Sobre Compar LPs usados, Gravações ao vivo ou Para ouvir Bill Evans (iii)

Garimpar discos usados, como eu já disse aqui, é uma tarefa inglória, já que a taxa de êxito costuma ser baixa posto que não é comum alguém se desfazer de seus melhores discos. Minhas incursões periódicas aos comerciantes de usados não fazem mais do que confirmar esta regra. Depois de mapear os briques de discos do centro de Porto Alegre e percorrê-los uma única vez sob um sol escaldante, adquiri o cômodo habito de visitá-los quando, uma vez ao mês, expõem seu acervo no Mercado Público. Para quem procura coisas específicas como eu, é uma experiência frustrante. Nunca achei, por exemplo, nada de Oliver Nelson ou Eric Dolphy. Já paguei um tremendo mico ao levar para casa um disco de Ron Carter, a quem sou indiferente, mas que trazia um saxofonista chamado Bill Evans (sic !), homônimo do pianista genial com o qual o confundira, Podem imaginar o tamanho de minha decepção e de meu senso de ridículo ao constatar o equívoco.

Sem ter aprendido a lição (viciados são assim), repeti a dose dias atrás, quando exultei ao encontrar uma gravação ao vivo, no Festival de Jazz de Montreaux (Suiça), de um duo que produziu um dos melhores discos que já ouvi: Bill Evans com o contrabaixista Eddie Gomez.

Não ouvi o achado imediatamente. Antes, me cerquei do ritual apropriado à ocasião. Botei o disco para tocar enquanto cozinhava, depois de lavar os legumes e cessar definitivamente o barulho da torneira. Nova decepção: o disco recém adquirido sequer chegava aos pés daquele pelo qual sou apaixonado desde a juventude, do qual falarei em breve.Afeito às racionalizações, me pus de imediato a teorizar sobre tamanha discrepância. Primeiro pensei se tratar de um problema da gravação ao vivo. A qualidade do som é curiosa: começa péssima, como se não houvesse passagem de som prévia (o que pode acontecer em festivais com muitas atrações) e o som vai pouco a pouco se endireitando de tal modo que a equalização e a mixagem das últimas faixas é primorosa. Descartei, no entanto, a hipótese, pois assim como há gravações ao vivo artisticamente sublimes, como as do próprio Evans em Tóquio (1973), Paris (1972) e no Village Vanguard de Nova Iorque (1961 e1980), outras são sofríveis.Especulei então se tratar de uma apresentação em que uma formação temporária (a dupla só produziu três discos) explorava repertório ainda não visitado com vistas a um futuro trabalho mais “autoral”. A cronologia das gravações, no entanto, mascarada pelas sequência de datas de lançamento, logo derrubou minha teoria, já que a gravação ao vivo em Montreaux é, na verdade, posterior às do impecável álbum de estúdio Intuition.Por que então o álbum de uma provável tourné é tão pior do que o disco que lhe teria dado origem ? Não sei se isto acontece sempre, mas é bem plausível. Quando um músico consagrado entra num estúdio, está em busca de um novo conceito que defina o álbum a ser produzido como algo novo e indispensável. Para tanto, deixa na porta toda sua celebridade anterior. É como se, a cada novo disco, tivesse que se superar (às vezes me parece que esta fome de renovação se perdeu um pouco na indústria da música).Contribui para este fim a possibilidade de ilimitados takes alternativos e, em alguns gêneros, a de edição. Sim, é verdade que as tomadas alternativas também acontecem em algumas gravações ao vivo, mas só naquelas em apresentações consecutivas num mesmo teatro, clube ou excursão – já que, via de regra, não se toca de novo as mesmas músicas diante de um mesmo público.

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Bill Evans e Eddie Gomez (contrabaixista de uma formação duradoura do célebre trio), gravaram em duo apenas três vezes: numa transmissão de TV (ou rádio) na Holanda, em 13 de dezembro de 1973; nos estúdios Fantasy (Berkeley, Califórnia), de 7 a 10 de novembro de 1974; e no festival de jazz de Montreaux (Suiça), em 20 de julho de 1975. Da segunda ocasião resultou o icônico álbum Intuition.

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A corroborar minha teoria conspiratória de que, enquanto o álbum de estúdio Intuition foi uma realização cuidadosamente planejada, já o ao vivo em Montreaux não mais do que aproveitamento de material de arquivo, estão as fotos das capas dos dois LPs. As fotos das contracapas contam a mesma história.

Ilustram o disco de Montreaux fotos casuais, quase jornalísticas ou até mesmo turísticas, dando a impressão de que os dois músicos estavam em férias (dá para se inferir muito mais do contraste gritante entre a introspecção de um e a alegria de outro, mas aí já é psicologizar demais…), super granuladas e de baixa resolução, talvez por isto mesmo glamourizadas pelo artista gráfico com uma tonalidade sépia.

Já a capa de Intuition traz os artistas numa cuidadosa composição em que os dois posam junto às silhuetas das grandes curvas características de seus instrumentos, tudo cuidadosamente iluminado, pelo grande mestre dos retratos em negativos gigantes novaiorquino Arnold Newman. Sim, o mesmo dos inesquecíveis retratos de Picasso e Stravinsky, entre outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Beethoven tempi, outra vez

Nestes dias de ópera-rock farroupilha, nem vale a pena falar do assunto. Não que o tema, tão repugnante, não mereça. Ao contrário. É que tantos amigos vem se manifestando com tanta propriedade, tanto na mídia como em redes sociais (vejam, por exemplo, as ótimas peças de Claudia Laitano, Celso Loureiro Chaves, Milton Ribeiro e Francisco Marshall, para citar uns poucos), que, diante do brilho do que já foi dito, é melhor ficar calado.

