O potencial desempregador da inteligência artificial

Um dos maiores temores em relação à crescente presença da inteligência artificial na vida cotidiana tem a ver com a possibilidade de que ela (ou seus controladores, pois a IA ainda não tem (tem ?) vontade própria) cada vez mais reivindique para si incumbências até então somente atribuídas a humanos. A bem da verdade, isto já está acontecendo, como bem documenta uma excelente matéria da BBC sobre seu emprego na redação de textos.

A gritaria não é novidade alguma. Já no final do século 18, na aurora da revolução industrial, ludistas invadiam tecelagens inglesas e quebravam máquinas temendo que as mesmas ameaçassem a existência de seus empregos. Desde lá pouca coisa mudou. A diferença é que se, antes, novas tecnologias substituíam o trabalho braçal, as de hoje clamam para si operações mentais até pouco tempo consideradas território exclusivo da inteligência humana. Tudo faz parte de uma longa e única narrativa, a saber, a obsolescência progressiva do trabalho humano. Primeiro, o braçal. Agora, o mental.

Isto é bom ou ruim ? Depende de como você encarar. Se definirmos trabalho do modo como é habitualmente entendido numa cultura capitalista, i.e., como emprego, com perpetuação de funções exercidas e manutenção de direitos adquiridos, a automação é preocupante, por ser indiferente ao desemprego que dela decorre.

Se, por outro lado, a automação servisse para garantir a manutenção de atividades reconhecidamente essenciais à sobrevivência e ao bem estar humanos gerando, com isto, mais tempo ocioso para ser dedicado à criatividade e ao lazer, não haveria nada de errado.

Só que o que acontece não é nada disto. Quando alguém é desempregado por alguma nova tecnologia, tal não se dá em nome da desoneração do indivíduo de algo que pode ser feito tão bem ou melhor por uma máquina, de forma automática, mas tão somente em razão da maior lucratividade na operação. Fica claro, então, que o problema não é a automação e sim o lucro. Ou, mais precisamente, a automação a serviço do lucro e não do bem estar humano, como deveria ser num mundo ideal.

Eis a principal razão de não estarmos avançando na direção da previsão de Keynes, a saber, de que, ca. 2030, trabalharíamos em média 15 horas por semana.

Cabe, também, perguntar até que ponto vale a pena (exceto, é claro, pelo fenômeno da desempregabilidade crescente) um humano produzir um texto que já possa ser escrito por um algoritmo. Penso, de imediato, em bulas de remédio, manuais e receitas culinárias (um tipo de manual), mas a lista pode ser rapidamente expandida para incluir textos de referência (dicionários, enciclopédias e artigos acadêmico/científicos), jornalísticos, publicitários (como na supracitada matéria da BBC) ou, por que não, legais. Em suma, toda e qualquer categoria de redação sobreformatada. Isto representaria um passo importante em direção a uma escrita exclusivamente criativa, talvez eliminando, de quebra, o excesso textual (produzido, em grande parte, pela academia) denunciado já em 1989, no New York Times (não incluí o link por que, agora, o NYT também se esconde atrás de um paywall), pela bibliotecária chefe da Universidade de Harvard. Seu apelo, quase uma súplica, à comunidade: “– Por favor, escrevam menos ! Pois já não temos mais onde guardar tanto material, tendo que alugar galpões fora do campus para tanto.” Mas isto (namely, o excesso textual) já é assunto prá outro post. Intitulado, talvez, Why write ?

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Do jeito que se fala em IA, como uma expressão nova, que ainda não existia há poucos anos atrás, pode até parecer se tratar de algo novo. Não houve, no entanto, nenhuma ruptura, como uma descoberta ou evento específico, que interrompesse uma tendência verificável já há muito tempo. Desde os primeiros programas de computadores ou mesmo antes.

No começo do uso de computadores, se podia perfeitamente entender a lógica operante em um programa pelo mero exame de seu código fonte. Era como se as linguagens de programação fossem não mais do que versões mais precisas da verbal. Isentas de ambiguidades. Bastava, então, “ler” um programa para se saber o que ele fazia.

Com o passar do tempo, tarefas mais complexas começaram a demandar um recurso mais frequente a subrotinas e, ao mesmo tempo, interfaces gráficos, mais “amigáveis”, dependentes de um grande volume de cálculos vetoriais. De tal modo que, hoje, a compreensão total, nos mínimos detalhes, de tudo o que um programa (hoje, aplicativo) executa está muito além da possibilidade de abrangência pela mente humana.

