonia ?

* * *

Apesar de importantes progressos na aceitação de que a CRO é muito mais abundante do que até há pouco tempo se supunha, a indústria ainda trabalha primordialmente com a hipótese de que tal habilidade seja bem escassa, a ser prospectada apenas entre uns poucos. Accordingly, posições de destaque ainda são ocupadas por uns poucos.

O que, no entanto, a maioria não percebe é que, conquanto um Dudamel ainda seja tratado pela indústria como um caso isolado de talento excepcional, não é difícil perceber que ele só emergiu por força da existência, num dado contexto (a saber, o célebre El Sistema, da Venezuela), de uma necessidade muito acima da habitual de sujeitos aptos a reger orquestras sinfônicas, no qual ele foi prospectado e prosperou. Só que, como ele, há, muito provavelmente, muitos. Como Payarez, Allondra e outros ainda por serem descobertos.

O ponto onde quero chegar é que pódios mais numerosos e rotativos revelariam, por definição, mais maestros suficientemente bons do que todos os que atualmente conhecemos. Se no, entanto, o acesso aos pódios orquestrais ainda é tão restrito, tal se deve exclusivamente à manutenção de privilégios indevidamente adquiridos.

Não canso de dizer, neste blog e no facebook, que devemos nos engajar, entre outras coisas, numa cruzada pela substituição do mito de que a CRO seja uma competência escassa pela ideia de que a mesma é abundante. Nesta índole, todo programa de treinamento com livre acesso é extremamente bem-vindo. Como, por exemplo a academia de regência da OSESP, dirigida por Valentina Peleggi, onde o acesso universal e isonômico às disputadíssimas vagas é garantido por um rigoroso processo seletivo regulamentado por edital público.

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Da diferença essencial entre (i) blogs e redes sociais e (ii) orquestras e universidades públicas; on conducting (xii)

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Isto não é um instrumento musical !

Sou um blogueiro procrastinador. O motivo é bem simples. Blogs são o derradeiro reduto do direito de expressão de seus donos quando outros espaços não se interessam por seus discursos, pouco importando quantas pessoas leiam as postagens neles publicadas. Só que, pela própria natureza do funcionamento de cada tipo de plataforma, redes sociais são imensamente mais interativas do que blogs. Basta ver a proporção existente entre postagens e comentários em cada ambiente. Enquanto blogs são mais afeitos a longos discursos monológicos e geram relativamente poucos comentários, em redes sociais postagens lacônicas podem desencadear, dependendo da temática (i.e., se for mais ou menos polêmica ou ultrajante), enormes sucessões de reações que podem se estender, em muitos casos, por vários dias após a postagem original.

Talvez por isto eu me sinta muito mais compelido a compartilhar inquietações na algaravia do facebook do que no conforto do discurso mais controlado em meu blog. Pois a conversa em si me interessa muito mais do que meus pensamentos depurados em palavras bem acabadas.

Por outro lado, o discurso dos blogs é muito mais permanente do que aquele das redes sociais. Pois é nitidamente mais fácil recuperar ideias lançadas no passado em um blog do que em timelines do facebook. Por isto, gosto de pensar no blog como uma espécie de back up do facebook, para onde exporto, a fim de conferir maior permanência, ideias mais relevantes recortadas de plataformas mais efêmeras.

Foi assim que decidi copiar aqui as palavras extremamente lúcidas proferidas por Graziela Bortz, entre outros comentários interessantes, acerca de um ótimo artigo do  crítico Ali Hassan Ayache (que eu ainda não conhecia !) a propósito da necessidade e supostos benefícios de alguém como Marin Alsop à frente da OSESP. Sob o mesmo, Graziela expressou, de modo ao mesmo tempo conciso e abrangente, tudo o que sempre achei sobre os modos de gestão diametralmente opostos de orquestras e universidades públicas. Sem mais delongas, eis o que ela disse:

