Plano sequência

É o nome que se dá a uma sequência cinematográfica sem cortes, filmada toda num único movimento de câmera. Desde que foi inventado, não sei quando nem por quem, é tido como uma espécie de patamar máximo de virtuosismo cinematográfico. É só imaginar o grau de planejamento e ensaio prévio de todos os movimentos de câmera e de todas as ações e falas dos atores que precisam ser perfeitamente coreografados. Se pensarmos que, com os recursos de edição disponíveis e largamente empregados nas linguagens cinematográfica e televisiva, cada fala ou ação por parte de técnicos e atores pode ser repetida até a perfeição ou exaustão (o que acontecer primeiro), planos sequência não são pouca coisa. Nem nos distantes tempos da filmagem em película, nem tampouco agora, com as fartas possibilidades inauguradas com a gravação de imagens em movimento em HDs.

Talvez o mais célebre exercício de virtuosidade na utilização de planos sequência seja o filme Festim Diabólico (Rope), dirigido por Alfred Hitchcock em 1948, o primeiro da série de 4 colaborações do ator James Stewart com o diretor.

Festim Diabólico é uma peça teatral adaptada para o cinema cuja ação se passa em tempo real (interessante observar o cair da noite sobre Nova Iorque, que serve de fundo ao cenário, através de uma janela panorâmica) e, o que é mais importante, toda ela filmada em apenas 4 (sic!) planos sequência, habilmente editados em três momentos em que uma superfície negra (invariavelmente as costas do paletó de um dos atores) é enquadrada na íntegra. Tais “pontos de edição” se devem ao fato de que, com a tecnologia da época, era impossível se rodar um filme inteiro num único plano sequência, já que interrupções eram necessárias para recarregar a câmera com novos rolos de filme. Hitchcock entrou, então, para a história ao filmar um longa-metragem com o mínimo de interrupções necessárias entre cada plano sequência e o seguinte.

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Outra obra, bem mais recente, que esbanja na utilização de planos sequência é o filme independente norte-americano A Subida (The Climb, 2019), de Michael Angelo Covino, do qual já falei no link acima.

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P.S.: Juliano Dupont, que acabo de conhecer, me enviou a seguinte correção:

“Festim Diabólico tem 10 cortes, não apenas 4, unindo 11 planos-sequência. Na época, as bobinas tinham um limite de 10m de filme para rodar.”

Muito obrigado, Juliano, pela leitura atenta e informação precisa !

A Subida (EUA, 2019)

Gosto de filmes não ortodoxos. A Subida (The Climb), de Michael Angelo Covino, é um destes.

Por mais diverso que seja o cinema, com todas as opções (por exemplo, de narrativa, fotografia ou montagem) que oferece a cada realizador, todo cinéfilo experiente acaba intuindo a existência de esquemas redundantes, tais como clichês de gênero, plot twists ou uso dramático da trilha sonora, o que acaba limitando a um repertório de fórmulas conhecidas os modos que mesmo cineastas mais criativos encontram para contar histórias. Quando conseguem fazer diferente, acabam ganhando prêmios.

Lançado às vésperas da pandemia, A Subida chega à TV sem passar pelas salas de exibição mas com uma respeitável coleção de seleções e premiações em prestigiosos festivais como Cannes, Deauville, Teluride, Toronto, Rio, Sundance e SXWX.

Peguei o filme pela metade. O que, na TV, pouco importa: como os filmes ficam muito tempo em cartaz, podemos ver depois o que faltou, integrando aos poucos as partes ao todo. Além disso, dado o fato de que filmes bons são raros em canais a cabo, acompanhar exibições repetidas quando topamos com algo bom não chega a ser exatamente um problema.

Num projeto que chega a parecer uma brincadeira entre amigos, o diretor estreante Michael Angelo Covino divide o roteiro, a produção e a atuação com seu grande amigo Kyle Marvin para contar uma história envolvente sobre grandes amizades que acaba se tornando, por isto, uma ode à não especialização. É divertido ver seus nomes se repetirem nos créditos. Bem que poderiam aparecer só uma vez, seguidos pelo rol de funções acumuladas por cada um: isto só realçaria seus talentos como homens-banda. Os personagens vividos no filme pelos dois amigos, Mike e Kyle, tem os mesmos nomes dos atores na vida real.

Se há um recurso cinematográfico dominante em A Subida, se trata indiscutivelmente do plano-sequência (tomada longa sem cortes), utilizado em quase todas as cenas. Tudo bem que hoje, com o registro de imagens em meios regraváveis, como discos rígidos, esteja de certa forma abolida a pressão para que atores e técnicos não errem durante longas cenas exaustivamente ensaiadas – como no tempo do Festim Diabólico (1948) de Alfred Hitchcock, filmado com um número mínimo de cortes, apenas suficientes para a troca dos rolos de filme. Neste contexto, chega a ser estranho que cineastas não abusem deste recurso, que é, desde a obra-prima de Hitchcock, praticamente um sinônimo de virtuosismo cinematográfico.

