O Despertar de Tudo, de David Graeber e David Wengrow

Disclaimer: se quiser saber mais sobre o livro que dá título a este texto e não tiver vontade nem tampouco paciência para se deter em divagações narcisísticas do autor de mais esta anti-resenha, avance a leitura diretamente para depois dos próximos três asteriscos (* * *).

Por que, afinal, anti-resenha ? Pois não é a primeira vez nem deve ser a última em que me refiro a um comentário sobre um livro lido desta forma. Penso ser por se tratar, antes de uma sinopse seguida por (ou intercalada a) uma apreciação crítica, de uma crônica do processo de leitura do mesmo. Ritmo da leitura (lento X rápido). Associações suscitadas pela mesma. Coisas assim.

Agora, se não tiver vontade de ler nem este preâmbulo nem a resenha que o segue, não perca mais tempo. Corra a uma livraria e compre (ou, mais provavelmente, encomende) o livro. É satisfação garantida. Tanto que me atrevo a lançar aqui, publicamente, o mesmo desafio, quase uma admoestação, proposto por Charlles Campos, anos atrás, ao me recomendar Colapso, de Jared Diamond, a saber, que, se acaso eu não gostasse, me compraria de pronto o volume que eu houvera adquirido por indicação sua. Convincente, não ? Tanto que comprei o livro. E gostei. Mas por que, no presente caso, tamanha autoconfiança ? Por que tenho certeza de que não se arrependerão. A propósito: o próprio Diamond é citado por Graeber e Wengrow em O Despertar de Tudo. Mais de uma vez.

Adquiri meu exemplar de O Despertar de Tudo na Bamboletras, por ocasião da palestra de um seu seus autores no Fronteiras do Pensamento que, para minha grande lástima, perdi. Antes, já havia resenhado o estupendo Bullshit Jobs – a Theory (ainda inédito em português) de Graeber, além de traduzir um artigo seu para Strike e Evonomics e uma entrevista para The Economist.

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David Graeber, antropólogo, e David Wengrow, arqueólogo, ambos autoridades reconhecidas em suas respectivas áreas, se lançaram, quase que como uma brincadeira, ao propósito de reescrever, em parceria, a história da humanidade. Uma ideia ambiciosa. Presunçosa, até – ainda que, como verão, só em aparência. Depois de uma colaboração que se estendeu por mais de 10 anos, publicaram O Despertar de Tudo.

A própria dimensão do volume resultante já dá uma ideia da envergadura do projeto. São ca. 700 páginas, 150 das quais só de notas e índice onomástico. Só que uma leitura que se apresenta assim, de um modo quase intimidante, vai se revelando pouco a pouco como fluida e convidativa. Seus autores intercalam um longo relato de dados de pesquisa que, outrossim, poderia parecer um tanto enfadonho, com argumentações brilhantes, críticas mordazes a seus próprios campos de conhecimento e, não raro, um humor refinadíssimo. Em suma, uma viagem intelectual das mais gratificantes que alguém poderia empreender.

Toda a narrativa é permeada por extensas citações de outros autores (e explanações sobre o pensamento dos mesmos), tanto daqueles com os quais os autores concordam como, o que é mais importante, daqueles de quem discordam – o que é mais raro e, portanto, louvável.

Com o avançar da leitura, algo que vai ficando cada vez mais patente para quem ainda não sabe ou desconfia é o quanto a “grande narrativa da história” está calcada sobre um número absurdamente pequeno de casos, não por acaso aqueles que melhor corroboram pontos de vista ostentados e/ou defendidos por seus  narradores contumazes. O quê ? Então quer dizer que a história não é neutra ? Lamento, aqui, se estou dando algum spoiler, mas acho bom você apertar o botão de reset. Mas devagar. Vamos por partes.

Como eu ia dizendo, com o avançar da leitura vão caindo por terra algumas noções românticas ou extremamente simplificadas que temos, por exemplo, da arqueologia. Esqueçam coisas como tumbas de faraós, saqueadores e Indiana Jones. Antes de ler o livro, eu não tinha ideia (me desculpem a ignorância) da enorme profusão que há de sítios arqueológicos ao redor de todo o globo. Nos inteiramos, também, que o conhecimento adquirido nesta área nos últimos 50 anos é muito maior do que o que se sabia, por exemplo, no início do século 20.

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Mas sobre o que é o livro, afinal ? Para responder a isto, nada melhor do que começarmos pelo final. Mais exatamente, por sua última frase: “Agora sabemos que estamos diante de mitos.”

O Despertar de Tudo é sobre mitos. Mais especificamente, sobre aqueles que sustentam a falsa sensação de inevitabilidade histórica. Para chegar a eles, os autores partem do pressuposto de estarmos num mundo altamente insatisfatório (pelo menos um deles é anarquista) e da consequente pergunta: “Como chegamos a isto ?”. Impelidos por esta “mola mestra”, embarcam numa jornada indagatória acerca de vários mitos, dentre os quais

  • a pouca credibilidade de filósofos indígenas brilhantes contemporâneos ao Iluminismo, já que, de acordo com o ethos dominante da época, toda profundidade intelectual seria privilégio de europeus, estando indígenas condenados, portanto, a um status de inocentes selvagens – até por que a existência de tais mentes brilhantes indígenas é geralmente fundamentada sobre relatos de colonizadores, geralmente religiosos, os quais estariam, por sua vez, irremediavelmente “contaminados” pelo tipo de narrativa que seus conterrâneos contemporâneos teriam gostado de ouvir. Neste contexto, não é por acaso que grandes filósofos indígenas desacreditados, como Kondiaronk, tenham sido justamente aqueles que dirigiram as críticas mais severas à forma de organização da sociedade europeia tais como o dinheiro e a dominação do mais fraco pelo mais forte;
  • a noção, formulada pela primeira vez em 1751 por A. R. J. Turgot e depois perpetuada por Adam Smith, de que as sociedades humanas, influenciadas pelo progresso tecnológico, passavam necessariamente por 4 etapas evolutivas – a saber, de caçadores-coletores, pastoril, agrícola e civilização mercantil urbana – correspondendo a última ao estágio mais avançado;
  • a ideia de que a propriedade privada foi consequência direta da revolução agrícola, seja pelo cercamento de terras ou pela manipulação de excedentes. Ora, pesquisas arqueológicas recentes revelam que, por um período bastante prolongado, de ca. 1000 anos (período, portanto, demasiado extenso para qualquer “revolução”), a humanidade flertou com a ideia do cultivo extensivo, hesitando entre o mesmo e um plantio lúdico, só para subsistência, e, no caso de alguns grupamentos humanos, rejeitou deliberadamente a agricultura extensiva;
  • a ideia de que a deliberação sobre formas de organização social é um fato bem recente na história humana, peculiar aos últimos séculos. Hoje sabemos que povos antigos, anteriores à escrita, já tomavam decisões políticas quanto às próprias formas de organização social;
  • a ideia de que governos centralizados e eventualmente estados se tornam obrigatoriamente necessários sempre que uma sociedade ultrapasse um certo tamanho. Ou, noutras palavras, estados são antes de tudo um problema de escala. Mas não é bem assim. Em todos os continentes, são muitos os vestígios de cidades e assentamentos pré-históricos de grande porte voluntariamente administrados por meio de formas de auto-gestão. Nestes casos, decisões eram tomadas por conselhos comunitários ao invés de por reis ou outras formas centralizadas de governo.

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Como bons cientistas, os autores adoram categorizações. Dois grupos recorrentes em todo o relato são as 3 liberdades humanas fundamentais, que são

  • a de ir e vir,
  • a de desobedecer ordens recebidas e
  • a de experimentar outras formas de organização social,

e os 3 pré-requisitos para a existência de um estado, que são

  • o monopólio do uso (ou ameaça de uso) da força ou da violência como forma de coerção,
  • o controle sobre a informação (burocracia) e
  • o poder carismático.

As 3 últimas categorias são usadas para caracterizar estados incipientes como estados de primeira ordem (aos quais faltam dois dos pré-requisitos acima) ou de segunda ordem (aos quais faltam um deles).

Quanto às três liberdades fundamentais, os autores afirmam que, enquanto a primeira e a segunda (i.e., a de ir e vir e a de desobedecer) não existem nos estados verdadeiros, nos acostumamos com (banalizamos) a ideia de que a terceira (i.e., a de experimentar outras formas de organização social) não apenas não existe como também nunca existiu.

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Em todo o relato, são muitas as evidências de sociedades pré-históricas, pré-colombianas ou mesmo posteriores à invasão do continente americano pelos europeus, de índole igualitária, que se auto-geriam repudiando deliberadamente a existência de reis ou qualquer forma de governo imposta de cima para baixo – não havendo, por outro lado, qualquer evidência de uma linha evolutiva obrigatória que culmine na existência de estados ou qualquer forma de poder centralizado. Ao final, os autores se perguntam aonde foi que erramos, deixando a questão em aberto.

* * *

Curiosidade: por mais de uma vez ao longo do livro, Graeber & Wengrow se referem à conquista do continente americano pelos europeus, a partir de pouco mais de 500 anos, como “invasão”. O que nos remete de pronto à presença de franceses e holandeses no nordeste brasileiro, as quais nos acostumamos, desde os bancos escolares, a chamar de “invasões” (mais ou menos como o golpe de 1964 foi por muito tempo chamado de revolução) – o que sugere que o termo “invasão” nada mais é do que uma conquista que (ao contrário da invasão da América pela Europa, no dizer dos autores) não deu certo, i.e., na qual os “invasores” foram expulsos. Senão, seriam conhecidos até hoje como “colonizadores”. Noutras palavras, não existe linguagem ideologicamente neutra.

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Talvez a razão pela qual mais detesto resenhas é por que elas são, por definição, reducionistas. Especialmente neste caso, o livro é muito mais do que tudo acima. Então, na impossibilidade de destacar um único trecho como o mais representativo do mesmo, transcrevo, abaixo, a dedicatória – que, por alguma razão, me fez pensar no que Bill Evans sentiu por ocasião da morte prematura e inesperada de Scott LaFaro.