É nestas horas, em que mais nos esforçamos para afastar nossa atenção do absurdo cotidiano, que certas preocupações recorrentes, tidas por artistas como leitmotiv ou acadêmicos como linhas de pesquisa ou indagação, mais nos ocupam a mente. Em meu caso, torno ciclicamente a ruminar sobre a fidelidade ou não aos tempos de execução diligentemente prescritos por Beethoven para cada trecho de suas monumentais sinfonias. Tanto que já me ocupei disto, ao menos, aqui e aqui.

Sei. Até há músicos bons e honestos capazes de sustentar firmemente que os  andamentos de quaisquer movimentos de sinfonias de Beethoven sejam prerrogativa exclusiva de cada regente no pódio. Há controvérsias. Talvez poucos saibam que Beethoven foi, dentre os compositores mais importantes, o primeiro a deixar instruções específicas quanto a isto aos chefes de orquestra futuros por meio de anotações metronômicas em suas partituras.

Vergonhosamente, é prática corriqueira desrespeitá-las. Se pode ter uma visão, ao mesmo tempo ampla e sucinta, de como pode variar o tempo de execução do primeiro movimento da Eroica (terceira sinfonia de Beethoven, composta em 1803 e 1804), neste fabuloso audiográfico, autoexplicativo, dentre os melhores que já vi.

Notem a lentidão das primeiras gravações, em especial as de Toscanini (1938 e 1945) e Furtwängler (1944 e 1952); em oposição à vivacidade das da última década da amostra, com Abbado (2000), Rattle (2002) e Chailly (2011). Notem também o baixo diapasão das orquestras de instrumentos de época de Hogwood (1985), Norrington (1987), Harnoncourt (1991), Gardiner (1993) e Savall (1994). Interessantemente, o pessoal dos instrumentos de época está entre os que mais aderiram às prescrições de andamento de Beethoven. Muito mais, pelo menos, do que seus contemporâneos.

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Sempre que o tema dos andamentos de Beethoven vem à tona, não há como não nos referirmos à primeira gravação integral de suas sinfonias segundo a vontade do autor, a saber, a coleção gravada entre 1987 e 1989 pelos London Classical Players, liderados por Roger Norrington. A edição, encaixotada pela EMI, é primorosa. O encarte, trilíngue (inglês, alemão e francês), de 94 páginas, tem o requinte de especificar a duração da unidade de tempo (notação metronômica, tipo “semi-colcheia igual a 92”) para cada nova seção, com a devida minutagem na faixa do CD, de cada movimento de cada uma das nove sinfonias. Chamem, se quiserem, de referência.

Por que considero Ah Um (1959), de Charlie Mingus, um álbum superestimado

Soltei no facebook, sem explicar as razões, que acho Ah Um, de Mingus (1959) um álbum superestimado. Em consideração à atenção de uns poucos que vierem aqui em busca de esclarecimento sobre a ao menos inusitada afirmação (posto que praticamente uma blasfêmia para qualquer mingófilo por se tratar, afinal, de um disco icônico), vou diretamente ao ponto.

O principal problema da outrossim excelente da música de Mingus é não ter encontrado, em grande parte das vezes, sua melhor expressão nos conjuntos em que o compositor atuava como contrabaixista. Ouvir Mingus em 1959 dá a nítida impressão de que ainda estavam por surgir músicos que plenamente realizassem sua música. Tudo bem que Dannie Richmond, seu fiel escudeiro, já estava lá  (pensem em quantas vezes Bill Evans trocou de baterista…). E Jimmy Knepper. Mas caras da estatura de um Eric Dolphy permaneceram com Mingus por muito pouco tempo.

Naquela época, improvisadores mais exponenciais orbitavam ao redor de Miles. Se pode até especular sobre como a excelente música de Mingus, que não deve nada a de Miles, teria se popularizado se o primeiro contasse com improvisadores como Cannonball ou Coltrane. Mas voltemos ao Ah Um.

O início do álbum é promissor, com uma das mais potentes composições de Mingus num arranjo vibrante, de um tipo aberto, consistindo em partes livres  (neste caso o trombone) sobre outras predeterminadas. É precisamente isto que dá aquela impressão de “baguncinha” ou caos controlado tão cara ao estilo de Mingus. Só que, na hora da entrada de um solo rasgando… nada. Só a base. E os riffs, é claro, de quando em quando. De pouco adiantam os gritos de Mingus – como que, sei lá, tentando acordar algum solista – que finalmente comparece, hesitante, com algumas notas longas e indecisas.  Em minha modesta experiência auditiva, não me parece que fosse esta, nem de longe, a intenção do autor. Aquilo é, sem sombra de dúvida, a cama perfeita para um solo vertiginoso. Só que, infelizmente, Dolphy, Bird, Trane ou similares não estavam ali. Então, não consigo ouvir o Ah Um a não ser como uma coisa incompleta, à qual ainda falta uma voz principal.

(é bem provável que, neste ponto, alguém diga que estes “buracos” no arranjo fazem parte da linguagem de Mingus, sutuada fora do alcance de minha compreensão rasa. Pode até ser. Mas evidências como as mesmas músicas tocadas por formações posteriores ou mesmo póstumas depõem em favor do que acho)

Percebem o problema de timing a que me refiro ? Sobre o cara certo estar no lugar certo na hora certa ? É perfeitamente razoável se afirmar que a música de Mingus muitas vezes só encontra sua melhor expressão depois que o autor deixa de atuar como músico em suas bandas. Como, por exemplo, nas raras e espetaculares gravações, ao vivo e em estúdio, da Mingus Dinasty ou da Essential Mingus Big Band, bandas memoriais dedicadas à preservação do legado de Mingus. Ou então nas sessões de gravação que Mingus acompanhou já numa cadeira de rodas. Ou, ainda, na colaboração com Joni Mitchell.