Conquanto planos-sequência representassem um desafio maior para atores e técnicos no tempo de Hitchcock, quando seus erros custavam mais caro, Covino vai além. Em muitas cenas, aparecem numa mesma tomada cenários internos e externos – um feito notável mesmo para os melhores diretores de fotografia. Um dos mais criativos destes planos-sequência ocorre numa cena de casamento, quando a câmera recua de um ponto atrás dos noivos pelo corredor central da igreja até sair da mesma, parando no estacionamento onde nada acontece até a chegada estabanada do amigo do noivo e acompanhando, então, num movimento inverso, a entrada intempestiva do mesmo na igreja. Ainda na mesma tomada, com a câmera circulando ao redor dos protagonistas, todo o imbroglio que se segue. Se isto não é virtuosismo cinematográfico, então não sei o que é.

Outro expediente favorito do diretor: sons inesperados que antecipam eventos a cujas imagens só temos acesso depois. Como, por exemplo, na supracitada cena de casamento. Antes de vermos a chegada do amigo, tomamos ciência não só de sua aproximação mas também de seu jeito desastrado de dirigir tão somente pelo ruído do veículo que se aproxima. Ou então noutro hábil plano-sequência, que começa no interior de uma casa e termina na rua, alternando entre os dois ambientes, quando o barulho de pratos quebrados anuncia a queda de uma caixa que só aparecerá nas imagens seguintes. O melhor de tudo: tal atraso entre som e imagem não é gratuito, servindo a uma função específica – que é, neste caso, mostrar a indiferença a um estrondoso desastre doméstico por parte de uma personagem que, depois de proferir um entediado “my god”, prossegue inabalada no que vinha fazendo.

Sei. Não há nada de novo nisto. Tiros e sirenes de polícia, bombeiros ou ambulâncias que se aproximam são um clichê que se perde no tempo – desde (já que falamos do filme) Festim Diabólico ou mesmo antes. Mas o uso do recurso denota, no mínimo, bom domínio da economia da linguagem.

Paisagens geladas também desempenham um papel importante. Superfícies cobertas de neve que se estendem até onde os olhos podem alcançar realçam o foco nos atores em cenas como a subida de teleférico ou a despedida de solteiro com uma pescaria no gelo. A pescaria no gelo. Cinco amigos apertados numa minúscula cabana vermelha sobre um imenso lago congelado, pescando através de um buraquinho. De repente, surge do nada um comentário divertido sobre despedidas de solteiro não serem despedidas de solteiro se não tiverem stripers. Então, dois deles saem a caminhar no gelo numa animada DR, tão inusitada porquanto sincera. No mais, só o tipo de coisa que acontece em passeios sobre lagos gelados. Mas chega de spoilers.

Outra característica de filmes não ortodoxos são atores que parecem pessoas normais. Nem bonitos nem feios. Só normais. Por que o cinemão nos acostumou com papéis vividos por beldades. A grande praga dos profissionais de casting deve ser ter que, na hora de montar elencos, lançar mão de uma Júlia Roberts ou de um Leonardo di Caprio. Ou atores que precisam ser, antes de tudo, modelos. Filmes com beldades parecem mais falsos no caso de cinebiografias que, ao final, mostram as pessoas reais vividas pelos atores, naqueles retratos em molduras pretas que já se tornaram um clichê. Assim, nada menos do que hilário conhecer ou lembrar, por exemplo, o rosto da cidadã comum vivida por Keyra Knightley em Segredos Oficiais (2019).

A Subida não padece deste problema. A barriguinha de Kyle Marvin ou o queixão e o nariz batatudo de Gayle Rankin contribuem para que vejamos na tela pessoas normais como a maioria das que nos rodeiam, conferindo mais verossimilhança à história.

Não vejo a hora de ver o início e rever o resto de A Subida, para conhecer a parte que perdi e melhor saborear a que ja vi.

A pobreza da TV e do streaming; documentários que se salvam

Nunca gostei muito de ver TV. Com a quarentena, todavia, passei a prestar mais atenção nela – tão somente para confirmar o que sempre ouvira dizer, a saber, que a programação é um desastre. Indistintamente na aberta, na por assinatura (que, por lógica, deveria ser ligeiramente melhor) e, mais recentemente, nas plataformas de streaming.