[…] orquestra é um monumento artístico como muitos outros, um veículo de expressão artística como muitos outros, que deve, sim, ser mantida como patrimônio cultural importantíssimo. A estrutura precisa, e em alguns lugares isso tem acontecido, ser modernizada. Eu toquei em orquestra, o Augusto ainda toca (tocamos juntos no passado) e ambos dividimos também, como você, Damián, a experiência muito diferente que é a de trabalhar em universidade. Nesta última, a despeito de todos os problemas que enfrentamos, creio que possamos concordar nisso, temos imensamente mais autonomia. Por que? O Augusto disse a palavra-chave: conselhos. Nós somos representados nos órgãos colegiados. Por mais imperfeito que seja esse modelo de democracia, ainda é uma democracia. A orquestra está anos-luz disso. O maestro continua se cercando de puxa-sacos que muitas vezes até são músicos bons, muitas vezes não, e maltratando aqueles sem grandes habilidades na arte do cinismo. É um jogo horroroso de egos que nada tem a ver com técnica ou conhecimento musical, que favorece o crescimento do ego e mata o desenvolvimento da alma, da arte e do espírito de colaboração. Não é preciso ser assim, nós sabemos; vivenciamos outra maneira de gerir o trabalho no cotidiano. Acontece que maestros normalmente são escolhidos e nomeados por políticos, ainda que indiretamente (por um conselho que tem tudo menos músicos da própria orquestra). Lembre-se que, no passado, foram os professores universitários que escolheram esse tipo de gestão, a tal da autonomia universitária. É por isso que temos brigado tanto por mantê-la. Faz toda a diferença em nossas vidas e na de toda a comunidade universitária.

Um pouco adiante na mesma conversa, Graziela exemplificou brilhantemente com as consequências nefastas da concentração de poder em mãos de políticos numa orquestra prá lá de conhecida como a OSESP. Vale muito a pena a leitura.

[…] nesse caso, são oportunidades das quais os políticos fazem uso por deterem o poder de escolha nas mãos, a escolha de nomear os conselheiros (quando tem conselho!), de nomear o líder artístico (sic), os cargos administrativos, e por aí vai. A associação de músicos da Osesp que ousou questionar os contratos de gravações no passado foi 100% demitida na época em que o Neschling era o diretor artístico! E o conselho fez alguma coisa? Claro que não, foi nomeado por ele em comum acordo com os políticos. Isso não acontece na universidade, por razões diversas: nossos contratos são de funcionários públicos e, portanto, estáveis, e nós, professores, somos os conselhos (de membros eleitos pela comunidade). Diferença básica, modelo de autonomia. Tem seus problemas, como mencionei antes, mas não esse, de abuso de autoridade. O perigo é misturar isso com a arte em si. E é disso que estamos falando, e creio que concordamos, que é preciso modernizar o modelo de gestão. O que creio que torna difícil a mudança é que alguns músicos preferem se beneficiar da aproximação do poder, enquanto a maioria (silenciosa, covarde – covardia esta muitas vezes compreensível, pelo medo de perder o emprego) se ferra pelas decisões aleatórias que vêm de cima.

Se tirei meu blog da hibernação para repercutir estas palavras, foi tão somente por pensar que a discussão é altamente pertinente. Mesmo que instituições como orquestras estejam, como as políticas, entre as mais inerciais – i.e, são altamente resistentes a mudanças – e, portanto, como costuma dizer um grande amigo, só devem evoluir depois de alguns séculos (se ainda existirem). Exagero ou não, nada deve mudar antes de minha aposentadoria. Atestando, portanto, neste caso, a total falta de interesses pessoais em minha defesa do que aqui foi ventilado.