Falando em Joni, avancemos à segunda faixa de Ah Um, a balada Goodbye Pork Pie Hat, dedicada por Mingus a Lester Young, com versos escritos pela cantora, com alguma licença, sobre a linha improvisada pelo saxofonista no Ah Um. A versão de Joni dá de dez no original. Digam se exagero: preferem esta versão ?

Ou esta ?

Outro problema de Mingus em 1959 é uma certa falta de impulso em suas tradicionais “canções de batalha”, como Fables of Faubus ou Better git it in your soul. Agravada, talvez, pelo andamento excessivamente lento. Estou enganado ? Mingófilos e mingólogos que me corrijam !

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Quinze anos depois, Mingus já encontrara sua banda. Já havia, por exemplo, em Changes One & Two, pianistas como Don Pullen e Bom Neloms e horns como George Adams e Jack Walrath. Os espaços privilegiados destinados ao improviso não passavam mais em branco. Mas, como nem tudo é perfeito, já na segunda faixa de Changes One, nos deparamos com um erro de mixagem grosseiro. Como se tivessem cortado o microfone da voz principal (a trompeta, no caso). Não me perguntem como isto acontece num lançamento de uma grande gravadora. Está lá para que quiser ouvir. A falha gritante me faz supor que álbuns de jazz e outros não eram auditados na íntegra, mas só por amostragem, antes de serem fabricados e distribuídos. Um dos casos mais gritantes em que faixas desastrosas passaram pelo crivo de executivos fonográficos é este:

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É, como já foi dito, nos álbuns póstumos (como os de Mitchell, da Mingus Dinasty ou da Mingus Essential Big Band) ou quase (como aqueles cuja gravação Mingus acompanha de uma cadeira de rodas) que toda a força de sua música se realiza plenamente. Em 1978, um ano antes de sua morte, Mingus, cuja música inovadora o excluíra pela maior parte de sua vida do mainstream do jazz, gozava, finalmente, da reputação de um dos maiores, senão o maior, dos inovadores vivos. Com isto, era natural que os melhores daquele tempo o cercassem em busca de, algum modo, colarem suas imagens (e discografias !) à dele. Resulta que Something Like a Bird (1978) foi gravado por um dream team. Particularmente, raras vezes ouvi um saxofonista com a desenvoltura do outrossim desconhecido George Coleman. O disco conta até com a participação, pasmem, do guitarrista Larry Coryell.

Nos álbuns do Mingus Dinasty, “modernos” atrevidos como Joe Farrell e Randy se amalgamam a veteranos dos combos de Mingus como Richmond, Knepper e Pullen para injetar vida nova em sua música. E o que dizer, então, do álbum Mingus, de Joni ? Prá começo de conversa, há Jaco Pastorius. O que define, no entanto, a qualidade quase sempre superior das versões de Joni em relação às originais de Mingus é a intensidade expressiva – que se deve, repito, antes ao pouco alcance dos solistas do que a qualquer deficiência das composições, excelentes e irretocáveis.

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Atualização: saindo em busca de videos para ilustrar este post, particularmente da versão de Goodbye Pork Pie Hat em Ah Um, me deparei com esta, que confundi com o que procurava. Estupefato com a profundidade e proficiência do saxofonista, descobri tratar-se de um obscuro Seamus Blake da (!) Essencial Mingus Big Band, num disco lançado em 2001. Nenhum saxofonista chegou sequer perto disto em gravações de qualquer combo de Mingus.

 

Comprando discos em Buenos Aires: piano trios argentinos: Ernesto Jodos e Adrian Iaies

Não é de hoje que amo o jazz argentino. Tragicamente, costumo estar em Buenos Aires quando meus ídolos porteños tiram férias. Com isto, nunca pude testemunhar qualquer performance de seus combos nos irretocáveis clubes de jazz de Buenos Aires (já foi dito que a capital argentina lidera o ranking mundial de livrarias por habitante; suponho que um levantamento dos clubes de jazz não deixaria por menos…)

Chegando, então, à Zival’s (melhor loja de discos (CDs e vinilos) e livros sobre música de Buenos Aires), procurei discos de Jodos (que conhecera num festival de jazz de Canoas…),  abrindo mão de um álbum de piano solo e recomprando seu experimento com o double trio de piano com dois contrabaixos e duas baterias, Fragmentos del mundo.

Explico por que recomprar. É que emprestei a não me lembro quem meu exemplar de Fragmentos del mundo. Então, descartada a desagradável opção de rastrear o item subtraído a minha coleção, preferi adquirir a obra pela segunda vez, num investimento prá lá de bom !

Fecha parêntesis. Munido, assim de pelo menos uns dois discos de Jodos com satisfaction guaranteed, me dirigi ao balcão, dizendo: ” – Se gosto disto, do que mais posso gostar em termos de jazz argentino ? ” – ao que, prontamente, me recomendaram Adrian Iaies, igualmente pianista, organizador dos festivais de jazz que acontecem em Bs As em setembro.

Em toda esta pequena antologia, há que se prestar atenção na extraordinária proficiência jazzística dos músicos porteños. Desde, por exemplo, o baterista Pepi Taveira, parceiro tanto de Iaies (em Esa sonrisa es un santo remedio) como de Jodos (em Light Blue) – ou então o genial contrabaixista Jerónimo Carmona, parceiro de Jodos em vários discos.  O trabalho do excelente baterista Sergio Verdinelli tampouco passa despercebido. Quisera ter escutado esse pessoal em clubes de jazz na última  vez em que estive lá.

