O Despertar de Tudo, de David Graeber e David Wengrow

Disclaimer: se quiser saber mais sobre o livro que dá título a este texto e não tiver vontade nem tampouco paciência para se deter em divagações narcisísticas do autor de mais esta anti-resenha, avance a leitura diretamente para depois dos próximos três asteriscos (* * *).

Por que, afinal, anti-resenha ? Pois não é a primeira vez nem deve ser a última em que me refiro a um comentário sobre um livro lido desta forma. Penso ser por se tratar, antes de uma sinopse seguida por (ou intercalada a) uma apreciação crítica, de uma crônica do processo de leitura do mesmo. Ritmo da leitura (lento X rápido). Associações suscitadas pela mesma. Coisas assim.

Agora, se não tiver vontade de ler nem este preâmbulo nem a resenha que o segue, não perca mais tempo. Corra a uma livraria e compre (ou, mais provavelmente, encomende) o livro. É satisfação garantida. Tanto que me atrevo a lançar aqui, publicamente, o mesmo desafio, quase uma admoestação, proposto por Charlles Campos, anos atrás, ao me recomendar Colapso, de Jared Diamond, a saber, que, se acaso eu não gostasse, me compraria de pronto o volume que eu houvera adquirido por indicação sua. Convincente, não ? Tanto que comprei o livro. E gostei. Mas por que, no presente caso, tamanha autoconfiança ? Por que tenho certeza de que não se arrependerão. A propósito: o próprio Diamond é citado por Graeber e Wengrow em O Despertar de Tudo. Mais de uma vez.

Adquiri meu exemplar de O Despertar de Tudo na Bamboletras, por ocasião da palestra de um seu seus autores no Fronteiras do Pensamento que, para minha grande lástima, perdi. Antes, já havia resenhado o estupendo Bullshit Jobs – a Theory (ainda inédito em português) de Graeber, além de traduzir um artigo seu para Strike e Evonomics e uma entrevista para The Economist.

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David Graeber, antropólogo, e David Wengrow, arqueólogo, ambos autoridades reconhecidas em suas respectivas áreas, se lançaram, quase que como uma brincadeira, ao propósito de reescrever, em parceria, a história da humanidade. Uma ideia ambiciosa. Presunçosa, até – ainda que, como verão, só em aparência. Depois de uma colaboração que se estendeu por mais de 10 anos, publicaram O Despertar de Tudo.

A própria dimensão do volume resultante já dá uma ideia da envergadura do projeto. São ca. 700 páginas, 150 das quais só de notas e índice onomástico. Só que uma leitura que se apresenta assim, de um modo quase intimidante, vai se revelando pouco a pouco como fluida e convidativa. Seus autores intercalam um longo relato de dados de pesquisa que, outrossim, poderia parecer um tanto enfadonho, com argumentações brilhantes, críticas mordazes a seus próprios campos de conhecimento e, não raro, um humor refinadíssimo. Em suma, uma viagem intelectual das mais gratificantes que alguém poderia empreender.

Toda a narrativa é permeada por extensas citações de outros autores (e explanações sobre o pensamento dos mesmos), tanto daqueles com os quais os autores concordam como, o que é mais importante, daqueles de quem discordam – o que é mais raro e, portanto, louvável.

Com o avançar da leitura, algo que vai ficando cada vez mais patente para quem ainda não sabe ou desconfia é o quanto a “grande narrativa da história” está calcada sobre um número absurdamente pequeno de casos, não por acaso aqueles que melhor corroboram pontos de vista ostentados e/ou defendidos por seus  narradores contumazes. O quê ? Então quer dizer que a história não é neutra ? Lamento, aqui, se estou dando algum spoiler, mas acho bom você apertar o botão de reset. Mas devagar. Vamos por partes.

Como eu ia dizendo, com o avançar da leitura vão caindo por terra algumas noções românticas ou extremamente simplificadas que temos, por exemplo, da arqueologia. Esqueçam coisas como tumbas de faraós, saqueadores e Indiana Jones. Antes de ler o livro, eu não tinha ideia (me desculpem a ignorância) da enorme profusão que há de sítios arqueológicos ao redor de todo o globo. Nos inteiramos, também, que o conhecimento adquirido nesta área nos últimos 50 anos é muito maior do que o que se sabia, por exemplo, no início do século 20.

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Mas sobre o que é o livro, afinal ? Para responder a isto, nada melhor do que começarmos pelo final. Mais exatamente, por sua última frase: “Agora sabemos que estamos diante de mitos.”

O Despertar de Tudo é sobre mitos. Mais especificamente, sobre aqueles que sustentam a falsa sensação de inevitabilidade histórica. Para chegar a eles, os autores partem do pressuposto de estarmos num mundo altamente insatisfatório (pelo menos um deles é anarquista) e da consequente pergunta: “Como chegamos a isto ?”. Impelidos por esta “mola mestra”, embarcam numa jornada indagatória acerca de vários mitos, dentre os quais

  • a pouca credibilidade de filósofos indígenas brilhantes contemporâneos ao Iluminismo, já que, de acordo com o ethos dominante da época, toda profundidade intelectual seria privilégio de europeus, estando indígenas condenados, portanto, a um status de inocentes selvagens – até por que a existência de tais mentes brilhantes indígenas é geralmente fundamentada sobre relatos de colonizadores, geralmente religiosos, os quais estariam, por sua vez, irremediavelmente “contaminados” pelo tipo de narrativa que seus conterrâneos contemporâneos teriam gostado de ouvir. Neste contexto, não é por acaso que grandes filósofos indígenas desacreditados, como Kondiaronk, tenham sido justamente aqueles que dirigiram as críticas mais severas à forma de organização da sociedade europeia tais como o dinheiro e a dominação do mais fraco pelo mais forte;
  • a noção, formulada pela primeira vez em 1751 por A. R. J. Turgot e depois perpetuada por Adam Smith, de que as sociedades humanas, influenciadas pelo progresso tecnológico, passavam necessariamente por 4 etapas evolutivas – a saber, de caçadores-coletores, pastoril, agrícola e civilização mercantil urbana – correspondendo a última ao estágio mais avançado;
  • a ideia de que a propriedade privada foi consequência direta da revolução agrícola, seja pelo cercamento de terras ou pela manipulação de excedentes. Ora, pesquisas arqueológicas recentes revelam que, por um período bastante prolongado, de ca. 1000 anos (período, portanto, demasiado extenso para qualquer “revolução”), a humanidade flertou com a ideia do cultivo extensivo, hesitando entre o mesmo e um plantio lúdico, só para subsistência, e, no caso de alguns grupamentos humanos, rejeitou deliberadamente a agricultura extensiva;
  • a ideia de que a deliberação sobre formas de organização social é um fato bem recente na história humana, peculiar aos últimos séculos. Hoje sabemos que povos antigos, anteriores à escrita, já tomavam decisões políticas quanto às próprias formas de organização social;
  • a ideia de que governos centralizados e eventualmente estados se tornam obrigatoriamente necessários sempre que uma sociedade ultrapasse um certo tamanho. Ou, noutras palavras, estados são antes de tudo um problema de escala. Mas não é bem assim. Em todos os continentes, são muitos os vestígios de cidades e assentamentos pré-históricos de grande porte voluntariamente administrados por meio de formas de auto-gestão. Nestes casos, decisões eram tomadas por conselhos comunitários ao invés de por reis ou outras formas centralizadas de governo.

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Como bons cientistas, os autores adoram categorizações. Dois grupos recorrentes em todo o relato são as 3 liberdades humanas fundamentais, que são

  • a de ir e vir,
  • a de desobedecer ordens recebidas e
  • a de experimentar outras formas de organização social,

e os 3 pré-requisitos para a existência de um estado, que são

  • o monopólio do uso (ou ameaça de uso) da força ou da violência como forma de coerção,
  • o controle sobre a informação (burocracia) e
  • o poder carismático.

As 3 últimas categorias são usadas para caracterizar estados incipientes como estados de primeira ordem (aos quais faltam dois dos pré-requisitos acima) ou de segunda ordem (aos quais faltam um deles).