David Wolfe Graeber morreu aos 59 anos de idade, em 2 de setembro de 2020, apenas 3 semanas depois de terminarmos a escrita deste livro, que nos absorvera por mais de 10 anos. Começou como uma distração de nossas obrigações acadêmicas mais “sérias”: uma experiência, quase um jogo, em que um antropólogo e um arqueólogo tentavam reconstruir aquele tipo de diálogo grandioso sobre a história da humanidade que costumava ser tão comum nos nossos campos, mas agora com dados científicos modernos. Não havia regras nem prazos. Escrevíamos como e quando tínhamos vontade, o que veio a se tornar cada vez mais uma atividade diária. Nos últimos anos antes de concluirmos, e conforme o projeto ganhava impulso, não era raro conversarmos 2 ou 3 vezes por dia. Com frequência esquecíamos quem tinha aparecido com essa ou aquela ideia, com esse ou aquele novo conjunto de fatos e exemplos; ia tudo para “o arquivo”, que logo ultrapassou o âmbito de um livro. O resultado não é uma colcha de retalhos, mas uma autêntica síntese. Percebíamos os nossos estilos de pensamento e escrita convergindo pouco a pouco até se tornarem um fluxo único. Percebendo que não queríamos encerrar a jornada intelectual em que tínhamos embarcado, e que muitos conceitos apresentados neste livro se fortaleceriam caso fossem mais desenvolvidos e exemplificados, planejamos escrever as continuações: nada menos que 3. Mas este primeiro volume precisava terminar em algum ponto, e em 6 de agosto, às 21h18, David Graeber anunciou com uma grandiloquência típica do Twitter (e citando vagamente Jim Morrison), que estava pronto: “O meu cérebro se sente atingido por uma entorpecedora surpresa”. Chegamos ao fim como havíamos começado, com diálogo e uma constante troca de rascunhos, lendo, partilhando e discutindo as mesmas fontes, não raro madrugada adentro. David era muito mais do que um antropólogo. Era um intelectual público e ativista de renome internacional, que procurou viver de acordo com seus ideais de libertação e de justiça social, dando esperança aos oprimidos e inspirando inúmeros outros a seguirem esse exemplo. Este livro é dedicado à cara memória de David Graeber (1961-2020) e, como era do seu desejo, à memória de seus pais, Ruth Rubinstein Graeber (1917-2006) e Kenneth Graeber (1914-96). Que descansem juntos e em paz.

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A Tirania do Mérito (2020), de Michael Sandel

Muitas vezes escolho livros por causa de seus títulos e subtítulos. Gosto de nomes provocativos, que contrariem o senso comum, como, por exemplo, Bullshit Jobs – A Theory, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, ou O Intelectual – a Força Positiva do Pensamento Negativo. No último caso, comprovadamente um subtítulo que não fazia parte do original mas que foi agregado à tradução por um editor com um senso apurado de marketing.

Com A Tirania do Mérito, não foi diferente. Afinal, o que poderia haver de errado com a meritocracia, a qual nos acostumamos a saudar como um dos baluartes das sociedades mais justas, tanto reais como utópicas ? Admito que custei um pouco a concordar com o ponto de vista do autor, praticamente só depois da conclusão da leitura de quase todo o texto – sem dúvida uma virtude do mesmo, pois não há nada mais decepcionante numa argumentação do que percebermos muito cedo onde seu autor quer chegar com ela.

Michael Sandel é fisósofo, professor de Harvard, onde ministra o curso Justiça, que também é o nome de seu livro mais conhecido. Em A Tirania do Mérito, disseca a trajetória triunfante da meritocracia na sociedade e na política norte-americanas, década por década, até a desilusão das classes trabalhadoras com aquilo que chama de credencialismo (ao que voltaremos adiante), que culminou com a retórica populista que elegeu Donald Trump.

O livro é repleto de referências a outros autores e fartos dados numéricos, invariavelmente com atribuição de autoria. Como um bom texto acadêmico, só que de leitura convidativa (reader friendly, eu diria), cada página levando naturalmente à seguinte. Um dos tipos de estudo a que Sandel mais recorre é a analise de discursos presidenciais, se valendo da contagem de palavras (tipo Obama disse, em todos os seus discursos, n vezes isto ou aquilo) para delas depreender ênfases da retórica de cada mandatário.

(como advogado do diabo, eu poderia objetar tal tipo de evidência alegando que um uso maior desta ou daquela palavra poderia estar mais ligado ao nível de redundância ou, ao contrário, de síntese de cada discurso. Mas a própria redundância é em si um traço da linguagem publicitária e todo discurso político é, por excelência, propaganda. Além disso, textos sucintos não costumam ser os mais persuasivos. Por tudo isto, entendo que Sandel esteja plenamente investido de correção metodológica)

Antes de se debruçar sobre a história recente da nação mais poderosa do mundo, o autor regride alguns séculos para auscultar a virtude do mérito em teólogos como Martinho Lutero ou Tomás de Aquino. É aqui que formula, ou melhor, menciona, um dos mais interessantes paradoxos. A polêmica diz respeito à promessa de salvação. Mais exatamente, sobre o que podemos ou não fazer em vida para garanti-la.

Por um lado, há quem acredite que a salvação seja aleatória, i.e., que ela pode se estender a quem não a mereça enquanto quem pratica o bem e vive segundo o cânone cristão é condenado à danação eterna por um simples capricho divino (isto, inclusive, oferece uma explicação teologicamente satisfatória para catástrofes naturais e outros eventos trágicos duros de aceitar sob o domínio da infinita bondade de deus).

Já, por outro lado, há também quem pense que o ser humano pode investir em sua futura salvação praticando o bem durante sua existência terrena. Só que esta “versão” enfraquece a onipotência divina, já que, ao “comprar” um lugar no céu por meio de atos aqui na terra, o homem estaria usurpando a deus o controle sobre seu destino.

(já notaram como os debates teológicos são sempre os mais interessantes ? Não é à toa que Richard Dawkins, guru mor dos ateus, dedica grande parte de seu livro Deus, Um Delírio à análise das provas da existência e da não existência de deus. Então, não dá prá simplesmente se descartar a priori qualquer debate teológico como carente de qualquer sentido. Tenho para mim que toda argumentação deste tipo pode ser validada (ou não) com a simples definição prévia de deus como uma entidade imaginária (ou, como diz Dawkins, sobrenatural). Mais ou menos como a formulação de um número, variável ou partícula sem comprovação experimental possível que ajude a resolver problemas e equações nos campos da matemática ou da física)

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Sandel considera o clima meritocrático que se tornou hegemônico a partir dos anos 50 e 60 algo bem recente na educação superior norte-americana. Antes, as três grandes da Ivy League (Harvard, Princeton e Yale) não mais do que perpetuavam uma elite hereditária que praticamente excluía mulheres, negros e judeus. Foi James Bryant Connant, reitor de Harvard que, a partir da década de 40, inspirou e contribuiu para implementar um sistema de acesso que garantisse a todos a igualdade de oportunidade – sistema, este, designado por Sandel como máquina de triagem.

Antes, porém, de narrar a ascensão do mérito com principal vetor de validação nos mundos norte-americano e global, Sandel se detém longamente no estudo do acesso à educação superior. Faz isto para clarear o significado de credencialismo, que é como chama a primazia de credenciais educacionais na hora de atribuir aos vencedores os melhores empregos e salários. Segundo ele, é a falta de credenciais universitárias que permite ao sistema econômico vigente dizer às massas trabalhadoras que não merecem estar no topo por não terem perseguido a melhor educação possível. Ou, noutras palavras, uma forma fácil de lideranças lavarem suas mãos em relação à crescente desigualdade. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois, retornando, por hora, à questão universitária e deixando a arrogância e o ressentimento decorrentes do mérito para mais adiante.

Talvez em nenhum outro lugar como nos EUA a hierarquia entre instituições de ensino superior seja tão exacerbada. A expressão Ivy League, originalmente usada para designar agremiações desportivas de oito universidades, passou também a ser usada para se referir ao grupo de universidades cujos diplomas valem mais do que outros em se tratando de obter uma boa posição no mercado de trabalho. As grandes estrelas da Ivy League são as universidades de Harvard, Yale, Princeton. E, ainda que não pertençam, formalmente, a esta elite, a Universidade de Stanford e o MIT gozam do mesmo status.

Sandel identifica três modos de acesso a universidades de prestígio (presumo que a outras também), aos quais chama de portas da frente, lateral e dos fundos. A entrada pela porta da frente se dá por meio de desempenho em exames democraticamente aplicados; a porta dos fundos é reservada aos filhos de doadores muito ricos, numa versão exemplar da popular máxima pagando bem, que mal tem ?; já a porta lateral é a grande brecha através da qual a índole meritocrática do acesso (ou por que se sabe muito, ou por que se tem muito) é francamente corrompida. Tanto que merece um parágrafo totalmente dedicado a ela.

A porta lateral. Existe um mercado muito aquecido para o acesso facilitado às grandes universidades norte-americanas. Operadores que subornam avaliadores e/ou falsificam portfólios acadêmicos e desportivos (sim, pois algumas universidades tem vagas e bolsas reservadas para atletas de elite que venham a integrar suas equipes) e, é claro, cobram muito bem por isto. Sandel cita um escândalo recente em que um desses agentes amealhou uma pequena fortuna obtendo acesso para rebentos medíocres de famílias abastadas a universidades da Ivy League. Técnicos esportivos encheram seus bolsos e um deles, de uma equipe universitária de vela, ganhou notoriedade por usar toda a propina recebida para equipar o time. Com alguma flexibilidade semântica, se pode dizer que, sem sentir vergonha alguma, utilizou a porta lateral com a mesma lógica da porta dos fundos.

Mas as falhas deste sistema supostamente meritocrático não se resumem a facilidades de acesso. Mesmo quem entra pela porta da frente pode recorrer a um exército de profissionais (conselheiros educacionais) cujos serviços ampliam as chances em exames de acesso não fraudados. E aqui, mais uma vez, quem tem mais leva vantagem. Quem tem mais dinheiro e/ou tempo para estudar. É preciso um certo cuidado ao se comparar sistemas educacionais como o norte-americano com o brasileiro, pois apresentam diferentes peculiaridades. Neste caso, no entanto, é razoável se dizer que, mesmo aqui, um estudante de classe média com tempo de sobra para estudar e pais que possam pagar um cursinho pré-vestibular (por vezes mais caro do que boas escolas particulares) costuma ter mais chances num vestibular ou ENEM do que aquele que trabalha para contribuir com a renda familiar e cursa o ensino médio no turno da noite.