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Com algum tempo de sobra, perguntei ao mesmo atendente sobre trompetistas argentinos tão bons como, por exemplo, Juan Cruz de Urquiza (que conhecera numa ida anterior ao Zival’s). O Gillespi (” O argentino, não o Dizzy ! “, se apressaram em me explicar), que me foi recomendado era, no entanto, um tanto quanto fusion demais para meus ouvidos. Acabei ficando com os piano trios. Na seguinte cronologia:

Adrian Iaies Trio – Esa sonrisa es un santo remedio (2002)

Ernesto Jodos double trio – Fragmentos del mundo (2011)

Ernesto Jodos Trio – Light Blue (2012)

Adrian Iaies Trio – La Vida Elige (2016)

Devo interpolar a esta coleção

Ernesto Jodos Trio (2007)

e El Jardin Seco (de 2008, do qual não encontrei imagens).

O que dizer desses discos ? Recomendo todos. Fortemente.

 

Caixinhas (i) ou para ouvir Bill Evans (ii)

jazz audience 26Caixinhas é como chamamos aquelas embalagens contendo vários CDs abarcando ciclos composicionais maiores do que a música que cabe em apenas um disco. Em música clássica (na ausência de um termo melhor, prefiro clássico a erudito simplesmente por ter 25% menos sílabas), caixinhas contém geralmente ciclos integrais de sinfonias, quartetos, trios, sonatas e afins de um mesmo compositor, capturados em gravações realizadas ao longo de largos períodos de tempo.

Em música popular, não vi muitas caixinhas a não ser de jazzistas importantes, contendo na maioria das vezes vários takes alternativos de cada música, na maioria versões descartadas à época dos lançamentos originais em LPs e, depois, CDs. Caixinhas de discos de jazz contém, então, sempre versões improvisadas diferentes de umas poucas músicas gravadas durante curtos períodos de tempo. Mais. Grandes jazzistas retornam, em diferentes momentos de suas carreiras, a uns mesmos poucos temas. Há muito mais o que falar sobre isto. Mais tarde, talvez.

Caixinhas decorrem de certo modo da não existência, na indústria fonográfica, de objetos de diferentes valores distribuídos através de um mesmo meio. Explico. A indústria automotiva oferece carros dos mais diversos valores. O mesmo sucede no setor imobiliário. No fonográfico, no entanto, há pouca ou nenhuma diferença entre os valores de comercialização de discos de variadíssimo valor artístico. É, pois, tão somente por meio do agrupamento em coleções de CDs com várias horas de música que esta indústria que luta contra sua própria extinção logra oferecer objetos mais caros a  fãs e colecionadores ávidos.

Também não esperem topar com muitas caixinhas que não sejam de obras terminadas. Pois Investidores apostam mais em coisas de artistas mortos. Sejam sinfonias de Beethoven ou canções da Legião Urbana. Do mesmo modo, coleções monumentais como, por exemplo, dos Beatles devem ser bem mais populares do que dos Rolling Stones e outros que ainda estejam na estrada. Mas é só uma suposição. Não conheço este mercado.

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Foi tomado por esta atração irresistível que todo fã sente por bocados colecionáveis da obra de uns poucos ídolos que topei dia desses, ao mesmo tempo (!) com duas coleções de improvisadores pelos quais nutro especial apreço, a saber, a integral dos sets gravados em um dia pelo trio de Bill Evans com Scott LaFaro no Village Vanguard em 1961 (3 CDs) e todas as 49 faixas deixadas por Clifford Brown com o quinteto de Max Roach (4 CDs).

Acabo de ouvir na íntegra os sets gravados pelo trio de Evans no Vanguard em 25 de junho de 1961, apenas dez dias antes da trágica morte de LaFaro com apenas 25 anos num acidente automobilístico.

Clifford Brown também morreu num acidente automobilístico com 25 anos.

Designers de caixinhas de CDs costumam caprichar no visual. Pois deve ser, por vezes, bem difícil persuadir audiófilos a replicar em CDs itens já existentes em suas coleções de LPs. Nesta hora, embalagens luxuosas, incluindo amplas referências, rico material gráfico e até latas personalizadas, fazem toda a diferença.

Já conhecia de longa data os highlights, editados num único CD, dos sets do trio de Evans no Vanguard em 61. Uma das tantas vantagens de se descobrir, décadas depois, em raras e quase inaudíveis (pois os microfones estavam posicionados para captar o som dos instrumentos e não a voz dos músicos) falas de Evans, preservadas nestas integrais, uma fina ironia acerca da franca indiferença do público de então à sua música. Situação bem diferente, como já apontamos anos atrás, daquela quando do retorno de seu trio ao mesmo santuário em 1980.

Da breve e fértil colaboração de Clifford Brown falarei outra hora.

Clifford 1

 

Mais sobre a Tower Records e a Modern Sound; Minding audiences (iii) ou Para ouvir Eric Dolphy (iv)

Modern Sound 6

Na pressa da escrita diária, esqueci de contar uma coisa ou outra sobre as míticas lojas de discos de que falei ontem. Um dado de extrema importância sobre a Modern Sound é que, além de ser um dos poucos lugares onde se podia encontrar discos de pequenos selos, então conhecidos como independentes, também abrigava um bistrô que tinha um dos mais movimentados palcos de jazz e música instrumental no Rio de Janeiro – dispondo, portanto, desta facilidade para, frequentemente, lançar álbuns de músicos importantes. Se pode dizer, então, que com o fechamento da Modern Sound de Copacabana, se extinguiu, também, um dos poucos clubes de jazz do Rio de Janeiro.

Como tantas metrópoles culturais, o Rio também tem uma cena jazzística bastante relevante (a de Buenos Aires, por exemplo, é excelente !). Só que o jazz é, provavelmente, a última coisa que alguém que vai ao Rio pensa em ouvir. Quem vai lá quer ouvir um samba na Lapa ou a bateria de uma escola de samba. Quando muito, uma roda de choro. Mas jazz ? No Rio ? Talvez seja por isso que, no Rio, a melhor música instrumental é oferecida, por vezes, até de graça. Como, por exemplo, em quiosques à beira da Lagoa Rodrigues de Freitas. Mas devo dedicar, num futuro próximo, um post exclusivamente a isto.