Quanto às três liberdades fundamentais, os autores afirmam que, enquanto a primeira e a segunda (i.e., a de ir e vir e a de desobedecer) não existem nos estados verdadeiros, nos acostumamos com (banalizamos) a ideia de que a terceira (i.e., a de experimentar outras formas de organização social) não apenas não existe como também nunca existiu.

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Em todo o relato, são muitas as evidências de sociedades pré-históricas, pré-colombianas ou mesmo posteriores à invasão do continente americano pelos europeus, de índole igualitária, que se auto-geriam repudiando deliberadamente a existência de reis ou qualquer forma de governo imposta de cima para baixo – não havendo, por outro lado, qualquer evidência de uma linha evolutiva obrigatória que culmine na existência de estados ou qualquer forma de poder centralizado. Ao final, os autores se perguntam aonde foi que erramos, deixando a questão em aberto.

* * *

Curiosidade: por mais de uma vez ao longo do livro, Graeber & Wengrow se referem à conquista do continente americano pelos europeus, a partir de pouco mais de 500 anos, como “invasão”. O que nos remete de pronto à presença de franceses e holandeses no nordeste brasileiro, as quais nos acostumamos, desde os bancos escolares, a chamar de “invasões” (mais ou menos como o golpe de 1964 foi por muito tempo chamado de revolução) – o que sugere que o termo “invasão” nada mais é do que uma conquista que (ao contrário da invasão da América pela Europa, no dizer dos autores) não deu certo, i.e., na qual os “invasores” foram expulsos. Senão, seriam conhecidos até hoje como “colonizadores”. Noutras palavras, não existe linguagem ideologicamente neutra.

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Talvez a razão pela qual mais detesto resenhas é por que elas são, por definição, reducionistas. Especialmente neste caso, o livro é muito mais do que tudo acima. Então, na impossibilidade de destacar um único trecho como o mais representativo do mesmo, transcrevo, abaixo, a dedicatória – que, por alguma razão, me fez pensar no que Bill Evans sentiu por ocasião da morte prematura e inesperada de Scott LaFaro.

David Wolfe Graeber morreu aos 59 anos de idade, em 2 de setembro de 2020, apenas 3 semanas depois de terminarmos a escrita deste livro, que nos absorvera por mais de 10 anos. Começou como uma distração de nossas obrigações acadêmicas mais “sérias”: uma experiência, quase um jogo, em que um antropólogo e um arqueólogo tentavam reconstruir aquele tipo de diálogo grandioso sobre a história da humanidade que costumava ser tão comum nos nossos campos, mas agora com dados científicos modernos. Não havia regras nem prazos. Escrevíamos como e quando tínhamos vontade, o que veio a se tornar cada vez mais uma atividade diária. Nos últimos anos antes de concluirmos, e conforme o projeto ganhava impulso, não era raro conversarmos 2 ou 3 vezes por dia. Com frequência esquecíamos quem tinha aparecido com essa ou aquela ideia, com esse ou aquele novo conjunto de fatos e exemplos; ia tudo para “o arquivo”, que logo ultrapassou o âmbito de um livro. O resultado não é uma colcha de retalhos, mas uma autêntica síntese. Percebíamos os nossos estilos de pensamento e escrita convergindo pouco a pouco até se tornarem um fluxo único. Percebendo que não queríamos encerrar a jornada intelectual em que tínhamos embarcado, e que muitos conceitos apresentados neste livro se fortaleceriam caso fossem mais desenvolvidos e exemplificados, planejamos escrever as continuações: nada menos que 3. Mas este primeiro volume precisava terminar em algum ponto, e em 6 de agosto, às 21h18, David Graeber anunciou com uma grandiloquência típica do Twitter (e citando vagamente Jim Morrison), que estava pronto: “O meu cérebro se sente atingido por uma entorpecedora surpresa”. Chegamos ao fim como havíamos começado, com diálogo e uma constante troca de rascunhos, lendo, partilhando e discutindo as mesmas fontes, não raro madrugada adentro. David era muito mais do que um antropólogo. Era um intelectual público e ativista de renome internacional, que procurou viver de acordo com seus ideais de libertação e de justiça social, dando esperança aos oprimidos e inspirando inúmeros outros a seguirem esse exemplo. Este livro é dedicado à cara memória de David Graeber (1961-2020) e, como era do seu desejo, à memória de seus pais, Ruth Rubinstein Graeber (1917-2006) e Kenneth Graeber (1914-96). Que descansem juntos e em paz.

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A Tirania do Mérito (2020), de Michael Sandel

Muitas vezes escolho livros por causa de seus títulos e subtítulos. Gosto de nomes provocativos, que contrariem o senso comum, como, por exemplo, Bullshit Jobs – A Theory, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, ou O Intelectual – a Força Positiva do Pensamento Negativo. No último caso, comprovadamente um subtítulo que não fazia parte do original mas que foi agregado à tradução por um editor com um senso apurado de marketing.

Com A Tirania do Mérito, não foi diferente. Afinal, o que poderia haver de errado com a meritocracia, a qual nos acostumamos a saudar como um dos baluartes das sociedades mais justas, tanto reais como utópicas ? Admito que custei um pouco a concordar com o ponto de vista do autor, praticamente só depois da conclusão da leitura de quase todo o texto – sem dúvida uma virtude do mesmo, pois não há nada mais decepcionante numa argumentação do que percebermos muito cedo onde seu autor quer chegar com ela.

Michael Sandel é fisósofo, professor de Harvard, onde ministra o curso Justiça, que também é o nome de seu livro mais conhecido. Em A Tirania do Mérito, disseca a trajetória triunfante da meritocracia na sociedade e na política norte-americanas, década por década, até a desilusão das classes trabalhadoras com aquilo que chama de credencialismo (ao que voltaremos adiante), que culminou com a retórica populista que elegeu Donald Trump.

O livro é repleto de referências a outros autores e fartos dados numéricos, invariavelmente com atribuição de autoria. Como um bom texto acadêmico, só que de leitura convidativa (reader friendly, eu diria), cada página levando naturalmente à seguinte. Um dos tipos de estudo a que Sandel mais recorre é a analise de discursos presidenciais, se valendo da contagem de palavras (tipo Obama disse, em todos os seus discursos, n vezes isto ou aquilo) para delas depreender ênfases da retórica de cada mandatário.

(como advogado do diabo, eu poderia objetar tal tipo de evidência alegando que um uso maior desta ou daquela palavra poderia estar mais ligado ao nível de redundância ou, ao contrário, de síntese de cada discurso. Mas a própria redundância é em si um traço da linguagem publicitária e todo discurso político é, por excelência, propaganda. Além disso, textos sucintos não costumam ser os mais persuasivos. Por tudo isto, entendo que Sandel esteja plenamente investido de correção metodológica)

Antes de se debruçar sobre a história recente da nação mais poderosa do mundo, o autor regride alguns séculos para auscultar a virtude do mérito em teólogos como Martinho Lutero ou Tomás de Aquino. É aqui que formula, ou melhor, menciona, um dos mais interessantes paradoxos. A polêmica diz respeito à promessa de salvação. Mais exatamente, sobre o que podemos ou não fazer em vida para garanti-la.

Por um lado, há quem acredite que a salvação seja aleatória, i.e., que ela pode se estender a quem não a mereça enquanto quem pratica o bem e vive segundo o cânone cristão é condenado à danação eterna por um simples capricho divino (isto, inclusive, oferece uma explicação teologicamente satisfatória para catástrofes naturais e outros eventos trágicos duros de aceitar sob o domínio da infinita bondade de deus).

Já, por outro lado, há também quem pense que o ser humano pode investir em sua futura salvação praticando o bem durante sua existência terrena. Só que esta “versão” enfraquece a onipotência divina, já que, ao “comprar” um lugar no céu por meio de atos aqui na terra, o homem estaria usurpando a deus o controle sobre seu destino.

