A neutralidade da(s) rede(s)

A neutralidade da rede é um princípio que norteia o protocolo da internet, garantindo que qualquer conteúdo nela trafegue com a mesma velocidade, de acordo com a ordem de chegada, independentemente de quanto está sendo pago e por quem para que a informação nela viaje. Como numa fila única de transplantes.

Como todo princípio isonômico, há quem a ele se oponha. Os argumentos contra a neutralidade variam. Desde os mais comerciais, como garantir a quem pague mais o direito de suas informações circularem mais rápido e/ou eficientemente, como no caso de aplicações que demandam maior largura de banda, tais como plataformas de streaming; até aqueles supostamente mais “altruístas”, como o de que a neutralidade seria um obstáculo à inovação tecnológica.

Uma das propostas mais criativas é a existência não de uma rede única, neutra, mas de várias redes concomitantemente: uma neutra, universalmente acessível, para emails, blogs e sites menos acessados, e tantas outras quanto forem necessárias com facilidades para grandes usuários com necessidades mais específicas.

Assim, tendo surgido como uma condição praticamente utópica, que igualava grandes e pequenos no que tange ao tratamento recebido pela rede, a neutralidade logo se tornou objeto de debate. Tanto que possui nuances diferenciadas em cada país. No Brasil, a internet é neutra, regulamentada pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

Para um entendimento mais abrangente e detalhado da neutralidade da rede, vale a pena consultar a Wikipedia – a qual, ainda que por vezes seja bem sumária, ao menos sobre este assunto é altamente informativa. E neutra.

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Mas não é sobre isto que vim falar. Perto de tudo o que encontrei facilmente sobre o tema, discorrer mais seria como chover no molhado.

Com certeza notaram a licença poética, por assim dizer, do título do post, com os “(s)” depois das duas últimas palavras. A ambiguidade se deve à referência tanto à internet como um todo, com seu controverso ideal isonômico, como, ao mesmo tempo, às redes sociais que nelas residem – as quais, por sua vez, de neutras não tem nada. Ou, ao menos, é nisto que, do alto de minha teoria conspiratória, acredito. Como tento deixar claro adiante.

Redes sociais residem em plataformas (sites) que residem na internet. Como todo site, tem seus proprietários. E, salvo notáveis exceções de sites colaborativos (wikis) não lucrativos que atendem a interesses públicos – como, por exemplo, a wikipedia ou a IMSLP (maior repositório online de partituras musicais), plataformas de redes sociais são, via de regra, startups que deram certo, com alto valor de mercado e que remuneram seus proprietários, sejam eles indivíduos ou acionistas, com polpudos lucros advindos da exibição de publicidade (mais comumente) ou venda de assinaturas para versões ad free.

Até aí tudo bem. Já banalizamos a ideia de que o mercado está aí para quem dele saiba tirar proveito. Todo o problema começa com o algoritmo de distribuição – o qual, numa rede, seleciona quais postagens são (e, o que mais nos interessa, não são) mostradas a cada usuário. Num mundo perfeito, algoritmos seriam transparentes (como, sei lá, a programação em código aberto), configuráveis às necessidades e preferências de cada um. Mas não. Funcionam como caixas pretas, sobre cuja ação podemos não mais do que tecer suposições. Teorias conspiratórias inclusive, como aquela adiante.

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Antes, porém, de prosseguir, cabe um esclarecimento: minha experiência primária se restringe a uma única rede social, a saber, o facebook (não consigo acessar com a devida frequência (que dirá nela interagir) mais do que uma). Não descarto, portanto, a existência de outras redes mais transparentes no tratamento da informação que nelas circula.

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Algoritmos de distribuição existem por que o grande volume de informação (acho que o nome disso é metadados) torna proibitiva a análise por humanos de todos os conteúdos que circulam em redes sociais. Tecnologias de inteligência artificial para reconhecimento de imagem já permitem, no entanto, atribuir automaticamente um viés moral ou ideológico a cada postagem ilustrada. Amigos já tomaram ganchos por postarem imagens com seios, bundas ou genitálias. Pouco importa se forem “nús artisticos”. Experimentem, por exemplo, postar uma reprodução de A Origem do Mundo (BRINCADEIRA, NÃO FAÇAM ISTO !).