Para melhor se entender essa evolução exponencial que a programação computacional, alavancada por tecnologias cada vez mais rápidas e miniaturizadas, teve em poucas décadas, vale a pena lançar mão de uma analogia com o jogo de xadrez.

Entre o leigo e o enxadrista avançado, cujo estereótipo é o russo que disputa competições internacionais, existe um abismo. Como leigo, sei movimentar as peças no tabuleiro e conheço as regras do jogo. Tanto que tenho boas chances ao disputar uma partida com outro leigo, pois consigo prever o desfecho de lances imediatos mais prováveis (i.e., descartados os absurdos).

Notem, no entanto, que, a cada nova jogada “antecipada”, crescem exponencialmente as possibilidades. Tanto que, ao cabo de poucos lances, chega a milhares, até milhões, o número de possíveis desfechos – somente um dos quais interessa, a saber, o cheque-mate. Ao final, ganha geralmente quem conseguir visualizar o maior número de jogadas à frente.

Pois a computação é assim. Se, nos primórdios, era como uma partida de xadrez entre leigos ou quase isto, hoje é como uma disputa entre um Mequinho e um Kasparov. Mas tudo isto, é claro, é totalmente transparente (invisível) ao usuário.

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Disse há pouco que a inauguração do uso da expressão inteligência artificial não está associada a nenhum evento ou tecnologia disruptivos específicos. Talvez isto não seja verdade. Não escaneei pioneiros da ficção futurista (ficção científica é, a meu ver, uma formulação inadequada) para saber, por exemplo, se Asimov se referia, em Eu, robô, ao cérebro positrônico como IA. Certo é, no entanto, que seu uso hegemônico para designar algoritmos e programas a partir de uma certa complexidade se tornou popular a partir do momento em que operações realizadas pelos mesmos puderam não apenas ser confundidas com aquelas executadas pela mente humana, mas levadas a cabo de modo mais preciso, rápido e eficiente. Há quem considere isto um marco histórico a sinalizar o início do fim do trabalho.

Há também quem ache isto, mais do que preocupante, alarmante. Como Harari, num artigo que citei recentemente – o qual, de tão provocativo, suscitou respostas fortes e imediatas como, por aqui, a de Fernando Schüller. Tudo bem que Harari tenha, como já me disseram, uma sensibilidade aguçada para o sensacional ou bombástico. Até por ser bem atuante no super competitivo mercado editorial (é autor de best sellers) e ter, afinal, que promover seus livros. Mas suas análises históricas e especulações futurísticas são prá lá de plausíveis.

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Abre parêntesis. Por vezes, algumas projeções, não mais do que fantásticas, de ficcionistas futuristas – como a de Kurt Vonnegut, em Cat’s Cradle, que imaginou o que chamou de gelo 9, uma nova forma de água com ponto de fusão mais alto que, em contato com mais água, líquida e em temperatura ambiente, a congelaria – são assustadoras ao ponto de não apenas gerar pânico mas induzir a comunidade científica a produzir uma avalanche de artigos refutando a mera possibilidade de existência do gêlo 9 e, com isto, restaurando a tranquilidade. Fecha parêntesis. Ou melhor, ainda não. Vonnegut batizou o capítulo de Cat’s Cradle em que uma banheira contendo a única amostra existente de gêlo 9 despenca de um penhasco (putz, que cacofonia) caindo no oceano, cujo congelamento instantâneo produz um estrondo que se propaga pela superfície de todo o globo, nos mergulhando numa nova era glacial (o cenário da novela de Vonnegut), como “O Grande Ahum“. Pois Ah Um também é o nome de um álbum de Charles Mingus. Aqui, entenderei perfeitamente se alguém disser “– Sim, mas daí ?“. Agora sim, fecha o parêntese.

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Que a IA acabaria por se igualar à humana e, a partir daí, suplantá-la, nunca foi difícil de prever. O motivo é simples. Enquanto a inteligência humana reside num suporte biológico, o cérebro, cuja evolução é medida em milhões de anos, a artificial existe em circuitos que se tornam menores e mais rápidos (portanto mais poderosos) praticamente da noite para o dia. Não tinha como o progresso tecnológico não dar nisso. O que nos traz de volta a pergunta: isto é bom ou ruim ?