(já notaram como os debates teológicos são sempre os mais interessantes ? Não é à toa que Richard Dawkins, guru mor dos ateus, dedica grande parte de seu livro Deus, Um Delírio à análise das provas da existência e da não existência de deus. Então, não dá prá simplesmente se descartar a priori qualquer debate teológico como carente de qualquer sentido. Tenho para mim que toda argumentação deste tipo pode ser validada (ou não) com a simples definição prévia de deus como uma entidade imaginária (ou, como diz Dawkins, sobrenatural). Mais ou menos como a formulação de um número, variável ou partícula sem comprovação experimental possível que ajude a resolver problemas e equações nos campos da matemática ou da física)

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Sandel considera o clima meritocrático que se tornou hegemônico a partir dos anos 50 e 60 algo bem recente na educação superior norte-americana. Antes, as três grandes da Ivy League (Harvard, Princeton e Yale) não mais do que perpetuavam uma elite hereditária que praticamente excluía mulheres, negros e judeus. Foi James Bryant Connant, reitor de Harvard que, a partir da década de 40, inspirou e contribuiu para implementar um sistema de acesso que garantisse a todos a igualdade de oportunidade – sistema, este, designado por Sandel como máquina de triagem.

Antes, porém, de narrar a ascensão do mérito com principal vetor de validação nos mundos norte-americano e global, Sandel se detém longamente no estudo do acesso à educação superior. Faz isto para clarear o significado de credencialismo, que é como chama a primazia de credenciais educacionais na hora de atribuir aos vencedores os melhores empregos e salários. Segundo ele, é a falta de credenciais universitárias que permite ao sistema econômico vigente dizer às massas trabalhadoras que não merecem estar no topo por não terem perseguido a melhor educação possível. Ou, noutras palavras, uma forma fácil de lideranças lavarem suas mãos em relação à crescente desigualdade. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois, retornando, por hora, à questão universitária e deixando a arrogância e o ressentimento decorrentes do mérito para mais adiante.

Talvez em nenhum outro lugar como nos EUA a hierarquia entre instituições de ensino superior seja tão exacerbada. A expressão Ivy League, originalmente usada para designar agremiações desportivas de oito universidades, passou também a ser usada para se referir ao grupo de universidades cujos diplomas valem mais do que outros em se tratando de obter uma boa posição no mercado de trabalho. As grandes estrelas da Ivy League são as universidades de Harvard, Yale, Princeton. E, ainda que não pertençam, formalmente, a esta elite, a Universidade de Stanford e o MIT gozam do mesmo status.

Sandel identifica três modos de acesso a universidades de prestígio (presumo que a outras também), aos quais chama de portas da frente, lateral e dos fundos. A entrada pela porta da frente se dá por meio de desempenho em exames democraticamente aplicados; a porta dos fundos é reservada aos filhos de doadores muito ricos, numa versão exemplar da popular máxima pagando bem, que mal tem ?; já a porta lateral é a grande brecha através da qual a índole meritocrática do acesso (ou por que se sabe muito, ou por que se tem muito) é francamente corrompida. Tanto que merece um parágrafo totalmente dedicado a ela.

A porta lateral. Existe um mercado muito aquecido para o acesso facilitado às grandes universidades norte-americanas. Operadores que subornam avaliadores e/ou falsificam portfólios acadêmicos e desportivos (sim, pois algumas universidades tem vagas e bolsas reservadas para atletas de elite que venham a integrar suas equipes) e, é claro, cobram muito bem por isto. Sandel cita um escândalo recente em que um desses agentes amealhou uma pequena fortuna obtendo acesso para rebentos medíocres de famílias abastadas a universidades da Ivy League. Técnicos esportivos encheram seus bolsos e um deles, de uma equipe universitária de vela, ganhou notoriedade por usar toda a propina recebida para equipar o time. Com alguma flexibilidade semântica, se pode dizer que, sem sentir vergonha alguma, utilizou a porta lateral com a mesma lógica da porta dos fundos.

Mas as falhas deste sistema supostamente meritocrático não se resumem a facilidades de acesso. Mesmo quem entra pela porta da frente pode recorrer a um exército de profissionais (conselheiros educacionais) cujos serviços ampliam as chances em exames de acesso não fraudados. E aqui, mais uma vez, quem tem mais leva vantagem. Quem tem mais dinheiro e/ou tempo para estudar. É preciso um certo cuidado ao se comparar sistemas educacionais como o norte-americano com o brasileiro, pois apresentam diferentes peculiaridades. Neste caso, no entanto, é razoável se dizer que, mesmo aqui, um estudante de classe média com tempo de sobra para estudar e pais que possam pagar um cursinho pré-vestibular (por vezes mais caro do que boas escolas particulares) costuma ter mais chances num vestibular ou ENEM do que aquele que trabalha para contribuir com a renda familiar e cursa o ensino médio no turno da noite.

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Torno aqui à pergunta inicial, que atiçou minha curiosidade pelo livro, a saber, o que poderia, afinal, haver de errado com a meritocracia ?. Pela corrupção, descrita por Sandel, nos mecanismos de acesso ao ensino superior, poderíamos inferir que o problema com a meritocracia seria meramente o de que, face a alguns obstáculos, explícitos ou não, ela raramente ou jamais se realiza plenamente.

(isto faz lembrar as célebres falhas de mercado (monopólios, informações privilegiadas, etc.), por causa das quais, para seus defensores, os mercados dificilmente realizam com perfeição sua vocação de árbitros supremos)

Só que, para Sandel, o buraco é mais embaixo. Logo no início da obra, diz que um dos principais problemas da meritocracia é o de que vencedores geralmente acreditam que chegaram ao topo por mérito próprio, desconsiderando fatores importantes como vantagens nas condições de largada ou mesmo a sorte que tiveram. Como consequência, passam a desprezar, ainda que veladamente, os perdedores, os quais consideram desprovidos de talentos e/ou que não se esforçaram suficientemente. Tão martelada é esta narrativa que, com o passar do tempo, os próprios perdedores passam a nela acreditar. É desta forma que, para Sandel, meritocracia gera arrogância e humilhação (e, logo, ressentimento). Também para ele, foi predominantemente este ressentimento contra as elites credenciadas que nutriu, entre trabalhadores, a candidatura e a eleição de Donald Trump.

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Mas basta, por hora, de análises e denúncias. Face a tudo isto, o que tem a dizer Sandel de propositivo para combater o problema que tão bem delineia ? Para começar a falar disto, devo trazer aqui uma informação que deliberadamente omiti até agora, a saber, o subtítulo (original) o que aconteceu com o bem comum ?

São várias as medidas sugeridas mas não implementadas. Uma das primeiras que aparece, para fazer frente à máquina de triagem que gera tanta arrogância e humilhação, seria a criação de uma loteria acadêmica, que distribuísse as vagas existentes exclusivamente por meio de sorteio. Imagino o que devem estar pensando. Logo que li, também fiquei chocado. Para um liberal (como adoradores do mercado gostam se ser chamados), isto soa como a abolição de toda propriedade privada. Mas pensando melhor, até que, para alguém que vê o mérito como origem de tantos vícios, faria muito sentido. Ou, pelo menos, contribuiria para restaurar um senso de gratidão (pelo que faz alguém chegar ao topo) que, segundo Sandel, foi perdido nalgum momento ao longo do caminho.

Também são sugeridas medidas de natureza fiscal. Antes de apresentá-las, é preciso dizer que Sandel reconhece a recuperação da dignidade do trabalho como uma prioridade absoluta, já que a mesma vem caindo aceleradamente, em proporção inversa ao crescimento da desigualdade. A desaceleração e inversão dessas tendências passa inevitavelmente por medidas fiscais, tanto na arrecadação como na distribuição dos recursos arrecadados.

É sabido por todos que, não só nos EUA, a taxação sobre o trabalho é muito maior do que aquela sobre o capital acumulado. A recuperação da dignidade do trabalho passa obrigatoriamente pela inversão desta matriz tributária. É aqui que entusiastas do acúmulo de capital dirão que, ora, capital investido gera emprego; outros podem até invocar a Curva de Lafer (mazela da globalização que não vou explicar aqui). Bullshit. A indústria que o capital acumulado mais movimenta é a das finanças.