Também é fácil para um algoritmo identificar e, conforme o caso, impulsionar ou ocultar imagens contendo símbolos tais como, por exemplo, uma estrela de Davi ou uma bandeira palestina. Com texto, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada. É difícil apontar o matiz ideológico de algo escrito exclusivamente pelas simples presença ou contagem de palavras. Da seguinte maneira. Mesmo que vocábulos como capitalismo ou Marx apareçam uma ou mais vezes num texto, nada podemos afirmar sobre o viés ideológico do que foi escrito, i.e., se o texto é apologético ou condenatório em relação aos mesmos.

Ou, ao menos, assim eu supunha até poucos dias atrás. Quando manifestei meu ceticismo sobre o estado da arte da interpretação automática de textos, um de meus filhos simplesmente perguntou “– Conheces o ChatGPT ?” Talvez ele tenha razão. Se uma IA já consegue criar um texto convincente a ponto de passar por uma formulação humana, o caminho reverso (i.e., entender algo escrito por um humano) não deve ser, afinal, tão difícil. E, neste caso, vale atualizar a proposta por Harari, em The Economist, de uma legislação que obrigue aplicações que utilizem IA a informarem seus usuários sobre isto; para outra que também obrigue plataformas de redes sociais que utilizem algoritmos de distribuição seletivos que informem seus usuários sobre o funcionamento dos mesmos. Talvez como seu código fonte, ainda não compilado, comentado para inteligibilidade universal. Sonhar não custa nada.

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Desde lá de cima, venho prometendo relatar a experiência, involuntária, que funcionou como um sinal de alerta para o fato de redes sociais não serem tão neutras como era de se esperar. Não sou ingênuo, é claro. Sempre suspeitei. Até sabia. Mas os fatos abaixo narrados só aguçaram minha percepção da coisa.

Até poucos anos atrás, sempre era informado pelo facebook de novas postagens pelos perfis de Evonomics (Holanda) e The Guardian (Inglaterra), duas publicações que prezo sobremaneira. Por vezes até traduzi matérias suas neste blog. Só que, ultimamente, notei que há muito não vinho sendo informado pelo face de atualizações destes perfis. Cheguei até a pensar que Evonomics tivesse saído do ar (The Guardian não, por ser um jornal londrino bem tradicional). Preocupado, verifiquei que os bravos holandeses continuam firmes e fortes, tanto no site como no facebook.

Comentando com meu amigo Fábio o ocorrido, ele teceu a hipótese de que, se eu curtisse as postagens dos dois, o face voltaria a me mostrá-las. Entrei, então, em ambos os perfis e curti por atacado. Esperei. Nada. Aprendi, com isto, que, doravante, teria que visitar os perfis (ou os próprios sites) se quisesse saber de novas atualizações, não mais podendo contar com o facebook para tanto. Problema resolvido. A curiosidade, todavia, persistiu.

De início, pensei que o face estivesse ocultando postagens de grandes publicações. Afinal, já tinha ouvido falar que o site “não gosta” de postagens com links que direcionem a navegação para fora da plataforma. Faria sentido. Só que não: continuo a receber normalmente atualizações de The Economist e The New Yorker, entre outros.

Foi então que me dei conta: os dois perfis que sumiam de meu feed são notórios por um viés que, se não escancaradamente de esquerda, não pode de modo algum ser definido como de direita. Ok, The Guardian pode ser classificado como de esquerda. Mas Evonomics publica textos que, de alguma forma, vislumbram possibilidades para “consertar” a iniquidade inerente ao capitalismo.

Já disse, acima, que acho difícil (mas não improvável) que um algoritmo identifique o teor ideológico de um texto para, com base nisto, decidir por sua evidência ou ocultação. Bem mais provável é que publicações maciçamente visualizadas sejam marcadas (talvez até por humanos) como desejáveis ou não no feed de usuários de redes sociais, segundo a matriz ideológica de seus proprietários.