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Torno aqui à pergunta inicial, que atiçou minha curiosidade pelo livro, a saber, o que poderia, afinal, haver de errado com a meritocracia ?. Pela corrupção, descrita por Sandel, nos mecanismos de acesso ao ensino superior, poderíamos inferir que o problema com a meritocracia seria meramente o de que, face a alguns obstáculos, explícitos ou não, ela raramente ou jamais se realiza plenamente.

(isto faz lembrar as célebres falhas de mercado (monopólios, informações privilegiadas, etc.), por causa das quais, para seus defensores, os mercados dificilmente realizam com perfeição sua vocação de árbitros supremos)

Só que, para Sandel, o buraco é mais embaixo. Logo no início da obra, diz que um dos principais problemas da meritocracia é o de que vencedores geralmente acreditam que chegaram ao topo por mérito próprio, desconsiderando fatores importantes como vantagens nas condições de largada ou mesmo a sorte que tiveram. Como consequência, passam a desprezar, ainda que veladamente, os perdedores, os quais consideram desprovidos de talentos e/ou que não se esforçaram suficientemente. Tão martelada é esta narrativa que, com o passar do tempo, os próprios perdedores passam a nela acreditar. É desta forma que, para Sandel, meritocracia gera arrogância e humilhação (e, logo, ressentimento). Também para ele, foi predominantemente este ressentimento contra as elites credenciadas que nutriu, entre trabalhadores, a candidatura e a eleição de Donald Trump.

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Mas basta, por hora, de análises e denúncias. Face a tudo isto, o que tem a dizer Sandel de propositivo para combater o problema que tão bem delineia ? Para começar a falar disto, devo trazer aqui uma informação que deliberadamente omiti até agora, a saber, o subtítulo (original) o que aconteceu com o bem comum ?

São várias as medidas sugeridas mas não implementadas. Uma das primeiras que aparece, para fazer frente à máquina de triagem que gera tanta arrogância e humilhação, seria a criação de uma loteria acadêmica, que distribuísse as vagas existentes exclusivamente por meio de sorteio. Imagino o que devem estar pensando. Logo que li, também fiquei chocado. Para um liberal (como adoradores do mercado gostam se ser chamados), isto soa como a abolição de toda propriedade privada. Mas pensando melhor, até que, para alguém que vê o mérito como origem de tantos vícios, faria muito sentido. Ou, pelo menos, contribuiria para restaurar um senso de gratidão (pelo que faz alguém chegar ao topo) que, segundo Sandel, foi perdido nalgum momento ao longo do caminho.

Também são sugeridas medidas de natureza fiscal. Antes de apresentá-las, é preciso dizer que Sandel reconhece a recuperação da dignidade do trabalho como uma prioridade absoluta, já que a mesma vem caindo aceleradamente, em proporção inversa ao crescimento da desigualdade. A desaceleração e inversão dessas tendências passa inevitavelmente por medidas fiscais, tanto na arrecadação como na distribuição dos recursos arrecadados.

É sabido por todos que, não só nos EUA, a taxação sobre o trabalho é muito maior do que aquela sobre o capital acumulado. A recuperação da dignidade do trabalho passa obrigatoriamente pela inversão desta matriz tributária. É aqui que entusiastas do acúmulo de capital dirão que, ora, capital investido gera emprego; outros podem até invocar a Curva de Lafer (mazela da globalização que não vou explicar aqui). Bullshit. A indústria que o capital acumulado mais movimenta é a das finanças.

Finanças. Segundo Sandel, se trata de uma das indústrias mais improdutivas, senão a mais improdutiva dentre todas. Pois capital só gera mais capital, com juros escorchantes cobrados de setores que efetivamente produzem alguma coisa.

(não tenho os dados. Mas Sandel tem. Uma das virtudes de seu livro é ser fartamente documentado, estando todas as fontes lá prá quem quiser conferir)

Então, nada mais justo do que setores improdutivos como as finanças pagarem mais impostos do que os produtivos como o trabalho. Muito mais. Numa espécie de taxação moralizante, como no caso dos “impostos sobre o vício”, de cobra mais impostos de setores como os de tabaco, bebidas alcoólicas e jogos de azar. Não é preciso ter muita informação para se supor, por exemplo, que, no Brasil, o recém descoberto filão das bets opere sob a proteção de um manto de complacência fiscal (pois, senão, não teria crescido tanto).

Outra urgência levantada é a da redistribuição do montante arrecadado. Nos EUA, no passado recente cresceram os recursos repassados a instituições privadas de ensino superior (para custeio da máquina de triagem) enquanto caíram aqueles alocados, por exemplo, à saúde pública. Não quero encher este post de números mas, para quem quiser conhecer, estão todos no livro.

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Tenho essa mania de resenhar quase tudo o que leio. Pode ser um modo de validação de minhas escolhas ? Pode. Mas prefiro acreditar que anseio por compartilhar.

Penso igual a alguns autores que leio (estes, obviamente mais bem informados do que eu). A outros, não. A alguns, não sei: ainda é cedo para dizer. A Tirania do Mérito pertence a esta terceira categoria. Sem que considere, de imediato, um livro fascinante, é, sem dúvida, um grande livro. Bem escrito. Bem documentado. E, sobretudo, que leva a pensar. Eis o ponto: não é preciso concordar com Sandel em tudo (a tal loteria acadêmica, por exemplo, é meio forte até prá mim), desde que se perceba o quadro que ele tão bem descreve.

anotações religiosas (ii): Amor ou religião: o que é mais forte ? ou Para ler Richard Dawkins

O que é mais importante: o amor ou o sentimento religioso ? Tenho para mim que seja o amor. Por uma razão muito simples. É mais comum pessoas inteligentes relevarem suas convicções religiosas em nome de um grande amor do que o contrário. Ou já viram alguém deixar de procurar seu objeto de amor por causa de princípios religiosos ? Tudo bem que no caso específico de alguns fanáticos isto possa, de fato, acontecer, mas não é, definitivamente, a evidência que mais encontramos ao auscultar ao redor. Não só pessoas de religiões diferentes conseguem se amar mutuamente, como ateus podem se afeiçoar profundamente a pessoas cuja fé religiosa contraria frontalmente seus princípios. Tanto as religiões reconhecem a força avassaladora do amor que muitas delas não hesitam em abraçá-lo como uma de suas principais bandeiras.

Tais relacionamentos amorosos são não apenas normais (no sentido estatístico), mas neles não há nada de errado ou particularmente acintoso. É como se houvesse valores mais profundos, que realmente importam, do que meras opções pela fé numa denominação religiosa ou noutra. Mais ou menos como naqueles casamentos em que cada um torce por um time distinto de futebol, por vezes rivais entre si, e se divertem com isto.

Richard Dawkins, o mais célebre guru dos ateus, conta, em seu livro Deus, um Delírio (do qual voltarei a falar), que recebeu uma carta de um ateu que se dizia apaixonado por uma pessoa religiosa, que julgava muito boa, pedindo conselho sobre o que fazer a respeito – ao que Dawkins respondeu perguntado se a pessoa era suficientemente boa para o missivista. Sim, ele respondeu isto. Com o que, por outro lado, não posso concordar, pois podemos nos apaixonar por pessoas que professem fés diametralmente opostas a tudo em que acreditamos ou não. Pois o que realmente importa em alguém não tem nada a ver com para que deus (ou deuses) a pessoa reza.

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Richard Dawkins talvez seja mais conhecido por ter sido o “advogado do diabo” no processo de canonização de Me. Tereza de Calcutá. Pois o complexo rito conduzido pela igreja católica para a proclamação de um novo santo, que inclui uma duvidosa contagem de milagres comprovados, também envolve um debate em que um detrator eminente, vulgarmente conhecido como “advogado do diabo”, é convidado a contra-argumentar com uma autoridade eclesiástica a propósito da santidade ou não do candidato. No caso de Me. Tereza, Dawkins demonstrou, em vão, que a religiosa, alcunhada de Anjo da Morte, não só deixava que moribundos, privados de cuidados médicos adequados, perecessem em sua missão humanitária como, também, colaborava com regimes totalitários opressores e genocidas.

Nunca procurei nenhuma obra de Dawkins, talvez por pensar que meu ateísmo não precisava disto e também por deplorar, em geral, todo tipo de literatura proselitista. O modo, no entanto, como Deus, um Delírio me caiu nas mãos é quase humorístico. Estava eu num shopping fazendo hora quando meus olhos foram atraídos para o volume, exibido com destaque na vitrine de uma livraria, pasmem, de índole religiosa. Do tipo que foram, por exemplo, noutra época, a Vozes ou as Paulinas. Ávido de algo para ler enquanto esperava e sabedor da reputação do autor, adquiri, então, o livro na plena convicção de que ele estava ali por engano, ou seja, que seu título fora equivocadamente entendido como um elogio à divindade. Mais ou menos como um livro de auto-ajuda. Tenho certeza de que o proprietário da pia livraria se arrependeria amargamente de comercializar o livro, ainda mais com destaque, se sequer suspeitasse de seu conteúdo.

A leitura se revelou cativante. Seus argumentos eram, mais do que convincentes, eloquentes. Tanto que cheguei sem grande esforço à última página, pronto para resenhá-lo – o que, no entanto, deixei de fazer na época por um vago receio de ofender pessoas queridas com crenças distintas das minhas. O que nos leva diretamente a um dos pilares da argumentação de Dawkins, a saber, a ideia largamente aceita de que religião, assim como gosto ou política, não se discute. Com efeito, quase sempre basta uma simples alusão à fé professada por alguém para que interessantíssimas discussões, plenas de argumentos lógicos, sejam abafadas sob um manto de silêncio e pretenso respeito às crenças de cada um. Dawkins deplora este tipo de atitude, capaz de esvaziar os melhores debates, afirmando que religião se discute, sim.

Digna de nota é, também, a parte que ilustra como a religião pode, desde o antigo testamento até hoje, legitimar genocídios cometidos em nome deste ou daquele deus. Lá, há menção a um experimento conduzido em Israel em que crianças, confrontadas com a descrição bíblica do massacre pelos hebreus dos infiéis que habitavam a cidade de Jericó, acham tudo perfeitamente natural, que “fizeram o que tinha que ser feito” (!).