Por hora, é importante apenas se frisar que,

tendo sido o pequeno palco do bistrô da Modern Sound de Copacabana, por muito tempo, uma das poucas opções para apresentações de jazz – ou, mais inclusivamente (pois Hermeto e Egberto, por exemplo, fazem, por excelência, jazz !), música popular instrumental improvisada;

com seu fechamento se encerrou, muito mais do uma forma de comércio, de produtos tidos talvez pela maioria como obsoletos, também uma parte bem significativa da música da cidade musicalmente mais emblemática da América Latina.

Parece pouco ? Acho que não. Controvérsias à parte, confiram, n’O Globo, uma análise da crise que acabou com a Modern Sound, a Tower e, provavelmente, a maioria de suas congêneres.

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tower records 6

Um detalhe curioso que não mencionei  ontem sobre o sale annex da Tower é que todos os ítens fora de catálogo lá oferecidos eram inutilizados (marcados), para prevenção contra venda a intermediários, por meio de procedimentos que incluíam serrar ou furar cantos das embalagens sem danificar as mídias gravadas. Com isto, todas as minhas caixas de LPs do Quarteto de Budapeste e CDs do quinteto de Dolphy no Five Spot tiveram suas lombadas impiedosamente mutiladas por brocas e serras. Imaginem o gozo do cara cujo trabalho era fazer isto !

Dolphy, de quem jamais canso de falar – e de quem prometi falar ontem e não cumpri. Desta vez, com seu quinteto no Five Spot de Nova Iorque, tendo como sideman o fabuloso trompetista, precocemente falecido, Booker Little, outro gigante desconhecido de quem já falei. A geração de Dolphy é uma de biografias curtas. Lamentavelmente.

Colecionar discos de Dolphy é uma tarefa que exige paciência e astúcia. Primeiro, por que suas realizações mais impressionantes se “escondem” sob títulos lançados sob o nome de músicos mais célebres, como Mingus ou Nelson, a quem o claronista serviu, brilhantemente, como sideman. Depois, por que os poucos títulos lançados sob seu nome, talvez por terem sido considerados por executivos como demasiado estranhos para a maioria dos ouvintes (“Nelson, Mingus e Monk, vá lá, mas Dolphy ? Just too weird to be digged“), sequer eram lançados aqui. Ou, quando muito (como no caso de Out to Lunch), nos discos duplos de acervos históricos, por vezes arrematados em liquidações, de que falei ontem.

Dolphy at the Five Spot I 1

A julgar pela lombada serrada, foi na Tower que encontrei (lembro até hoje o êxtase !) dois CDs japoneses (com um rico encarte misteriosamente impresso com ideogramas), originalmente lançados pela Prestige, com os sets registrados por Dolphy e seus parceiros no lendário clube em 16 de julho de 1961. Não quero me alongar, ao menos hoje, sobre as razões da estranheza de sua música. Até por que tudo que eu dissesse seria bem redutivo. Sobre estes discos, verdadeiras joias deliciosamente garimpadas, faço, apenas, duas observações:

primeiro, que a duração descomunal de cada música (influência da experiência com Mingus ?) – a saber, 13:44, 12:30, 21:22, 17:16 e 19:57 ! – não é, definitivamente, para ouvidos comuns (por que sempre espero achar mais e melhor conteúdo nas grandes formas ?…);

depois,a notável interrupção no “fluxo” improvisatório de Dolphy (em seu original The Prophet) tomado de pasmo logo após ter ouvido uma infelicíssima manifestação vinda da audiência na hora mais imprópria – um grito de entusiasmo a rasgar o reverente silêncio. Algo impensável, suponho, na Europa. Mas aceito como natural mesmo nos melhores templos do jazz novaiorquino.

A indiferença pública ao mais sublime que lhe é contemporâneo é um tema fascinante do qual já me ocupei aqui. Tornando a olhar esta foto, dos alegres frequentadores do mesmo Five Spot onde Dolphy e seu quinteto se apresentaram naquela noite (como se fossem eles próprios, com seus ares inteligentes, e não os músicos, os protagonistas daquilo tudo), não consigo concordar com Woody Allen quando acusa os californianos de terem inventado o conceito de estilo de vida.

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A Modern Sound, a Tower Records e o Parêntesis da Indústria Fonográfica; ou Para ouvir Eric Dolphy (iii)

tower records 4O fim dos anos 80 não foram apenas particularmente bons para se estudar em Nova Iorque, com acesso facilitado a tudo o que se quisesse ler, ver ou ouvir em suas excelentes bibliotecas públicas (sem falar nas coleções das próprias escolas) – mas, também, para se adquirir uma coleção digna de ser lida e ouvida repetidamente ao longo da vida. Falo, claro, de pechinchas como os review books garimpados na Strand, dos quais falei dias atrás, e, last but not least, discos (CDs e LPs !) fora de catálogo no sale annex da Tower Records. No mesmo Greenwich Village, a poucas quadras da Strand). Lá, encontrei coisas como, por exemplo, caixas de LPs com coleções de quartetos de Beethoven executados em Stradivari da Biblioteca do Congresso pelo lendário Quarteto de Budapeste, ciclos de lieder de Schubert ou Wolf com Dieskau ou, ainda, integrais das sinfonias de Nielsen com Bloomstedt. Coisas de gigantes como a DG a nem tão nanicos como a Bis, a Naxos ou a Nonesuch.