Finanças. Segundo Sandel, se trata de uma das indústrias mais improdutivas, senão a mais improdutiva dentre todas. Pois capital só gera mais capital, com juros escorchantes cobrados de setores que efetivamente produzem alguma coisa.

(não tenho os dados. Mas Sandel tem. Uma das virtudes de seu livro é ser fartamente documentado, estando todas as fontes lá prá quem quiser conferir)

Então, nada mais justo do que setores improdutivos como as finanças pagarem mais impostos do que os produtivos como o trabalho. Muito mais. Numa espécie de taxação moralizante, como no caso dos “impostos sobre o vício”, de cobra mais impostos de setores como os de tabaco, bebidas alcoólicas e jogos de azar. Não é preciso ter muita informação para se supor, por exemplo, que, no Brasil, o recém descoberto filão das bets opere sob a proteção de um manto de complacência fiscal (pois, senão, não teria crescido tanto).

Outra urgência levantada é a da redistribuição do montante arrecadado. Nos EUA, no passado recente cresceram os recursos repassados a instituições privadas de ensino superior (para custeio da máquina de triagem) enquanto caíram aqueles alocados, por exemplo, à saúde pública. Não quero encher este post de números mas, para quem quiser conhecer, estão todos no livro.

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Tenho essa mania de resenhar quase tudo o que leio. Pode ser um modo de validação de minhas escolhas ? Pode. Mas prefiro acreditar que anseio por compartilhar.

Penso igual a alguns autores que leio (estes, obviamente mais bem informados do que eu). A outros, não. A alguns, não sei: ainda é cedo para dizer. A Tirania do Mérito pertence a esta terceira categoria. Sem que considere, de imediato, um livro fascinante, é, sem dúvida, um grande livro. Bem escrito. Bem documentado. E, sobretudo, que leva a pensar. Eis o ponto: não é preciso concordar com Sandel em tudo (a tal loteria acadêmica, por exemplo, é meio forte até prá mim), desde que se perceba o quadro que ele tão bem descreve.

anotações religiosas (ii): Amor ou religião: o que é mais forte ? ou Para ler Richard Dawkins

O que é mais importante: o amor ou o sentimento religioso ? Tenho para mim que seja o amor. Por uma razão muito simples. É mais comum pessoas inteligentes relevarem suas convicções religiosas em nome de um grande amor do que o contrário. Ou já viram alguém deixar de procurar seu objeto de amor por causa de princípios religiosos ? Tudo bem que no caso específico de alguns fanáticos isto possa, de fato, acontecer, mas não é, definitivamente, a evidência que mais encontramos ao auscultar ao redor. Não só pessoas de religiões diferentes conseguem se amar mutuamente, como ateus podem se afeiçoar profundamente a pessoas cuja fé religiosa contraria frontalmente seus princípios. Tanto as religiões reconhecem a força avassaladora do amor que muitas delas não hesitam em abraçá-lo como uma de suas principais bandeiras.

Tais relacionamentos amorosos são não apenas normais (no sentido estatístico), mas neles não há nada de errado ou particularmente acintoso. É como se houvesse valores mais profundos, que realmente importam, do que meras opções pela fé numa denominação religiosa ou noutra. Mais ou menos como naqueles casamentos em que cada um torce por um time distinto de futebol, por vezes rivais entre si, e se divertem com isto.

Richard Dawkins, o mais célebre guru dos ateus, conta, em seu livro Deus, um Delírio (do qual voltarei a falar), que recebeu uma carta de um ateu que se dizia apaixonado por uma pessoa religiosa, que julgava muito boa, pedindo conselho sobre o que fazer a respeito – ao que Dawkins respondeu perguntado se a pessoa era suficientemente boa para o missivista. Sim, ele respondeu isto. Com o que, por outro lado, não posso concordar, pois podemos nos apaixonar por pessoas que professem fés diametralmente opostas a tudo em que acreditamos ou não. Pois o que realmente importa em alguém não tem nada a ver com para que deus (ou deuses) a pessoa reza.

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Richard Dawkins talvez seja mais conhecido por ter sido o “advogado do diabo” no processo de canonização de Me. Tereza de Calcutá. Pois o complexo rito conduzido pela igreja católica para a proclamação de um novo santo, que inclui uma duvidosa contagem de milagres comprovados, também envolve um debate em que um detrator eminente, vulgarmente conhecido como “advogado do diabo”, é convidado a contra-argumentar com uma autoridade eclesiástica a propósito da santidade ou não do candidato. No caso de Me. Tereza, Dawkins demonstrou, em vão, que a religiosa, alcunhada de Anjo da Morte, não só deixava que moribundos, privados de cuidados médicos adequados, perecessem em sua missão humanitária como, também, colaborava com regimes totalitários opressores e genocidas.

Nunca procurei nenhuma obra de Dawkins, talvez por pensar que meu ateísmo não precisava disto e também por deplorar, em geral, todo tipo de literatura proselitista. O modo, no entanto, como Deus, um Delírio me caiu nas mãos é quase humorístico. Estava eu num shopping fazendo hora quando meus olhos foram atraídos para o volume, exibido com destaque na vitrine de uma livraria, pasmem, de índole religiosa. Do tipo que foram, por exemplo, noutra época, a Vozes ou as Paulinas. Ávido de algo para ler enquanto esperava e sabedor da reputação do autor, adquiri, então, o livro na plena convicção de que ele estava ali por engano, ou seja, que seu título fora equivocadamente entendido como um elogio à divindade. Mais ou menos como um livro de auto-ajuda. Tenho certeza de que o proprietário da pia livraria se arrependeria amargamente de comercializar o livro, ainda mais com destaque, se sequer suspeitasse de seu conteúdo.

A leitura se revelou cativante. Seus argumentos eram, mais do que convincentes, eloquentes. Tanto que cheguei sem grande esforço à última página, pronto para resenhá-lo – o que, no entanto, deixei de fazer na época por um vago receio de ofender pessoas queridas com crenças distintas das minhas. O que nos leva diretamente a um dos pilares da argumentação de Dawkins, a saber, a ideia largamente aceita de que religião, assim como gosto ou política, não se discute. Com efeito, quase sempre basta uma simples alusão à fé professada por alguém para que interessantíssimas discussões, plenas de argumentos lógicos, sejam abafadas sob um manto de silêncio e pretenso respeito às crenças de cada um. Dawkins deplora este tipo de atitude, capaz de esvaziar os melhores debates, afirmando que religião se discute, sim.

Digna de nota é, também, a parte que ilustra como a religião pode, desde o antigo testamento até hoje, legitimar genocídios cometidos em nome deste ou daquele deus. Lá, há menção a um experimento conduzido em Israel em que crianças, confrontadas com a descrição bíblica do massacre pelos hebreus dos infiéis que habitavam a cidade de Jericó, acham tudo perfeitamente natural, que “fizeram o que tinha que ser feito” (!).

E por falar em crianças, Dawkins considera hediondas expressões tais como “crianças católicas” ou “crianças protestantes”, já que nenhuma criança possui o entendimento necessário para professar qualquer tipo de fé religiosa. Logo, em seu entender seria muito mais correto se dizer, ao invés, “crianças de pais católicos” ou “crianças de pais protestantes”. No mesmo capítulo, afirma que a conversão de crianças a um culto ou outro é uma prioridade de qualquer religião, já que todas reconhecem ser bem mais difícil convencer um adulto, em pleno gozo de suas faculdades lógicas, a começar a acreditar em entidades sobrenaturais.

Face a angústia diante do desconhecido que a morte costuma trazer (já que ninguém jamais voltou do outro lado para dizer como é lá), Dawkins propõe a celebração dos mistérios desta vida (i.e., da única que comprovadamente existe) sublinhando os limites de nossa frágil percepção. Da seguinte maneira. A luz que enxergamos se situa numa faixa muito estreita de frequências. Isto por que não vemos frequências que se situam abaixo do infra-vermelho ou acima do ultra-violeta. Ou ainda: só enxergamos o que não é muito grande nem muito pequeno. Com microscópios óticos, podemos ver uma célula, mas não um átomo. Já no outro extremo da escala de grandezas, podemos divisar o que está até a linha do horizonte ou, no máximo, com telescópios óticos, planetas que orbitam em nosso sistema solar, mas não o que há em torno de outras estrelas. Para sondar o que existe além de distâncias astronômicas, daquelas que se medem em anos-luz, precisamos recorrer a outros meios, tais como rádio-telescópios.