E por falar em crianças, Dawkins considera hediondas expressões tais como “crianças católicas” ou “crianças protestantes”, já que nenhuma criança possui o entendimento necessário para professar qualquer tipo de fé religiosa. Logo, em seu entender seria muito mais correto se dizer, ao invés, “crianças de pais católicos” ou “crianças de pais protestantes”. No mesmo capítulo, afirma que a conversão de crianças a um culto ou outro é uma prioridade de qualquer religião, já que todas reconhecem ser bem mais difícil convencer um adulto, em pleno gozo de suas faculdades lógicas, a começar a acreditar em entidades sobrenaturais.

Face a angústia diante do desconhecido que a morte costuma trazer (já que ninguém jamais voltou do outro lado para dizer como é lá), Dawkins propõe a celebração dos mistérios desta vida (i.e., da única que comprovadamente existe) sublinhando os limites de nossa frágil percepção. Da seguinte maneira. A luz que enxergamos se situa numa faixa muito estreita de frequências. Isto por que não vemos frequências que se situam abaixo do infra-vermelho ou acima do ultra-violeta. Ou ainda: só enxergamos o que não é muito grande nem muito pequeno. Com microscópios óticos, podemos ver uma célula, mas não um átomo. Já no outro extremo da escala de grandezas, podemos divisar o que está até a linha do horizonte ou, no máximo, com telescópios óticos, planetas que orbitam em nosso sistema solar, mas não o que há em torno de outras estrelas. Para sondar o que existe além de distâncias astronômicas, daquelas que se medem em anos-luz, precisamos recorrer a outros meios, tais como rádio-telescópios.

Para representar tais limitações de nossa percepção, o “advogado do diabo” recorre a uma analogia poderosíssima ao afirmar que muito pouco é dado a se conhecer do mundo quando o mesmo é observado através da estreita fenda de uma burka.

São estas fronteiras do conhecimento determinadas pelos limites de nossa percepção, tais como frequências invisíveis, partículas subatômicas ou os confins do universo, que servem de combustível à ciência e provocam a imaginação humana – razões de sobra, no entender de Dawkins, ele próprio um cientista, para encontrarmos suficiente estímulo ao intelecto na única existência que conhecemos.

Citei Richard Dawkins anteriormente, ainda que de passagem, aqui (penúltimo parágrafo), aqui (último parágrafo) e aqui (nono parágrafo).

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Religiões são narrativas que, assim como as drogas ou o álcool, servem para aplacar o sofrimento humano e a angústia face ao desconhecido. Está na raiz da aceitação da crescente desigualdade social, já que é mais fácil a um excluído aceitar sua condição se houver uma promessa de uma vida melhor após sua morte. Não fosse o consolo da religião, bem como o dos outros supracitados agentes, o grande levante dos mais pobres contra os mais ricos talvez já tivesse ocorrido há muito tempo.

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Há também o problema do sincretismo. No caso brasileiro, se originou como um expediente que permitia a escravos, através da assimilação à religião oficial ou, ao menos, aceita, de cultos afro proscritos e, em razão disto, relegados à clandestinidade. Mais ou menos como cristãos nas catacumbas. Não é, todavia, o que se tem hoje. É comum pessoas batizadas ou iniciadas em religiões mainstream serem concomitantemente adeptas ao espiritismo, a cultos afro, a linhas espirituais de origem oriental e, não raro, à magia, numa espécie de politeísmo ecumênico. Ou, noutras palavras, atualizando um velho provérbio para “rezando bem, que mal tem ?”. Mais ou menos como se, para garantir mais dádivas e/ou maior proteção, fosse possível, como um especulador que distribui seus ativos entre várias linhas de investimento, flertar ao mesmo tempo com diferentes deuses.

Tal situação inevitavelmente me traz à memória as admoestações do temido Pe. Fonseca (quem estudou no Colégio Anchieta de Porto Alegre nos anos 70 conhece), que vedava a todo católico a opção por um pacote multi-espiritual. Falei disto aqui, no quarto parágrafo.

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E como não há nada melhor para concluir um texto pesado, por força de seu assunto, vai aqui um episódio divertido. Quando, faz já algum tempo, disse a um de meus filhos que, embora me considerasse naquele momento um ateu, não descartava a hipótese (talvez para o horror de outros ateus) de que, quando irremediavelmente velho, com o espírito mais frágil, me sentindo desesperançoso e angustiado com a proximidade da morte, venha a abraçar uma fé que me sirva de consolo e prometa um futuro melhor – ao que meu filho prontamente retrucou: “- Mas isto não vale ! É como trapacear com deus.” Ri muito na hora e acho engraçado até hoje. O fato me remete imediatamente a duas coisas: o delicioso conto moral de Edgar Allan Poe intitulado Nunca aposte sua cabeça com o diabo e o popular meme deus está vendo.

(nem depois de ser severamente censurado por um douto amigo (“Non sequitur !”, me disse ele) me sinto culpado por essa mania, mais forte do que eu, de tecer livre-associações . Falando nisso, lembram da parábola do escorpião atravessando o rio sobre o casco da tartaruga, no grande documentário de Orson Welles Verdades & Mentiras ?)

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Richard Dawkins

Maestros, obras-primas e loucura (2008), de Norman Lebrecht

Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.

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O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.

Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.

As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.

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O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.

Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.

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É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.

Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?

A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.

Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.

Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.

Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.

Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.

Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.

Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.

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Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.

Contra Amazon (2020), de Jorge Carrión

Já disse em algum lugar que, para manter o hábito da leitura, costumo intercalar entre cada dois grandes livros outros bons que me caiam nas mãos, invariavelmente precedidos por boas recomendações. Contra Amazon é um destes. Ostentando o honesto subtítulo e outros ensaios sobre a humanidade dos livros, se trata de uma coletânea de textos do escritor, crítico e jornalista espanhol Jorge Carrión, tendo como apêndices dois pelo próprio Carrión, à guisa de post scriptum, sobre o impacto da Covid-19 sobre o sensível mercado livreiro, bem como outros por autores diversos, brasileiros em sua maioria, ligados ao ramo editorial e ao comércio de livros.

Escrito e publicado em 2017, o ensaio que dá nome ao volume é um manifesto conclamando amantes dos livros a não comprar no gigante do comércio virtual, cujas práticas são consideradas, com razão, predatórias em relação à rede mundial de pequenas livrarias e à diversidade da atividade editorial. Como exemplo do modo “sacrílego” com que a Amazon trata os livros, Carrión cita uma competição de robótica promovida pela empresa em que robôs deveriam recolher no menor tempo possível um patinho de borracha, um pacote de biscoitos, um ursinho de pelúcia e um livro.

Lido o primeiro ensaio, estupendo, a coletânea parece, por um momento, decepcionante, pois, em lugar de uma esperada continuação da bem articulada argumentação contra o monopólio virtual do comércio de livros, topamos com uma série de textos, conquanto igualmente excelentes, sobre bibliotecas e livrarias ao redor do mundo. Mas não por muito tempo. Pois cada ensaio, incluindo duas entrevistas monumentais, melhor definidas como conversas entre o autor e seus entrevistados, vale como uma verdadeira crônica de viagem, por vezes explorando recantos (invariavelmente livrarias e bibliotecas) de grandes metrópoles; por vezes sem sair do lugar.

Carrión é um viajante compulsivo. Que precede cada uma de suas explorações por uma cuidadosa pesquisa em livros de viagem e traça uma topografia dos lugares em que esteve através de suas livrarias. Muitas vezes, procura ver cidades pelos olhos de autores que nelas vivem ou viveram – como é o caso de Londres, Genebra e a ilha de Capri, respectivamente, por Ian Sinclair, Jorge Luis Borges e Curzio Malaparte.

Apaixonado pelos livros e pela leitura, Carrión tem especial apreço pela categorização. Assim, são examinados em profundidade diversos pares contrastantes, tais como livrarias X bibliotecas; livrarias de livros novos X usados (numa adorável conversa, em que cada um dos interlocutores defende um tipo específico de comércio) e bibliotecas públicas X pessoais. Nestas dicotomias, são discutidos à exaustão critérios de catalogação – ou a ausência dos mesmos.

Aqui e ali, a figura do livreiro é exaltada. Como aquele que sabe exatamente o que tem em suas prateleiras, independentemente de qualquer consulta a sistemas informatizados. Há também um ensaio sobre bibliotecas fictícias como a de Dom Quixote (Cervantes), a do Náutilus (Verne) e a de Babel (Borges). Dentre estas, notamos a falta da mítica biblioteca incendiada em O Nome da Rosa (Eco).

No périplo pelas livrarias do mundo, ganham destaque aquelas que ostentam alguma singularidade ou lançam mão de recursos criativos para atrair clientes (e turistas) num ramo de comércio que luta para sobreviver. Tais como, por exemplo, a cobrança de ingressos, espaços arquitetônicos diferenciados, facilidades multimídia e outras atividades que não o comércio exclusivo de livros. Também ficamos sabendo de curiosidades como a existência, no México, do Abutre de Livros, que caça tesouros ocultos em bibliotecas dos que já se foram (como bem diz Carrión, uma figura que só poderia existir no México, com sua peculiar cultura em relação à morte), ou dos revolucionários franceses de 1789 que arrancavam os livros das encadernações luxuosas, pesadas e padronizadas, emblemáticas da aristocracia, que atrapalhavam sua leitura.

Então, se você ama os livros e toda a cultura e os espaços que os cercam, não deixe de ler Contra Amazon. De preferência, antes de sua próxima viagem. Pois, com certeza, ela será diferente.

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Atualização: ironicamente, dá para comprar Contra Amazon, impresso ou como ebook, na Amazon.

Sociedade do cansaço (2010), de Byung-Chul Han

O sul-coreano Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta, professor da Universidade de Artes de Berlim. Tendo estudado filosofia na Universidade de Friburgo e teologia e literatura alemã na Universidade de Munique, doutorou-se em Friburgo em 1994 com uma tese sobre Martin Heidegger. Seus ensaios se constituem como críticas ao hiperconsumismo, à tecnologia e à sociedade do trabalho.