(noutra hora, tomaremos à instigante questão da importância das celebridades para os gigantes e o papel dos nanicos para a promoção da diversidade)

Ia lá quase todas as semanas, raramente saindo de mãos abanando. Sempre havia tanto novidades como prateleiras jamais inexploradas a serem peneiradas. Talvez por isto tenha ficado tão triste (ainda que nem um pouco surpreso) ao saber do fechamento definitivo da loja em 2006. E, agora, bem curioso por assistir o novo documentário All things must pass, dirigido pelo filho do Tom Hanks, sobre a mítica loja. Espero ardentemente conseguir vê-lo, senão em salas de cinema, ao menos nalgum canal de TV a cabo.

Record Store Day at Amoeba in Los Angeles. This is the world largest independent Record Store. Sunset Boulevard, Los Angeles.

O fim da mais importante, senão a maior, rede de lojas de discos era uma morte anunciada desde a chegada da internet. Mais do que um caso isolado, pertence a uma tendência global (que por hora designaremos – sem ainda, no entanto, dela nos ocupar – Parêntesis da Indústria Fonográfica) cujo caso brasileiro mais emblemático foi a Modern Sound de Copacabana. Curiosamente, a Tower Records (1960-2006) e a Modern Sound (1966-2010) tiveram ciclos de existência com praticamente a mesma duração.

Modern Sound 4

Bem antes de conhecer a Tower, descobria, na primeira das quatro vezes em que estive no Rio, a Modern Sound, onde adquiri algo impensável em qualquer outro ponto do território nacional, a saber, o lendário disco de Eric Dolphy chamado Far Cry, inédito por aqui e reeditado pela Prestige como uma espécie de álbum duplo aleatório com as duas vezes em que Dolphy e Ron Carter colaboraram. Gravadoras fazem isto. Conheci Out to Lunch, também de Dolphy, num desses “duplos” da Blue Note, junto com Blue Train, de John Coltrane. No caso do par da Blue Note, ouvi os dois até gastar. Já no da Prestige, não lembro de ter conseguido ouvir o do baixista inteiro até o fim. Abaixo, as capas da edição original de Far Cry e de sua reedição como Magic, junto com o disco de Carter. Confesso que gosto mais da segunda, embora só consiga ouvir um dos dois discos nela embalados. Coisa que só acontece, mesmo, com LPs (imaginem alguém comprando CDs por causa de suas capas…)

Far Cry 2

Magic 2

minding audiences (ii) ou da indiferença contemporânea ao sublime ou para ouvir Bill Evans (i)

Gosto de garimpar fotos tiradas em clubes de jazz de Nova Iorque nos anos 50 e 60. Em muitas, há membros da audiência desatentos ou indiferentes à excelência da música que ouviam. Notem que não falo de nenhum piano bar, nos quais a música apensas serve de pano de fundo à conversação, mas de casas de espetáculos icônicas, como o Birdland, o Five Spot, o Minton’s ou o Village Vanguard, cujos minúsculos palcos eram frequentados pelos maiores improvisadores de seus tempos. Falamos, portanto, de música sublime, ricamente documentada por fabulosos registros sonoros.

Face à atitude quase devocional com que ouvimos, hoje, tais registros, sempre me espantei com essa desatenção tão franca, não sei se por arrogância (vale examinar fatores como tensão racial entre músicos e platéias) ou mera ignorância, ostentada por tantos ouvintes daquela música única (i.e., que jamais poderia ser repetida daquele modo) e de qualidade exponencial.

Daí minha insistência no bordão de que audiências contemporâneas são, na maioria das vezes, indiferentes ou mesmo insensíveis ao que de mais sublime há em cada época. Como se pode ver nas fotos abaixo. Minhas favoritas são as duas primeiras. Pois não há como entender o ostensivo dar de costas do jovem loiro e da Marilyn sem rosto (imortalizada assim, só como penteado, pelo fotógrafo) à música tocada, respectivamente, por Charlie Parker na primeira foto ou Clifford Brown na segunda. Entre outros.

Charlie Parker birdland

Nas seguintes, a maioria dos ouvintes parece estar interessada em qualquer coisa a não ser a música.

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Na primeira, toca Miles Davis. As quatro últimas foram tiradas no Five Spot; as três últimas com Thelonius Monk as duas últimas com, além dele, Charles Mingus e John Coltrane. Como podem ver, gente pouco relevante no jazz.

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É claro que as imagens acima, que arrolo como testemunho do desinteresse de uma cultura para com a melhor arte de se seu tempo, podem ser descartadas como um recorte muito específico e, portanto, casual. Ou seja, coexistentes com uma quantidade igual ou maior de fotos que retratam ouvintes aparentemente atentos. Felizmente para o historiador, registros sonoros evidenciando nossa hipótese inicial são fartos. E especialmente contundentes, se considerarmos, comparativamente, o ruído produzido pela audiência em integrais dos sets gravados por Bill Evans com seu lendário trio no Village Vanguard em 1961 e 1980. Na coleção de 1961, de um artista ainda a ser descoberto por seus contemporâneos, impressiona o som de conversação e de utensílios como copos, louça ou talheres se fazendo, por vezes, quase mais audíveis do que a música. Já nas sessões de gravação testamentais de 1980, no mesmo lugar, o silêncio absoluto da audiência denota a reverencia pelo gênio consagrado.

Ouçam, então, no primeiro audio abaixo (impressionante como o youtube se tornou uma espécie de plataforma ideal para a postagem de fonogramas !), um take do trio de Evans com Paul Motian (bateria) e Scott LaFaro (contrabaixo) no Village Vanguard em 61 e, no segundo e no terceiro, dois takes da última residência do derradeiro trio, com Marc Johnson e Joe LaBarbera, por lá quase vinte anos depois.