Pouco importa, então, se postagens (ou, mais provavelmente, perfis) são impulsionados ou ocultos com base em julgamento humano ou exclusivamente algorítmico. O que fica patente é que, como já foi dito, de neutro o facebook (e provavelmente outras redes) não tem nada. CQD.

Vinil

Há hoje um certo glamour em torno do disco de vinil. Vamos aqui especular sobre possíveis origens do fenômeno. Fatos e mitos. A inexorável marcha dos meios comerciais de distribuição de gravações sonoras. Eis algo bom para se começar, organizando um pouco o campo no qual o vinil se insere.

Desde a invenção do som gravado, já tivemos cilindros sulcados, que logo se converteram em discos (mais facilmente industrializáveis, porque passíveis de serem “impressos”), em seus diferentes diâmetros e rotações de reprodução, até o advento do CD que, por sua vez, deu lugar ao streamming. Tudo isto em pouco mais de 100 anos, apenas. Tempo suficiente, no entanto, para influenciar o padrão de duração da música comercial até como a conhecemos hoje. Da seguinte maneira.

O disco compacto, lançado pela RCA em 1949, com 7 polegadas de diâmetro e reproduzido a 45 rotações por minuto, podia conter no máximo 4 minutos de música em cada face. Com o disco compacto rapidamente se tornando o formato hegemônico para o lançamento de hits (músicas mais promovidas pelos meios de comunicação, que por isto mesmo se tornam as mais populares), ocorre que os 4 minutos acabaram se tornando uma espécie de limite superior para a duração de qualquer coisa que se grave almejando ao sucesso comercial imediato. Vale ressaltar que um LP (disco de 30 centímetros de diâmetro) contém obrigatoriamente um hit (e via de regra não mais do que isto), sendo o restante de seu “espaço” reservado a manifestações mais “autorais”. De tal modo que podemos, grosseiramente, afirmar que, enquanto o hit pertence ao produtor, o resto de um LP é território por excelência de seu titular – o qual, ironicamente, costuma ser preenchido por composições que não ultrapassam o limite dos 4 minutos, mesmo sem jamais serem comercializadas em discos compactos.

É claro que esta padronização exacerbada se aplica somente àquela música mais imediatamente consumível, reconhecida pelo rótulo de canção popular, não tendo qualquer validade para gêneros como o jazz, a música eletrônica, algum rock progressivo e discursos musicais mais experimentais. E a música chamada “erudita”, é claro. Em tais gêneros, não é nada raro ouvirmos peças que começam num lado de um LP e terminam no outro, com um par fade in/fade out ao fim do lado A e no início do lado B a sinalizar a continuidade.

Notem que tal critério duracional repercute ainda sobre formatos que nada tem a ver como o disco compacto, sepultado há décadas – como, por exemplo, os abomináveis reality shows musicais televisivos, que tentam resgatar os velhos festivais e shows de calouros com auditórios, tais com The Voice ou The Masked Singer. Se em The Voice cada música é abreviada pelo corte de repetições presentes nas gravações originais, já The Masked Singer apresenta as canções inteiras. Num ou noutro, a padronização do tempo alocado a cada candidato visa não apenas garantir uma certa isonomia de oportunidade aos mesmos mas, sobretudo, regular a quantidade de “conteúdo” oferecida aos espectadores entre um intervalo comercial e o próximo. Pois a proporção propaganda/conteúdo, maximizada ao limite da suportabilidade, é o principal fator a determinar grades de programação na mídia comercial.

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Quando uma nova mídia, quase sempre apregoada como revolucionária, desbanca uma anterior, hegemônica, se travam verdadeiras guerras por fatias de mercado, com argumentos abundantes contra ou em prol de uma mídia ou de outra. Quando surgiu o CD, se dizia que soava melhor e durava mais do que um LP. Prefiro deixar a discussão quanto à qualidade do som para os especialistas, até por que tanto CDs como LPs podem conter tipos distintos de gravações, a saber, analógicas ou digitais. Tal distinção, por si só, diz muito mais da qualidade do som de uma gravação do que, propriamente, o meio (CD ou LP) onde está codificada.