Para representar tais limitações de nossa percepção, o “advogado do diabo” recorre a uma analogia poderosíssima ao afirmar que muito pouco é dado a se conhecer do mundo quando o mesmo é observado através da estreita fenda de uma burka.

São estas fronteiras do conhecimento determinadas pelos limites de nossa percepção, tais como frequências invisíveis, partículas subatômicas ou os confins do universo, que servem de combustível à ciência e provocam a imaginação humana – razões de sobra, no entender de Dawkins, ele próprio um cientista, para encontrarmos suficiente estímulo ao intelecto na única existência que conhecemos.

Citei Richard Dawkins anteriormente, ainda que de passagem, aqui (penúltimo parágrafo), aqui (último parágrafo) e aqui (nono parágrafo).

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Religiões são narrativas que, assim como as drogas ou o álcool, servem para aplacar o sofrimento humano e a angústia face ao desconhecido. Está na raiz da aceitação da crescente desigualdade social, já que é mais fácil a um excluído aceitar sua condição se houver uma promessa de uma vida melhor após sua morte. Não fosse o consolo da religião, bem como o dos outros supracitados agentes, o grande levante dos mais pobres contra os mais ricos talvez já tivesse ocorrido há muito tempo.

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Há também o problema do sincretismo. No caso brasileiro, se originou como um expediente que permitia a escravos, através da assimilação à religião oficial ou, ao menos, aceita, de cultos afro proscritos e, em razão disto, relegados à clandestinidade. Mais ou menos como cristãos nas catacumbas. Não é, todavia, o que se tem hoje. É comum pessoas batizadas ou iniciadas em religiões mainstream serem concomitantemente adeptas ao espiritismo, a cultos afro, a linhas espirituais de origem oriental e, não raro, à magia, numa espécie de politeísmo ecumênico. Ou, noutras palavras, atualizando um velho provérbio para “rezando bem, que mal tem ?”. Mais ou menos como se, para garantir mais dádivas e/ou maior proteção, fosse possível, como um especulador que distribui seus ativos entre várias linhas de investimento, flertar ao mesmo tempo com diferentes deuses.

Tal situação inevitavelmente me traz à memória as admoestações do temido Pe. Fonseca (quem estudou no Colégio Anchieta de Porto Alegre nos anos 70 conhece), que vedava a todo católico a opção por um pacote multi-espiritual. Falei disto aqui, no quarto parágrafo.

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E como não há nada melhor para concluir um texto pesado, por força de seu assunto, vai aqui um episódio divertido. Quando, faz já algum tempo, disse a um de meus filhos que, embora me considerasse naquele momento um ateu, não descartava a hipótese (talvez para o horror de outros ateus) de que, quando irremediavelmente velho, com o espírito mais frágil, me sentindo desesperançoso e angustiado com a proximidade da morte, venha a abraçar uma fé que me sirva de consolo e prometa um futuro melhor – ao que meu filho prontamente retrucou: “- Mas isto não vale ! É como trapacear com deus.” Ri muito na hora e acho engraçado até hoje. O fato me remete imediatamente a duas coisas: o delicioso conto moral de Edgar Allan Poe intitulado Nunca aposte sua cabeça com o diabo e o popular meme deus está vendo.

(nem depois de ser severamente censurado por um douto amigo (“Non sequitur !”, me disse ele) me sinto culpado por essa mania, mais forte do que eu, de tecer livre-associações . Falando nisso, lembram da parábola do escorpião atravessando o rio sobre o casco da tartaruga, no grande documentário de Orson Welles Verdades & Mentiras ?)

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Richard Dawkins

Sobre Compar LPs usados, Gravações ao vivo ou Para ouvir Bill Evans (iii)

Garimpar discos usados, como eu já disse aqui, é uma tarefa inglória, já que a taxa de êxito costuma ser baixa posto que não é comum alguém se desfazer de seus melhores discos. Minhas incursões periódicas aos comerciantes de usados não fazem mais do que confirmar esta regra. Depois de mapear os briques de discos do centro de Porto Alegre e percorrê-los uma única vez sob um sol escaldante, adquiri o cômodo habito de visitá-los quando, uma vez ao mês, expõem seu acervo no Mercado Público. Para quem procura coisas específicas como eu, é uma experiência frustrante. Nunca achei, por exemplo, nada de Oliver Nelson ou Eric Dolphy. Já paguei um tremendo mico ao levar para casa um disco de Ron Carter, a quem sou indiferente, mas que trazia um saxofonista chamado Bill Evans (sic !), homônimo do pianista genial com o qual o confundira, Podem imaginar o tamanho de minha decepção e de meu senso de ridículo ao constatar o equívoco.

Sem ter aprendido a lição (viciados são assim), repeti a dose dias atrás, quando exultei ao encontrar uma gravação ao vivo, no Festival de Jazz de Montreaux (Suiça), de um duo que produziu um dos melhores discos que já ouvi: Bill Evans com o contrabaixista Eddie Gomez.

Não ouvi o achado imediatamente. Antes, me cerquei do ritual apropriado à ocasião. Botei o disco para tocar enquanto cozinhava, depois de lavar os legumes e cessar definitivamente o barulho da torneira. Nova decepção: o disco recém adquirido sequer chegava aos pés daquele pelo qual sou apaixonado desde a juventude, do qual falarei em breve.Afeito às racionalizações, me pus de imediato a teorizar sobre tamanha discrepância. Primeiro pensei se tratar de um problema da gravação ao vivo. A qualidade do som é curiosa: começa péssima, como se não houvesse passagem de som prévia (o que pode acontecer em festivais com muitas atrações) e o som vai pouco a pouco se endireitando de tal modo que a equalização e a mixagem das últimas faixas é primorosa. Descartei, no entanto, a hipótese, pois assim como há gravações ao vivo artisticamente sublimes, como as do próprio Evans em Tóquio (1973), Paris (1972) e no Village Vanguard de Nova Iorque (1961 e1980), outras são sofríveis.Especulei então se tratar de uma apresentação em que uma formação temporária (a dupla só produziu três discos) explorava repertório ainda não visitado com vistas a um futuro trabalho mais “autoral”. A cronologia das gravações, no entanto, mascarada pelas sequência de datas de lançamento, logo derrubou minha teoria, já que a gravação ao vivo em Montreaux é, na verdade, posterior às do impecável álbum de estúdio Intuition.Por que então o álbum de uma provável tourné é tão pior do que o disco que lhe teria dado origem ? Não sei se isto acontece sempre, mas é bem plausível. Quando um músico consagrado entra num estúdio, está em busca de um novo conceito que defina o álbum a ser produzido como algo novo e indispensável. Para tanto, deixa na porta toda sua celebridade anterior. É como se, a cada novo disco, tivesse que se superar (às vezes me parece que esta fome de renovação se perdeu um pouco na indústria da música).Contribui para este fim a possibilidade de ilimitados takes alternativos e, em alguns gêneros, a de edição. Sim, é verdade que as tomadas alternativas também acontecem em algumas gravações ao vivo, mas só naquelas em apresentações consecutivas num mesmo teatro, clube ou excursão – já que, via de regra, não se toca de novo as mesmas músicas diante de um mesmo público.

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Bill Evans e Eddie Gomez (contrabaixista de uma formação duradoura do célebre trio), gravaram em duo apenas três vezes: numa transmissão de TV (ou rádio) na Holanda, em 13 de dezembro de 1973; nos estúdios Fantasy (Berkeley, Califórnia), de 7 a 10 de novembro de 1974; e no festival de jazz de Montreaux (Suiça), em 20 de julho de 1975. Da segunda ocasião resultou o icônico álbum Intuition.