Quero ver alguém dizer, depois de ouvir isto, que o público que foi ao Vanguard ouvir o trio de Evans em 1961 era mais atento do que o de 1980. Se, no entanto, toda evidência acima não for suficiente para corroborar a tese da indiferença contemporânea ao sublime, vejam, então, na foto abaixo, o local de descanso de Evans e seus parceiros na célebre casa de espetáculos em 1961. Duvido que seu camarim por lá, em 1980, fosse minimamente parecido com isto.

jazz audience 26

Mastertracks (iii): Para ouvir Eric Dolphy (ii): Screamin’ the Blues, Straight Ahead e Blues and the Abstract Truth

 Nelson - Screaming the Blues

Screamin’ the Blues (1960), Straight Ahead (1961) e Blues and the Abstract Truth (1961). Guardem bem esses nomes. Pois estes três discos registram na íntegra a breve e fértil colaboração entre Oliver Nelson e Eric Dolphy. Quem já conhece o último pode dispensar a leitura dos próximos três parágrafos.

Eric Dolphy foi, durante toda sua curtíssima carreira (procurem a história de sua morte precoce e desnecessária em Berlim em 1964 no blog do Milton), o maior improvisador de jazz de seu tempo. Para se entender sua dimensão é preciso, no entanto, que se entenda, antes, o que significa, em jazz, a figura do sideman. Em duplas como Dizzy & Bird ou tantas da era do bop e hardbop, em que predominavam os quintetos com dois sopros. Dolphy foi o maior sideman de sua época. De gigantes inovadores como Mingus ou Nelson. Lembro de já ter falado, em meu antigo blog, do genial sideman de Dolphy: o igualmente excepcional trompetista Booker Little (morto aos 23 anos num acidente de carro (alguém ainda há de narrar a trágica história de músicos – notadamente trompetistas da era beat !) em road gigs)).

Um pequeno selo japonês já disponibilizou em CD os maravilhosos sets do quinteto de ambos no Five Spot de Nova Iorque.

Além de ter sido o maior expoente em improvisação em seu instrumento (a clarineta baixo ou, como é mais conhecida, o clarone) que já existiu, Dolphy também improvisava com igual bravura no saxofone alto e na flauta.

É claro que a magnitude de seu feito (i.e., sua herança gravada) não reside só no fato de que tenha tocado, num tempo curtíssimo, mais notas do que a maioria de seus pares em todas suas vidas. Me impressiona mais, outrossim, a facilidade com que se adapta às diferentes formas (e graus de liberdade !) de improvisar. Pois deve ser bem diferente tocar num combo, por exemplo, de um Mingus, Nelson ou, como em Out to Lunch, dele próprio.

Notem, por fim, que os três discos foram gravados pelo lendário Rudy Van Gelder. E que, no último deles, havia ninguém menos do que Evans e, além deste, também Hubbard, Chambers e Haynes. Ou, se quiserem, como em Kind of Blue, um conclave de gênios.

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Na última vez em que perguntei no facebook de onde poderia baixar certa gravação, fui gentilmente censurado, tanto por comentário em aberto como através de mensagem privada, por amigos que muito prezo, por fazer apologia ao download gratuito de alguma música produzida, no máximo, lá pelos anos 70. Ok, 80. Até a morte de Evans. Que, até, onde sei, assim com Dolphy ou Miles, não deixou herdeiros. Sim, Corea ainda está ativo. Tanto que não deve precisar, para viver, duns caraminguás advindos de direitos de cópia sobre seus álbuns produzidos há mais de 30 anos (que considero um prazo prá lá de justo para a queda em domínio público de fonogramas (mas isto já é outra conversa, prá quem entenda mais disso do que eu)).

Não há, no entanto, como se fugir da questão moral maior sobre piratear ou não. Ora, eu jamais teria acesso ao conhecimento de qualquer música recém-produzida sem as virtuosas redes de acesso gratuito a gravações de baixa resolução existentes na internet. Ao mesmo tempo, dificilmente me furtaria à oportunidade, sempre que com ela me deparasse, de deitar mãos, mediante aquisição de direitos, sobre quaisquer mídias que me propiciassem a escuta de gravações de boa música com boa qualidade de som. Para bem além, ao menos, da maioria dos arquivos em mp3 disponíveis na rede.

Então, por conta do necessário posicionamento ético não só quanto ao download gratuito de música mas em relação à tudo o que diga respeito à propriedade intelectual, deixo, por hora, à guisa de provocação, no link sob o primeiro disco citado acima, a página para download do mesmo de um site pirata ao qual até já ouvi se referirem como sendo de utilidade pública. E se alguém me disser de onde posso baixar os outros dois, anoto aqui. Muito grato, desde já !

Nelson - Blues and the Abstract Truth

 

 

 

Mastertracks: álbuns duplos (i): Chick Corea, My Spanish Heart (1976)

Corea MSH 6

Devo ter falado deste disco no blog antigo. Como, no entanto, isto já faz muito tempo, é sempre bom lembrar. Até por que qualquer disco cujo interesse dure mais do que o tempo médio de vida de um blog merece toda a atenção de nossos ouvidos.

Não é muito comum, dada a pouca duração das formas que geralmente tem a seu dispor, que artistas de música popular, mesmo da instrumental, consigam sustentar o interesse de ouvintes ao longo dos quatro lados de um LP duplo. Feito equiparável a, por exemplo, ouvir atentamente, do início ao fim, uma sinfonia de Mahler ou qualquer ópera de proporções médias. Por isto é tão raro músicos populares lançarem álbuns duplos. Afinal, quem aguenta ouvir em sequência mais do que uma dezena de coisas de 3 ou 4 minutos parecidas entre si ?

Então, sempre que me deparo com álbuns duplos, presto alguma atenção. Mesmo que tantos se revelem, depois de poucas faixas, insuportáveis.