Na falta de maiores conhecimentos técnicos, me arrisco, todavia, a manifestar certa preferência pelo som de um disco de vinil. No caso de gravações analógicas, um CD não pode fazer nada para melhorar como uma mesma música soaria num LP. O mesmo não se dá com gravações digitais. Há, aqui, uma diferença fundamental. Enquanto no CD a música é codificada digitalmente, num LP a mesma gravação digital precisa ser convertida em analógica antes de ser “impressa” no disco. Então, a possível diferença é muito mais lógica do que sensorial (talvez a diferença seja pequena demais para ser ouvida), formulada da seguinte maneira: qual deve ser o melhor conversor digital-analógico: o contido nos circuitos de um tocador de CDs produzido em massa para consumo ou aquele utilizado numa planta industrial para converter os pulsos binários de uma gravação digital em uma onda analógica capaz de ser “impressa” em LPs ? A resposta definitiva, envolvendo bytes e bits, é, no entanto, de uma complexidade técnica fora do meu alcance, razão pela qual prefiro deixá-la a cargo de especialistas, passando, de pronto, ao próximo argumento, a saber, a durabilidade.

Quando surgiu o CD, se dizia que era eterno. Um argumento fácil, se levarmos em conta a facilidade com que um LP acumula arranhões e sujeira. Tudo bem. Mas só por um certo tempo. A imutabilidade do som do CD ao longo dos anos era bem convincente (uma noção falsa, já que, sabemos, o mais simples tocador de CDs é capaz de sintetizar pequenas porções de informação faltante na medida em que um CD é lido pelo feixe de laser). Isto até eu tentar ouvir, anos atrás, CDs da prestigiosa Deutsche Grammophon adquiridos no fim da década de 80 nos quais havia trechos de informação faltante longos demais para serem sintetizados pelo aparelho reprodutor. Foi quando, num exame visual da superfície do CD, constatei que a película metálica na qual é gravada a informação binária estava corrompida, com grandes manchas, visíveis a olho nu, denotando o ataque por fungos. Em contrapartida, ouço até hoje os LPs favoritos de minha juventude, comprados ca. 10 anos antes.

A maior diferença entre o CD e o LP não é, todavia, a qualidade sonora, possivelmente mensurável só em laboratórios, nem tampouco a durabilidade, que só pode ser percebida depois de muitas décadas, talvez mais do que o período de vigência de cada meio. Entendo que tenha a ver com a própria música que se gravava em cada um. Falo, aqui, de curadoria.

O ressurgimento do LP é revestido de um certo fetiche. Seu aspecto saudosista, que nos faz gostar de tecnologias e objetos antigos. Vintage virou sinônimo de glamoroso. Fotografia com filmes negativos em vez da digital. Cinema em vez de televisão. Rituais não são menos importantes. Assim como ir ao cinema (embora os modernos projetores reproduzam arquivos de HDs), é mais prazeroso (ainda que mais trabalhoso) do que ver televisão, com os discos se dá o mesmo. Descer suavemente a agulha sobre uma superfície giratória e virar o disco ao fim do lado A agrega à experiência da audição musical muito mais do que simplesmente apertar botões. Por que ? Não sei.

Sei, no entanto, que os caminhos percorridos por uma música até ser impressa num CD ou LP são totalmente distintos. Principalmente no que se refere à curadoria. Na era do LP, os meios de produção eram caros (estúdios com mesas de 24 ou mais canais e máquinas gravadoras de fita de 2 polegadas) e escassos (eram poucas as fábricas de discos), e eram franqueados pela indústria fonográfica a produtores todo poderosos que lhes apontavam com quais artistas e repertórios poderiam auferir maiores lucros. Se a década de 80 (quando o LP já minguava) foi dominada por produtores descobridores de talentos, anteriormente o acesso mais democrático aos selos importantes era regulado pelos festivais.

Foi, contudo, na era do CD que o acesso ao disco mais se democratizou. Com o surgimento do home studio, todo autor passou a poder, a custos bem mais acessíveis do que no período precedente, industrializar e divulgar seu próprio trabalho. Então, ainda que as fábricas de CDs não fossem, talvez, muito mais numerosas do que as de LPs, muito mais títulos foram fabricados pelas primeiras do que pelas últimas. Numa proporção astronômica, eu diria.