Se a sociedade humana continuar a privilegiar a concentração de riqueza sobre sua distribuição, a IA só vai acelerar o desemprego, gerando, com isto, fome, pobreza, desagregação social, guerra e, eventualmente, a extinção da espécie, da vida e do planeta, nesta ordem. Ou nem tanto, pois a IA, sem precisar competir com a humana, talvez opte por preservar o planeta ou mesmo formas de vida não inteligentes. Mas isto não interessa, pois não vai sobrar ninguém prá contar.

Se, por outro lado, o ser humano conseguir abraçar o ócio, se libertando de todos os preconceitos morais sobre o trabalho (que só servem aos grandes acumuladores), aí então será possível vislumbrar um futuro mais auspicioso para a espécie, cujas possibilidades são tantas que prefiro deixar a cargo da imaginação de ficcionistas.

Lusco-fusco

Nada me define melhor do que a tal metamorfose ambulante. Foi só eu declarar, dia desses neste blog, que prefiro escrever de manhã e ler ao entardecer, para me surpreender, agora mesmo, escrevendo pouco depois do pôr do sol. Gosto, no entanto, disto. Significa uma liberdade subitamente adquirida para, sem ter terminado de revisar, formatar e publicar um texto (a parte mais complicada, porquanto burocrática), me lançar despreocupadamente à confecção de um novo. “- Nosso Manny está crescendo.”

Por que lusco-fusco ? Calma. Chegarei lá. Salvo por um pequeno círculo de amigos mais próximos, poucos sabem que me mudei. Pretendia morrer na casa onde morava, lindeira a um cemitério. Os melhores vizinhos que já tive: nunca incomodavam. Basta dizer que, certa vez, toquei até as 2 horas da madrugada (sic !) sem ouvir nenhuma reclamação. Só que uma casa é uma casa. Apesar da autonomia, a manutenção vai ficando mais trabalhosa e pesada e, com o passar dos anos, precisamos, Astrid e eu, pensar na velhice que se aproxima.

E assim, desfrutando de um par de heranças e do fato de um primo, que mora nos EUA, querer se desonerar de um imóvel herdado de seus pais, viemos parar no Centro Histórico de Porto Alegre. Mais precisamente, no último andar de um prédio na colina central. Nunca antes suspeitei da sensação prazerosa que é ter as horas do dia marcadas pelos sinos da Catedral. Mas não é só isto.

Desde criança, me acostumei com noção de que a expressão “vista para o Guaíba” (este rio/lago que tão duramente fustigou a cidade) consistia numa espécie de nirvana imobiliário. Ironicamente, a aceleração da vida acaba deixando pouco tempo para o desfrute desta condição (ia dizer conquista, mas mudei de ideia). Assim, por força de uma combinação de circunstâncias, mais do que por qualquer mérito (outra palavra abominável) pessoal, acabei agraciado com uma vista deslumbrante. Some-se a isto o fato de que espaço, aqui, não falta (o prédio é bem antigo). Mantidas as proporções, é como morar no Dakota (edifício, à margem do Central Park, onde Polanski filmou O Bebê de Rosemary e onde moravam Leonard Bernstein e John Lennon, assassinado diante do mesmo). Tudo bem que exagero um pouco, mas é o que sinto.

É claro que prédios antigos tem, além de vizinhos fascinantes (a vida em condomínio é como uma extensão da família), também vícios arraigados. Antes mesmo de virmos prá cá, meu primo sentenciou, sabiamente, que Astrid deveria ser síndica. Não deu outra: ela é a síndica que todo condômino, daqui ou de outros prédios, jamais sonhou. Ela toma para si os problemas do condomínio como se fossem dela.

É claro que tamanha dedicação tem um custo. Meu lado egoísta insiste em reivindicar sua atenção exclusivamente para mim. Mas acabo cedendo. Sabem aquela pessoa que, de tão empática, precisa de muito mais gente para cuidar do que o habitual ? Pois Astrid é assim. O que me atormenta (não por mim, mas por ela) e, ao mesmo tempo, me orgulha. Complicado conciliar.

O fato de morarmos aqui se deve à Astrid. Não só ela objetivou a decisão (imaginem se um geminiano tivesse que tomá-la: certamente teria perdido a oportunidade) como foi também responsável pela impecável reforma.

Não sou como o Milton, que vive a tecer loas a sua querida Elena. Mais reservado, costumo emprestar minha voz a questões bem menos pessoais. Mas o compreendo perfeitamente e partilho de seu sentimento.