Sociedade do cansaço (Vozes, 2017) é um pequeno grande livro. Como quase todo bom livro de filosofia, foi escrito originalmente em alemão (Müdigkeitsgesellschaft, 2010).

Como todo bom livro de filosofia, também é repleto de citações, incluindo Adorno, Agamben, Arendt, Aristóteles, Baudrillard, Benjamin, Deleuze, Ehrenberg, Esposito, Foucault, Freud, Gadamer, Heidegger, Hendke, Kant, Kerényi, Marx, Nietzsche, Platão, Schmitt e Sennett. Com esse mar de referências, um índice onomástico até que cairia bem, mesmo ao fim de suas suas modestas 120 páginas – 40 das quais contendo, como anexo, a transcrição de uma conferência, totalmente afeita ao resto do volume, chamada Sociedade do esgotamento.

Como todo bom livro de filosofia, Sociedade do cansaço não explicita pronta e univocamente a que veio. Antes de definir claramente suas categorias sem deixar qualquer sombra de dúvida, Han prefere, ao invés, lograr profundidade gradativamente rodeando o tema, ao modo de um redemoinho, conduzindo o leitor neste mergulho vertiginoso.

Deste modo, o significado de sociedade do cansaço ou do desempenho vai se delineando aos poucos por meio de comparações com o modelo anteriormente vigente, a saber, a sociedade da disciplina ou da vigilância. Logo no início do livro, aprendemos que as doenças típicas do século 21 são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e a síndrome de burnout (SB). No segundo capítulo, vemos que a sociedade disciplinar de Foucault, constituída de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a de hoje, cujos lugares mais emblemáticos são academias de fitness, prédios de escritórios, aeroportos, bancos, shoppings e laboratórios de genética. Que enquanto a sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes, a do desempenho produz, ao contrário, depressivos e fracassados.

Aos poucos, vai deixando claro para o leitor que, enquanto o trabalho no regime anterior era dominado pelo imperativo do dever, hoje a palavra de ordem é o (verbo) poder. Então, se antes o sujeito era explorado por um algoz externo, hoje seu algoz passou a ser ele mesmo. Esta substituição do dever pelo poder caiu nas graças do hipercapitalismo por que o último incrementa em muito a produtividade em relação ao primeiro. Com efeito, nada é mais eficiente do que um indivíduo empenhado em tirar o máximo de si. Muito mais do que qualquer outro submetido a um feitor, gerente ou fiscal. Por que a coação dá lugar à liberdade. De tal modo que o relógio ponto desapareceu para dar lugar a espaços laborais que não mais distinguem entre trabalho e lazer. Laptops, home offices, dispositivos móveis. Hoje, todo tempo e todo lugar servem para trabalhar.

A conferência transcrita ao final do livro é sobre a falta de festa e celebração na vida atual, tendo sua culminância nas afirmação de Aristóteles de que “o homem não nasceu para trabalhar”, que “quem trabalha não é livre” e que “são livres apenas os poetas, filósofos e políticos” – com a ressalva de que, hoje, até a política deixou de ser livre, por que políticos, reduzidos a administradores da economia doméstica ou a contadores, sucumbiram à necessidade e à utilidade, deixando de lado a política no sentido aristotélico, que consiste em mudar a sociedade em busca da beleza e da justiça. Conclui que, hoje, políticos trabalham muito, mas não agem.

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Estranhei que o livro não mencionasse a dicotomia, explorada à exaustão por Neil Postman em Amusing ourselves to death, entre as distopias de Huxley e Orwell, respectivamente, em Admirável Mundo Novo e 1984, já que ambas representariam perfeitamente a oposição entre as sociedades da disciplina e do desempenho abordadas por Han. Com a única diferença, talvez, que, enquanto na obra-prima de Huxley o autocomprometimento com o desempenho é logrado por meio de manipulação genética, na sociedade descrita por Han se chega ao mesmo através de determinantes comportamentais.

Sempre que mergulho na leitura de textos filosóficos, me sinto mais ignorante. Isto por que é praticamente impossível tangenciar o pleno significado de cada frase, tamanho o corpo de referências implícitas, acessíveis somente aos que dedicaram tempo e esforço, academicamente ou não, ao conhecimento da disciplina. Mais ou menos como é impossível a qualquer leitor da literatura de ficção universal fruir todas as entrelinhas de uma obra sem uma ideia básica das histórias contadas na bíblia, mãe de todo imaginário ocidental (esta ideia não é minha, mas – pasmem ! – de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo).

Ainda assim, insisto na leitura. Não só pela altíssima densidade lógica da filosofia – com seus significados abertos equiparáveis, talvez, apenas aos da poesia – mas, principalmente, por que ninguém consegue tão bem como os filósofos contemplar com suficiente distância crítica a época em que estão imersos.

Sobre teorias conspiratórias e outros quetais

Meus filhos descobriram a dialética. Gostam de conversar sobre livros que leio. Dia desses, quando, falando sobre O Intelectual (2006), de Steve Fuller, mencionei que, segundo aquele autor, o modus operandi de todo intelectual é formular continuamente teorias conspiratórias, as quais não seriam, a priori, nem boas nem más, fui advertido por um deles a tomar cuidado quando proferisse esse tipo de coisa para não ser confundido com terraplanistas ou antivacs (tive que perguntar a ele o que era um antivac) e, consequentemente, ridicularizado.

Na hora só achei graça (ele está assim depois de ter lido A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), de Thomas Kuhn; também tive, na juventude, meu momento de fascínio pela razão). Aquilo ficou martelando em minha mente. Como a bela expressão teoria da conspiração (tautológica, já que toda teoria é, por definição, conspiratória) assumiu um caráter tão pejorativo ? Será que ela já nasceu assim, como uma categoria capaz de abranger toda formulação estapafúrdia ? Careço de subsídios etimológicos para responder adequadamente. Mas que é intrigante, é. Súbito, me pareceu natural que Fuller procedesse à reabilitação semântica do termo, do mesmo modo como elogiou os sofistas, oponentes de Sócrates, detratados por Platão.

Toda tentativa de explicação de fenômenos naturais e sociais que ocorrem constantemente à nossa volta surge como uma teoria conspiratória. Explicar algo é encadear premissas em silogismos mais complexos. Se as premissas forem falsas é outra história, mas nenhuma teoria surge de outra forma. Então, de pouco importa se tantas formulações, pejorativa e inadequadamente chamadas de conspiratórias, forem ridículas se ao menos algumas delas servirem para termos uma compreensão melhor de qualquer coisa.

A história, por exemplo, é resultado de conspirações validadas pela aceitação ampla. Não me refiro aos fatos, que são, obviamente, verdadeiros ou falsos. Mas toda correlação entre eles é uma narrativa condicionada pelo espírito dos tempos e necessariamente ideológica – de modo que épocas e grupos distintos podem oferecer narrativas radicalmente diferentes sobre os mesmos fatos.

Todo esse relativismo é ruim ? Não acho. Pois é justamente do conflito entre narrativas contrastantes que podemos esperar algum progresso (ou, é preciso admitir, retrocesso) nas relações humanas.

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A correlação espúria. Toda teoria conspiratória original procura estabelecer alguma correlação entre fatos verificáveis até então não percebida. Por vezes, acerta. Em todos os outros casos, temos o que se convencionou chamar de correlação espúria. Um exemplo. Já demonstraram que, toda vez que um filme com Nicholas Cage é lançado, [ocorrem/se evitam] tragédias. É razoável supor que boa parte da pesquisa científica consiste em procurar aleatoriamente correlações para depois descartar as que forem espúrias.

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Em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (1974), Robert Pirsig narra uma saga de autoconhecimento ambientada numa viagem de motocicleta que empreendeu com seu filho de 11 anos na garupa pelo oeste norte-americano. A parte chata do livro (acreditem que há), mais linear, descreve seu progresso pela paisagem. Em meio a isto, intercala, com profundas incursões pela filosofia (“a mãe de todas as disciplinas”), a degradação de sua crença no método científico e, como ele mesmo chama, na “Igreja da Razão”.

Numa das melhores partes deste discurso fascinante que entremeia seu relato de viagem, Pirsig se debruça demoradamente sobre a origem das hipóteses, a seu ver o calcanhar de Aquiles do método – já que este, em momento algum, fornece qualquer pista sobre o surgimento das mesmas.

” A formação das hipóteses é a fase mais misteriosa do método científico. De onde elas vêm, ninguém sabe. A pessoa está sentada num lugar qualquer, pensando na vida, e de repente – zás ! – passa a entender uma coisa que não entendia antes. Até ser testada, a hipótese não é verdadeira, mas ela não provém de experiências. Origina-se num outro lugar. Disse Einstein:

O homem tenta elaborar para si mesmo, do modo que melhor lhe pareça, uma descrição simplificada e inteligível do mundo. Depois, tenta até certo ponto substituir o mundo da experiência por esse universo por ele construído, para poder dominar toda a natureza… Ele faz desse universo e de sua construção o centro de sua vida emocional, para encontrar, assim, a paz e a serenidade que não consegue dentro dos limites a ele impostos pelo turbilhão da experiência pessoal. O objetivo último a ser atingido é chegar àquelas leis elementares universais a partir das quais o universo foi construído a partir de pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza até essas leis; apenas a intuição, baseada no conhecimento afetivo da experiência, pode conduzir a elas…

Intuição ? Afetividade ? Palavras estranhas para descrever a origem do conhecimento científico. “

Pirsig se diverte relatando ter percebido diversas vezes, no laboratório, que o que pareceria ser a parte mais difícil do trabalho científico era, na verdade, a mais fácil. Que ao testar uma primeira hipótese já lhe vinha a mente um verdadeiro enxame de novas hipóteses, as quais, por sua vez, ao serem testadas, conduziam necessariamente a outras – de tal modo que se multiplicariam indefinidamente se não fossem descartadas após cada teste. Em dado momento, chegou a formular, jocosamente, uma lei segundo a qual “o número de hipóteses racionais que podem explicar qualquer fenômeno dado é infinito”.

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Fuller, em seu livro supracitado, categoriza os entes pensantes em filósofos, cientistas e intelectuais para, então, fazer distinções entre as categorias, tais como Cortázar em Histórias de Cronópios e de Famas (1962). Ainda que Cortázar nunca tenha definido precisamente o que seria um cronópio ou um fama, é improvável que qualquer leitor minimamente sensível não consiga entender ao que ele esteja se referindo ao tipificar, por meio de exemplos, representantes de cada categoria.