Nesta transição, um fator importante que não pose ser subestimado é a internet. Sem ela, uns poucos produtores, que representavam poucos selos fonográficos, tinham poder de vida ou morte sobre a música que era ou não industrializada e promovida, pois sua área de atuação também incluía o acesso, por meio de expedientes como o jabá, à programação de rádio e TV. Hoje, além de se auto-produzir, todo autor também se promove publicando sua obra em plataformas de streamming e a divulgando em redes sociais. Deste modo, não é nenhum exagero se afirmar que, hoje, uma aprovação maciça (likes) vale bem mais do que qualquer crítica publicada.

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Tendo feito, acima, uma apologia do disco de vinil, caímos na complexa experiência de comprar LPs hoje. Primeiro, por que o hype do formato contribuiu muito para o aumento de seu preço médio. Ao ponto de se cobrar por LPs novos (de 180 gr) algo como R$ 250, sejam lançamentos ou reedições. A situação dos usados não é mais alentadora, custando em média entre 50 e 100 reais. O problema dos usados merece um parágrafo autônomo.

Adotei recentemente a disciplina de garimpar LPs em feiras de usados, na crença de que, vez que outra, meus esforços seriam recompensados com a descoberta de algo excepcional. Ledo engano. Em todas as minhas incursões até agora (ainda não perdi de todo a esperança), só topei com discos dos quais as pessoas se desfizeram em reduções de coleções; elas invariavelmente guardam para si (assim como eu) seus melhores discos. Então, para você que, por qualquer motivo, gosta de discos de vinil, as notícias não são das melhores. Das duas uma: ou você tem que ter muito dinheiro ou se contentar com aquilo de bom que adquiriu num passado remoto.

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Para um mergulho mais profundo, repleto de informações valiosas, nos meandros da indústria fonográfica, vale a pena conhecer três obras: Como a música ficou grátis, de Stephen Witt; Os Donos da Voz, de Márcia Tosta Dias; e Maestros, obras-primas e Loucura, de Norman Lebrecht. Enquanto os títulos de Lebrecht (sobre o declínio da indústria da música clássica) e de Witt (sobre a pirataria) se encontram traduzidos para o português, o de Dias, sobre a indústria da música no Brasil, além de ser original em nosso idioma, é um daqueles raros casos em que uma tese de pós-graduação, de tão boa e pertinente, acabou se tornando um livro publicado.

Resistência a novas tecnologias

Quem acompanha este blog sabe que periodicamente torno a me debruçar sobre prós e contras de facilidades, viabilizadas por novas (ou nem tão novas) tecnologias, que surgem a toda hora para substituir culturas antigas e se tornar, com isto, o novo estado da arte. Conquanto vantajosas para proprietários de negócios, que lucram mais eliminando recursos humanos, quase sempre mais caros e tidos como menos eficientes do que sistemas automáticos, tais novidades não representam, necessariamente, vantagem alguma para a outra ponta da cadeia econômica, a saber, clientes, consumidores e usuários. Ao contrário, precarizam relações de trabalho e transferem aos mesmos cada vez mais o ônus operacional.

Nesta linha de raciocínio, já destilei aqui algum veneno contra o WhatsApp (ao qual posteriormente me rendi), o Pix, os totens de cobrança de estacionamento, o streaming (aqui e aqui) e o teleatendimento em geral. A redução progressiva, ao longo de décadas, dos caixas em agências bancárias faz parte da mesma tendência. Pois bancos, por lucrarem mais com menos funcionários, nos incentivam a usar cada vez mais plataformas de home banking ou, no máximo, terminais de autoatendimento existentes nas agências antes que clientes sequer tenham que passar por portas giratórias detectoras de metais.