My Spanish Heart é um álbum duplo de um dos maiores catalisadores do jazz. Explico. Grande parte do músicos mais consistentes ou carismáticos, geralmente bandleaders, apenas em determinados períodos de suas carreiras logram aglutinar em torno de si constelações de estrelas que lhes permitam desenvolver ao máximo sua arte. Vejam, por exemplo, os combos de Monk antes do mergulho solitário no piano ou do idílio com Coltrane. Ou tantos sidemen, ainda que brilhantes, da era do hard bop. Quem consegue ouvir aquilo prolongadamente ?

O mesmo não acontece, no entanto, com a maioria das formações mantidas, por exemplo, por um Art Blakey, Bill Evans, Charlie Mingus, Chick Corea ou Oliver Nelson.

Mais raramente ainda, ocorre que uma destas constelações seja, ao mesmo tempo, um conclave de gênios. I.e., nos quais há, além de grandes músicos, mais do que apenas um desenvolvedor de conceitos (ou seja, particularmente inovador). Quando estas colaborações acontecem, temos, mais do obras primas, marcos históricos. Discos únicos. Como Kind of Blue.

Se alguém se parar a pensar por que o elenco de Kind of Blue jamais se reuniu para qualquer gig ou outra gravação, dá uma novela. Suponho que alguém noir já tenha feito isto.

Posto isto, chegamos, propriamente, a My Spanish Heart, album duplo que é um marco na prolífica discografia de Chick Corea. A começar pelo brilhantismo de cada membro da banda. Sendo Corea um imenso exponente do piano, é natural que olhemos em primeiro lugar para a bateria e o contrabaixo que constituem, com o primeiro, os pontos de apoio a dar sustentação a todo o tecido instrumental. Ora, Steve Gadd e Stanley Clarke dispensam apresentações, estando, um e outro, entre os maiores executantes de seus instrumentos em sua época.

Don Alias, o percussionista em My Spanish Heart, liderou a apresentação, subsidiada (ah, bons tempos do Cultural, do Goethe, da Aliança Francesa…) e para uma pequena platéia, de seu combo em Porto Alegre.

My Spanish Heart não é um piano trio, nem tampouco um combo como os de Mingus ou Nelson. No álbum, Corea mescla, com maestria de orquestração e engenharia, os sinais acústicos e elétricos de cada instrumento das palhetas jazzística e orquestral. Parece pouco ? Imaginem misturar, com clareza absoluta, voz, piano, baixo, bateria, palmas & sapateado, quarteto de cordas e metais ! Palmas, Bernie Kirsh. E louvados sejam os estúdios analógicos da Los Angeles dos anos 70.

Mas não é só a exuberância de um dream team que torna MSH um álbum duplo digno de ser ouvido. Como dissemos acima, qualquer obra musical que ambicione uma escuta mais demorada depende, além da excelência de cada participante da performance gravada, também de formas capazes de manter a atenção de ouvintes por mais tempo do que a duração média da tudo o que ser ouve no rádio ou na web. Sabemos que, em música o que dá a alguém alguma imortalidade é sua perícia no manejo de formas (já o que dá a alguém celebridade não é o conteúdo, mas a promoção midiática). Há séculos que o principal organizador da forma, em música, é a harmonia. A esta se sobrepõe a orquestração. Isto quer dizer que, enquanto quase todo ouvinte é capaz de perceber variação harmônicas em determinados instantes, a maioria só consegue distinguir, entre instantes mais distantes, diferenças de instrumentações (i.e., de timbre, ou que combinação de instrumentos está tocando a cada instante). Tudo isto é só para dizer que, em MSH, CC se utiliza largamente da orquestração para gerar formas mais longas. Para bem além do que é mais comum em discos de música popular. Mesmo instrumental.

Há em MSH, além da instrumentação, um outro fator gerador de forma, bem mais raro na história da música, a saber, a alternância e/ou concomitância, numa mesma obra, dos modos de performance composta e improvisada. Ou, se quiserem, pré-determinado e não pré-determinado. Tal convívio artístico entre um e outros são raros na música ocidental.

Pois é pelo uso tanto da instrumentação como do jogo entre partes improvisadas, pré-compostas e mistas que Corea logra articular, como raramente vemos em música popular, os quatro movimentos (!) da Spanish Fantasy que ocupa todo o último lado de seu épico álbum duplo.

Outros pontos altos do disco incluem o igualmente raro uso artístico e inteligente de

  • gravação em playback ou overdub, i.e., não simultânea, particularmente na “polifonia” improvisada com a esplêndida voz de Gayle Moran (que esteve com CC no inexplicavelmente único (!) festival de Montreaux em SP); (só me lembro de overdubs improvisados interessantes assim em Conversations I & II de Billl Evans); e
  • de sintetizadore monofônicos, tais como o Minimoog.

Digno de nota é também o vigor rítmico hispânico/latino presente, como fio condutor, em todo o álbum. O que me traz de imediato a memória de um problema formal da música improvisada para dançar que se resume no seguinte: ao mesmo tempo em que dançarinos reconhecem uma duração máxima de cada música como ideal, a partir da qual começam a sentir fadiga, músicos improvisadores prolongariam, se pudessem, cada tema indefinidamente, chorus após chorus, por tanto mais tempo quanto for o número de membros do combo. Então, eis o belo paradoxo: combos maiores são tanto mais eletrizantes quanto mais cansativos para quem dança (daí parte da importância da direção musical inclusive nestes gêneros !…)

But so much for a disc. Ainda que duplo. Então, baixem de onde acharem (please share on comments !) e apreciem !

(estou como um cara que conheço, que alterna entre o português e o alemão conforme a necessidade)

 

Corea MSH back cover 3