Sei que tais categorias não são estanques entre si, podendo um mesmo indivíduo apresentar simultaneamente traços de mais de uma delas. São, ainda assim, bem úteis para fins didáticos. Tal é o caso, por exemplo, dos autores de ficção científica. Sem se preocupar, enquanto intelectuais, com a fundamentação teórica do que dizem, deitam formulações – como o “gelo 9”, de Kurt Vonnegut, em Cama de Gato (1963), a partir de cuja enunciação cientistas lançam mão de todo seu arsenal teórico para validá-las ou, ao invés, refutá-las.

Nesta longa digressão que se assemelha, no máximo, a um esboço, nada melhor para concluir do que a arrebatadora metáfora de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo, que compara, em sua obra Deus, um Delírio (2006), a percepção humana ao que se é dado a ver através da estreita janela de uma burka. As frequências de luz visíveis, por exemplo. Nada suspeitamos do que possa ser “iluminado” por radiações inferiores ao infra-vermelho ou superiores ao ultra-violeta. Do mesmo modo, não enxergamos o que é pequeno demais (o átomo) ou grande demais (a “terra plana”), nem o que se move rápido demais (a luz). Então (conclui), temos que recorrer à ciência para desvendar tudo aquilo que se situa além dos limites de nossa percepção.

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PS: tenho enorme curiosidade por conhecer o que Dawkins teria a dizer sobre o ceticismo de Pirsig.

O Intelectual – o poder positivo do pensamento negativo (2005), de Steve Fuller; ou Confissões de um leitor incompetente

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

Steve Fuller, em O Intelectual

Estamos aqui claramente diante de mais uma não resenha – ou, se preferirem, anti-resenha. Explico. Dentre os livros que nos caem nas mãos, há uma categoria que reúne todos aqueles que se afiguram como demasiado complexos para nossa compreensão. Como, por exemplo, Austeridade – A História de uma Ideia Perigosa (2013), de Mark Blyth, cujo argumento fascinante não foi, todavia, suficiente para que eu, abatido pela flagrante insuficiência de conhecimento econômico, persistisse em sua leitura.

O Intelectual (2005), do filósofo Steve Fuller, claramente pertence a este grupo de obras que desafiam nossa compreensão, desta vez por uma virtuosa combinação de pressupostos filosóficos (vai dos gregos aos dias de hoje) com uma linguagem compacta, com altos índices de síntese e densidade lógica. Só que, desta vez, não me deixei intimidar pela incompreensão inicial de muitas passagens (a bem dizer, a maioria delas), chegando diligentemente ao final tão somente para reiniciar imediatamente a leitura, desta vez mais pausada e sublinhando muita coisa importante que, na pressa da primeira leitura, acabara deixando para trás.

Grandes obras são assim, abertas, revelando novas nuances a cada releitura, principalmente de acordo com o amadurecimento do leitor. Não envelhecem com o passar das décadas mas, ao contrário, se resignificam e, com isto, enriquecem. Querem um exemplo ? 2001, de Kubrick, que vi pela primeira vez na adolescência, quando foi lançado, e que até hoje me fascina e intriga.

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Devo confessar, inicialmente, que o que me atraiu em O Intelectual foi seu singular subtítulo, “o poder positivo do pensamento negativo”, que de imediato me soou como a antítese de uma manual de autoajuda. Espécie de Paulo Coelho (de quem só conheço a reputação, pois nunca li) às avessas ou, no mínimo, um elogio à rabujice. Caí na cilada. Isto por que tal locução – provavelmente a interferência de algum editor na tentativa de conferir glamour a uma obra outrossim hermética, destinada a especialistas – sequer pertence ao título original. É bem verdade que o título poderia ser, como é comum em textos filosóficos, O Elogio do Intelectual –  mas devemos reconhecer que, neste caso, seria bem menos apelativo. Façamos, pois, esta pequena concessão ao marketing.

Sou assim. Me encanto facilmente com promessas, por vezes elusivas, contidas em nomes de livros. Às vezes me dou bem, cavocando tesouros como Bullshit Jobs: a Theory, de David Graeber, ou The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, de Berg & Seeber. Noutras, nem tanto, como no supracitado Austeridade. No presente caso, deve ser dito, em favor do criativo e atraente subtítulo aposto à edição brasileira de O Intelectual, que a expressão, mais do que uma nota de orelha rabiscada às pressas, ao menos denota a impressão de que só pode ter sido imaginado após uma leitura extensiva e dedicada dos argumentos de Fuller.

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A primeira coisa que o autor declara, na introdução, é que “O Intectual segue de certa forma a estrutura de O Príncipe, de Maquiavel, o famoso livro de conselhos do século 16 sobre a arte de governar”. De fato, o tom aforístico (“o príncipe/intelectual deve…”) é o mesmo. Mas termina aí qualquer semelhança. Pois, enquanto o livro de Maquiavel, em que pese a ácida perspicácia do autor, tem uma linguagem direta e unívoca, capaz de ser entendida por qualquer escolar (sem dúvida um atributo invejável em textos de teor filosófico),  já O Intelectual, não. Nele, frases longas, com argumentos complexos ricamente detalhados, são uma constante – de tal modo que é praticamente impossível alcançar uma compreensão mínima do que recém foi lido sem retroceder frequentemente ao início de cada frase ou parágrafo. Não se deixem, portanto, enganar pela aparência: se trata de um livro curto (ca. 150 páginas), mas de leitura demorada.

Provavelmente o melhor modo de transmitir uma visão global d’O Intelectual seja através de seu sumário. Não riam – pois, porquanto a frase anterior possa parecer francamente tautológica, índices são amiúde elusivos. Tal não é o caso, no entanto, n’O Intelectual, onde cada tópico representa da forma mais clara possível o que encontraremos em cada seção. Ao sumário, então.

O livro é dividido em 3 partes de aproximadamente 50 páginas cada uma. Na primeira, são apresentadas quatro teses sobre intelectuais, a saber, (1) que intelectuais nasceram de pé atrás; (2) que  intelectuais sofrem de ligeira paranoia; (3) que intelectuais carecem de uma plano de negócios e (4) que intelectuais procuram a verdade total. A segunda consiste num longo diálogo entre o intelectual e o filósofo. Na terceira, são respondidas perguntas usuais sobre intelectuais como, por exemplo, “Como o intelectual adquire credibilidade ?”, “O que leva o intelectual a escolher uma causa para defender ?” ou “Por que os intelectuais parecem prosperar no conflito ?”. Esta parte inclui, também, uma tipologia dos intelectuais e seções francamente aforísticas sobre “Como intelectuais devem se relacionar [respectivamente] com políticos, acadêmicos, cientistas e filósofos”. É nestas últimas que Fuller melhor estabelece, em contraste com as supracitadas categorias de pensadores (aqui entendidos não no sentido restrito de filósofos mas mais abertamente, como homens de ideias), uma definição por aproximação do que vem a ser, afinal, um intelectual.

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Como já disse, a leitura de O Intelectual pressupõe o conhecimento prévio, ou pelo menos uma visão abrangente, da história da filosofia, de Sócrates e Platão às escolas contemporâneas, passando pela Idade Média, pelo Iluminismo e pelos idealistas alemães, até chegar à ruptura do bloco socialista, ao neoliberalismo e ao terrorismo – conceitos e categorias aos quais Fuller, em sua linguagem compacta, se refere constantemente sem, no entanto, explicar a não ser por definições ultra sintéticas, de difícil compreensão para não portadores, como eu, de uma formação filosófica ampla e detalhada.  Reflexões sobre o espírito da ciência de cada época também são uma constante no texto.

Dentre as passagens mais significativas com que me deparei na primeira parte, destaco:

o esforço de reabilitação dos sofistas, opositores clássicos de Sócrates, cuja dimensão podemos depreender de passagens como

“O sinal mais evidente de que os juízos históricos dificilmente voltam atrás é o destino de grupos específicos que dão nome a vícios e deficiências da humanidade em geral: “hunos” e “vândalos”, “anarquistas” e “fascistas” são alguns deles. Para o intelectual, o mais relevante grupo dessa categoria é constituído pelos “sofistas”, os grandes reivindicadores da razão nos tempos da antiga Atenas.”

ou

“[…] reabilitar os sofistas atualmente está fadado a se tornar uma luta inglória.”

Não obstante, é precisamente o que Fuller faz ao longo de mais de dez páginas, que incluem pérolas como

“No mundo de hoje, os sofistas estariam à vontade em seminários de treinamento de gerência de negócios e escrevendo livros de autoajuda. Um Sócrates moderno teria rotulado tais indivíduos como “gurus” e reclamado por suas obras estarem pressionando por mais espaço nos currículos universitários e nas seções de “filosofia” das livrarias.”

Ainda na linha das reabilitações, o autor dedica especial atenção às teorias conspiratórias, as quais chega mesmo a considerar – em especial na tese de que os intelectuais sofrem de ligeira paranoia – como ferramentas essenciais a seu trabalho.

Além da paranoia estrutural, inerente a todo intelectual, Fuller também discute, na primeira parte, questões como

o ceticismo, em

“Enquanto a razão for exercida de forma desigual pela humanidade, o intelectual se oporá a tudo em que acredita a maioria das pessoas, provavelmente sob o jugo de um poder dominante.”

a responsabilidade negativa (i.e., a responsabilidade por aquilo que não se fez, mas que deveria ter sido feito), emblemática do julgamento do nazista Adolf Eichmann;

a obsolescência planejada de Henry Ford a Bill Gates, Steve Jobs e o mercado editorial;

o direito autoral;

a distinção semântica entre “toda a verdade” (posição mais liberal, assumida por intelectuais, que admite a dúvida e, consequentemente, a possibilidade de erro) e “só a verdade” (posição mais conservadora, equivalente a “nada além da verdade”, que exclui qualquer dúvida) arraigada à história do pensamento ocidental e, principalmente, à cultura jurídica;

a imaginação enquanto instrumento de revelação da verdade e

o mito da infalibilidade científica.