Não sou neo-ludista (movimento, nomeado a partir de Ned Ludd, de trabalhadores ingleses do ramo têxtil que, nos primórdios da revolução industrial (1810), vandalizavam máquinas que substituíam o trabalho humano). Seria como lamentar a obsolescência da máquina de escrever (e, com ela, dos datilógrafos) quando é consenso para quem quer que escreva a imensa vantagem dos editores de texto. Ou dos revisores em salas de redação (ainda existem ?), quando corretores ortográficos e a responsabilidade individual sobre o próprio texto pressupõem jornalistas cada vez melhores. Mas há casos e casos.

O telefone celular, por exemplo. Quando surgiu, era não mais do que um telefone móvel. Uma indiscutível revolução. Desde então, qualquer um cujo número tivéssemos poderia ser imediatamente acessado. Até que foram incorporando câmeras, internet, agendas, o escambau. A vida de cada um dentro de seu bolso. Mas até que ponto a conexão permanente é, não digo boa, mas desejável para o ser humano ? Já viram coisa mas patética do que uma multidão, seja num parque, numa parada de ônibus ou numa sala de espetáculos, frequente ou até continuamente buscando abarcar o mundo por meio de uma telinha que ocupa uma ínfima parte de seu campo visual ? Mais: abrindo mão de interagir com pessoas ao redor ou mesmo, ainda que contemplativamente, com a paisagem ou o ambiente onde efetivamente estão.

Outro problema dos smartphones, com seu interface touch screen, são as complexas árvores de comandos (menus) que precisam ser percorridas até se chegar onde se quer. Mas prefiro falar disto comparativamente em relação às câmeras fotográficas.

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Não sou, obviamente, contra a fotografia digital, que, a nível de custo e praticidade, praticamente matou a “analógica” (péssimo termo para designar a antiga arte de fotografar em filmes de acetato impregnados por emulsões químicas sensíveis à luz). Antes, porém, de falarmos da evolução das câmeras com a simplificação exacerbada do interface, vale a pena examinar o que mudou na cultura fotográfica. Não me importo, aqui, com o fato do sujeito fotógrafo vir se tornando um profissional cada vez mais raro. Empresas de notícias, que antes empregavam legiões de profissionais para cobrir acontecimentos, hoje precisam apenas vasculhar nas redes sociais para obter imagens ilustrativas para suas matérias: sempre vai ter algum anônimo apontando um celular para fatos jornalisticamente relevantes, de tal modo que é frustrante para qualquer redação enviar um profissional a tempo de tirar as melhores fotos de coisas que acontecem a toda hora – apesar de que isto, às vezes, ainda ocorra.

Certamente uma enorme vantagem das câmeras digitais sobre as analógicas é a instantaneidade da verificação dos resultados (não há mais espera pelo processamento dos filmes em laboratórios), aliada ao número astronomicamente maior de tentativas facultadas a um fotógrafo. Se antes, com filmes comerciais de, no máximo, 36 exposições, era preciso pensar (rápido) antes de pressionar o obturador, hoje se pode obter, num chip padrão, milhares de fotos de uma mesma cena para depois escolher as melhores. Fotógrafos chegam, por vezes, a manter o obturador pressionado durante um fragmento de ação (como, por exemplo, num gol ou carambola durante uma corrida automobilística), como se estivessem filmando, para depois escolher as melhores fotos. Sei, por experiência, que, nestes casos, dá muito mais trabalho selecionar fotos do que, propriamente, tirá-las.

Há tempos eu já havia notado que câmeras digitais profissionais tendiam a emular o design das anteriores analógicas. Achava que era uma bobagem, um apelo de mercado ao design retrô e à tradição. Engano meu. Se câmeras profissionais mais modernas, conquanto largamente computadorizadas, continuam tendo a mesma forma, com botões e seletores discretos dispersos nos mesmos lugares, é por que o controle sobre diferentes variáveis, tais como tempo de exposição, abertura do diafragma e seu reflexo na profundidade de campo (faixa de distância na qual objetos permanecem em foco) é por que isto ainda faz parte da arte de fotografar.