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A corroborar minha teoria conspiratória de que, enquanto o álbum de estúdio Intuition foi uma realização cuidadosamente planejada, já o ao vivo em Montreaux não mais do que aproveitamento de material de arquivo, estão as fotos das capas dos dois LPs. As fotos das contracapas contam a mesma história.

Ilustram o disco de Montreaux fotos casuais, quase jornalísticas ou até mesmo turísticas, dando a impressão de que os dois músicos estavam em férias (dá para se inferir muito mais do contraste gritante entre a introspecção de um e a alegria de outro, mas aí já é psicologizar demais…), super granuladas e de baixa resolução, talvez por isto mesmo glamourizadas pelo artista gráfico com uma tonalidade sépia.

Já a capa de Intuition traz os artistas numa cuidadosa composição em que os dois posam junto às silhuetas das grandes curvas características de seus instrumentos, tudo cuidadosamente iluminado, pelo grande mestre dos retratos em negativos gigantes novaiorquino Arnold Newman. Sim, o mesmo dos inesquecíveis retratos de Picasso e Stravinsky, entre outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

A Subida (EUA, 2019)

Gosto de filmes não ortodoxos. A Subida (The Climb), de Michael Angelo Covino, é um destes.

Por mais diverso que seja o cinema, com todas as opções (por exemplo, de narrativa, fotografia ou montagem) que oferece a cada realizador, todo cinéfilo experiente acaba intuindo a existência de esquemas redundantes, tais como clichês de gênero, plot twists ou uso dramático da trilha sonora, o que acaba limitando a um repertório de fórmulas conhecidas os modos que mesmo cineastas mais criativos encontram para contar histórias. Quando conseguem fazer diferente, acabam ganhando prêmios.

Lançado às vésperas da pandemia, A Subida chega à TV sem passar pelas salas de exibição mas com uma respeitável coleção de seleções e premiações em prestigiosos festivais como Cannes, Deauville, Teluride, Toronto, Rio, Sundance e SXWX.

Peguei o filme pela metade. O que, na TV, pouco importa: como os filmes ficam muito tempo em cartaz, podemos ver depois o que faltou, integrando aos poucos as partes ao todo. Além disso, dado o fato de que filmes bons são raros em canais a cabo, acompanhar exibições repetidas quando topamos com algo bom não chega a ser exatamente um problema.

Num projeto que chega a parecer uma brincadeira entre amigos, o diretor estreante Michael Angelo Covino divide o roteiro, a produção e a atuação com seu grande amigo Kyle Marvin para contar uma história envolvente sobre grandes amizades que acaba se tornando, por isto, uma ode à não especialização. É divertido ver seus nomes se repetirem nos créditos. Bem que poderiam aparecer só uma vez, seguidos pelo rol de funções acumuladas por cada um: isto só realçaria seus talentos como homens-banda. Os personagens vividos no filme pelos dois amigos, Mike e Kyle, tem os mesmos nomes dos atores na vida real.

Se há um recurso cinematográfico dominante em A Subida, se trata indiscutivelmente do plano-sequência (tomada longa sem cortes), utilizado em quase todas as cenas. Tudo bem que hoje, com o registro de imagens em meios regraváveis, como discos rígidos, esteja de certa forma abolida a pressão para que atores e técnicos não errem durante longas cenas exaustivamente ensaiadas – como no tempo do Festim Diabólico (1948) de Alfred Hitchcock, filmado com um número mínimo de cortes, apenas suficientes para a troca dos rolos de filme. Neste contexto, chega a ser estranho que cineastas não abusem deste recurso, que é, desde a obra-prima de Hitchcock, praticamente um sinônimo de virtuosismo cinematográfico.

Conquanto planos-sequência representassem um desafio maior para atores e técnicos no tempo de Hitchcock, quando seus erros custavam mais caro, Covino vai além. Em muitas cenas, aparecem numa mesma tomada cenários internos e externos – um feito notável mesmo para os melhores diretores de fotografia. Um dos mais criativos destes planos-sequência ocorre numa cena de casamento, quando a câmera recua de um ponto atrás dos noivos pelo corredor central da igreja até sair da mesma, parando no estacionamento onde nada acontece até a chegada estabanada do amigo do noivo e acompanhando, então, num movimento inverso, a entrada intempestiva do mesmo na igreja. Ainda na mesma tomada, com a câmera circulando ao redor dos protagonistas, todo o imbroglio que se segue. Se isto não é virtuosismo cinematográfico, então não sei o que é.

Outro expediente favorito do diretor: sons inesperados que antecipam eventos a cujas imagens só temos acesso depois. Como, por exemplo, na supracitada cena de casamento. Antes de vermos a chegada do amigo, tomamos ciência não só de sua aproximação mas também de seu jeito desastrado de dirigir tão somente pelo ruído do veículo que se aproxima. Ou então noutro hábil plano-sequência, que começa no interior de uma casa e termina na rua, alternando entre os dois ambientes, quando o barulho de pratos quebrados anuncia a queda de uma caixa que só aparecerá nas imagens seguintes. O melhor de tudo: tal atraso entre som e imagem não é gratuito, servindo a uma função específica – que é, neste caso, mostrar a indiferença a um estrondoso desastre doméstico por parte de uma personagem que, depois de proferir um entediado “my god”, prossegue inabalada no que vinha fazendo.

Sei. Não há nada de novo nisto. Tiros e sirenes de polícia, bombeiros ou ambulâncias que se aproximam são um clichê que se perde no tempo – desde (já que falamos do filme) Festim Diabólico ou mesmo antes. Mas o uso do recurso denota, no mínimo, bom domínio da economia da linguagem.

Paisagens geladas também desempenham um papel importante. Superfícies cobertas de neve que se estendem até onde os olhos podem alcançar realçam o foco nos atores em cenas como a subida de teleférico ou a despedida de solteiro com uma pescaria no gelo. A pescaria no gelo. Cinco amigos apertados numa minúscula cabana vermelha sobre um imenso lago congelado, pescando através de um buraquinho. De repente, surge do nada um comentário divertido sobre despedidas de solteiro não serem despedidas de solteiro se não tiverem stripers. Então, dois deles saem a caminhar no gelo numa animada DR, tão inusitada porquanto sincera. No mais, só o tipo de coisa que acontece em passeios sobre lagos gelados. Mas chega de spoilers.

Outra característica de filmes não ortodoxos são atores que parecem pessoas normais. Nem bonitos nem feios. Só normais. Por que o cinemão nos acostumou com papéis vividos por beldades. A grande praga dos profissionais de casting deve ser ter que, na hora de montar elencos, lançar mão de uma Júlia Roberts ou de um Leonardo di Caprio. Ou atores que precisam ser, antes de tudo, modelos. Filmes com beldades parecem mais falsos no caso de cinebiografias que, ao final, mostram as pessoas reais vividas pelos atores, naqueles retratos em molduras pretas que já se tornaram um clichê. Assim, nada menos do que hilário conhecer ou lembrar, por exemplo, o rosto da cidadã comum vivida por Keyra Knightley em Segredos Oficiais (2019).

A Subida não padece deste problema. A barriguinha de Kyle Marvin ou o queixão e o nariz batatudo de Gayle Rankin contribuem para que vejamos na tela pessoas normais como a maioria das que nos rodeiam, conferindo mais verossimilhança à história.

Não vejo a hora de ver o início e rever o resto de A Subida, para conhecer a parte que perdi e melhor saborear a que ja vi.

Fake Famous – uma experiência surreal nas redes (EUA, 2021)

Chegou ao HBO um novo documentário de denúncia sobre bastidores das redes sociais, mais ou menos na linha de O Dilema das Redes. Só que, enquanto o último se debruçava sobre algoritmos de distribuição visando a maximização do vínculo de plataformas com usuários e a coleta não consentida de dados sobre consumidores para comercialização, o tema de Fake Famous – uma experiência surreal nas redes é a fabricação de perfis falsos de influenciadores digitais bombados por milhares de seguidores inexistentes.