O problema maior consiste na falta de memória em relação ao cinema. Inútil procurar grandes filmes europeus dos anos 70 ou mesmo coisas mais recentes. Por exemplo. Quando quis mostrar a meus filhos clássicos protagonizados pelo grande Michel Piccoli ou Fargo, dos irmãos Coen (quase deste milênio), nada encontrei.

É claro que alguns canais estão mais imunes a thrillers, séries e lançamentos mais recentes do cinemão americano. Como o Telecine Cult, com uma curadoria um pouco mais atemporal, ou o HBO Mundi, pródigo em filmes europeus e argentinos. Ainda assim, a desproporção é grande, pois praticamente tudo que não foi produzido nos últimos anos em um único país fica concentrado em uns poucos canais – a cuja grade de programação devemos nos adaptar se quisermos escolher minimamente ao que assistir.

Já o streaming – que, ao menos em tese, veio para resolver o problema da customização do horário de exibição – deixa totalmente a desejar na palheta de opções disponíveis. Não é de hoje que constataram ser impossível impossível encontrar algum Hitchcock (qualquer um) no Netflix. Neste quesito, até o Cult, que reprisa Psicose, Janela Indiscreta ou Os Pássaros de tempos em tempos, desempenha melhor.

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Num mundo perfeito, com uma verdadeira política inclusiva, serviços digitais por assinatura deveriam, assim como saúde, educação ou segurança, ser gratuitos. Custeados por impostos e providos pelo estado. Acabando, com isto, com o pote de ouro do segmento ponto com – uma assimetria econômica (empresas que lucram barbaramente controlando o tráfego de informações) que precisa ser corrigida. Não acho, no entanto, que venha a viver suficiente para testemunhar isto.

De minha parte, resisto o que posso (romanticamente, dirão) assinando o mínimo de serviços que consigo. Consoante a isto, não tenho Spotify. Sei, por outro lado, por meio de amigos, que a base de conteúdo na popular plataforma de streaming de áudio é enormemente mais ampla e isonômica (em relação a épocas e lugares de produção) do que as análogas (Now e Netflix) dedicadas a conteúdos visuais.

Tenho uma hipótese (ou, se quiserem, teoria conspiratória) a este respeito. Tem a ver com o custo de armazenamento. Por que arquivos de áudio são muito mais curtos e menos densos do que os de imagem, são necessários muito mais bytes de memória para armazenar um trecho de imagem em movimento do que o mesmo tempo de som gravado. Além disso, uma música dura, em média, muito menos do que um filme. Combinados estes dois fatores, temos que a proporção entre as quantidades de servidores necessárias para armazenar filmes e músicas cresce, com o aumento da oferta de conteúdo, não numa relação linear, mas exponencial. Com o que plataformas de streaming de conteúdo visual sofrem, então, uma pressão econômica muito maior para “limar” conteúdos menos acessados do que suas análogas sonoras.

Tal realidade só aguça a tragédia da extinção das cinematecas e video-locadoras.

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Outra honrosa exceção à mesmice da programação da TV por assinatura são os documentários. No último fim de semana, assisti por acaso (teria visto mais se houvesse me programado) a três excelentes. No primeiro deles, Varda por Agnès (2019), em forma de entrevista, tomei conhecimento da obra visual da instigante cineasta e fotógrafa belga, radicada na França.

A Arma Perfeita e A Guerra dos Consoles, ambos de 2020, se inserem na mesma tradição de O Dilema das Redes, na qual os realizadores procuram explicar, por meio de entrevistas com insiders (analistas, executivos e projetistas), estratégias políticas e corporativas, nem sempre explícitas, que resultaram em fatos e produtos que definem o mundo em que vivemos mas cuja compreensão histórica ainda é um tanto nebulosa em razão de ser tudo muito recente.

A Guerra dos Consoles, baseado no livro homônimo de Blake Harris, é sobre a competição predatória entre a Sega e a Nintendo pelo voraz mercado de videogames nos EUA nos anos 90. Não vi até o fim (tive que sair antes disso), mas fiquei querendo que a narrativa se estendesse até as plataformas da Sony e aos jogos online. A Arma Perfeita versa sobre a ação de “hackers de estado” russos e chineses minando ainda mais a credibilidade do já claudicante sistema eleitoral norte-americano. Tanto um como o outro são excelentes aulas de história recente – ou, para quem não concordar com os fatos apresentados ou com a correlação estabelecida entre os mesmos, ao menos ótimas teorias conspiratórias. Mas, afinal, o que não é, desde o mais singelo silogismo categórico, uma teoria conspiratória ?

(mais sobre teorias conspiratórias e sua reabilitação num próximo post, pois este já se alongou que chega)