Que me desculpem os que me leram até aqui o tom confidente, mas a vista é, de fato, sensacional (isso prá não falar do espaço). Tanto que, tendo já fotografado alguns crepúsculos, deixo de publicá-los por que, ao menos neste caso, imagens são absolutamente redutoras.

Por que torci para Camarões e, no próximo jogo, torcerei para a Coreia

Já me disseram que não tenho “lugar de fala” para me pronunciar sobre futebol, já que sou praticamente indiferente ao jogo. Tendo sido batizado gremista – sim, porque o fervor futebolístico é, como a religião, via de regra transmitido de pais para filhos ! – fui ao estádio apenas três vezes (duas delas levado por um pai igualmente sem entusiasmo, apenas cumprindo seu dever) e outra, com amigos, no campo do time rival. Sequer conheço nomes de jogadores de “meu time” (motivo de troça para meus filhos, colorados por influência materna) e para mim tanto faz se ele está na primeira, segunda ou terceira divisão.

Posto isto, admito que minha indiferença ao esporte se converte em franca hostilidade em tempos de copa do mundo, quando assisto a todos os jogos do Brasil que posso – torcendo, é claro, para o time adversário. Isto por que considero o futebol, assim como a religião, certos tipos de música, reality shows, o culto às celebridades e qualquer coisa que eu tenha eventualmente esquecido, o próprio atraso civilizatório.

Qualquer indivíduo minimamente esclarecido deveria se envergonhar de cultuar o esporte. Ele faz parte do complexo de pão e circo que distrai as pessoas de coisas que realmente importam. Na verdade, assumiu tamanho protagonismo que o circo parece suficiente até mesmo onde falta o pão – algo que nenhum imperador romano teria sequer imaginado.

Pensem na atenção midiática dedicada ao futebol, enormemente desproporcional à cobertura de outros esportes e assuntos mais importantes. Mas não é só isto. A indústria internacional do futebol favorece a desigualdade. De, pelo menos, duas maneiras distintas. Primeiro, comparem os ganhos médios de quem está dentro de campo com os de quem está nas arquibancadas. Um parêntesis: este raciocínio vale menos para jogos de copa do mundo, cujos ingressos, bem caros, são acessíveis apenas a uma elite capaz de arcar com os altos custos de passagens, alimentação e hospedagem para viajar pelo mundo, Me refiro, ao invés, aos estádios de times locais, que congregam num único grito torcedores abastados e miseráveis (ok, talvez isto não seja tão verdadeiro, pois dizem que todos os ingressos andam caros – fora do alcance, portanto, de miseráveis).

E este é precisamente o segundo ponto em relação ao favorecimento da desigualdade. Por que a justaposição maciça de torcedores ricos e pobres, ainda que em setores diferentes dos estádios, com acesso filtrado pelo preço do ingresso, reforça a ilusão de um povo feliz unido em torno de um mesmo… circo. Como o crente depauperado que se sente privilegiado por louvar o mesmo deus que um pastor milionário.

Outro aspecto pouco lembrado é a contradição entre o globalismo de uma cena onde jogadores são negociados entre grandes clubes por fortunas, como animais, independentemente de fronteiras; e o nacionalismo celebrado por um campeonato, que acontece a cada quatro anos, entre jogadores selecionados segundo o país de origem de cada um. É compreensível, no entanto, que se faça vista grossa a esta incoerência – pois, afinal, o que importa mais: onde se joga ou onde se nasceu ? – já que mais campeonatos significam mais dinheiro. Senão, para que dois campeonatos brasileiros e duas copas latino-americanas ?

Por tudo isto, vibrei com o gol de Camarões. Gostei mais ainda da comemoração do atleta, tirando a camisa mesmo sabendo que seria expulso. Ele sabia que aquele placar não alterava em nada a classificação do grupo. Chegou até a cumprimentar o juiz (que sorria visivelmente ao aplicar os cartões amarelo e vermelho). Era como se estivesse a dizer ” – Fuck the Cup ! “. Naquele instante, se tornou meu herói no certame.

No próximo jogo, torcerei pela Coreia. Mesmo sendo improvável que o Brasil perca. Afinal, ainda faltam várias oportunidades em que alguma seleção possa nos redimir de ser o famigerado “país do futebol”. Racista, faminto, violento, desigual mas, ainda assim, penta campeão do mundo.