O documentário é uma realização do diretor estreante e jornalista veterano Nick Bilton, que recrutou em Los Angeles três voluntários sem quaisquer habilidades artísticas para produzir perfis falsos em redes sociais por meio de fotos glamorosas denotando estilos de vida que não tinham e inflados por milhares seguidores comprados (bots (robôs) que não correspondem a pessoas reais). Em poucos meses, tais perfis, alimentados por fotos assíduas curtidas e comentadas por bots, passam a receber gratuitamente produtos de marcas em troca de fotos ostentando os mesmos postadas no Instagram.

Se há algo de surreal nisto tudo é que nem as plataformas nem tampouco as marcas nelas promovidas, mesmo podendo identificar a proporção entre bots e pessoas reais na base de seguidores de influenciadores digitais, parecem se importar com o fato que que a maioria destes seguidores inexiste no mundo real. Pois o que importa, afinal, são os números e, é claro, que o dinheiro circule.

(aqui termina a resenha do filme;

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a seguir, algumas reflexões por ele suscitadas)

Tal desequilíbrio ecológico entre o que é investido neste tipo de publicidade e o que é efetivamente convertido em vendas não é, no entanto, nenhum privilégio da propaganda em redes sociais, já existindo desde os tempos dos anúncios em meios de broadcasting impressos e eletrônicos (rádio, TV, revistas e jornais). É, no máximo, uma tentativa de adaptação da prática bem antiga de bombardear, a altos custos, uma população indistinta na expectativa de que uns poucos indivíduos – quanto mais melhor – respondam favoravelmente a mensagem. Como pulverizar uma lavoura com pesticidas ou jogar panfletos de um avião para que apenas uma pequena parte dos mesmos atinja leitores interessados. Quem paga por tudo isto, incorporado ao valor dos produtos, são, é claro, os consumidores finais.

E chegamos, por fim, a esta figura emblemática do broadcasting que não faz, no entanto, qualquer sentido no contexto descentralizado (ou assim deveria ser) da internet, a saber, a celebridade.

A mídia tradicional, com seu número bem mais limitado de canais, depende da escolha, por vezes arbitrária (vide reality shows), de um número também limitado de celebridades suficientes para lhes prover conteúdo – celebridades, estas, modeladas por produtores por critérios de aceitação a fim de maximizar índices de audiência, principal atrativo dos canais de mídia para anunciantes que os sustentam.

Só que, na internet utópica, que promete uma comunicação bi-direcional e mais horizontal entre usuários, a ideia de celebridade não faz qualquer sentido. Redes sociais são regidas pelo número de Dunbar, que estima em 150 a quantidade de pessoas que a mente humana pode, em média, conhecer. Se isto for correto, então milhares de seguidores são, no mínimo, suspeitos enquanto milhões dos mesmos são, evidentemente, uma fabricação.

O documentário de Bilton foi ensejado pelo fato de que, no Instagram, 40 milhões de perfis possuem mais de um milhão de seguidores.

O Diário de um Maquinista (Sérvia, 2016)

A sinopse de O Diário de um Maquinista (Dnevnik Masinovode, Sérvia, 2016), de Milos Radovic, começa, de um jeito um tanto inusitado, informando que, durante sua carreira, todo operador ferroviário em atividade mata, sem querer, de 15 a 20 pessoas. Ainda que este fato seja irrelevante em países, como o nosso, com uma malha ferroviária sucateada, o problema assume proporções preocupantes onde esta modalidade de transporte é mais importante – tal como, por exemplo, na Sérvia, palco da narrativa.

As mortes assumem predominantemente a forma de suicidas vagando pelos trilhos ou do abalroamento de veículos encurralados, imprudentemente ou não, na trajetória de locomotivas. Atropelamentos e abalroamentos são tão corriqueiros que ferrovias empregam psicólogos especialmente para atender maquinistas traumatizados por tais acidentes. A cena, logo no início do filme, em que psicólogos entrevistam o protagonista depois do abalroamento de uma van é hilária. Sem, no entanto, mais spoilers por aqui

A familiaridade com a morte não é exclusiva dos ferroviários. Forças militares e profissionais de saúde convivem, em maior ou menor grau, de acordo com o contexto (guerras, crimes, acidentes, epidemias e doenças terminais), com fatalidades. O termo inglês casualties dá uma boa ideia da banalização profilática da morte em nome da saúde mental dos que exercem certas ocupações.

É sempre refrescante travar contato com cinematografias estranhas. Neste filme, a novidade é o tratamento dado à morte – a qual, sempre que ocorre, toma nas telas um lugar de evento principal. Se houver um culpado, como no caso de assassinatos, será um filme policial, provavelmente um whodunit. Se for acidental ou por doença terminal, será um drama. Tais rótulos são de extrema relevância para a classificação em gêneros cinematográficos que domina os cardápios em canais de streamming.

Certamente Milos Radovic, ao roteirizar e dirigir sua história, não pensou em como o produto final deveria ser classificado. Tal dúvida, todavia, uma vez detectada e não dirimida, parece essencial para o Google ou para o canal de streamming Now, os quais classificaram o filme, respectivamente, como drama/comédia e drama/tragicomédia. Para o espectador, tais rótulos levam a priori a uma única certeza: a de se tratar de uma peça de humor negro.

O humor negro flerta com o politicamente incorreto, pois se trata, quase sempre, de brincar com aquilo que não se brinca. No caso, a morte – situação frente à qual devemos show some respect (tento, em vão, me lembrar de um filme no qual a expressão em itálico é uma fala importante). Em seu filme, Radovic não brinca, propriamente, com a morte mas, antes, com as reações dos personagens à mesma, em diversos graus de banalização ou não, tais como na supracitada psicoterapia pós-traumática; na estufa onde o protagonistas cuidadosamente cultiva flores brancas para homenagear suas vítimas acidentais ou na ansiedade de um novato que, em seis meses de profissão, ainda não havia atropelado ninguém.

É comum, em cinematografias alternativas, termos que tolerar uma fotografia que, por vezes em razão da escassez de recursos, deixe algo a desejar em relação a um padrão de excelência ao qual o cinemão já nos acostumou. Neste caso, não. Cores vivas e altos contrastes, principalmente na iluminação de problemáticos interiores, chegam a lembrar os áureos tempos do Technicolor.

O Diário de um Maquinista é um filme delicioso – diferente, provavelmente, de tudo o que você já viu.

Maestros, obras-primas e loucura (2008), de Norman Lebrecht

Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.

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O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.

Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.

As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.

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O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.

Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.

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É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.

Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?

A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.

Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.

Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.

Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.

Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.

Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.

Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.

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Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.

Contra Amazon (2020), de Jorge Carrión

Já disse em algum lugar que, para manter o hábito da leitura, costumo intercalar entre cada dois grandes livros outros bons que me caiam nas mãos, invariavelmente precedidos por boas recomendações. Contra Amazon é um destes. Ostentando o honesto subtítulo e outros ensaios sobre a humanidade dos livros, se trata de uma coletânea de textos do escritor, crítico e jornalista espanhol Jorge Carrión, tendo como apêndices dois pelo próprio Carrión, à guisa de post scriptum, sobre o impacto da Covid-19 sobre o sensível mercado livreiro, bem como outros por autores diversos, brasileiros em sua maioria, ligados ao ramo editorial e ao comércio de livros.

Escrito e publicado em 2017, o ensaio que dá nome ao volume é um manifesto conclamando amantes dos livros a não comprar no gigante do comércio virtual, cujas práticas são consideradas, com razão, predatórias em relação à rede mundial de pequenas livrarias e à diversidade da atividade editorial. Como exemplo do modo “sacrílego” com que a Amazon trata os livros, Carrión cita uma competição de robótica promovida pela empresa em que robôs deveriam recolher no menor tempo possível um patinho de borracha, um pacote de biscoitos, um ursinho de pelúcia e um livro.