Outra coisa é o visor. Já devem ter notado que fotógrafos experientes permanecem fiéis ao uso do visor, dispensando as telinhas pixilizadas hoje existentes em qualquer câmera. Isto não é por acaso. Enquanto numa pequena tela o que está no quadro compete em atenção com todo o entorno, que ocupa uma parte bem maior do campo visual, no visor quem fotografa vê somente o que está enquadrado. Como diante de uma tela de cinema ou, ainda, de um aparelho de TV numa sala escura. Por conveniência, câmeras profissionais (desde as melhores analógicas) costumam mostrar, nas margens do quadro, índices sobre os controles de exposição (tempo e abertura), pré-selecionados ou ajustados automaticamente. Já em celulares, o próprio visor foi abolido. Tampouco é preciso ter qualquer consciência sobre os ajustes para cada foto, pois o computador de bordo se encarrega de tudo.

Outra questão são as lentes. Uma das razões para a manutenção do formato na migração das câmeras analógicas para as digitais é a possibilidade do uso de lentes intercambiáveis. Assim como componentes de áudio mais pesados são melhores do que os mais leves (por terem fontes mais robustas e, portanto, estáveis), também lentes de diâmetro maior se traduzem em imagens melhores. Já devem ter notado que tanto celulares como aquelas primeiras câmeras digitais não profissionais (daquelas que se usava antes dos celulares começarem a incorporá-las) tem lentes minúsculas. As chamo de “lentilhas”.

Sei. A baixa resolução de imagens que serão vistas predominantemente em telas pixilizadas cancela a vantagem do uso de lentes maiores. Mas vale lembrar que, para puristas, até a praticidade das lentes zoom (com distância focal variável – o que, para leigos, significa poder, com uma única lente, afastar ou aproximar o objeto), que já foram exceção mas são hoje um atributo de qualquer câmera com lente fixa, pode comprometer a qualidade da imagem – tanto que a linha Batis da Zeiss (empresa ótica de ponta) possui lentes de várias distâncias focais sem incluir, todavia, nenhuma zoom.

Toda essa simplificação é boa para a fotografia ? Sim e não. Se, por um lado, nos aproximamos cada vez mais do ideal (?) “todos podem fotografar” (parafraseando Ratatuille em “todos podem cozinhar”), por outro, a arte da fotografia fica mais pobre. Se antes um fotógrafo precisava compor cada foto, escolhendo o melhor ângulo, a melhor luz e os melhores ajustes de exposição antes de apertar o botão, hoje qualquer testemunha da história aponta o celular de onde estiver, no máximo ajustando o zoom, e pronto. O resultado é, por definição, uma foto. Prático ? Sem dúvida. Outro dia, liguei para um serralheiro para que consertasse um portão e ele me pediu que tirasse uma foto do defeito com o celular e lhe mandasse por WhatsApp para que pudesse me enviar um orçamento. Gostaria de saber o que Sebastião Salgado, Henri Cartier-Bresson ou Ansel Adams (que fotografava em câmeras de negativos planos, gigantes, que carregavam apenas uma placa de cada vez) pensariam disto. Talvez tenhamos um dia que reconhecer historicamente a existência de um “parêntesis da fotografia”.

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Conquanto tenha me alongado, talvez demais, sobre a evolução recente da fotografia (uma paixão confessa), a diatribe da vez é, aqui, contra os famigerados sites de compras, daqueles em que você vai colocando tudo o que quer num “carrinho” virtual e paga pelos objetos desejados na saída (checkout), os enviando para seu endereço.

Não que a ideia seja ruim em si. Costuma funcionar bem para a aquisição de apenas um ou uns poucos objetos de cada vez. Como, por exemplo, livros. Já experimentaram, no entanto, comprar um rancho num supermercado desse jeito ? Lhes asseguro: é tão frustrante que chega a ser irritante.

Primeiro, por que você tem que abrir uma página para cada coisa que quiser comprar. Se quiser comparar vários produtos, terá que ir e vir entre duas ou mais páginas antes de se decidir por um deles. De tal modo que, para comprar n coisas, terá que abrir, no mínimo n + x páginas. Arrisco dizer que é, portanto, bem mais nocivo para seus tendões (além de gastar muito mais tempo) navegar nestes sites do que rabiscar uma lista e percorrer os corredores de um supermercado.