No extenso diálogo em que o intelectual é sabatinado pelo filósofo, o primeiro, entre outras coisas,

explica por que

“[…] o único meio confiável para se chegar à verdade é a crítica”;

categoriza os filósofos contemporâneos como “continentais” (franceses e alemães), que reciclam o pensamento de mestres do passado, e “analíticos”, que se expressam primordialmente em língua inglesa;

justifica sua restrição ao “texto difícil”;

manifesta sua preferência incondicional pela abrangência em relação à profundidade em passagens como

“Um intelectual genuíno suspeita da ideia de que exista somente um caminho ou pelo menos um número limitado de rotas para uma verdade supostamente de importância universal.”

e

“Qualquer coisa que valha a pena ser dita pode ser dita em outras palavras.”

Além disso, fala da universidade, das ciências sociais e da redundância inerente à pesquisa científica (fenômeno identificado e batizado como “conhecimento público não descoberto” por Don Swanson, bibliotecário da Universidade de Chicago, que demonstrou que

“[…] o problema principal da pesquisa médica pode ser localizado, ou até mesmo resolvido, através de uma leitura sistemática da literatura científica. Entregue a si mesma, a pesquisa científica tende a se tornar cada vez mais especializada e abstraída dos problemas do mundo real que a motivaram e para os quais continua a ter importância. Isso sugere que tal questão pode ser resolvida efetivamente não contratando ainda mais pesquisas, mas assumindo que parte ou toda a solução já se encontra em várias publicações científicas, à espera de alguém querendo ler através das diferentes especialidades.”

Este ponto me é especialmente caro, já tendo me debruçado sobre o mesmo, ainda  que indiretamente, aqui (no sexto parágrafo) e aqui.

A terceira parte é aquela cuja leitura flui melhor. É nas quatro seções dedicadas ao modo como o intelectual deve se relacionar com, respectivamente, políticos, acadêmicos, filósofos e cientistas que Fuller melhor descreve o ressentimento mútuo nutrido entre intelectuais e cada uma das categorias de pensadores acima, em relação às quais chega a ser, por vezes, particularmente sarcástico. Como, por exemplo, em

“[…] os políticos se vêm tentados a descartar ou a adiar decisões de modo a permitir-lhes escapar a potenciais colapsos.”;

“[acadêmicos e intelectuais] se vêm com mútua suspeita. Cada um trata o outro como um atravessador que inunda o mercado com produtos inferiores. [Os acadêmicos] consideram intelectuais impressionistas em suas observações, tendenciosos em seus julgamentos, descuidados em suas pesquisas e parasitas do trabalho dos outros – esses outros, naturalmente, outros acadêmicos. […] Os acadêmicos parecem preocupados com pelo menos três coisas: receber o crédito devido a seu trabalho, proteger seu trabalho contra desvalorização e, mais sutilmente, justificar a própria necessidade do trabalho. Esta última preocupação admite a possibilidade de que intelectuais possam reduzir argumentos acadêmicos complexos a pontos-chave e criar um contexto que lhes atribui uma significância capaz de atrair uma audiência bem maior do que a que os acadêmicos conseguem reunir.”;

“Os textos acadêmicos são muito mais interessantes graças às notas de rodapé do que pelo argumento principal – isto é, mais pelo que consomem do que pelo que produzem.”;

“Os cientistas são os adversários mais falaciosos a ser enfrentados em público. […] são tidos como especialistas nas áreas que pretendem dominar e mesmo em outras mais. Todas estas características, que depõem a favor da credibilidade “prima facie” dos cientistas, colocam o intelectual em verdadeira desvantagem.”;

“De modo geral, os filósofos asseguram sua autoridade intelectual transformando cada disputa substantiva em outra logicamente anterior sobre o significado de alguma palavra-chave avaliativa, tal como ‘verdadeiro’ ou ‘bom’.”

Para o leitor, fica claro que o intelectual, um irremediável intruso em qualquer destes grupos, não nutre, todavia, qualquer ressentimento por sua exclusão. Entende sua crítica independente como necessária ao aperfeiçoamento social e não se importa em ser amiúde e francamente atacado. Isto fica perfeitamente claro em

“[…] os intelectuais são inerentemente autodestrutíveis: ajudam a criar a competição contra eles mesmos, quando advogam educação em massa, leitura de jornais e debate público. Num determinado sentido, encorajam outros a seguirem seus atos, não suas palavras: melhor criticarem o que digo do que repetirem o que digo sem crítica. Talvez isto explique por que os intelectuais se distinguem dos acadêmicos, dos empresários e dos políticos. Eles não se importam quando lhes apontam um erro, desde que lhes reconheçam o direito de errar no presente e no futuro. Essa é a melhor forma de entender a máxima muitas vezes atribuída cinicamente aos intelectuais: ‘Não há nada pior do que a publicidade; porém, ser ignorado é o mesmo que a morte.'”

Mais sobre a hostilidade frequentemente dirigida a intelectuais:

“A crítica raramente é bem recebida, principalmente se vier de intelectuais. Eles procuram atingir não simples ideias ou proposições, mas blocos inteiros de pensamento, que, no calor da discussão, são confundidos com seus defensores. Por isso, a crítica de um intelectual é muitas vezes vista como um ataque pessoal. Como revanche, eles se tornam os mensageiros que são mortos por conta de suas mensagens. Você não é formalmente repudiado – é apenas “reapropriado”. Na verdade, você fica sabendo que é um intelectual quando é denunciado em discursos ou plagiado nos escritos.”

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Se fosse para apontar uma única deficiência em O Intelectual, ao menos em sua edição brasileira (Relume, 2006), seria esta, indiscutivelmente, a falta de um índice onomástico. Se trata, muito mais do que uma falha autoral, de uma de seus editores. Pois, numa obra em cuja leitura, conquanto breve, desfilam diante de nossos olhos centenas de nomes, desde aqueles pivotais na história do pensamento, como Platão, Galileu, Voltaire, Newton e afins (que comparecem repetidamente no texto, ainda que de modo não cronológico) até autores “colaterais” (como, por exemplo, Christopher Hitchens, o célebre desmistificador de Madre Teresa de Calcutá, que aparece uma única vez), uma indexação que permita uma referência rápida a qualquer um deles se faz mais do que necessária. Sorte que, habituado a esta má prática editorial, costumo, já na primeira leitura, sublinhar e anotar furiosamente nas margens quaisquer referências importantes que possa vir a querer recuperar rapidamente depois.

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O livro termina brilhantemente com a seguinte frase, impressa em itálicos, que serve de epígrafe a este post mas que repetimos em nome da ênfase:

“O intelectual é o eterno irritante; ele é o grão dentro da ostra da qual a humanidade – esperemos – emergirá como uma pérola.”

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Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet (2013); ou O elogio do hacker

Algumas leituras são prazerosas. Outras, necessárias. Como Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet (Boitempo, 2013). No caso, o que não ajuda é o formato do texto, a saber, a transcrição de uma conversa mantida por Julian Assange com Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jéremie Zimmermann em 20 de março de 2012 na embaixada equatoriana em Londres, na qual o primeiro tinha exílio político.

Conquanto o leitor possa lamentar a falta de uma voz autoral a garantir a elegância e uma certa unidade ao texto, o estilo caótico de ata de assembleia é largamente compensado pela densidade das ideias expressas e informações trazidas pelos quatro heróis da liberdade online. Numa percepção apressada, poderíamos argumentar que a recusa de Assange em escrever um livro se deva ao fato dele não ser um escritor mas, antes, um programador. Tal ideia, no entanto, rapidamente se dissipa ante a leitura de alguns blocos monológicos do ativista, particularmente o final do livro. Noutras palavras, Assange não escreveu o livro sozinho por que não quis – a presença dos outros ilustres co-autores se justificando, acima de tudo, para conferir ao relato a diversidade que tanto defende, principalmente quando manifesta, aqui e ali, como franca discórdia.

A conversa gira em torno da liberdade e do poder emancipador sem precedentes franqueados pela internet, bem como das ameaças a que estão sujeitos. São discutidas, com farta documentação, a criptografia, a militarização do ciberespaço, a vigilância, a censura, a cultura hacker e outros tantos desdobramentos temáticos. De vez em quando, despontam categorizações importantes, tais como as 3 liberdades fundamentais, a saber,

liberdade de circulação,

liberdade de comunicação e

liberdade de interação econômica;

a distinção entre

vigilância tática, que predominava antes da internet, na qual apenas um grupo de notórios suspeitos tinham suas comunicações interceptadas; e

vigilância estratégica, facultada pela web, na qual todas as comunicações são interceptadas e armazenadas, constituindo imensos bancos de dados para análise e garimpo de informações relevantes por órgãos de inteligência;

os “Quatro Cavaleiros do Info-Apocalipse”, em nome dos quais são impostas todas as legislações de exceção que envolvem quebra de privacidade individual, que são

lavagem de dinheiro,

drogas,

terrorismo e

pornografia infantil;

ou, ainda, as várias camadas da pirâmide da censura, da qual somente é visível

a ponta, pública, constituída por calúnias, assassinato de jornalistas, câmeras apreendidas por militares e assim por diante; sob a mesma, existem, invisíveis,

a autocensura;

o aliciamento econômico ou clientelista para que pessoas escrevam sobre isto ou aquilo;

a economia pura, que determina sobre o que vale a pena ou não escrever;

o preconceito dos leitores, ocasionado pelo nível de instrução limitado e que resulta numa massa fácil de manipular, tanto pela disseminação de informações falsas como pela falta de condições de entender verdades sofisticadas;

a distribuição, que consiste na falta de acesso a informações – como, por exemplo, no caso de línguas desconhecidas.

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Na discussão sobre criptografia, nos inteiramos de que é precisamente aí (e não na colossal capacidade de armazenamento) que reside o grande trunfo do WikiLeaks, i.e., na garantia do anonimato conferido a cada whistleblower (denunciante). Com efeito, nem Assange conhece a identidade de quem envia documentos à organização que criou. E sobre a segurança do anonimato, deve ser dito que a identidade de Bradley Manning, responsável pelo maior vazamento de documentos militares da história, só foi revelada depois que o mesmo se referiu a seu feito num chat.

A criptografia também se provou um valioso recurso em se tratando de se esquivar à vigilância estratégica, já que, sem o software necessário, é impossível decodificar quaisquer mensagens criptografadas interceptadas.