Lido o primeiro ensaio, estupendo, a coletânea parece, por um momento, decepcionante, pois, em lugar de uma esperada continuação da bem articulada argumentação contra o monopólio virtual do comércio de livros, topamos com uma série de textos, conquanto igualmente excelentes, sobre bibliotecas e livrarias ao redor do mundo. Mas não por muito tempo. Pois cada ensaio, incluindo duas entrevistas monumentais, melhor definidas como conversas entre o autor e seus entrevistados, vale como uma verdadeira crônica de viagem, por vezes explorando recantos (invariavelmente livrarias e bibliotecas) de grandes metrópoles; por vezes sem sair do lugar.

Carrión é um viajante compulsivo. Que precede cada uma de suas explorações por uma cuidadosa pesquisa em livros de viagem e traça uma topografia dos lugares em que esteve através de suas livrarias. Muitas vezes, procura ver cidades pelos olhos de autores que nelas vivem ou viveram – como é o caso de Londres, Genebra e a ilha de Capri, respectivamente, por Ian Sinclair, Jorge Luis Borges e Curzio Malaparte.

Apaixonado pelos livros e pela leitura, Carrión tem especial apreço pela categorização. Assim, são examinados em profundidade diversos pares contrastantes, tais como livrarias X bibliotecas; livrarias de livros novos X usados (numa adorável conversa, em que cada um dos interlocutores defende um tipo específico de comércio) e bibliotecas públicas X pessoais. Nestas dicotomias, são discutidos à exaustão critérios de catalogação – ou a ausência dos mesmos.

Aqui e ali, a figura do livreiro é exaltada. Como aquele que sabe exatamente o que tem em suas prateleiras, independentemente de qualquer consulta a sistemas informatizados. Há também um ensaio sobre bibliotecas fictícias como a de Dom Quixote (Cervantes), a do Náutilus (Verne) e a de Babel (Borges). Dentre estas, notamos a falta da mítica biblioteca incendiada em O Nome da Rosa (Eco).

No périplo pelas livrarias do mundo, ganham destaque aquelas que ostentam alguma singularidade ou lançam mão de recursos criativos para atrair clientes (e turistas) num ramo de comércio que luta para sobreviver. Tais como, por exemplo, a cobrança de ingressos, espaços arquitetônicos diferenciados, facilidades multimídia e outras atividades que não o comércio exclusivo de livros. Também ficamos sabendo de curiosidades como a existência, no México, do Abutre de Livros, que caça tesouros ocultos em bibliotecas dos que já se foram (como bem diz Carrión, uma figura que só poderia existir no México, com sua peculiar cultura em relação à morte), ou dos revolucionários franceses de 1789 que arrancavam os livros das encadernações luxuosas, pesadas e padronizadas, emblemáticas da aristocracia, que atrapalhavam sua leitura.

Então, se você ama os livros e toda a cultura e os espaços que os cercam, não deixe de ler Contra Amazon. De preferência, antes de sua próxima viagem. Pois, com certeza, ela será diferente.

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Atualização: ironicamente, dá para comprar Contra Amazon, impresso ou como ebook, na Amazon.

Sociedade do cansaço (2010), de Byung-Chul Han

O sul-coreano Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta, professor da Universidade de Artes de Berlim. Tendo estudado filosofia na Universidade de Friburgo e teologia e literatura alemã na Universidade de Munique, doutorou-se em Friburgo em 1994 com uma tese sobre Martin Heidegger. Seus ensaios se constituem como críticas ao hiperconsumismo, à tecnologia e à sociedade do trabalho.

Sociedade do cansaço (Vozes, 2017) é um pequeno grande livro. Como quase todo bom livro de filosofia, foi escrito originalmente em alemão (Müdigkeitsgesellschaft, 2010).

Como todo bom livro de filosofia, também é repleto de citações, incluindo Adorno, Agamben, Arendt, Aristóteles, Baudrillard, Benjamin, Deleuze, Ehrenberg, Esposito, Foucault, Freud, Gadamer, Heidegger, Hendke, Kant, Kerényi, Marx, Nietzsche, Platão, Schmitt e Sennett. Com esse mar de referências, um índice onomástico até que cairia bem, mesmo ao fim de suas suas modestas 120 páginas – 40 das quais contendo, como anexo, a transcrição de uma conferência, totalmente afeita ao resto do volume, chamada Sociedade do esgotamento.

Como todo bom livro de filosofia, Sociedade do cansaço não explicita pronta e univocamente a que veio. Antes de definir claramente suas categorias sem deixar qualquer sombra de dúvida, Han prefere, ao invés, lograr profundidade gradativamente rodeando o tema, ao modo de um redemoinho, conduzindo o leitor neste mergulho vertiginoso.

Deste modo, o significado de sociedade do cansaço ou do desempenho vai se delineando aos poucos por meio de comparações com o modelo anteriormente vigente, a saber, a sociedade da disciplina ou da vigilância. Logo no início do livro, aprendemos que as doenças típicas do século 21 são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e a síndrome de burnout (SB). No segundo capítulo, vemos que a sociedade disciplinar de Foucault, constituída de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a de hoje, cujos lugares mais emblemáticos são academias de fitness, prédios de escritórios, aeroportos, bancos, shoppings e laboratórios de genética. Que enquanto a sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes, a do desempenho produz, ao contrário, depressivos e fracassados.

Aos poucos, vai deixando claro para o leitor que, enquanto o trabalho no regime anterior era dominado pelo imperativo do dever, hoje a palavra de ordem é o (verbo) poder. Então, se antes o sujeito era explorado por um algoz externo, hoje seu algoz passou a ser ele mesmo. Esta substituição do dever pelo poder caiu nas graças do hipercapitalismo por que o último incrementa em muito a produtividade em relação ao primeiro. Com efeito, nada é mais eficiente do que um indivíduo empenhado em tirar o máximo de si. Muito mais do que qualquer outro submetido a um feitor, gerente ou fiscal. Por que a coação dá lugar à liberdade. De tal modo que o relógio ponto desapareceu para dar lugar a espaços laborais que não mais distinguem entre trabalho e lazer. Laptops, home offices, dispositivos móveis. Hoje, todo tempo e todo lugar servem para trabalhar.

A conferência transcrita ao final do livro é sobre a falta de festa e celebração na vida atual, tendo sua culminância nas afirmação de Aristóteles de que “o homem não nasceu para trabalhar”, que “quem trabalha não é livre” e que “são livres apenas os poetas, filósofos e políticos” – com a ressalva de que, hoje, até a política deixou de ser livre, por que políticos, reduzidos a administradores da economia doméstica ou a contadores, sucumbiram à necessidade e à utilidade, deixando de lado a política no sentido aristotélico, que consiste em mudar a sociedade em busca da beleza e da justiça. Conclui que, hoje, políticos trabalham muito, mas não agem.

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Estranhei que o livro não mencionasse a dicotomia, explorada à exaustão por Neil Postman em Amusing ourselves to death, entre as distopias de Huxley e Orwell, respectivamente, em Admirável Mundo Novo e 1984, já que ambas representariam perfeitamente a oposição entre as sociedades da disciplina e do desempenho abordadas por Han. Com a única diferença, talvez, que, enquanto na obra-prima de Huxley o autocomprometimento com o desempenho é logrado por meio de manipulação genética, na sociedade descrita por Han se chega ao mesmo através de determinantes comportamentais.

Sempre que mergulho na leitura de textos filosóficos, me sinto mais ignorante. Isto por que é praticamente impossível tangenciar o pleno significado de cada frase, tamanho o corpo de referências implícitas, acessíveis somente aos que dedicaram tempo e esforço, academicamente ou não, ao conhecimento da disciplina. Mais ou menos como é impossível a qualquer leitor da literatura de ficção universal fruir todas as entrelinhas de uma obra sem uma ideia básica das histórias contadas na bíblia, mãe de todo imaginário ocidental (esta ideia não é minha, mas – pasmem ! – de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo).

Ainda assim, insisto na leitura. Não só pela altíssima densidade lógica da filosofia – com seus significados abertos equiparáveis, talvez, apenas aos da poesia – mas, principalmente, por que ninguém consegue tão bem como os filósofos contemplar com suficiente distância crítica a época em que estão imersos.