Segundo, por que boa parte do que você procura não é encontrado. Este problema tem várias origens. A mais comum é que, como sites varejistas são sistemas centralizados que abrangem toda uma cidade, estado ou, por vezes, país, é comum listarem produtos não disponíveis para entrega em sua região – o que torna, invariavelmente, a compra uma experiência incompleta ou, ao menos, pior que uma ida ao supermercado.

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Nos últimos meses, a pandemia me forçou a recorrer a fornecedores que oferecessem serviços de tele-entrega. A padaria, o açougue e o mercadinho do bairro foram os mais fáceis. Pequenos demais para desenvolverem sites de compras automatizados, funcionavam com listas como que de armazém que eu convenientemente lhes enviava por WhatsApp, recebendo os produtos em minha porta.

A coisa complicou quando precisei escolher um supermercado. Jamais comprei na rede A por que, em seu site, os preços dos produtos eram majorados em relação a seus preços de prateleira, já que a compra online era realizada por uma empresa terceirizada.

Depois de algumas tentativas, também desisti de comprar na rede B por causa da escassez de produtos “disponíveis para entrega em minha região”, conforme comentei acima.

Finalmente, cheguei à rede C que, pequena demais para já ter seu site de compras, ainda atendia clientes por meio de “listas de armazém” recebidas por WhatsApp, enviando os ranchos por motoristas de Über que, convenientemente, traziam a maquininha para o cartão de crédito a ser utilizado no pagamento. O serviço era tão bom que, quando não tinham um produto, ofereciam opções, comparando preços e, por vezes, enviando fotos de produtos disponíveis em suas prateleiras. Não tinha erro. Era como ir ao supermercado, só que sem precisar ir ao supermercado. Já tinha até decidido manter o hábito depois da vacina.

Foi quando, recentemente, respondendo ao impacto da pandemia sobre os negócios, a rede C também inaugurou seu site de compras com o infame carrinho. Pior: concentraram as vendas online em apenas duas lojas da rede, sendo que aquela à qual tocou atender “minha região” tinha um mix de produtos dramaticamente mais limitado do que a loja na qual eu havia me habituado a comprar – a ponto de faltarem itens básicos como, por exemplo, esponjas de cozinha. Para complicar, terminou o diálogo com o funcionário que diligentemente ajustava minhas necessidades à disponibilidade da loja. A tal ponto de receber, ao fim da primeira compra pelo novo sistema (mas ainda por lista mandada pelo WhatsApp, pois me recusei terminantemente a usar o site), a lacônica mensagem “o que não está na nota é por que nós não temos”.

Enfrentei, então, um dilema entre botar a boca no trombone, tipo cliente indignado (como é moda em redes sociais), tornando à selva em busca de um serviço customizado como aquele ao qual me acostumara ou, ao invés, procurar o gerente da loja da rede C, na qual me atenderam exemplarmente por tanto tempo, em busca de uma alternativa. Felizmente, tive tempo para pensar, nos dias que se passaram entre um rancho e o próximo, e acabei optando pelo caminho conciliatório. Fui imediatamente compreendido e o velho sistema restaurado sem que ninguém precisasse burlar as novas diretrizes administrativas da empresa. Eles continuariam comprando as listas que eu enviasse por WhatsApp, bastando que eu (ou alguém em meu lugar) passasse na loja para apanhar o rancho. Para montar minha nova logística, até recorri ao mesmo entregador cujo serviço já conhecia, só que agora contratado por mim ao invés de pela empresa. Quando eu obteria o mesmo tratamento de uma empresa maior, mais centralizada, com pirâmides gerenciais mais verticais e mais funcionários engessados por rígidas condutas de “boas práticas” ?

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Nem entrei, neste texto, no mérito de como a substituição progressiva de postos de trabalho humanos por robôs e algoritmos contribui para a marcha inexorável, vislumbrada por Harari, em direção a uma classe de inempregáveis. Por que, então, me dei ao trabalho de relatar tudo isto ? Tão somente para deixar claro que nem toda inovação tecnológica corresponde, necessariamente, a um progresso e, também, para ilustrar que, muitas vezes, resistir é possível.

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

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E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

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Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

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O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

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Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

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Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

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E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

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E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.