É nos capítulos dedicados à vigilância que ficamos sabendo que, enquanto com os recursos anteriores à internet, órgãos de inteligência precisavam se limitar a interceptar as comunicações apenas entre indivíduos suspeitos, hoje é possível a qualquer estado comprar, pela bagatela de dez milhões de dólares (sem ironia: comparem este valor com a maioria dos orçamentos governamentais), sistemas capazes de interceptar e armazenar indefinidamente TODAS as comunicações, por voz ou texto, de uma cidade ou mesmo de um país.

A vigilância, inclusive sobre interações econômicas, é enormemente facilitada pela centralização de informações num pequeno número de empresas, quase todas norte-americanas. Pensem no Google, no Twitter, no Facebook ou nas poucas bandeiras dos cartões de crédito mais usados. Por exemplo. Se você comprar uma passagem aérea por meio de qualquer transação bancária, inclusive com cartão de crédito, dados sobre seu deslocamento pretendido estarão imediatamente disponíveis a órgãos de inteligência interessados antes mesmo que você saia do lugar. Tente, ao contrário, comprar uma passagem internacional em dinheiro vivo.  Neste caso, se você estiver tentando cruzar fronteiras de um país com fortes restrições migratórias, provavelmente será submetido a revistas e interrogatórios rigorosos. Paranoia ? Não creio. Isto ocorreu a um dos autores, cidadão norte-americano, ao tentar ingressar em seu país pelo Canadá.

Na visão dos autores, que defendem uma internet livre e anônima para todos, um dos maiores problemas consiste na assimetria de tratamento dado às informações, de um lado, dos mais ricos e poderosos e, de outro, dos usuários comuns – perfeitamente sintetizada no título do penúltimo capítulo: Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos.  A ética hacker  distingue claramente informações privadas daquelas que são ou deveriam ser públicas – sendo, inclusive, tal discernimento a principal razão para a lentidão na divulgação do enorme volume de mensagens comprometedoras interceptadas entre o então juiz Sérgio Moro e procuradores da operação Lava Jato.

Como contramedidas possíveis face à presente distopia de governos e atores privados cada vez mais vigilantes, os autores propõem, entre outras coisas, o domínio, por parte de usuários comuns, de recursos criptográficos; a disseminação de software livre, que pode ser compreendido e alterado por qualquer indivíduo; o uso de navegadores não rastreáveis, como o Tor; e uma arquitetura mais descentralizada para a internet.

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Talvez a maior importância da leitura desta conversa não seja a fartura de dados objetivos sobre (me desculpem a expressão) a merda em que estamos imersos. E, o que é pior, sem saber ! Pois, ao usarmos a internet, seduzidos por conveniências sem precedentes, sequer temos ideia do volume de informações que voluntariamente confiamos a quem, em última análise, quer nos controlar ou nos vender algo.

Penso, outrossim, que o maior valor do livro seja reabilitar, perante o leitor, a figura do hacker – tão vilipendiada, recentemente, pelos atores centrais ao Morogate, seus protetores e, de resto, parte significativa da mídia. De fato, para a maioria das pessoas, um hacker não passa de um criminoso, dedicado a capturar senhas e subtrair saldos de contas bancárias alheias ou, no máximo, desestabilizar governos por meio de táticas terroristas. É nisto que o discurso oficial quer que acreditemos.

Não sou ingênuo a ponto de afirmar que hackers assim, movidos primordialmente por interesses pecuniários, não existam. São, no entanto, uma minoria absolutamente irrelevante. Até por que há fraudes bem mais rentáveis ou, ainda, as populares malas de dinheiro. E não consta, até hoje, que nenhum hacker tenha sido flagrado com 51 milhões em espécie num apartamento. E quanto àquele vilão que desvia quantias milionárias para contas múltiplas em paraísos fiscais apenas conectando um pen drive a um servidor ? Se você acredita nisto, deve estar vendo muita televisão.

O hacker, tão invocado quando se trata de explicar o inexplicável, é, em sua ocorrência mais comum, um sujeito de inteligência superior e índole utópica que age altruisticamente, de modo anônimo e colaborativo, na tentativa de prover a seus semelhantes um mundo melhor. É o cara que frequenta a campus party, defende o software livre e milita contra a propriedade intelectual, quebrando sistemas fechados e se apropriando de códigos-fonte, sempre em nome do interesse da parte mais numerosa e vulnerável do mundo digital. Noutras palavras, um herói da democracia. Ainda que tantos poderosos, quando pegos de cuecas, se ponham a gritar tratar-se do bandido.

 

Utopia para Realistas (2016), de Rutger Bregman

Quando meu amigo Ivo Eduardo me recomendou, num comentário sob uma postagem que fiz no facebook sobre renda mínima, Utopia para realistas (2016), do historiador holandês Rutger Bregman, logo desconfiei que se tratava de um grande livro, por já ter traduzido dois artigos do autor, respectivamente, sobre trabalhos inúteis (“bullshit jobs“) e redução da jornada de trabalho. Consoante a isto, tratei logo de obter o volume e passá-lo à frente de minha fila de leitura (a grande vantagem dos livros sucintos: o de Bregman tem só 225 páginas, fora as notas).

As notas. Ocupando 28 páginas (mais de 10% do livro, portanto), denotam inequivocamente um dos principais traços do estilo do autor, a saber, o de comprovar toda e qualquer alegação sua – muitas das quais contundentes, na contramão do senso comum – por meio de farta bibliografia de estudos e pesquisas já conduzidos e disponíveis online para quem quiser conferir. Há mesmo uma seção inteira dedicada a explicar o que é um estudo controlado randomizado, ou ECR (aqueles com grupos de controle) – como, por exemplo, um realizado no Quênia em 1998 para investigar o efeito da ajuda humanitária sob a forma de doação de livros escolares. Curiosidade: o primeiro ECR de que se tem notícia foi realizado no século VII a.C. e relatado na bíblia.

Outra faceta convidativa do estilo de Bregman é a fragmentação de cada capítulo em seções com subtítulos que não passam de duas páginas. Com isto, fica mais fácil interromper e retomar a leitura, bem como localizar passagens específicas em referências futuras.

De resto, seu estilo é francamente aforístico (como, suponho, num manual de autoajuda), incessantemente conclamando o leitor a alguma linha de conduta em prol do progresso social.

Dito isto, deixemos de lado o estilo do texto para nos concentrarmos em seu conteúdo. Como o título indica, se trata de uma utopia, alicerçada sobre três princípios centrais: a implementação de (1) uma renda mínima universal; de (2) jornadas de trabalho radicalmente mais curtas (idealmente, 15 horas semanais, como previra Keynes em 1930) e (3) a abolição de todas as fronteiras nacionais.

Discutindo a renda mínima, Bregman cita exemplos históricos, a começar por sua quase implementação nos EUA por Nixon,  citando inúmeros estudos realizados sobre populações que já a experimentaram. Tais estudos tem por principais objetivos a derrubada de mitos tais como os de que uma renda mínima universal seria demasiado onerosa ou de que, ainda, induziria à indolência e/ou ao oportunismo. Ao fim, estudos conduzidos sobre populações que já foram submetidas a programas de renda mínima demonstraram que

o custo de tais programas é significativamente menor do que aqueles outros, assistenciais e paliativos, destinados a mitigar os efeitos da pobreza; e que

sujeitos contemplados com uma renda mínima, ao contrário de se resignarem a não trabalhar e a consumir os recursos que lhes foram destinados com alcoolismo e drogadição (como muitos detratores acreditam), usam os mesmos para custear despesas de subsistência, utilizando o tempo livre, não mais comprometido com empregos subremunerados ou mesmo inúteis, para buscar ocupações socialmente significativas.

Ao longo do livro, Bregman sustenta várias teses interessantes. Dignas de nota são

a história do PIB (produto interno bruto); suas limitações; o mito da sustentabilidade de modelos econômicos baseados em crescimento constante e a necessidade de novos índices para aferição do progresso social;

o mito de que o setor privado (indústria e serviços) é mais barato e o público (saúde e educação), muito caro; para refutá-lo Bregman se vale dois itens excluídos do PIB, a saber, os custos ocultos do setor privado e os benefícios ocultos do público.

o fenômeno dos empregos inúteis (bullshit jobs), citando amplamente David Graeber, autor do ensaio de 2013 no qual cunhou o termo e do livro de 2018 totalmente dedicado ao tema;

a relação inversa normalmente verificada entre a utilidade e a remuneração de cada trabalho (quanto maior a importância social, menor a remuneração, e vice-e-versa); por esta regra, garis, enfermeiros e professores (profissões que produzem riqueza) ganham muito menos do que, por exemplo, advogados, lobistas e operadores financeiros (profissões que transferem riqueza). No sugestivo capítulo intitulado Por que não vale a pena trabalhar em banco, Bregman compara o efeito imediato (negociação após 6 dias) da greve dos lixeiros de Nova Iorque em 1968 com a dos bancários da Irlanda em 1970, suspensa depois de 6 meses por não ter produzido qualquer resultado esperado pelos grevistas;

a permanência de modelos falidos por meio da ideologização da credulidade,  sintetizada pela máxima “pessoas inteligentes não utilizam seu intelecto para obter a resposta correta; usam-no para obter o que elas querem que seja a resposta” (citando Ezra Klein em How politics makes us stupid).

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Conquanto brilhantemente defendida e fartamente documentada, a utopia de Bregman não é, como qualquer utopia, de fácil implementação. Seu estabelecimento depende da adoção progressiva, por parte de lideranças internacionais importantes, de um ou mais dos três princípios arrolados no quinto parágrafo deste post. Sua aceitação, no entanto, por parte de eleitores, não é nada simples, implicando, antes, uma revolução cultural para desinstalar falsos pressupostos “naturalizados”, tais como, por exemplo, o mito do crescimento contínuo e o valor incondicional do trabalho.

Felizmente, a pauta de Bregman, contra todas as expectativas mais conservadoras, já faz parte do discurso político, começando pela candidatura à presidência dos EUA em 2020 de Andrew Yang, que pretende, entre outras coisas, dar a cada cidadão norte-americano a quantia de 1000 dólares por mês, independentemente de estarem desempregados ou inscritos em qualquer programa de assistência ao desemprego. Oxalá iniciativas assim proliferem !