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Existe esta naturalização das ideias de que, enquanto em universidades professores são eleitos como líderes por seus pares (i.e., de baixo para cima), em orquestras diretores artísticos (leia-se maestros) são indicados por políticos (de cima para baixo) à revelia de seus quadros estáveis. Ora, tal se deve exclusivamente ao fato de que, para a grande maioria (dos políticos, inclusive), regentes não são percebidos como músicos temporariamente investidos de uma atribuição especial (a regência), mas como pertencentes a uma categoria autônoma e hermética. Uma outra casta, se quiserem, diferente da dos músicos. Deste modo, qualquer evolução da orquestra em direção a um modelo mais democrático passa, obrigatoriamente, pela derrubada deste mito.

Uma analogia bem útil: a carreira de regente orquestral, como a do político, não deveria existir. Isto quer dizer que, num “mundo perfeito”, do mesmo modo que governantes e legisladores deveriam ser não mais do que cargos honoríficos temporariamente ocupados por cidadãos comuns que não abdicassem de suas ocupações originais (sem aposentadorias especiais), também o pódio orquestral deveria ser ocupado, em regime de revezamento, por músicos talentosos que não abdicassem de sua responsabilidade de execução de um instrumento. Tão simples e tão distante do que temos hoje. Ou, como diz meu amigo, é algo para daqui a uns 300 anos.

on conducting (xi): tempo falado X tempo tocado: uma correlação nada espúria

Sempre insisti que a qualidade de um ensaio orquestral pode ser facilmente relacionada à proporção entre o tempo empregado pelo maestro no pódio para se dirigir à orquestra com palavras e o tempo, nesse mesmo ensaio, em que os mesmos (orquestra e maestro) estão tocando. Pois observo que melhores resultados são indiscutivelmente obtidos por aqueles regentes que tocam (regem) mais do que falam. A tal ponto de eu já ter sugerido, em tom jocoso, que todos no pódio deveriam obedecer a um “protocolo do regente amordaçado” – uma indiscutível vantagem pelo menos naqueles concertos populares em que, a certa altura, o maestro toma um microfone para se dirigir ao público, proporcionando, nestes casos, a todos os presentes inesquecíveis momentos de vergonha alheia.

É claro que esta relação não é linear. Posto que algumas palavras endereçadas aos músicos em ensaios são essenciais. Só que a assertividade de uma orquestra durante um concerto costuma ser diretamente proporcional ao tempo efetivamente passado tocando e/ou repetindo a música durante ensaios. Conquanto isto possa parecer óbvio a observadores casuais, devo dizer que não são poucos os maestros que perdem tempo demais falando à orquestra, seja por falta de foco naqueles problemas que mais dificultam uma boa performance ou, não raro, se sentirem mais confortáveis falando do que regendo (sim, isto existe !). Com efeito, muitos parecem sentir genuíno pânico de estar à frente da orquestra por todo o tempo que lhes é facultado – daí soltarem descontroladamente o verbo, na maioria das vezes com detalhes ou assuntos colaterais que pouco ou em nada contribuem para o aprimoramento da execução. Quando isto acontece, pode ser “lido” na cara dos músicos, que passam a tocar burocraticamente, à espera do final de cada ensaio. Ao contrário, bons regentes são facilmente reconhecíveis pelo ânimo dos músicos que dirige – os quais, mais do que não denotar o peso inerente à atividade, parecem recuperar, ao tocar, algo de uma alegria infantil.

Desde que, muito cedo, constatei esta correlação, a meu ver nada espúria, entre a razão entre os tempos tocado X falado e a qualidade (aproveitamento) de ensaios, penso que o meio ideal para se estabelecer, em termos numéricos, esta relação seria através da utilização, durante os mesmos, de um daqueles cronógrafos duplos utilizados em partidas de xadrez por tempo, i.e., ganhas por xeque-mate ou esgotamento do tempo do adversário. Então, não estranhem quando eu finalmente aparecer num ensaio com um desses, pressionando os botões correspondentes a cada alternância entre a fala e a regência do maestro.

relógio para xadrez 5Estimo que a análise dos dados assim obtidos será bem elucidativa, ajudando a compreender melhor uma atividade pouco discutida e, por isso mesmo, repleta de mitos.